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Organização M. L. Pelizzoli)
Allan Wallace1
2
Wallace (1998) p. 168. Diz-se que um processo mental é intencional, não porque a pessoa tenha a intenção que este
ocorra, mas porque este possui o(s) seu(s) próprio(s) objeto(s) de conhecimento.
3
O desejo compulsivo é uma aflição mental que, por sua própria natureza, superimpõe uma qualidade de atratividade
nos objetos e anseia por eles. Este desejo distorce a cognição do objeto, pois o apego exagera suas qualidades
admiráveis e tira de vista as suas qualidades desagradáveis. Cf. Guenther e Kawamura (1975), p. 96; Rabten (1979),
pp. 74–5.
T
N
Optamos por registrar como o termo deve ser pronunciado e não como este é originalmente escrito e
acentuado.
dez milissegundos.4 Além disso, normalmente numa percepção contínua, muitos momentos de
consciência consistem em não averiguar a cognição, isto é, os objetos aparecem a esta consciência
desatenta, mas não são reconhecidos.5
Em termos desta teoria, pude inferir que o grau de estabilidade da atenção aumenta
proporcionalmente ao reconhecimento dos momentos de cognição do objeto intencionado; isto é, na
medida em que a estabilidade aumenta, menos momentos conscientes de averiguação estarão
focalizados em outro objeto qualquer. Isto leva a uma homogeneidade dos momentos de percepção
averiguada. O grau de vivacidade da atenção corresponde proporcionalmente aos momentos de
cognição averiguada a não-averiguada: quanto mais alta for a freqüência da percepção averiguada,
tanto maior será a vivacidade mental. Assim, a realização da Shamata implica numa densidade
excepcionalmente alta de momentos homogêneos de averiguação consciente.
Retornando à analogia do telescópio, o desenvolvimento da estabilidade da atenção se
assemelha ao ato da pessoa montar seu telescópio numa plataforma firme; enquanto o
desenvolvimento da vivacidade da atenção se assemelha a pessoa polir bem as lentes, para que o
telescópio fique nitidamente focado. Tsongkhapa (1357-1419), um eminente filósofo e meditador
budista tibetano, cita uma analogia mais tradicional para ilustrar a importância da estabilidade da
atenção e da vivacidade no cultivo do insight contemplativo:NT se para examinarmos, à noite, uma
tapeçaria pendurada, acendermos uma lamparina a óleo, que é radiante e não-trêmula, poderemos
observar vividamente as imagens nela descritas. Mas se a lamparina for sombria ou, mesmo que seja
clara, se tremular ao vento, não conseguiremos ver as formas da tapeçaria nitidamente.6
Entre a ampla variedade de técnicas criadas para o cultivo da Shamata, um dos métodos
comumente praticados pelos meditadores budistas tibetanos é o de focalizar a atenção numa imagem
mental. Esta imagem pode ser um objeto visível, como uma vara ou um seixo, embora os budistas
tibetanos geralmente prefiram as imagens mentais que tenham um grande significado religioso para
eles, como uma imagem do Buda. 7
Independentemente do tipo de técnica que a pessoa siga na prática da Shamata, diz-se que
duas faculdades mentais são indispensáveis ao cultivo da estabilidade e vividez da atenção; são elas,
a atenção plena e a introspecção. O termo sânscrito, traduzido para o inglês como mindfulness [e,
para o português, como atenção plena] também tem a conotação de memória, que é a faculdade de
sustentação da atenção num objeto familiar, sem que haja distrações ou distanciamento do mesmo.
Assim, quando a pessoa usa uma imagem mental como objeto meditativo, a faculdade da atenção
plena se fixa naquela imagem continuamente. Além disso, aquela imagem deve ser averiguada
claramente, caso contrário a potência total da vividez da atenção não pode surgir, a frouxidão sutil
não é dissipada, e a concentração da pessoa permanecerá defeituosa.
Diz-se que a atenção plena de uma imagem mental é um tipo de percepção mental. Na prática
4
Vasubandhu, 1991, II, p. 474; cf. Jamgön Kongtrul Lodrö Tayé (1995) pp. 168–9.
5
Para uma explicação detalhada da cognição não averiguada ver Lati Rinbochay (1981), pp. 92–110.
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Insight comtempativo significa a capacidade de penetração intelectual na meditação profunda.
6
Uma apresentação definitiva do cultivo da Shamata por Tsongkhapa encontra-se em Wallace (1998). A analogia acima
citada se encontra na sessão intitulada 'Razões porque é necessário cultivar ambas'.
7
A técnica de focalizar um seixo ou uma vara se encontra na sessão intitulada "Intruções para repousar com sinais", em
Padmasambhava (1998). Tsongkhapa opta pelo enfoque numa imagem do Buda, na sessão intitulada "Uma apresentação
dos verdadeiros objetos meditativos", em Wallace (1998). Para uma clara discussão da técnica de se enfocar numa
imagem de Buda, por um meditador tibetano contemporâneo, veja Lamrimpa (1995).
da Shamata, propriamente dita, é comum que seja primeiramente visualizado um objeto físico real
como um seixo; e, uma vez que a pessoa tenha se tornado inteiramente familiarizada com a
aparência do seixo, então ela passa a reconstruir uma imagem mental daquele objeto e focaliza
naquela imagem. Nesta fase da prática, a percepção mental apreende a forma do seixo pelo poder da
percepção visual que ela tem do mesmo. Portanto, a percepção mental não apreende o seixo
diretamente, mas se recorda dele, baseada na percepção visual imediatamente precedente daquele
objeto.
De acordo com a psicologia budista, a imagem mental do seixo não é uma faculdade ou
processo mental, pois esta não conhece o seu próprio objeto, mas também não é material no sentido
de ser composta por partículas de matéria. Ao invés disso, a imagem mental é considerada como
uma forma de consciência mental (cf. Hopkins, 1983, pp. 232-4), como as formas que aparecem no
estado do sonho. Nesta prática, a atenção da pessoa está totalmente focada naquela imagem mental,
e não no objeto seixo da qual a imagem é uma verossimilhança. Em outras palavras, esta é a função
da atenção plena: sustentar a lembrança da imagem do seixo, observando-o 'internamente' de forma
estável e análoga à observação visual do próprio seixo.
Atenção plena é o meio principal de se realizar Shamata, mas esta deve estar acompanhada da
faculdade mental da introspecção. Enquanto a tarefa da atenção plena é a de prestar atenção no
objeto meditativo, sem esquecimento, a introspecção tem a função de monitorar o processo
meditativo. Assim, a introspecção é um tipo de meta-cognição que opera como 'controle de
qualidade' do desenvolvimento da Shamata, detectando prontamente a ocorrência da excitação ou da
frouxidão. Na tradição budista, a introspecção é definida como o exame reprisado do estado físico e
mental da pessoa (Shantideva, 1997, V:108), sendo considerada como um derivativo da
inteligência.8
A afirmação budista da possibilidade de introspecção como uma forma de meta-cognição
levanta o interessante problema de se é, ou não é, possível para a mente observar ela mesma. Os
budistas geralmente afirmam que, num determinado momento qualquer, a consciência e seus
processos mentais concomitantes têm o mesmo objeto intencional; e, a cada momento, apenas uma
consciência pode ser produzida por um único indivíduo (Vasubandhu, 1991, Vol.I, pp. 206, 272).
Além disso, um famoso discurso, atribuído ao Buda, afirma que a mente não pode observar a si
mesma. Tal como uma espada não pode se cortar e a ponta do dedo não pode se tocar, a mente não
pode ser vista em objetos sensoriais externos ou nos órgãos dos sentidos (Ratnacutasutra, citado em
Shantideva (1971) pp. 220-1).
Eu presumo que a fundamentação que respalda esta afirmação é a de que mesmo quando a
pessoa está atenta à própria experiência subjetiva de um dado objeto, a sensação de separatividade
entre o observador daquela experiência e a própria experiência continua existindo. A sensação de
dualidade continua. Dentro do contexto usual da cognição dualística, não pode haver uma
consciência subjetiva sem um objeto, da mesma maneira como não pode haver um objeto sem
referência a um sujeito que conhece ou designa aquele objeto. De acordo com a filosofia budista
tibetana, sujeito e objeto são mutuamente interdependentes. Todos os fenômenos experimentados
como sujeitos e objetos surgem dentro, e em dependência, de uma moldura conceitual dentro da qual
eles são designados.
Quando a pessoa observa a sua própria experiência subjetiva de um objeto, o observador
parece ser distinto daquela experiência; e se a pessoa toma nota daquele observador, ainda
permanece uma sensação de dualidade entre o observador notado e aquele que nota o observador.
Esta hipótese de um observador que percebe um observador que está existindo simultaneamente,
que percebe um observador que está existindo simultaneamente segue uma retrogressão infinita.
8
A inteligência é definida como um processo mental que tem a função singular de diferenciar atributos específicos ou
falhas e méritos dos objetos que são mantidos com atenção plena. Cf. Rabten (1979), p. 63.
Shantideva, um meditador budista indiano do século VIII, evita este problema ao sugerir que tal
meta-cognição não acontece com respeito a uma cognição simultaneamente existente, pois, ao invés
disso, a pessoa está relembrando momentos passados de consciência. Em suma, ele levanta a
hipótese de que é possível recordar uma experiência subjetiva que não tenha sido anteriormente
percebida como uma entidade distinta, isolada. Na visão de Shantideva, quando a pessoa se lembra
de ter visto um certo evento, a pessoa se recorda tanto do evento percebido como de si mesmo
percebendo aquele evento. O sujeito e o objeto são lembrados como um evento integrado e
experienciado, a partir do qual o sujeito é identificado retrospectivamente como tal; mas ele nega
que seja possível para uma única cognição tomar a si mesma como seu próprio objeto (Shantideva,
1997, IX,: 23; cf. Dalai Lama, 1994, pp. 26-31).
Por exemplo: quando a atenção da pessoa está focada na cor azul, a pessoa não está
observando a sua própria percepção daquela cor. Porém, quando o interesse da pessoa muda para a
experiência do azul, a pessoa está de fato se recordando da visão que teve daquela cor um momento
antes. Neste processo, a pessoa isola, conceitualmente e retrospectivamente, o elemento subjetivo da
lembrança do evento experimentado, no qual o azul e a experiência do azul estavam integrados.
Assim, quando a atenção fica alternando, prá lá e prá cá, entre o prestar atenção à cor e a lembrança
da cor, é como se esta alternância fosse comparável a mudança da atenção dos objetos localizados
no centro da consciência para os que estão na sua periferia; mas ao invés disso, de acordo com
Shantideva, a atenção salta do objeto percebido para uma breve lembrança do evento anterior. Ao se
lembrar daquele evento, o sujeito é isolado e relembrado, embora não tenha sido seu próprio objeto
na hora da ocorrência. Quando a pessoa está se recordando da percepção de um evento anterior,
ainda há uma sensação de dualidade entre ela mesma e a percepção que ela está tendo daquela
recordação. Uma única cognição não se auto-percebe; portanto a dualidade sujeito/objeto é mantida.
Neste caso, a introspecção, funcionando como um tipo de percepção mental, relembra
processos mentais intencionais, como a excitação e a frouxidão, de um momento experimentado
anteriormente. Do ponto de vista da experiência, quando a pessoa se concentra inteiramente num
objeto visual, sua percepção mental se focaliza naquele objeto, e ela não apreende a experiência
daquele objeto. Então, quando a atenção muda para a experiência visual em si, o objeto visual torna-
se indistinto, embora não desapareça gradual e completamente. Esta aparente alternância da atenção
do objeto para o sujeito parece implicar numa troca dentro do campo sujeito/objeto, ou da matriz, da
experiência visual: na medida em que a pessoa focaliza o objeto mais profundamente, ela fica menos
consciente do sujeito; e enquanto a pessoa focaliza mais a experiência subjetiva mais
profundamente, ela fica menos consciente do objeto. O ponto que Shantideva ressalta com relação a
isto parece ser o de que embora a pessoa não esteja consciente da experiência subjetiva de uma
percepção visual durante sua ocorrência, a pessoa pode posteriormente recordar-se totalmente da
matriz sujeito/objeto, e, desta forma, trazer à consciência a experiência subjetiva inicial.
9
Este tópico é discutido na sessão intitulada 'identificando a determinação e os meios de interromper a frouxidão e
excitação' em Wallace (1998).
Quando a pessoa realiza o quarto estágio de atenção, denominado posicionamento
concentrado, a atenção é estabilizada até o ponto em que a pessoa não se desliga completamente do
objeto meditativo durante todo o tempo de cada sessão de meditação. O terceiro e quarto estágios
são alcançados principalmente através do cultivo da atenção plena, e a ênfase principal até então
recaiu sobre o desenvolvimento da estabilidade da atenção, e não da vivacidade. De fato, os
meditadores budistas descobriram que se a pessoa inicialmente se esforçar para conseguir uma
vivacidade maior, este esforço irá, na realidade, minar o desenvolvimento da estabilidade da
atenção. Com a realização do posicionamento concentrado, o poder da atenção plena fica bem
explícito, a estabilidade da atenção rudimentar é alcançada, e a pessoa está livre da superabundância
da excitação densa. Particularmente neste ponto do treinamento, é muito fácil da pessoa ficar
presunçosa, acreditando que o objetivo da atenção voluntária, contínua, já foi alcançado. Na
realidade, a pessoa ainda está muito sujeita a excitação e a frouxidão sutis e densas, e Tsongkhapa
adverte que se a pessoa não reconhecer estas falhas, este tipo de prática continuada pode, de fato,
prejudicar a inteligência da pessoa. William James também ficou ciente de casos patológicos nos
quais a mente ficou possuída por uma idéia fixa e recorrente de uma forma monótona, e concluiu
que esses eram os únicos casos em que a atenção se tornou fixa num objeto que é inalterável (James,
1950, I, pág. 423). Os meditadores budistas defendem que a saúde mental pode ser mantida e até
mesmo aperfeiçoada desde que a pessoa cultive um alto grau de vivacidade na atenção contínua.
Assim, o quinto estágio da atenção, chamado domando a mente, e o sexto, pacificação, são
alcançados através da força da introspecção, com a qual a pessoa monitora o processo meditativo
minunciosamente, observando se há ocorrência da frouxidão e da excitação sutis. No estágio
domando a mente, a frouxidão, na qual a vividez da atenção desaparece, é dissipada; e na fase
pacificação, a excitação sutil é eliminada, de forma que até mesmo as distrações periféricas
desapareceram. Neste momento, surge uma sensação crescente de alegria e de satisfação durante a
meditação, de modo que o sétimo e oitavo estados de atenção, a total pacificação e a atenção uni-
focalizada, são alcançados pela força do entusiasmo. No sétimo estágio, até mesmo a frouxidão
sutil, na qual a potência total da vividez da atenção não é produzida, é eliminada; e no que diz
respeito à atenção uni-focalizada, a mente pode repousar no seu objeto escolhido com estabilidade e
vividez absoluta por horas a fio, sem a ocorrência de nem mesmo a mais sutil frouxidão ou
excitação. William James prediz que se a atenção estiver concentrada numa imagem mental por
tempo suficiente, adquire diante do olho da mente quase que o mesmo esplendor de um objeto
percebido visualmente (ibid. pág. 425), e isto é exatamente o que os meditadores budistas relatam a
partir de suas experiências neste estágio de desenvolvimento da Shamata.
Com a realização do nono estágio, denominado posicionamento equilibrado, que é alcançado
pela força da familiaridade, apenas um impulso inicial de esforço e determinação é necessário no
início de cada sessão de meditação; pois logo em seguida a atenção contínua e ininterrupta, ocorre
sem esforço. Além do mais, o engajamento da força de vontade, do esforço e da intervenção é, de
fato, um obstáculo neste momento. É hora de deixar que o equilíbrio natural da mente se mantenha
sem interferências.
A consecução da Shamata
Mesmo quando a pessoa chega ao estado de posicionamento equilibrado, a Shamata ainda não
foi inteiramente alcançada. Sua consecução está marcada primeiramente por uma mudança
dramática no sistema nervoso da pessoa, que pode ser brevemente caracterizada por uma sensação,
que não é desagradável, de peso e de entorpecimento no topo da cabeça. Esta sensação é seguida de
um evidente aumento da maleabilidade mental e física, que conduz a uma alegria e leveza mentais e
a uma vivacidade e leveza corporais. Por conseguinte, surgem as experiências de felicidade física e
mental, que são temporariamente bem imperiosas. Mas este êxtase logo se esvanece, e com o seu
desaparecimento, a atenção é firmemente e calmamente sustentada no objeto meditativo, e assim a
Shamata é inteiramente alcançada. As afirmações, acima descritas, relativas à mudança que ocorre
no sistema nervoso do praticante e suas conseqüências, estão baseadas em experiências fisiológicas,
empíricas, de primeira-mão. Resta saber como ou se tal teoria e as mudanças fisiológicas
correspondentes podem ser objetivamente detectadas e compreendidas em termos científicos
modernos.
Com a consecução da Shamata, a pessoa se desliga do objeto meditativo anterior, e a
continuidade total da sua atenção se focaliza unicamente, de forma inequívoca, sem conceituações e
introspectivamente na própria natureza da consciência; e a atenção é completamente retirada das
sensações físicas. Assim, pela primeira vez neste treinamento, a pessoa não tenta se recordar de um
objeto familiar ou se ligar mentalmente a ele. A consciência da pessoa agora permanece numa
ausência de impressões, uma experiência que é considerada como sendo sutil e difícil de ser
alcançada. Só os aspectos da consciência pura, claridade e alegria da mente surjem, sem a intrusão
de qualquer objeto sensorial. Quaisquer pensamentos que surjem não são mantidos, nem
proliferados; mas desaparecem por eles mesmos, como bolhas que emergiram da água. A pessoa não
tem sensação alguma do seu próprio corpo, e é como se sua mente tivesse se tornado indivisível com
o espaço.
Enquanto permanecer nesta ausência de impressões, embora que não seja possível para um
único momento de consciência se auto-observar, um momento de consciência pode recordar a
experiência do momento imediatamente precedente de consciência que, por sua vez, pode recordar
do seu momento precedente — cada momento não tendo nenhuma outra aparência ou objetos
surgindo para ele. Assim, devido à homogeneidade deste continuum mental, com cada momento de
consciência relembrando-se do momento anterior de consciência, o efeito experimentado é o da
consciência se auto apreendendo.
As características definidoras da consciência percebidas neste estado rememorativo são:
primeiro, uma sensação de clareza, ou de luminosidade implícita capaz de se manifestar em todas as
formas de aparências; segundo, a qualidade de compreensão, ou ato de conhecer. Ao se atingir
Shamata, focalizando a atenção na clareza pura e na compreensão pura da experiência, a pessoa
presta atenção apenas às características definidoras da consciência, ao invés de prestar atenção nas
qualidades dos outros objetos da consciência.
Há algo forjado neste estado de não-conceituação, descrito acima, pois durante o treinamento,
do qual ele resulta, a mente foi artificialmente afastada das imagens e a ideação, suprimida. A
consciência, com a qual a pessoa percebe as características da alegria, clareza e não-conceituação,
esteve conceitualmente isolada de seus processos conceituais normais e das variadas imagens com
as quais se engaja normalmente. Poder-se-ia então levantar uma pergunta: não seria possível
identificar as características naturais da consciência no meio da atividade mental, sem suprimir a
formação de idéias? Afinal de contas, a consciência está obviamente presente e ativa no momento
em que os pensamentos surgem, então, em princípio, não parece haver razão alguma para que ela
não possa ser identificada.
Foi com este propósito que a técnica de 'estabilizar a mente em seu estado natural' foi
inventado e ensinado dentro da tradição indo-tibetana budista (Dalai Lama & Berzin, 1997, pp. 37-
142; Karma Chagmé, 1998, pág. 80). Este método, como todas as outras técnicas para desenvolver
Shamata, implica em livrar a mente da distração, para que a atenção da pessoa não seja carregada
compulsivamente para longe, seja por um estímulo mental ou sensorial. Este método, no entanto, é
excepcional, pois a atenção não está fixa em objeto algum. Aqui, a pessoa contempla firmemente o
espaço a sua frente, mas sem focalizar visualmente coisa alguma. Mentalmente, a pessoa volta a
atenção para o domínio da mente, e sempre que qualquer tipo de evento mental é observado — a
pessoa simplesmente toma nota do mesmo sem classificá-lo conceitualmente e sem tentar suprimi-lo
ou sustentá-lo. Permitindo que a mente permaneça à vontade, a pessoa assiste todas as formas de
eventos mentais emergirem e passarem livremente, sem intervir de forma alguma. Ao estabilizar a
consciência no presente, a pessoa não permite que a atenção vagueie em pensamentos, que dizem
respeito ao passado ou ao futuro, ou se feche em qualquer objeto no presente.
Normalmente quando os pensamentos surgem, a pessoa se engaja conceitualmente com os
referentes ou objetos intencionais desses pensamentos, mas, nesta prática, a pessoa presta atenção na
perceptibilidade dos próprios pensamentos, sem julgá-los ou avaliá-los. O coração da prática é
permitir que a consciência permaneça em seu 'estado' natural, límpido e vívido, sem ficar
embrulhada em emoções flutuantes e padrões de pensamento habituais. Enquanto estiver seguindo
esta prática, a pessoa procura, de forma alternada, a consciência que está se engajando nesta
meditação e então despreende-se da consciência mais uma vez. Acredita-se que este é um dos meios
efetivos de se dissipar a frouxidão. Padmasambhava, um meditador indiano budista do século oito,
(1998) descreve esta técnica da seguinte forma:
Tendo nada sobre o que meditar, e sem modificação ou adulteração alguma,
simplesmente posicione a sua atenção, sem oscilação, em seu próprio estado
natural, em sua limpidez natural, em seu próprio caráter, da forma como ela é.
Permaneça na claridade, e descanse a mente para que ela fique solta e livre.
Alterne entre observar quem está se concentrando introspectivamente e quem
está despreendendo-se. Se for a mente, pergunte: o que é exatamente aquele
agente que solta e concentra a mente? Observe a si mesmo com constância; e
então solte novamente. Fazendo isso, uma delicada estabilidade surgirá, e você
pode até mesmo identificar a consciência (pág. 106).
O resultado desta prática, diz ele, é que surge a Shamata impecável, de forma tal que onde
quer que a consciência seja colocada, ela fica firmemente no presente, impassível frente aos
pensamentos adventícios, e vividamente clara, sem tornar-se maculada pela frouxidão, letargia ou
obscuridade. Deste modo, a clareza pura e a compreensão da consciência também podem ser
reconhecidas.
No final do século dezenove, muitos físicos estavam totalmente convencidos de que não havia
mais grandes descobertas a serem feitas em seus campos de estudo — a compreensão deles, sobre
todos os aspectos importantes do universo físico, estaria completa. Um dos poucos problemas
pendentes a serem resolvidos era conhecido como a 'catástrofe ultravioleta', que tinha a ver com a
incompatibilidade da fórmula entropia-energia derivada da termodinâmica clássica. A solução para
este problema veio de Max Planck, que desse modo preparou a base para a teoria quântica moderna,
que abalou os próprios fundamentos das visões que os físicos tinham do universo.13
Enquanto certamente não há um sentido equivalente de que as ciências cognitivas teriam
formulado uma teoria completa do cérebro e mente — muito pelo contrário! — muitos especialitas
desta área concluíram, sem sombra de dúvida, que a consciência é produzida somente pelo cérebro e
que não tem uma eficácia causal separada do cérebro. O fato da ciência moderna não ter conseguido
identificar a natureza ou origens da consciência e que ela está até mesmo longe de descobrir os
correlatos cerebrais da consciência não diminui, de forma alguma, a certeza daqueles que sustentam
visões materialistas da mente. Quando o conhecimento empírico da natureza e potenciais da
1 1
Ratnameghasutra, citado em Shantideva (1961), pág. 68.
1 2
Por uma discussão das técnicas para se realizar a natureza da consciência primordial, consultar Karma Chagmé
(1998), cap. 4–6, e Padmasambhava (1998), pp. 114–40.
1 3
Para obter um relato fascinante deste problema e de sua radical solução, consultar Whittaker (1954), Cap. 3.
consciência substituir estas suposições metafísicas atuais, eu acredito muito que o 'problema da
consciência' passará a ter um papel na história da ciência, comparável àquela da catástrofe
ultravioleta.
A forma mais efetiva de adquirir tal conhecimento, eu acredito, é através de um esforço
combinado e de colaboração dos cientistas cognitivos e dos meditadores profissionais, usando suas
habilidades introspectivas e extraspectivas para tentar resolver o duro problema da consciência. Isto
requer, entre outras coisas, estudos longitudinais do desenvolvimento gradual da Shamata por
pessoas que se dedicam a este treinamento com a mesma dedicação exibida pelos cientistas e
engenheiros empregados no Projeto Manhattan. A realização bem sucedida daqueles que exploraram
o poder atômico nuclear mudou a face do mundo moderno. A realização bem sucedida de um
Projeto Shamata poderia levar ao mesmo, e, se tal empreendimento for realizado com os objetivos
altruístas promovidas pelo Budismo e por outras grandes tradições de pensamento do mundo, as
conseqüências para a humanidade podem ser mais uniformemente benéficas.
Referências
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