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CAMPONESES, POVOS INDÍGENAS E TERRAS COMUNAIS NO

PENSAMENTO DE MARIÁTEGUI
Enrico Paternostro Bueno da Silva

1. INTRODUÇÃO

“A história do pensamento não pronuncia sumariamente: isto é


verdadeiro, aquilo é falso. Como qualquer história, tem decisões
surdas: liberta ou embalsama certas doutrinas, transforma-as em
„mensagens‟ ou em peças de museu. Existem outras, pelo contrário,
que mantêm em atividade, não por entre elas e uma “realidade”
invariável existir qualquer miraculosa adequação ou correspondência
(...), mas porque continuam falando para lá dos enunciados, das
proposições, intermediários a que estamos vinculados se queremos ir
além. São esses os clássicos. Reconhecem-se pelo fato de ninguém os
tomar à letra e não obstante nunca os fatos novos se acharem
absolutamente fora da sua competência, e extraírem deles novos ecos,
revelarem neles novos relevos.”
Merleau-Ponty, 1960

O jornalista peruano José Carlos Mariátegui (1894-1930) é uma figura


controversa na história do pensamento marxista. Ora rejeitado, ora aclamado por
marxistas e revolucionários de toda linhagem, seu pensamento até hoje é relembrado e
debatido na América Latina. Por um lado, foi alvo das mais diversas críticas, que
variam desde a acusação de um excessivo ecletismo em sua obra até a denúncia de um
suposto “europeísmo”, que o teria distanciado da realidade latino-americana. Por outro,
foi retomado e reconhecido por alguns dos principais pensadores sociais latino-
americanos do século XX, principalmente após os anos 60. Florestan Fernandes, por
exemplo, ao escrever o prefácio da obra-prima do autor, chega a dizer que “os Sete
Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana aparecem como a primeira
manifestação do que hoje se entende por sociologia crítica e militante na América
Latina” 1.

1
FERNANDES, F. “Os ‘Sete Ensaios’”. In: Amayo, E.; Segatto, J. A. (org.), J. C. Mariátegui e o marxismo na
América Latina. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2002, p. 33.
Em geral, seus comentadores convergem ao defendê-lo como um importante
introdutor do pensamento marxista na América Latina. Evidentemente, não foi o único
nem o primeiro a discutir, antes dos anos 30, as questões do subcontinente sob a matriz
teórica do materialismo histórico. Todavia, segundo Aníbal Quijano2, ainda que outros
pensadores tenham ascendido a um marxismo mais profundo que o do Amauta3 nesta
época, é a obra deste que permanece vigente. De acordo com o sociólogo,

“Si Mariátegui fue capaz de dejar una obra en la cual los revolucionarios de América
Latina y de otros países, puenden aún encontrar y reconstruir una matriz de
indiscutible fecundidad para las tareas de hoy, se debe ante todo al hecho de haber
sido, entre todos los que contribuyeron a la implantación del marxismo en América
Latina de su tiempo, el que más profunda y certamente logró apropiarse – y no
importa si e modo más intuitivo que sistemático y elaborado, o cruzado com
preocupaciones metafísicas – aquello que, como Melis apunta, „confiere un valor
autenticamente científico (...) al marxismo‟4. Esto es, su calidad de marco y punto de
partida para investigar, conocer, explicar, interpretar y cambiar una realidad
histórica concreta, desde dentro de ella misma” 5.

Têm-se, assim, as duas primeiras, e principais, justificativas para o estudo da


obra deste polêmico autor: seu trabalho é de grande relevância para a introdução da
análise marxista das peculiares questões latino-americanas; e suas idéias ainda podem
contribuir a intelectuais e militantes que se defrontam com essas questões.
Mariátegui, contudo, se envolveu em uma pluralidade temática muito ampla:
discutiu questões estéticas acerca de diversas manifestações artísticas (inclusive nos
trabalhos de Diego Rivera6, Eça de Queiroz7 e Charlie Chaplin8); refletiu a questão da
nacionalidade peruana; realizou estudos sobre a América Pré-Colombiana, em especial
o Império Inca; lecionou sobre a crise européia após a Primeira Guerra; e discorreu com

2
QUIJANO, A. Introducción a Mariátegui. México: Era, 1982.
3
Na cultura inca, o Amauta era um homem sábio, cuja experiência o fizera alcançar “a ciência do mundo
e a consciência de si” (ESCORSIM, L. J. C. Mariátegui: marxismo, cultura e revolução. Tese (doutorado),
Rio de Janeiro: Escola de Serviço Social – UFRJ, 2004, p. 1). Este era o nome da revista fundada e dirigida
por Mariátegui. Após sua morte, a palavra passou a designar o próprio autor.
4
MELIS, A. apud QUIJANO, A. Op. cit., p. 60.
5
QUIJANO, A. Op. cit., pp. 60-61.
6
MARIÁTEGUI, J. C. “Itinerário de Diego Rivera”. In: Por um Socialismo Indo-Americano. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2005.
7
Idem. “La urbe y el campo”. In: El alma matinal y otras estaciones del hombre de hoy. Lima: Amauta,
1959.
8
Idem. “Esquema de una explicación de Chaplin. In: Literatura y estética. Caracas: Fundación Biblioteca
Ayacucho, 2006.
muita firmeza sobre as questões agrária e indígena em seu país – e este é, precisamente,
o tema desta pesquisa.
Outra razão básica que motiva o estudo desse autor é a inventividade e a
heterodoxia de seu pensamento. Um pensamento que, como bem frisou Quijano, é
dotado de valor científico e revolucionário, mas que, ao mesmo tempo, não se limita a
“aplicar” o aparato conceitual marxista sobre uma dada realidade social. Ou seja: ele
estuda a realidade peruana a partir dela mesma, mas, para interpretar essa realidade, se
vale de contribuições do pensamento europeu, em especial do marxismo.
Diferentemente de muitos pensadores latino-americanos, Mariátegui não faz sua análise
tendo como referência paradigmática os modelos europeu e norte-americano de
economia e sociedade.9 Pelo contrário, ao discutir a identidade nacional peruana, coloca
o indígena, o autóctone, no centro da questão; e ao propor o socialismo, propõe que este
seja “indo-americano”, crendo na contribuição dos valores coletivistas quéchuas para a
efetivação da luta e a construção dessa nova sociedade.
A especificidade do tema aqui estudado – os povos indígenas e a questão agrária
– também tem sua razão de ser. Neste início de século XXI, a América Latina presencia,
talvez mais que nunca, uma forte atuação de movimentos sociais que, formados sobre
suas bases étnicas, reclamam justiça histórica em relação a terras que lhes foram
tomadas10. Observam-se, assim, povos indígenas nos Andes e na Amazônia, e
quilombolas no Brasil que vêm atuando nestas reivindicações. Relembrar Mariátegui,
um pensador que soube muito bem lidar com a convergência entre uma questão étnico-
cultural e outra sócio-econômica, pode vir a colaborar na reflexão sobre essa conjuntura
contemporânea.
Fica, dessa maneira, argumentada a escolha do tema desta pesquisa. Todavia,
para melhor apreensão da produção intelectual do jornalista, é preciso conhecer também
sua ação política, uma vez que, em sua vida, as duas questões aparecem indissociáveis.
Assim, o primeiro capítulo deste relatório busca compreender a vida pessoal e a

9
Octávio Ianni, ao trazer um amplo panorama do pensamento latino-americano, acusa muitos autores
de se espelharem nos modelos estrangeiros para pensarem a América Latina. Assim, esta acaba se
fazendo, a eles, como reflexo, recriação, e até caricatura da modernidade européia e estadunidense.
Mariátegui, para Ianni, se encontra entre os que “realizam produções e criações originais, que se podem
denominar latinoamericanas, pela originalidade dos conceitos, categorias e interpretações, bem como
dos emblemas, metáforas e alegorias” (Ianni, O. “Enigmas do pensamento latinoamericano”. Primeira
Versão – IFCH/Unicamp, nº 125, 2005, p. 42).
10
A luta pela terra, muitas vezes, não constitui a única bandeira desses movimentos. Hoje, muitas
questões políticas também estão em jogo nessa luta como, por exemplo, o Estado Plurinacional,
bandeira erguida, sobretudo, pelos movimentos indígenas nos países andinos.
militância política de nosso autor. Além disso, cremos que seja de suma importância o
entendimento do contexto político, econômico, social e cultural do Peru no curto
período de sua produção.
Esclarecida a vida do autor e o contexto histórico de seu país, o segundo capítulo
se propõe a uma breve introdução teórica ao autor, sobretudo sobre a maneira pela qual
ele se apropria do marxismo, um assunto muito discutido entre seus principais
comentadores. Objetiva, também, apontar alguns problemas em sua formulação teórica,
à luz de Quijano.
Os terceiro e quarto capítulo constituem o centro deste trabalho. Neles são
discutidos os problemas indígena e agrário. Para tal, é inevitável uma revisão histórica
dessas questões no Peru, conforme o próprio autor faz. Nesses dois capítulos,
especialmente, é dada uma atenção maior aos escritos de Mariátegui que a seus
intérpretes.
Em seguida, no quinto capítulo, é exposta a luta de Mariátegui pelo socialismo,
através de textos que revelam sua atuação política na APRA (Alianza Popular
Revolucionaria Americana), na CGTP (Confederación General de los Trabajadores del
Perú) e no Partido Socialista do Peru. Pretende-se entender sua atuação na organização
do proletariado urbano e do campesinato para a construção do “socialismo indo-
americano”.
Por fim, a Conclusão deste trabalho visa defender que se encontra, em
Mariátegui, a elaboração de um marxismo heterodoxo e criativo, porém profundamente
revolucionário, capaz de compreender as principais questões estruturais que atingem até
hoje as comunidades indígenas e camponesas, bem como dotado de potencial político-
militante visando a superação das questões apontadas. Para tal, o esforço desta pesquisa
se dá no sentido de demonstrar a importância e a atualidade deste autor nos temas
estudados.
2. MARIÁTEGUI: SUA VIDA E SEU PAÍS

“José Carlos Mariátegui (1894-1930) foi o próprio artífice de sua


grandeza. Nascido de uma família pobre e tendo de prover o seu
sustento precocemente, encontrou em suas atividades práticas os
meios para promover sua autoeducação, para demonstrar e
aperfeiçoar sua vocação literária, e para tornar-se o maior expoente
do socialismo de sua geração e da década de 20-30 (não só quanto ao
Peru, mas a toda América Latina).”

Florestan Fernandes, 1975

2.1. Síntese biográfica do autor


José Carlos Mariátegui nasceu na cidade de Moquega, sul do Peru, em 14 de
junho de 1894. Junto com seus dois irmãos, foi criado apenas pela mãe, María Amalia
La Chira Vallejos, que os sustentava com seu ofício de costureira. A família havia sido
abandonada pelo pai que o autor nunca conheceu, Francisco Javier Mariátegui, o qual
era de tradicional família limenha e trabalhava no Tribunal de Contas da capital
peruana.
Em outubro de 1902, quando já habitava Huacho – pequena cidade ao norte de
Lima; único lugar onde realizou estudos formais – Mariátegui sofreu um acidente
durante uma brincadeira, fraturando a perna esquerda. Após várias cirurgias mal-
sucedidas, a lesão agravou-se, tornando-o manco pelo resto da vida. Illán11 ressalta que
não foi este acontecimento que ocasionou a amputação de sua perna, em 1924 – neste
ano, o autor recém-regresso do exílio desenvolveu um tumor na perna direita que
resultaria na amputação desta e, em 1930, em sua morte.
Quijano acredita que o incidente da infância foi de grande importância para a
formação pessoal e intelectual de Mariátegui:

“En el ambiente religioso de su familia, su enfermedad reforzó probablemente en el


niño Mariátegui una propensión religiosa, dando lugar al desarrollo de inclinaziones
místicas. Y, al mismo tiempo, el repliegue forzoso consigo mismo le permitió iniciar
la lectura de la pequeña biblioteca dejada por su padre antes de eclipsarse del todo
del hogar, y comenzar su formación autodidacta, procurándose ávidamente material
de lectura. Su inquietud desatada lo levará poco después a estudiar francés por su

11
ILLÁN, D. M. José Carlos Mariátegui y su pensamiento revolucionario. Lima: IEP, 1974.
cuenta. Por la misma época comenzaría también a escribir sus primeros versos, de
contenido místico-religioso.”12

Alguns desses versos encontram-se no soneto “Elogio de la Celda Ascética”,


escrito mais tarde:

“Piedosa celda guardas aroma de breviário


tienes la misteriosa pureza de la cal
y habita en ti el recuerdo de un Gran Solitario
que se purifica del pecado mortal.

Sobre la mesa rústica de un devocionario


y dice evocacionas la estampa de un misal:
San Antonio de Padua, exangüe y visionario
tiene el místico ensueño del Cordero Pascal

Cristo crucificado llora ingratos desvios


mira la calavera con sus ojos vacíos
que fingen en las noches una inquietante luz.

Y en el rumor del campo y de las oraciones


habla a la melancólica paz de los corazones
la soledad sonora de San Juan de la Cruz.” 13

Em 1909, a família de Mariátegui mudou-se para Lima, onde o jovem de 15


anos começou a trabalhar no jornal conservador La Prensa, como ajudante de
tipografia. Mais tarde, em 1912, passou a trabalhar na redação e, dois anos depois,
começou a escrever críticas literárias sob o pseudônimo de Juan Croniqueur14. Em 1916

12
QUIJANO, op. cit, p. 34. A questão religiosa está bastante presente em toda obra do autor. Mariátegui,
em entrevista publicada em 1926, afirmou que sua alma esteve desde cedo em busca de Deus, e que em
seu caminho encontrara uma fé (MARIÁTEGUI, José Carlos. “Reportajes y encuestas”. In: Obras. Havana:
Casa de las Américas, Tomo II, 1982). Além disso, em sua obra pós-exílio, parece conceber a luta
socialista enquanto luta mística e religiosa e, ao mesmo tempo, profana e secular.
13
MARIÁTEGUI, J. C. apud DE LA OSA, E. “Prólogo”. In: MARIÁTEGUI, op. cit, p. 13. Enrique de la Osa,
autor do prólogo à coletânea cubana dos textos de Mariátegui, não especifica a data desse poema, mas
o situa entre os anos de 1915 e 1916.
14
Leila Escorsim divide a obra de Mariátegui em dois grandes momentos: a “idade da pedra” (até 1918)
e a “idade da revolução” (de 1919 ao fim da vida do autor). Para ela, a “idade da pedra”, definição dada
pelo próprio autor quando se refere a esse período, coincide com a existência de Juan Croniqueur – um
momento da vida do autor em que se destacam a crítica literária, o anti-academicismo e o anti-
conservantismo. Segundo a autora, nesse período Mariátegui ainda está muito ligado a um
“anticapitalismo romântico” que recusa as instituições peruanas. O sociólogo Michael Löwy, por outro
foi eleito vice-presidente do Círculo de Jornalistas, que ajudou a fundar, e no ano
seguinte recebeu um prêmio jornalístico do município de Lima. Seu trabalho no jornal o
aproximou de artistas renomados de seu tempo – com destaque para o poeta Abraham
Valdelomar15 – com os quais fundou a revista Colónida, no início 1916.
A experiência de Colónida foi muito marcante na vida de Mariátegui: trata-se do
auge de seu anticapitalismo romântico. A revista, que durou apenas quatro números, se
voltava contra as instituições peruanas e a política criolla16 por meio de um esteticismo
que trazia traços de misticismo e boemia. O autor, mais tarde, descreveu a revista como
uma insurreição contra o academicismo e as oligarquias.
Em meados do mesmo ano, Mariátegui saiu de La Prensa e passou a integrar
outro jornal, de postura opositora ao governo do então presidente José Pardo. Trata-se
do diário El Tiempo. Neste novo trabalho, Mariátegui acompanhou os debates
parlamentares e a ascensão das lutas populares, em especial do movimento estudantil.
Desenvolveu, assim, grande simpatia por essas lutas, e, gradativamente, deixou sua
postura de mera recusa esteticista à política criolla, passando a desenvolver críticas
concretas à política e às questões econômicas em seu país. Contudo, não parou de
contribuir em outros periódicos, valendo-se de seus pseudônimos – além de Juan
Croniqueur, também escreveu como Jack, Kendalif, Monsieur Camomille, dentre
outros.
Com seu amigo e companheiro de trabalho César Falcón, criou a revista Nuestra
Época, em 1918, impressa nas oficinas de El Tiempo. Embora também tenha sido muito
breve, com somente dois volumes, a revista marcou a aproximação de Mariátegui com
os movimentos populares, já demonstrando alguns indícios de sua futura convicção
socialista. Por esse motivo, a direção de El Tiempo discordou da orientação da revista e

lado, vê traços de romantismo em toda a produção do autor, não realizando essa distinção entre obra
de juventude e obra madura. Vale ressaltar que, na concepção de Löwy, o romantismo, ou
anticapitalismo romântico, é um “protesto cultural contra a civilização capitalista moderna em nome de
valores ou imagens do passado pré-capitalista” (LÖWY, M. “Introdução”. In: MARIÁTEGUI, J. C. Por um
socialismo indo-americano, Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005, p. 9).
15
Abraham Valdelomar foi um renomado poeta peruano deste tempo que, embora tenha morrido aos
30 anos, influenciou jovens escritores e artistas de sua geração – dentre eles, Mariátegui. Este afirmaria
mais tarde que Valdelomar jamais conseguiu se definir enquanto artista, mas elogia as inovações do
autor na literatura peruana: “*Valdelomar+ introduziu em nossa literatura elementos de cosmopolitismo,
se sentiu, ao mesmo tempo, atraído pelo criollismo e pelo incaísmo” (MARIÁTEGUI, J. C. Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana. São Paulo: Expressão Popular, [1928] 2008, p. 269)
16
Sempre convém lembrar que o termo crioulo ou criollo se refere, nos países hispano-americanos, aos
descendentes de espanhóis nascidos na América.
impediu sua impressão. Mariátegui, em protesto, abandonou o jornal e passou a se
dedicar à organização de um novo diário, novamente ao lado de Falcón.
Em maio de 1919, começou a ser impresso na tipografia do Arcebispado de
Lima o diário La Razón, dedicado a divulgar e alimentar as reivindicações do
proletariado e do movimento estudantil. Neste ano, a luta operária era intensa pela
jornada de oito horas e pelo barateamento dos meios de subsistência. Ao mesmo tempo,
os estudantes de San Marcos reivindicavam a reforma universitária. La Razón foi um
importante veículo de apoio a essas lutas.
Dois meses depois, Augusto Leguía substituiu José Pardo na presidência do país
e se empenhou em calar Mariátegui e Falcón: o Arcebispado deixou de imprimir o
jornal, e, em agosto, a circulação foi interrompida. Como solução para afastá-los de vez
da política peruana, Leguía ofereceu a ambos uma oportunidade17 de estágio na Europa,
para realizarem estudos e atuarem como propagandistas do governo. Caso recusassem,
seriam presos. Assim, partiram em outubro de 1919: Falcón foi à Espanha, onde
permaneceria ainda por muitos anos atuando na vida política; Mariátegui passou a maior
parte de seu exílio na Itália, mas retornou a seu país assim que possível, em 1923.
Na Europa, Mariátegui encontrou o materialismo histórico enquanto método de
interpretação da realidade e ação revolucionária – encontrou, assim, um grande suporte
para responder a seus anseios em relação à realidade peruana. Esta imersão no
marxismo ocorreu sob a influência de escritores franceses e expoentes do emergente
Partido Comunista Italiano. O autor teve, ainda, acesso às grandes obras da sociologia,
da filosofia e da psicologia da Europa desse tempo e, uma vez que optou por não fazer
estudos formais e que sua estadia européia era subsidiada pelo Estado peruano,
aproveitou a oportunidade de se aprofundar nessas leituras e de aprender acompanhando
o tenso momento político italiano, marcado pela crise pós-guerra, pela desintegração
dos socialistas e pela ascensão do fascismo.
Durante esse período, teve também a oportunidade de conhecer Benedetto
Croce, cuja influência tornou-se marcante em sua obra. Acredita-se que Croce, que
simpatizou com o escritor peruano, teria mediado as conversas com a família de Anna
Chiappe para que a jovem de Siena pudesse se casar com José Carlos. Assim, o autor
retornou a seu país em 18 de março de 1923, com sua esposa e seus novos projetos.

17
Quijano atribui tal “oportunidade” ao fato da esposa de Leguía ser parente do pai de Mariátegui, que
a essa altura já era um escritor de renome no país.
Ainda em 1923, se aproxima de Haya de la Torre, grande líder da oposição ao
governo Leguía, e diretor da Universidad Popular González Prada (UPGP) e da revista
Claridad. Convidado por De la Torre, Mariátegui realiza na UPGP um ciclo de 17
conferências sobre a “História da crise mundial”18. Além disso, passa a escrever na
revista semanal Variedades a seção “Figuras e aspectos da vida mundial”.
A partir de meados do mesmo ano, Leguía inicia uma onda repressiva a seus
opositores e, em outubro, Haya de la Torre é preso e logo após exilado, dando inicio a
uma grande greve operário-estudantil, combatida com forte truculência pela polícia. Em
seguida, Mariátegui e outros colaboradores da UPGP também são encarcerados por
alguns dias. Com o exílio de Haya, Mariátegui assume a direção de Claridad, sendo
novamente detido em janeiro de 1924.
A perna amputada e a vida na cadeira de rodas não impedem o autor de
continuar seu trabalho de contestação do governo peruano e de propagação de seus
ideais socialistas, manifesto também em seus escritos para o periódico El Obrero Textil.
Em 1925 é indicado pela Federação Estudantes do Peru para lecionar na Universidad de
San Marcos. As autoridades acadêmicas, contudo, rejeitam a proposta.
Neste ano, Mariátegui está empenhado em um novo projeto: um periódico que
lhe permitisse expressar-se livremente. Cria, em parceria com seu irmão Julio César, a
Editorial Librería-Imprenta Minerva, cuja primeira publicação é o livro La escena
contemporânea, coletânea de artigos escritos por ele entre 1923 e 1925. Em setembro
do ano seguinte, começa a circular a revista Amauta, ainda muito ligada à APRA.
Segundo Quijano, “a revista Amauta (...) foi, em sua primeira etapa, tribuna intelectual
desse movimento”.19
Gerando repercussão internacional, o periódico constitui-se veículo de debate
com a oligarquia, compondo a frente única nacional-democrática da APRA e estando
atento aos movimentos artísticos e intelectuais de seu tempo. O autor passa a divergir do
movimento quando há a pretensão de transformá-lo em partido político. Durante o ano
de 1928, trava longas divergências com Haya, rompe com a APRA e participa da
fundação do Partido Socialista do Peru, sendo eleito secretário-geral. Sua revista, assim,
prescinde da colaboração aprista.

18
A parte preservada das palestras foi transcrita e reunida em: MARIÁTEGUI, J.C. História de la crisis
mundial. Lima: Amauta, 1973.
19
QUIJANO, A. “José Carlos Mariátegui: teoria e política”. In: AMAYO, Enrique; SEGATTO, José Antonio
(orgs.). J. C. Mariátegui e o marxismo na América Latina. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2002.
No mesmo ano, dedica-se a outro periódico, concomitante a Amauta,
denominado Labor, cujo foco é a organização política do proletariado. A revista dura
quase um ano, mas é proibida pelo governo em setembro de 1929. Antes disso, em
novembro 1928, Mariátegui publicava seu segundo livro: os Sete ensaios de
interpretação da realidade peruana, obra que alcançou grande repercussão, tendo sido
traduzida a oito idiomas e vendido mais de dois milhões de exemplares até 1998.
Em maio de 1929 é que Mariátegui realiza seu último grande empreendimento: a
fundação da Confederación General de los Trabajadores del Perú (CGTP). Ao final
deste ano, muda-se para Buenos Aires, temendo a interdição de Amauta – a revista já
havia sido proibida entre maio e novembro de 1927. Da Argentina, continua publicando
o periódico e trabalhando junto ao movimento revolucionário peruano.
A saúde do autor agrava-se e, em março de 1930 é hospitalizado, renunciando à
Secretaria Geral do PSP e à direção de Amauta. Em 16 de abril de 1930, Mariátegui
morre aos 35 anos. O velório foi em sua própria casa e, no dia seguinte, milhares de
trabalhadores acompanharam o corpo ao cemitério popular Maestro Presbítero, onde
está enterrado sob uma escultura de mármore.

2.2. O Peru de Mariátegui


A vida de Mariátegui está inscrita em um momento significativo da história
peruana, que pode ser considerado uma ponte histórica entre a sociedade colonial e a
atual. Nesse momento, há uma combinação entre elementos da herança colonial e os
novos elementos, trazidos pela implantação do capital monopolista, de controle
imperialista. Segundo Quijano, que realizou um meticuloso estudo desse período, “la
accidentada y compleja diléctica del desarrollo y la depuración de esa estructura, ha
dominado desde entonces la historia peruana, ha enmarcado y condicionado sus luchas
sociales y políticas y definido los temas centrales de su debate”.20
Antes da Guerra do Pacífico21, o Peru vivia uma fase de grande prosperidade
econômica, com a forte exportação de guano e salitre. Com a derrota, em 1883, o país
perde uma importante região, rica nesses recursos naturais, e entra em grave crise: a
economia se desestrutura, decaindo o poder econômico e político dos núcleos burgueses
da costa (comerciais e latifundiários). O período conturbado economicamente reflete na

20
QUIJANO, Introducción a Mariátegui, p.11.
21
Entre 1879 e 1883, Peru e Bolívia guerrearam contra o Chile, que saiu vencedor e anexou territórios
de ambos países.
política, permitindo a ascensão do caudilhismo militar, dirigido pelo general Andrés A.
Cáceres, chefe da resistência contra o Chile. Assim, os debilitados núcleos burgueses e a
classe média urbana são obrigados a aliarem-se ao regime militarista-senhorial.
Porém, logo que a economia se reativa e os núcleos de burguesia comercial e
latifundiária da costa voltam a fortalecer seu poder econômico, as elites passam a forçar
seu regresso à direção do Estado, apoiadas no descontentamento popular com o
caudilhismo. Piérola, líder do Partido Democrata, ascende como figura de oposição aos
caudilhos, e acaba por ser apoiado pelo Partido Civilista22, no qual a burguesia costeira
havia se organizado nos tempos de prosperidade. Por meio de uma sublevação popular,
Piérola ascende ao poder em 1895, dando início ao quarto de século de domínio do
“civilismo”.
Nesse momento, estabelece-se uma política destinada a atrair capital estrangeiro:
entre 1895 e 1914 instalam-se as primeiras corporações, que predominaram na extração
mineral, no petróleo, na agricultura de exportação e no transporte pesado. Além disso, o
capital imperialista consegue o domínio bancário, do comércio internacional e da
principal empresa de serviços eletrônicos. A partir da segunda década do século XX, o
capital estrangeiro ocupa e controla as principais indústrias, consolidando seu domínio
sobre os setores onde se implantava o capital como relação social de produção. A
burguesia interna passa a ficar totalmente subordinada e despojada de seus principais
recursos de produção.
Formaram-se assim núcleos capitalistas na costa, industriais e agrários, sob o
controle do capital britânico e estadunidense. Contudo, apesar da formação desses
núcleos, a economia peruana ainda era majoritariamente de matriz pré-capitalista,
fundamentada nas relações, ora servis ora escravistas, que se travavam no interior dos
latifúndios.
Mariátegui, ao analisar esse período nos Sete ensaios..., divide a organização
econômica peruana pós-guerra em oito etapas, as quais vale expor:
1. Aparecimento da indústria moderna: forma-se um proletariado nacional que
tende ao ideário classista, ou seja, um proletariado que poderá vir a se organizar
enquanto classe para liderar a luta política.

22
Partido composto pelos grandes proprietários criollos urbanos e rurais, advogados, médicos e
catedráticos bem sucedidos. Sua cúpula era composta por poucos e influentes homens, muito unidos e
coesos entre sim, ligados por laços de família e parentesco. Dois deles (José Pardo e Augusto Leguía),
somados, ocuparam a presidência por 24 anos.
2. A função do capital financeiro: bancos financiam comércio e indústria, mas
ainda funcionam sob o interesse britânico, estadunidense e dos grandes proprietários
agrários.
3. Diminuição de distâncias: com o Canal do Panamá, o Peru integra-se mais ao
comércio com Estados Unidos e Europa, ingressando de vez na “civilização ocidental”.
4. Gradual superação do poder britânico pelo estadunidense: “A participação do
capital estadunidense na exploração do cobre e do petróleo peruanos, que se convertem
em dois de nossos maiores produtos, proporciona uma larga e durável base para o
predomínio ianque”.23
5. Desenvolvimento de uma classe capitalista: dentro dela, prevalece a antiga
aristocracia; a propriedade agrária conserva seu poder.
6. A “ilusão da borracha”: borracha adquire, temporariamente, um enorme valor
no mercado, levando muitas pessoas à Amazônia peruana. Devido a seu curto período
de prosperidade, a borracha acabou tendo um efeito na imaginação 24 do país maior que
na sua economia.
7. O “superlucro” do período europeu: subida de preços de produtos peruanos
provoca rápido crescimento da fortuna privada; reforça-se a hegemonia da costa na
economia peruana.
8. Política de empréstimos: restabelecimento de crédito levou ao governo
recorrer a empréstimos para execução de obras públicas. Os bancos de Nova Iorque
oferecem melhores condições, fazendo com que o dinheiro fosse investido com lucros
para indústria e comércio norte-americanos.
A burguesia local, nesse processo, tende a se desenvolver somente enquanto
burguesia comercial ou agrária, já que a política econômica bloqueava a possibilidade
de uma “revolução industrial”.

“Debido a eso, [a burguesia local] no estaba em condiciones, ni interesada, en llevar


adelante su propria revolución democrática en la economia y en el Estado. Es decir,
de avanzar hacia la desintegración de las relaciones de producción de origen
precapitalista, serviles o comunales, para liberar mano de obra y recursos de
producción, y hacia la democratización del Estado, conforme a la ideología liberal
formalmente adoptada, sobre todo desde mediados de siglo. Por ello, no solamente

23
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 44.
24
O alto crescimento da exportação do produto, nos fins do século XIX, gerou uma sensação
generalizada de prosperidade. Contudo, como a ascensão do produto foi ocasionada por circunstâncias
econômicas específicas e momentâneas (o autor não explica quais), sua queda não tardou.
se encontraba colocada em situación de perimitir la continuación del predominio del
precapitalismo y de su clase terrateniente dominante, sino también era incapaz de
diferenciarse de ésta más rápida y plenamente, ni social ni ideológicamente.”25

Em suma, a partir do capital imperialista, formam-se núcleos de relações


capitalistas nos principais setores da economia peruana. Esses setores articulam-se ao
circuito capitalista nacional interno, que exporta à Europa e aos EUA os produtos
agrícolas e importam deles produtos industrializados. Salvo, limitadamente, a
importância econômica do consumo de tais produtos, não interessa aos imperialistas que
se formem no Peru um mercado interno forte, e muito menos uma produção industrial
embasada no capital local. Para Quijano, “por su carácter reducido y concentrado en
núcleos, en determinadas ramas de producción, ese capital no tendrá, tampoco, interés
en una masiva liberación de mano de obra, sino en la formación de un mercado limitado
de fuerza de trabajo libre”.26
Assim, o capital monopolista não entra em conflito com as estruturas pré-
capitalistas. Pelo contrário, ao explorar a força de trabalho em relações pré-capitalistas
(feudais, conforme Mariátegui), a taxa de lucro acaba sendo muito alta no país. É,
portanto, um país agrário-exportador, com a produção focada no açúcar e no algodão.
Como se verá mais adiante, ao ser abordado o problema da terra, mesmo nos latifúndios
costeiros em que se emprega a técnica capitalista e o assalariamento, as relações de
trabalho ainda contém traços feudais.
Em 1919, Augusto Leguía, que já havia sido presidente durante o civilismo,
retorna ao poder derrubando o presidente José Pardo, dando início ao período que ficou
conhecido como oncênio (de 1919 a 1930). É curioso notar que o civilismo foi
derrubado por um ex-civilista. Assim que chegou ao poder, o novo presidente atendeu
reivindicações estudantis e anistiou presos políticos, buscando nesses movimentos base
de sustentação ao seu governo.

“Leguía avança na consecução de uma política que combina, por uma parte, um
agressivo plano de investimentos que redimensiona o país, com um enorme
intervencionismo estatal, e, por outra, uma postura repressiva em face de setores
pequeno-burgueses radicalizados e proletários. Quatro anos depois de sua chegada
ao poder, isto é: em 1923, Leguía dispunha de poderes ditatoriais.”27

25
Idem, ibidem, p. 16, grifos meus.
26
Idem, ibidem, p. 19.
27
ESCORSIM, op. cit., pp. 30-31.
No governo de Leguía há uma intensificação da subordinação ao capital
monopolista, mas o presidente começa a abrir mais espaço ao capital norte-americano,
que passa a, gradativamente, substituir o britânico como hegemônico na economia
peruana. É em meio a esse contexto político e econômico do oncênio, precisamente em
1923, que Mariátegui retorna do exílio e exerce intensamente sua atividade político-
jornalística até sua morte, em 1930. De forma inovadora, o autor analisa as contradições
da história econômica peruana sob a matriz marxista e trabalha ativamente, por meio da
construção de uma ampla luta socialista que agrega indígenas campesinos e proletários
urbanos, para a superação do capital monopólico que invade seu país e pela efetivação
de uma nova sociedade.
3. O MARXISMO DE MARIÁTEGUI

“Agonia não é prelúdio da morte, não é conclusão da vida. Agonia –


como Unamuno escreve na introdução do seu livro – quer dizer „luta‟.
Agoniza aquele que vive lutando – lutando contra a própria vida. E
contra a morte”

José Carlos Mariátegui, 1926

O estudo do pensamento marxista de Mariátegui envolve, desde a morte do


autor, grandes polêmicas e profundas divergências. Isto se deve, por um lado, pela
admissão das mais diversas correntes filosóficas na formulação de seu pensamento; por
outro, pelos interesses políticos que estavam em jogo em sua interpretação. Leila
Escorsim traça, em sua obra, um interessante panorama geral da discussão a respeito do
marxismo de Mariátegui.
Com a morte do Amauta, comunistas e apristas começaram a discutir seu
marxismo. Os apristas, que se diziam seguidores – mas superadores – do pensamento
marxiano, buscavam afirmar o baixo rigor no marxismo de Mariátegui e, assim,
desvinculá-lo do comunismo. Afirmavam eles que a sua grande divergência com a
APRA foi apenas em relação ao momento em que esta propôs-se a ser um partido
político. De outro lado, embora o Partido Comunista do Peru vivesse um momento de
negação da figura de Mariátegui28, muitos militantes enfatizavam o caráter marxista de
Mariátegui em seus escritos.
Uma das críticas mais comuns a Mariátegui trata-se de um suposto
“europeísmo” no autor, que o distanciaria da realidade latino-americana, bem como seu
intelectualismo, que o afastaria dos movimentos políticos. Além disso, os apristas
costumavam acentuar, e criticar, um excesso de romantismo, fé e exaltação em sua obra.
No Partido Comunista do Peru, Eudocio Ravines, sucessor de Mariátegui na
secretaria geral, buscou de imediato desvincular a corrente mariateguista do partido da
imagem do próprio inspirador, visando enfraquecê-la. Ravines, que pretendia o

28
Mariátegui tinha várias ressalvas no que tange à adesão do partido às orientações da Terceira
Internacional. Seus seguidores fizeram-se, assim, obstáculo à bolchevização do PCP, não mais Partido
Socialista do Peru, conforme fundara Mariátegui. O nome partido mudara em 1930, pouco após a morte
de nosso autor.
alinhamento do PCP com os bolcheviques, via nos mariateguistas um obstáculo, uma
vez que estes se distanciavam do “marxismo oficial” imposto pelo stalinismo
Em 1941, Miroshevski, bolchevique estudioso da América Latina, publicou um
artigo com fortes críticas ao pensamento do autor, denominado O „populismo‟ no Peru:
o papel de Mariátegui na história do pensamento social latino-americano29. Segundo
Escorsim, o texto traz críticas a um suposto Mariátegui que teria atribuído aos
camponeses a direção do processo revolucionário peruano, subestimando o proletariado.
Este seria, de acordo com o russo, um apêndice das massas camponesas indígenas.
Michael Löwy afirma, ainda, que o artigo enfatizava o caráter romântico do autor e que,
aos stalinistas, “bastava acusar Mariátegui deste pecado mortal, o romantismo, para
demonstrar de forma definitiva e irrefutável que seu pensamento era estranho ao
marxismo”.30 Consistindo na interpretação oficial de Mariátegui pela União Soviética,
este texto se fez muito importante politicamente, na recusa do autor pelo stalinismo.
Muitas discussões se seguiram: mais tarde, depois da saída de Ravines (em
1942) da secretaria geral do PCP, o partido voltou a tentar se aproximar da figura de
Mariátegui. Ao mesmo tempo, a APRA também buscava exaltá-la, já não mais o
atacando, mas construindo sua imagem enquanto ilustre aprista.
A predominância dos interesses políticos sobre o debate durou ainda muito
tempo, e somente a partir dos anos 60 é que se iniciou um debate teórico acerca do
autor. Aqui, são destacadas as contribuições de Michel Löwy, Aníbal Quijano e José
Aricó31, que estudaram a obra do autor em sua amplitude temática, além de outros
comentadores, nacionais e estrangeiros, que trabalharam sobre temas específicos da
obra de Mariátegui.

3.1. O marxismo enquanto agonia


Não é comum encontrar formulações teóricas e conceituais na obra do autor, que
pouco discorre sobre os conceitos filosóficos dos autores em que se fundamenta,
sobretudo Marx, Sorel e Croce. Isto está relacionado, segundo a maioria dos
comentadores, ao fato de que não freqüentara a universidade e tinha poucos recursos
para a compra de livros. Além disso, sua morte precoce e a priorização de atividades

29
Não tive acesso a tal artigo.
30
LÖWY, M. “Introdução”, p. 8.
31
ARICÓ, J. “Mariátegui e o surgimento do marxismo latino-americano”. In: ALVATER et. al. História do
Marxismo; o marxismo na época da Terceira Internacional: o novo capitalismo, o imperialismo, o terceiro
munodo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
práticas e intelectuais ligadas à militância e organização partidária, não permitiram a ele
o tempo necessário a um maior aprofundamento. Há de se considerar, ainda, o caráter
pragmático e sócio-analítico de sua produção, incompatíveis com escritos de profunda
abstração filosófica.
De todo modo, é sabido que sua estadia na Itália lhe proporcionou grande
contato com as principais tendências do pensamento social e político europeu desse
período. Além de Marx, destacam-se, em sua obra, as influências de Georges Sorel,
Benedetto Croce (a quem conheceu), Sigmund Freud, Nietzsche, o grupo francês de
Clarté32 – em especial Henri Barbusse33 – e o socialismo italiano, com destaque para a
revista comunista L‟Ordine Nuovo34. Do periódico, Piero Gobetti35 foi o que mais
influenciou o autor, por seu ativismo político. É notável, ainda, sua admiração por Lênin
e Trotski, e sua rejeição à experiência fascista, cuja ascensão presenciou. A partir dessa
base, Mariátegui formula um marxismo original, dinâmico e heterodoxo.
Como se vê na epígrafe, o jornalista concebia a palavra “agonia” em seu sentido
etimológico. O artigo do qual foi retirado o fragmento é uma breve resenha do livro A
agonia do cristianismo, de Dom Miguel de Unamuno36. Em um texto em que,
aparentemente, Mariátegui se ocupa apenas de ilustrar a concepção do filólogo espanhol
acerca do cristianismo, ele acaba revelando sua própria concepção de marxismo. Para
Unamuno, a vida do cristianismo é dada não por seus exegetas estudiosos, mas pelos
que lutam por ele, pelos que o entendem por agonia – e, aqui, São Paulo é trazido como
exemplo. Para Mariátegui, o mesmo se passa com o marxismo:

“Marx não está presente, em espírito, em todos os seus supostos discípulos e


herdeiros. Os que o continuaram não foram os pedantes professores alemães da teoria
da mais-valia, incapazes de acrescentar qualquer coisa à doutrina, só dedicados à
limitá-la, à estereotipá-la; foram, antes, os revolucionários tachados de heresia, como

32
Revista francesa de orientação esquerdista.
33
Novelista francês, sobrevivente da Primeira Guerra, e militante do Partido Comunista.
34
Revista italiana organizada pelos expoentes do comunismo italiano, dentre eles, Gramsci. Embora seja
bastante provável que Mariátegui tenha conhecido e lido alguns escritos de Gramsci, não se pode
considerar este uma influência sobre aquele. De todo modo, Escorsim acredita que a grande influência
de L'Ordine Nuovo sobre o peruano foi em relação à sua maneira de tratar a cultura. “De fato, um cotejo
da prática cultural de Mariátegui com as reflexões posteriormente desenvolvidas por Gramsci (...) revela
uma inteira solidariedade no tratamento da diversidade do “mundo da cultura” e de sua relação com o
‘mundo do trabalho’; revela, especialmente, uma enorme similitude na compreensão do necessário
processo de construção da hegemonia no campo da cultura” (ESCORSIM, op. Cit., pp. 308-309).
35
Liberal italiano, considerado por Mariátegui um “croceano à esquerda”.
36
Filólogo, literato e ensaísta espanhol.
Georges Sorel – outro agonizante, diria Unamuno –, que ousaram enriquecer e
desenvolver as conseqüências da idéia marxista.” 37

Em diversos fragmentos de sua obra, podemos identificar esse caráter agônico


do marxismo de Mariátegui. Na coletânea póstuma Defensa del Marxismo38, em que são
reunidos artigos em que debate com os revisionistas europeus – em especial, Henri de
Man –, essa sua concepção faz-se ainda mais clara:

“La verdadera revisión del marxismo, en el sentido de renovación y continuación de


la obra de Marx, ha sido realizada, en la teoria y en la práctica, por otra categoria de
intelectuales revolucionarios. Georges Sorel, en estúdios que separan y distinguen lo
que en Marx es esencial e sustantivo, de lo que es formal y contingente, representó
en los dos primeros decenios del siglo actual, más acaso que la reacción del
sentimiento clasista de los sindicatos, contra la degenración evolucionista y
parlamentaria del socialismo, el retorno a la concepción dinâmica y revolucionaria
de Marx y su inserción en la nueva realidad intelectual y orgánica. (...) Superando
las bases racionalistas y positivistas del socialismo de su época, Sorel encuentra en
Bergson y los pragmatistas ideas que vigorizan el pensamiento socialista,
restituyéndolo a la misión revolucionaria de la cual lo había gradualmente alejado el
aburguesamiento intelectual y espiritual de los partidos y de sus parlamentarios, que
se satisfacían, en el campo filosófico, con el historicismo más chato y el
evolucionismo más pávido.” 39

Sobre este trecho, em primeiro lugar, nota-se a radicalidade da afirmação do


autor, que nega o revisionismo de Henri de Man em nome da “verdadeira revisão” de
Sorel, a qual clama a práxis revolucionária. Uma vez que o marxismo de Mariátegui é
agônico – faz-se na luta –, temos que sua idéia de “verdadeira” revisão também está
relacionada a uma concepção mais ético-filosófica que epistemológica e metodológica
do marxismo.
Em segundo lugar, nota-se, em seu pensamento socialista, um traço que Aricó
denomina “anti-estadista”, no preciso sentido de que Mariátegui concebe os processos

37
MARIÁTEGUI, J. C. “A agonia do cristianismo, de Dom Miguel de Unamuno”. In: Por um socialismo
indo-americano.
38
Defensa del marxismo consiste na reunião de artigos publicados na revista Amauta entre os números
17 e 24. Os textos de Defensa se propõem à crítica do revisionismo e, em especial, do que Mariátegui
chama de neo-revisionismo, em que se enquadrariam os dirigentes socialistas belgas Henri de Man e
Emile Vandervelde, e o ex-trotskista Max Eastman.
39
Idem. Defensa del marxismo: polemica revolucionaria. Lima: Biblioteca Amauta, [1959] 1980, pp. 20-
21.
históricos “a partir de baixo”, ou seja, “a partir dos movimentos de constituição e de
fragmentação das massas populares, de suas formas expressivas, de seus mitos e de seus
valores, a fim de determinar e potencializar suas tendências para a construção de uma
autonomia própria”.40 Este modo de enxergar a atuação dos movimentos populares é o
que o fará recusar tanto o projeto partidário da APRA – que é antiimperialista, mas não
propõe uma revolução em sentido socialista que responda diretamente aos anseios
desses movimentos – quanto às pressões da Internacional Comunista para a formação de
um partido comunista organizado a partir dos bolcheviques, ou seja, organizado “pelo
alto”. Florestan Fernandes, nessa mesma linha, enfatiza que Mariátegui não objetivava
ser nem um “criador original” nem um “propagador fanático” do marxismo, uma vez
que teria sido o anseio revolucionário do jornalista peruano que o levou ao marxismo, e
não o contrário. Para o sociólogo brasileiro, essa relação contém implicações teóricas e
práticas relevantes, colocando o elemento político em primeiro plano de duas formas:
indiretamente, “quanto ao significado do materialismo histórico como método para
conhecer a realidade e, nesse caráter, servir de base à consciência social crítica e à ação
política revolucionária”41; e diretamente, no âmbito da organização da luta política
revolucionária, através dos movimentos de massa.
Por fim, é visível, nos dois fragmentos, a exaltação de Sorel, tão estranha ao
marxismo ortodoxo. De fato, essa exaltação é por vezes exagerada, de forma que Löwy
chega a afirmar que Mariátegui “inventou” o Sorel que lhe seria necessário na luta
contra o “amesquinhamento positivista e determinista do materialismo histórico”.42 Para
tal, o Amauta apreende do sindicalista francês sua “interpretação heróica e voluntarista
do mito revolucionário”.43 Nesse sentido, Alfredo Bosi argumenta que, nos artigos de
Defensa del marxismo, não se encontra “um momento de contradição entre a ratio
hegeliano-marxista e o voluntarismo heróico soleriano”44, uma vez que “a tônica dos
textos acaba recaindo sobre o valor maior de uma política prática para a qual a
racionalidade não está dada uma vez por todas”45.
Diego Meseguer Illán, por sua vez, defende que há na obra do autor três grandes
críticas: a “crítica da infraestrutura econômica”, a “crítica da estrutura social” e a

40
ARICÓ, J. Op. Cit, p. 456.
41
FERNANDES, F. Op. cit, p. 35.
42
LÖWY, op. cit., p. 15.
43
Idem, ibidem.
44
BOSI, A. “A vanguarda enraizada: o marxismo vivo de Mariátegui”. Estudos Avançados, 4 (8), Jan./Abr.,
1990, p. 53. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v4n8/v4n8a05.pdf
45
Idem, ibidem.
“crítica das superestruturas política, religiosa e cultural”. O próprio Mariátegui parece
incorporar em sua obra a dualidade marxista infraestrutura/ superestrutura, embora não
o faça tão explicitamente. Contudo, demonstra conhecer o que chama de “metáfora do
edifício”: “A metáfora, que é evidentemente mais uma questão de necessidade que de
gosto, habituou-nos a representar uma sociedade, um Estado, uma economia, etc., como
um edifício. Isso explica a preocupação inevitável com o alicerce”. 46 Todavia, vemos
pela orientação de seu marxismo que este não pode ser acusado, de maneira alguma, de
economicista ou determinista, dada a relevância que é colocada na subjetividade do
revolucionário.
Uma vez que os problemas apresentados pela realidade latino-americana não
podiam ser explicados pelo marxismo tradicional, foi necessário que Mariátegui – ao
lado do grupo que deu vida à revista Amauta – discutisse as bases e os pressupostos
marxianos para, a partir de então, empreender a produção de um marxismo
genuinamente latino-americano. Essa produção é bastante visível na própria revista
Amauta, no periódico proletário Labor e, principalmente, em sua obra que se tornou
mais conhecida: os Sete ensaios de interpretação da realidade peruana.

3.2. Os problemas
A possibilidade de se admitir outras influências, distantes do marxismo – o que
ocasionou a Mariátegui acusações de excessivo ecletismo –, decorre da própria maneira
como o autor concebe o marxismo. Quijano aponta dois problemas fundamentais nessa
concepção: 1) a tensão decorrente de uma concepção de materialismo histórico
enquanto mera forma de interpretar o capitalismo e expor as condições de ação sobre
ele, mas não constituindo uma filosofia da história, fazendo-se assim apto a receber
contribuições de outras vertentes filosóficas; 2) a insistência na centralização da vontade
individual como fundamento da ação histórica, necessitando-se de um fundamento
metafísico para a luta pela restauração de uma moral despojada pela consciência
burguesa.
Em relação ao primeiro ponto, em Defensa de Marxismo nota-se a tensão
mencionada em vários momentos. Mariátegui parece enxergar o marxismo mais como
fruto da confrontação, da luta, que de uma ciência, de um largo esforço teórico
destinado a investigar a história das contradições sociais. O materialismo histórico

46
MARIÁTEGUI, J.C. “Economia Colonial”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 98
constituí-se assim, para Mariátegui, uma forma de interpretação sociedade capitalista,
ao invés de uma filosofia da história, como podemos deduzir do seguinte de Defensa:

“El materialismo histórico no es, precisamente, el materialismo metafísico o


filosófico, ni es una Filosofia de la Historia, dejada atrás por el progreso científico.
Marx no tenia por qué crear más que un método de interpretación histórica de la
sociedad atual. (...) La critica marxista estudia concretamente la sociedad capitalista.
Mientras el capitalismo no haya trasmontado definitivamente, el canon de Marx
sigue siendo valido. El socialismo, o sea la lucha por transformar el orden social
de capitalista en colectivista mantiene esa crítica, la continúa, la confirma, la
corrige. Vana es toda tentativa de catalogarla como una simple teoria científica,
mientras obre en la historia como evangelio y método de un movimiento de
masas.”47

Justificando sua posição, Mariátegui cita Croce:

“El materialismo histórico (...) surgió de la necesidad de darse cuenta de una


determinada configuración social, no ya de un propósito de investigación de los
fatores de la vida histórica; y se formo en la cabeza de políticos y revolucionarios,
no ya de frios y acompasados sabios de biblioteca.” 48

Alfredo Bosi sintetiza: “Trata-se de uma validade condicionada pelas balizas do


sistema. Nada de ciência marxista, de estilo positivo, provada nos laboratórios da
sociologia; e nada de ontologia ou teologia – esta é a mensagem patente no discurso de
49
Mariátegui” . Negando, assim, o materialismo histórico enquanto filosofia da história
e afirmando-o enquanto forma de interpretação da sociedade capitalista e de ação
política, Mariátegui teria enxergado a necessidade de uma filosofia da história para
completar a obra de Marx. Acredita que as novas concepções filosóficas e científicas
desenvolvidas após a morte do pensador alemão são capazes de complementar e
enriquecer o marxismo, uma vez que este não se faz ao autor uma teoria científica
fechada em si.

“Si Marx no pudo basar su plan político ni su concepción histórica en la biología de


De Vries, ni en la psicología de Freud, ni en la física de Einstein; ni más ni menos
que Kant en su elaboración filosófica tuve que contentarse con la física newtoniana

47
MARIÁTEGUI, Defensa del marxismo, pp. 40-41, grifos meus.
48
CROCE, B. apud Mariátegui, op. cit., p. 41.
49
BOSI, op cit., p. 53.
y la ciencia de su tiempo: el marxismo – o sus intelectuales – en curso posterior, no
ha cesado de asimilar lo más sustancial y activo de la especulación filosófica e
histórica post-hegeliana o post-racionalista. Georges Sorel (...) ilustró el movimiento
revolucionário socialista (...) a la luz de la filosofia bergsoniana, continuando a Marx
que, cincuenta años antes, lo había ilustrado a la luz de la filosofía de Hegel. (...)
Vitalismo activismo, pragmatismo, relativismo, ninguna de estas corrientes
filosóficas, en lo que podían aportar a la Revolución, han quedado al margen del
movimiento intelectual marxista.” 50

Esclarecido esse primeiro problema, é possível entender o segundo: Mariátegui


incorpora em seu marxismo o “mito” de Georges Sorel, colocando ênfase na práxis
política. Em um artigo denominado “A luta final”, o autor deixa explícita a importância
da vontade individual e do mito para o ator revolucionário – no caso, o mito de que a
revolução constitui a "luta final" da humanidade.

"O ceticismo satisfazia-se em atestar a irrealidade das grandes ilusões humanas. O


relativismo não se conforma com o mesmo resultado negativo e infecundo. Começa
ensinando que a realidade é uma ilusão, mas termina reconhecendo que, por sua vez,
a ilusão é uma realidade. Nega que existam verdades absolutas, mas se dá conta de
que os homens têm de acreditar nas suas verdades relativas como se fossem
absolutas. Os homens precisam de certeza. Que importa se a certeza dos homens de
hoje não é a certeza dos homens de amanhã? Sem um mito, os homens não podem
viver fecundamente. Por conseguinte, a filosofia relativista nos propõe obedecer à
lei do mito." 51

Mariátegui demonstra que, enquanto realidade objetiva, porém abstrata, a “luta


final” é sempre uma ilusão. Todavia, enquanto realidade subjetiva, porém concreta, a
luta é realidade para o homem, sujeito da história. É preciso, para ele, que o
revolucionário creia estar travando essa luta. Uma vez que o sujeito histórico, e sua
vontade individual, é colocado no centro da ação histórica, o mito faz-se essencial para
o desenvolvimento histórico.
Convém ressaltar, contudo, que Mariátegui não se coloca a favor do mito, em si:
pelo contrário, o autor critica veementemente o fascismo, admitindo, porém, que este
adquiriu tantos adeptos por lhes proporem um mito, em uma sociedade cética, fria,
racionalista. Não se pode, assim, colocar o mito como meta fundamental da construção

50
MARIÁTEGUI, op. cit., pp. 43-44.
51
MARIÁTEGUI, J.C. “A luta final”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 63.
marxista mariateguiana. Sua proposição fundamental – que norteia sua ação política – é
a construção do socialismo indo-americano. Para tal, Mariátegui crê que é preciso que
proletariado e indígenas se entreguem ao mito revolucionário. Nesse sentido, a cultura
quéchua, por suas tradições agrárias coletivistas, constituiria um solo fértil para tal mito.
A fé, o mito dos que lutam – agonizam – é a oposição ao ceticismo burguês:

“A intelectualidade burguesa entretém-se numa crítica racionalista ao método, à


teoria, à técnica dos revolucionários. Quanta incompreensão! A força dos
revolucionários não está na sua ciência; está na sua fé, na sua paixão, na sua
vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do Mito. A emoção
revolucionária, como escrevi num artigo sobre Gandhi, é uma emoção religiosa. Os
motivos religiosos se deslocaram do céu para a terra. Não são divinos; são humanos,
são sociáveis.” 52

“O mito move o homem na história. Sem um mito, a existência do homem não tem
nenhum sentido histórico. Quem faz a história são os homens possuídos e
iluminados por uma crença superior, por uma esperança sobre-humana; os demais
homens constituem o coro anônimo do drama. A crise da civilização burguesa ficou
53
evidente desde o instante em que esta civilização constatou sua carência de mito.”

Michael Löwy, que enxerga em Mariátegui uma visão de mundo romântico-


revolucionária54, ressalta que o mito se faz para ele oposição ao “desencantamento do
mundo”, à crise do sentido da vida na modernidade. Mariátegui parece não ter estudado
Weber, mas se inspira nos conceitos de “alma desencantada”, de Ortega y Gasset, e de
“alma encantada”, de Romain Rolland. “O socialismo, segundo Mariátegui, inscreve-se
no bojo de uma tentativa de reencantamento do mundo pela ação revolucionária”.55
Porém, não se trata de uma “espiritualização” do marxismo – Mariátegui mesmo se
coloca contra a “espiritualização” do marxismo em vários artigos de Defensa del
marxismo. Trata-se de ressaltar, na luta socialista, a existência de uma dimensão
espiritual e ética do combate revolucionário, sobretudo no que tange ao homem, sujeito
da história.
Por fim, embora o marxismo deste autor possua problemas em sua formulação,
isso não anula a validade e importância de seu trabalho, tendo em vista que também é

52
Idem, “O homem e o mito. In: op. cit., pp. 59-60.
53
Idem, ibidem, p. 57
54
LÖWY, op. cit., p. 9.
55
Idem, ibidem, p. 17, grifos do autor.
possível desenvolver críticas pertinentes às concepções marxistas de Gramsci, Lukács e
Lênin, por exemplo. A obra de Mariátegui é dotada de um grande potencial de análise
política e social das principais questões peruanas e latino-americanas de então, muitas
das quais ainda vigentes.

3.3. Sobre a concepção de trabalho


O fato da produção de Mariátegui ser marcada por um caráter pragmático e
militante não significa que o autor não tivesse suas concepções teóricas acerca de
importantes temas da filosofia e da sociologia de seu tempo. Significa, apenas, que
essas concepções necessitam ser deduzidas de seus escritos analíticos. Durante esta
pesquisa, foi possível especular sobre a concepção que o autor possuía da categoria
trabalho. O ponto de partida está no seguinte fragmento, presente no quinto dos Sete
Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana, denominado “O processo de educação
pública”.

“Devemos à escravização do homem pela máquina e à destruição dos ofícios pelo


industrialismo, a deformação do trabalho em seus fins e em sua essência. A
acusação dos reformadores, desde John Ruskin até Rabindranath Tagore, censura
veementemente o capitalismo, o emprego embrutecedor da máquina. O maquinismo,
e sobretudo o taylorismo, tornaram o trabalho odioso. Mas apenas porque o
degradaram e o rebaixaram, despojando-o de sua virtude de criação”.56

Vemos que, para Mariátegui, a máquina “embrutece” o homem, e o trabalho, na


sociedade capitalista, torna-se odioso. O autor reconhece o trabalho virtuoso em sua
origem, pela sua possibilidade criadora, mas critica sua degradação na sociedade de seu
tempo, promovida através da máquina e da técnica capitalista. Defende, ainda, que o
trabalho, rebaixado nessa sociedade, embrutece o homem. Dado que a reflexão sobre o
trabalho se constitui um dos principais temas do marxismo, cabe comparar essa visão de
Mariátegui com o que traz o próprio Marx e com a concepção ontológica de Lukács.
Em Marx, podemos observar a discussão sobre o embrutecimento e a
desumanização do homem pelo trabalho em dois textos de diferentes épocas.

56
Mariátegui, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 156.
Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos57, de 1844, Marx traz o conceito de
estranhamento58 para mostrar esse fenômeno da sociedade capitalista. Trata-se da
exteriorização do trabalhador, da separação do trabalhador dos produtos de seu trabalho.
Mas é um processo que também se dá no próprio ato de produção. A exteriorização do
trabalho consiste em que o trabalhador

“não se afirma, portanto em seu trabalho, mas nega-se nele, que não se sente bem,
mas infeliz, que não desenvolve nenhuma energia física e espiritual livre, mas
mortifica sua physis e arruína o seu espírito. O trabalhador só se sente, por
conseguinte e em primeiro lugar, junto a si [quando] fora do trabalho e fora de si
[quando] no trabalho. (...) O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se
exterioriza, é um trabalho de auto-sacrifício, de mortificação” 59.

Assim, o homem é estranhado não só do fruto de seu trabalho, mas também de


sua própria força de trabalho, a qual deve vender ao proprietário para sobreviver. Ao
fazê-lo, contudo, o homem estranha-se de si mesmo, enquanto ser genérico – pois o ser
humano, enquanto gênero, enquanto ser universal, comporta em plenitude a esfera da
liberdade. Ou seja, com o estranhamento do trabalho, o homem é estranhado da natureza
e de si mesmo, de sua atividade vital.

“Pois, primeiramente, o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva mesma aparece


ao homem apenas como um meio para a satisfação de uma carência, a necessidade
de manutenção da existência física. A vida produtiva é, porém, a vida genérica. É a
vida engendradora de vida. No modo da atividade vital encontra-se o caráter inteiro
de uma species, seu caráter genérico, e a atividade consciente livre é o caráter
genérico do homem”.60

Embora Mariátegui não atinja em sua obra tal abstração filosófica, a essência
dessa proposição marxiana está presente em sua obra, segundo a qual o trabalho, em sua
origem, consiste em atividade livre e criadora. Porém, passa a ser apenas um meio de
existência que, no trabalho fabril capitalista, desumaniza o homem, pois o separa de sua

57
MARX, K. “*Trabalho estranhado e propriedade privada+”. In: Manuscritos Econômico-Filosóficos. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2004, pp. 79-90.
58
Na obra em questão, Marx define quatro sentidos do estranhamento: o homem é estranhado do
produto do trabalho e da natureza a qual modifica; da sua atividade vital (trabalho), uma vez que vende
sua força de trabalho; da sua humanidade, pois é estranhado do gênero humano; dos outros homens.
59
Idem, ibidem, pp. 82-83.
60
Idem, ibidem, p. 84.
essência, de seu “ser genérico”, nas palavras de Marx. O trabalho passa a ser “auto-
sacrifício” e “mortificação”.
Em O Capital, Marx trata da desumanização do homem pela perspectiva da
produção de mais-valia, da apropriação de trabalho alheio não-pago. O salário – valor
da força de trabalho pago pelo capital; quantia necessária para manter o trabalhador
enquanto tal – corresponde apenas a uma parte da jornada de trabalho; uma parte,
portanto, do valor agregado ao produto pelo trabalho humano61. O valor – o mais-valor
– gerado para além desse tempo converte-se em lucro para o proprietário, de forma que
o trabalhador recebe apenas por uma parcela do valor que agrega ao produto. O
capitalista, com sua avidez pelo lucro, busca aumentar esse mais-valor, seja estendendo
a jornada de trabalho – produzindo mais-valia absoluta –, seja reduzindo o tempo de
trabalho necessário para a produção de dado produto – produzindo mais-valia relativa.62
No quinto capítulo do Livro Terceiro de O Capital, denominado “Economia no
63
Emprego do Capital Constante” , Marx demonstra o fanatismo do capitalista pela
economia dos meios de produção64:

“Que nada se perca nem se desperdice, que os meios de produção só se utilizem da


maneira requerida pela própria produção, depende do adestramento e da formação
dos trabalhadores e ainda da disciplina que o capitalista exerce sobre os
trabalhadores combinados, a qual seria desnecessária num sistema social em que os
trabalhadores trabalhassem por sua conta” 65.

Economizar no emprego do capital constante, através da concentração de


trabalhadores e de sua cooperação em grande escala, significa reduzir a quantidade de
trabalho pago ao trabalhador. Ou seja, significa que em menos tempo de trabalho ele já

61
Marx aponta um duplo caráter no resultado do trabalho: por um lado, este trabalho conserva o valor
dos meios de produção, transferindo-o ao produto; por outro, agrega novo valor ao produto, gerado
pelo trabalho no processo de produção (MARX, K. “Capital constante e capital variável”. In: O Capital.
Crítica da Economia Política. São Paulo: Editora Nova Cultural, livro I, vol. I, col. Os Economistas, 1996,
pp. 317-326).
62
Idem. “O conceito de mais-valia relativa”. In: op. cit, pp. 429-437.
63
Idem. “Economia no emprego de capital constante”. In: O Capital. Crítica da Economia Política. São
Paulo: Civilização Brasileira, livro 3, vol. 4, 1974, pp. 86-116.
64
Quando fala em capital constante, Marx se refere à parte do capital “que se converte em meios de
produção, isto é, em matéria-prima, matérias auxiliares e meios de trabalho”; essa parte “não altera sua
grandeza de valor no processo de produção” (Idem, “Capital constante e capital variável”, p. 325).
Quando fala em capital variável, se refere à “parte do capital convertida em força de trabalho *que+ em
contraposição muda seu valor no processo de produção. Ela reproduz seu próprio equivalente e, além
disso, produz um excedente, uma mais-valia que ela mesma pode variar, ser maior ou menor” (Idem,
ibidem).
65
Idem. “Economia no emprego de capital constante”, p. 92.
produz o equivalente ao valor de sua força de trabalho, aumentando a proporção de
trabalho não-pago que é apropriado pelo capitalista. Isso tudo é feito com o menor custo
possível. Assinala Marx que fazem parte das economias no emprego do capital
constante:

“superlotar de trabalhadores locais estreitos e insalubres, o que em linguagem


capitalista significa poupar em construção; concentrar num mesmo local máquinas
perigosas, ao mesmo tempo que se negligenciam os meios de proteção contra o
perigo; descurar de medidas de precaução em processos de produção que por sua
natureza são insalubres ou perigosas, como nas minas, etc. Isto para não falar da
inexistência de quaisquer medidas destinadas a humanizar, a tornar agradável ou ao
menos suportável para o trabalhador o processo de produção” 66 .

Utilizando dados estatísticos de seu tempo, Marx demonstra as conseqüências


terríveis das condições sanitárias insalubres, até desumanas, dos trabalhadores na
Inglaterra e aponta para altos índices de óbitos. Temos, aqui, o que Mariátegui chama de
“emprego embrutecedor da máquina”, decorrente da avidez capitalista. O homem é,
portanto, escravizado pela máquina, e a negação de si mesmo – que chega a levar tantos
trabalhadores à morte –, ocorrida no processo de produção, torna o trabalho odioso.
Lukács, embasado principalmente nos Manuscritos de Marx, aos quais foi um
dos primeiros a ter acesso, desenvolve em sua obra Para uma ontologia do ser social67
a tese de que o trabalho consiste no “salto ontológico” do ser orgânico ao ser social. Ou
seja, é através do trabalho, protoforma de toda práxis social, que o homem se faz
homem, enquanto ser social. O trabalho, portanto, é central no processo que
“humanizou” o homem.
Disso, temos que a humanização do homem mediada pelo trabalho é ponto de
partida para uma questão vital: a liberdade. Esta é, provavelmente, um dos fenômenos
mais multifacetados do desenvolvimento social: é tida em sentido jurídico, moral, ético,
político, etc. Sua gênese ontológica, no entanto, se dá, a partir do momento em que, no
trabalho, a consciência define, entre alternativas materiais, qual finalidade quer
estabelecer e de que maneiras utilizará seus meios. Em suma, a liberdade surge numa
decisão concreta entre possibilidades concretas. Como o trabalho busca transformar

66
Idem, ibidem, p. 97.
67
LUKÁCS, G. “O Trabalho”. In: Para uma Ontologia do Ser Social. Disponível em:
http://www.esnips.com/doc/23e388af-c6cf-4532-b05d-98ecf38eaeae/Gy%C3%B6rgy-Luk%C3%A1cs---
Trabalho-%28Para-uma-Ontologia-do-Ser-social%29.
materialmente a natureza, a questão da liberdade está relacionada com a
intencionalidade de transformação da realidade.
No que tange à influência do meio, Lukács discorda de uma postura que vê
liberdade e determinismos como mutuamente excludentes. Determinadas alternativas
podem gerar determinadas conseqüências, de forma que o ser social pende para algumas
escolhas, tornando seu campo de opções mais restrito devido às conseqüências que estas
podem gerar em relação ao que ele busca. Concomitantemente, a liberdade também é
determinada pela ignorância do individuo sobre as conseqüências de suas escolhas e do
objeto material que deseja transformar. Assim Lukács afirma que “quanto maior for o
conhecimento que o sujeito adquiriu dos nexos naturais em cada momento, tanto mais
facilmente pode ele mover-se no meio material” 68.
Lukács traz, portanto, o surgimento do trabalho como mediação para a
humanização – e com o trabalho, temos a gênese ontológica da liberdade que lhe é
própria.
Pode-se, assim, com as contribuições de Marx e Lukács, indicar um caráter
ambivalente do trabalho: por um lado, origina-se enquanto ato criativo e livre, indo
além da possibilidade de produzir meios de subsistência. Lukács, mais que Marx,
enfatiza o trabalho enquanto categoria fundamental para o entendimento ontológico do
ser social – é central para compreender a humanização o homem. O trabalho é, em sua
origem, portanto, humanizante, e germe da liberdade humana. Por outro lado, o
capitalismo, por meio da avidez do proprietário em se apropriar cada vez mais de
trabalho alheio, visando o lucro, faz do trabalho algo mortificador, degradante,
embrutecedor, auto-sacrificante, negativo, odioso, enfim, desumanizante.
Mariátegui, no fragmento supracitado, demonstra ter compreendido essa
ambivalência, mesmo sem ter tido acesso à obra de Lukács e aos manuscritos de Marx.
Acusou, coerentemente, a “deformação do trabalho em seus fins e sua essência”, uma
vez este nasce com “virtude de criação”. Vemos, desse modo, que seu pensamento
pragmático e militante também nos legou profundas reflexões teóricas, como é próprio
da tradição marxista. É precisamente isso que faz de Mariátegui um clássico.

68
Idem, ibidem, p. 50.
4. O PROBLEMA INDÍGENA

“Confesso ter chegado à compreensão, ao entendimento do valor e do


sentido do indígena, no nosso tempo, não pelo caminho da erudição
livresca, da intuição estética ou mesmo da especulação teórica, mas
pelo caminho – simultaneamente intelectual, sentimental e prático –
do socialismo”
José Carlos Mariátegui, 1927

69
O chamado “problema do índio” é o tema abordado no segundo dos Sete
ensaios de Mariátegui, bem como em muitos de seus artigos. Em sua obra-prima,
publicada em 1928, dedica-se a discutir a essência do problema indígena com as
correntes conservadoras que costumam reduzi-la a termos morais, étnicos ou
educacionais. Ao contrário das interpretações até então, o autor coloca a questão no
âmbito econômico e social, apontando as raízes do problema presentes no regime de
propriedade de terra. Segundo ele, qualquer tentativa de resolver a questão indígena sem
a destruição do “feudalismo dos gamonales”70 seria um trabalho superficial, que não
toca na essência da questão.
Mariátegui critica a tendência a se considerar o problema do índio enquanto
problema moral. Segundo ele, “encarna uma concepção liberal, humanitária,
oitocentista, iluminista, que na ordenação política do Ocidente anima e motiva as „ligas
dos Direitos do Homem‟”.71 Assinala, ainda, que na luta antiimperialista já é
praticamente nula a ação de movimentos de solidariedade para com povos coloniais, dos
quais estes não são protagonistas. Ou seja, não se trata apenas de uma questão de “ajuda
humanitária” aos indígenas, pois esta não altera a relação fundamental de seu problema.
No período colonial, a ação religiosa a favor dos indígenas foi muito intensa. Contudo,
isso não inspirou mais que leis que não superavam a vontade dos proprietários.

69
Ainda que hoje o movimento indígena lute contra tal denominação homogeneizante aos diversos
povos indígenas, esta é uma demanda muito recente. Mariátegui, em contexto histórico, utiliza o termo
“índio” mesmo sendo consciente da pluralidade e heterogeneidade dos povos ameríndios. Este
trabalho, igualmente consciente de tal pluralidade, não hesitará em manter, em algumas ocasiões, as
denominações do autor o qual se propõe a estudar.
70
Os gamonales eram os grandes proprietários, que possuíam enorme influência política e submetiam
os indígenas que habitavam suas terras. O gamonalismo, tal como Mariátegui define, é um amplo
fenômeno social, uma vez que vai além dos próprios gamonales, compreendendo toda uma hierarquia
de funcionários, intermediários, agentes, etc.
71
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 59.
A questão indígena, da mesma maneira, não pode ser reduzida ao problema
educacional. Para o autor, buscar apenas na educação do índio sua solução é ineficaz
uma vez que:

“Hoje, mais que nunca, a pedagogia leva em consideração os fatores sociais e


econômicos. O moderno pedagogo sabe perfeitamente que a educação não é uma
simples questão de escola e métodos didáticos. O meio econômico e social
condiciona inexoravelmente o trabalho do mestre. O gamonalismo é
fundamentalmente contrário à educação do índio: sua subsistência tem na
manutenção da ignorância do índio o mesmo interesse que no cultivo do
alcoolismo”.72

Assim, a escola moderna é incompatível com o que chama de semifeudalismo


peruano73, persistente neste momento. Além disso, o Amauta parece estar plenamente
consciente de que o problema social indígena vai além da educação – envolve saúde,
trabalho, moradia, e, sobretudo, a terra. Não se trata apenas de construir escolas
indígenas, mas de reorganizar toda a estrutura da sociedade peruana desse tempo.
Mariátegui, igualmente, se opõe aos que defendem a idéia imperialista de que se
trata de um problema étnico, ou seja, aos adeptos do conceito de “raças inferiores”. Para
ele, tal idéia serviu ao ocidente europeu em sua obra expansionista. Esta parece ser uma
proposição que causa grande irritação no autor, que chega a afirmar: “A degeneração do
índio peruano é uma invenção vagabunda dos leguleios feudalistas”.74
De fato, Mariátegui possui uma visão bastante crítica acerca da idéia de raça,
principalmente tomando por parâmetro seu contexto histórico. Em O problema das
raças na América Latina, longo texto escrito por ocasião da I Conferência Comunista
Latinoamericana, em 1929, o autor desenvolve sua crítica à racialização:

“O problema das raças serve na América Latina, conforme a especulação intelectual


burguesa, entre outras coisas, para encobrir ou deixar na ignorância os verdadeiros
problemas do continente. A crítica marxista tem a obrigação inadiável de
caracterizá-lo em seus termos reais, liberando-o de toda tergiversação casuística ou

72
Idem, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 60.
73
A questão da persistência de elementos feudais na economia peruana do início do século XX é o tema
do próximo capítulo.
74
Idem, ibidem, p. 57.
artificial. Econômica, social e politicamente, o problema das raças, como o da terra,
é, na sua base, o da liquidação da feudalidade”.75

Ao contrário do ensaio publicado no ano anterior, em que Mariátegui critica a


idéia de superioridade étnica e coloca o problema do índio enquanto problema
econômico e social, neste texto sua concepção ganha mais um elemento: trata-se
também de um problema político, uma vez que o gamonalismo e o imperialismo
colocam-se acima do Estado peruano. Mariátegui, com um olhar a frente de seu tempo,
anula com esse parágrafo qualquer possibilidade da raça se constituir fator de
superioridade de um povo sobre outro – a superioridade dos espanhóis sobre os
indígenas na Conquista, por exemplo, é tida por ele como uma superioridade técnica
desvinculada do fator étnico. Justificando seu posicionamento, o autor cita Vilfredo
Pareto, que trata da hipocrisia da idéia de raça, utilizada com intenções escravizantes e
imperialistas pelos povos brancos. A origem dessa proposição estaria, segundo o
sociólogo italiano, na concepção aristotélica da escravidão natural das raças inferiores.
Mariátegui também retoma a crítica de Bukharin, em Teoria do materialismo histórico,
à teoria das raças, e discorre sobre o caráter econômico dessa dominação, justificada
pela raça:

“Na agricultura, o estabelecimento do assalariado, a adoção da máquina, não


apagam o caráter feudal da grande propriedade. Aperfeiçoam, simplesmente, o
caráter da exploração da terra e das massas camponesas. Boa parte de nossos
burgueses gamonales sustenta calorosamente a tese da inferioridade do índio: o
problema indígena é, em sua opinião, um problema étnico cuja solução depende do
cruzamento da raça indígena com raças superiores”.76

Em suma, o problema do índio, para Mariátegui, é social, político e econômico.


Essencialmente econômico, uma vez que a questão da feudalidade é colocada na base
do problema. A nova colocação que o autor propõe procura o problema indígena no
problema da terra, e não o reduz a postulados étnicos, morais ou educacionais. E o
problema da terra, como será possível constatar no próximo capítulo, é analisado por ele
historicamente, compreendendo-se que a república, que deveria elevar a condição do
índio, o tornou mais pobre e explorado. Isso ocorreu porque a independência fez

75
Idem, “O problema das raças na América Latina”. In: Política. São Paulo: Ática, col. Grandes Cientistas
Sociais, 1982a, grifos meus, p. 49.
76
Idem, ibidem, p. 51.
emergir uma nova classe dominante, que se apropriou sistematicamente das terras
indígenas, ocasionando a dissolução moral e material de uma raça de cultura agrária,
para a qual a terra era motivo de alegria e subsistência. “O índio desposou a terra. Sente
que „a vida vem da terra‟ e volta à terra. Finalmente, o índio pode ser indiferente a tudo,
menos à posse da terra que suas mãos e seu alento levantaram e fecundaram
religiosamente”.77
Na época em que Mariátegui escreve já se vê as reivindicações indígenas
pautadas em ideais socialistas. No entanto, todas revoltas indígenas no período
republicano, assim como na Colônia, resultaram em muitas mortes. Ainda assim, o
autor revela sua aposta na luta indígena pela solução de seu próprio problema: “A
solução do problema do índio tem que ser uma solução social. Seus realizadores devem
ser os próprios índios”.78 Não há aqui uma contradição com a afirmação anterior de que
a base da resolução de tal problema encontra-se na superação dos traços sobreviventes
de feudalidade. Pelo contrário, a “solução social” de que Mariátegui fala é a solução
socialista, uma revolução profunda na estrutura econômica. O breve fragmento citado é
um chamado aos povos indígenas para que incorporem essa luta.
Para indicar a possibilidade de luta por parte do índio, Mariátegui realiza uma
leitura socialista da cultura do indígena peruano, sobretudo em relação ao regime
comunitário produção agrícola. Um bom exemplo dessa interpretação mariateguiana
encontra-se no seguinte fragmento, retirado de uma extensa nota do início do ensaio
sobre o “Problema do índio”:

“Não é a civilização, não é o alfabeto do branco o que levanta a alma do índio. É o


mito, é a idéia da revolução socialista. A esperança indígena é absolutamente
revolucionária. (...) Por que haveria de ser o povo incaico, que constituiu o mais
desenvolvido e harmônico sistema comunista, o único insensível a essa emoção
mundial? A consangüinidade do movimento indigenista com as correntes
revolucionárias mundiais é demasiado evidente para que seja preciso documentá-la.
Já disse que cheguei à compreensão e à valorização justa do indígena pela via do
socialismo”.79

A respeito desta passagem, cabem algumas observações: 1) A relação entre os


valores do povo incaico com o comunismo, a qual, apesar de um anacronismo

77
Idem, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 63
78
Idem, ibidem, p. 65.
79
Idem, ibidem, pp. 50-51.
conceitual, é uma relação real se tomarmos como parâmetro o sistema de distribuição de
terra e produção agrária no Império Inca; 2) a idéia de “mito revolucionário”, herdada
de Sorel e muito presente em Mariátegui, que valoriza as motivações simbólicas,
passionais do ator revolucionário (no caso, o índio); 3) a necessidade de diálogo e
articulação do movimento indigenista, herdeiro de uma cultura na qual a propriedade
privada era inexistente, com as “correntes revolucionárias mundiais”, ou seja, o
proletariado, tida como vanguarda revolucionária no marxismo-leninismo.
A aposta no potencial revolucionário dos povos indígenas, bem como em sua
capacidade de organizar-se ao lado do proletariado para a revolução, é uma das
principais inovações de Mariátegui, a qual possui uma atualidade impressionante, em
tempos de ascensão do movimento indígena nos Andes. Este é, também, um dos
principais pontos da polêmica em torno deste autor. É importante frisar, todavia, que
autor não coloca os indígenas como vanguarda revolucionária, ainda que tenha sofrido
essa acusação dos bolcheviques e que alguns comentadores, como Michael Löwy,
insinuem este posicionamento. Do contrário, o jornalista, que defende a inclusão do
indígena na militância socialista, não deixa de ver o proletariado como principal
promotor revolucionário:

“Cremos que, entre as populações „atrasadas‟, nenhuma reúne, como a população


indígena inca, condições tão favoráveis para que o comunismo agrário primitivo,
subsistente em estruturas concretas e no profundo espírito coletivista, transforme-se,
sob a hegemonia da classe proletária, numa das bases mais sólidas da sociedade
coletivista preconizada pelo comunismo marxista”.80

Não se trata, assim, de aplicar na América a mesma concepção que Marx


elaborou para Europa, substituindo o proletariado urbano pelo campesinato indígena,
como se o marxismo fosse um aparato conceitual universal adaptável a qualquer
realidade. Trata-se, na verdade, de reconhecer na América Latina a existência de outra
realidade, outra composição social, outra estrutura econômica – muito diferente da
Inglaterra do século XIX – e de ver nessa realidade outras potencialidades
revolucionárias a serem conscientizadas e organizadas para a revolução. Para este
trabalho, Mariátegui realiza um projeto a um só tempo político e cultural, militante e
intelectual.

80
Idem, “O problema das raças na América Latina: IV. Desenvolvimento econômico-político indígena
desde a época Inca até a atualidade”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 144, grifos meus.
Em um artigo da revista Amauta denominado “Indigenismo e socialismo.
Intermezzo polêmico”, o jornalista debate com Luis Alberto Sánchez sobre o
indigenismo81 e, incomodado com os rótulos recebidos por seu interlocutor, pede para
não ser chamado de indigenista, nacionalista ou pseudo-indigenista, mas de socialista.

“O socialismo ordena e define as reivindicações das massas, da classe trabalhadora.


E, no Peru, as massas – a classe trabalhadora – são indígenas na proporção de quatro
quintos. Nosso socialismo, pois, não seria peruano – sequer seria socialismo – se não
se solidarizasse, primeiramente, com as reivindicações indígenas. Nesta atitude, não
se esconde nenhum oportunismo. Não se descobre nenhum artifício, se se pensa por
dois minutos no que é socialismo. Esta atitude não é postiça, fingida ou astuta. É
apenas socialista”.82

Como se vê, Mariátegui não nega o caráter revolucionário da classe operária,


nem sua liderança na organização da luta. Contudo, vê também na população indígena –
a mais oprimida no Peru – esse potencial revolucionário. Em seu marxismo heterodoxo,
o autor parte dos princípios histórico-materialistas para refletir a possibilidade do
socialismo peruano a partir das contradições de seu próprio país. E essa reflexão deve
obrigatoriamente incluir os povos indígenas, que constituem a maior parte da classe
trabalhadora.
Além da própria situação de exploração nas minas e nos latifúndios, a
subsistência da tradição agrária coletivista, por meio do cultivo da terra comum,
justifica a aposta de Mariátegui nos povos indígenas. Não se trata apenas de levar o
índio à revolução, mas também de se valer de sua tradição agrário-comunista na
construção do socialismo.

“As comunidades baseiam-se na propriedade comum das terras em que vivem e


cultivam e preservam, por pactos e por laços de consangüinidade que unem entre si
diversas famílias que formam o ayllu. As terras cultiváveis e pastos que pertencem à

81
Fernanda Beigel, que estuda as polêmicas indigenistas desse tempo, aponta que o indigenismo de
Mariátegui e do grupo de Amauta está marcado, por um lado, pela dimensão política, relacionada com
as organizações reivindicativas e as distintas posições ideológicas frente à incorporação do índio na
sociedade peruana; por outro, pela valorização da dimensão cultural – o indigenismo artístico, o
passado cultural, a herança incaica. Assim, através da primeira dimensão, a população indígena se
converte em sujeito político; através da segunda, os distintos produtos culturais do vanguardismo
aparecem como vias alternativas de conhecimento (BEIGEL, Fernanda. “Mariátegui y las antinomias del
indigenismo”. Utopia y praxis lationoamericana. Vol. 6, nº 013, Jun., 2001, p. 36-57. Disponível em:
<http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/279/27901303.pdf>.)
82
MARIÁTEGUI, “Indigenismo e socialismo: intermezzo polêmico”. In: op. cit., p. 110.
comunidade formam o patrimônio da coletividade. Nela vivem, mantendo-se
daquilo que cultivam, e seus membros cuidam constantemente de que elas não lhes
sejam arrebatadas pelos poderosos vizinhos ou outras comunidades; isto lhes serve
de suficiente estímulo para estarem sempre organizados, constituindo um só corpo.
As terras comunais pertencem a todo ayllu, ou seja, ao conjunto das famílias que
formam a comunidade(...) Mas o espírito coletivista do indígena não se revela
apenas na existência das comunidades. O costume secular da minka subsiste nos
territórios do Peru, da Bolívia, do Equador e do Chile: o trabalho que um parceiro,
mesmo que não seja da comuna, não pode realizar por falta de ajudantes, por doença
ou outro motivo similar, é realizado com a cooperação e o auxílio dos parceiros
vizinhos, que por sua vez recebem parte do produto da colheita, quando sua
quantidade o permitir, ou outra ajuda manual em uma próxima época. Esse espírito
de cooperação que existe fora das comunidades manifesta-se de forma especial na
Bolívia, onde são estabelecidos acordos mútuos entre indígenas, pequenos
proprietários pobres, para lavrar em comum todas as terras e repartir em comum seu
produto”.83

É precisamente esse “espírito coletivista indígena” que Mariátegui vê como


proveitoso à nova sociedade que quer construir. No entanto, o autor assiste a destruição
da propriedade comum das terras e do sentido indígena secular da coletividade agrária
pelo domínio político e econômico dos gamonales. Portanto, é contra ele que seu
pensamento indo-agrário se volta. Para o autor, o centro do fenômeno está na
hegemonia da propriedade semifeudal nas instituições políticas. Trata-se de uma
questão que se localiza em sua crítica à infraestrutura econômica, portanto. Uma vez
que dentro do “semifeudalismo” não é possível superar do problema do índio, até
quando argumenta em relação à organização político-administrativa84, o autor não vê
sentido nas proposições que visam descentralizar o poder, em nome dos departamentos
ou regiões, sem alterarem a hegemonia dos gamonales e a situação de subordinação dos
indígenas.

83
Idem. “O problema indígena na América Latina”. In: O marxismo na América Latina: uma antologia de
1909 aos dias atuais (org. de Michael Löwy). São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 1999, p. 109.
84
Mariátegui, em seu ensaio “Regionalismo e Centralismo”, mostra como se desenrola o debate sobre o
modelo político-administrativo a ser adotado pelo país. Seu argumento principal é de que o debate
entre regionalistas (adeptos do modelo federalista) e centralistas é algo superado. Estaria emergindo,
em contraponto, um “novo regionalismo”, que vai além de refletir uma divisão de atribuições
administrativas e leva a questão indígena e agrária ao foco da discussão. A reflexão do modelo político –
sob a ótica do “novo regionalismo” – não poderia ser feita, assim, sem a reflexão da superação completa
do feudalismo.
Para o autor, a superação do “feudalismo dos gamonales” e a superação
econômica, política e social do problema indígena devem estar na essência da
construção da nacionalidade peruana. Mariátegui, sagazmente, nega que exista uma
“peruanidade” em si, uma formação nacional propriamente peruana. Pelo contrário, a
nação peruana é vista por ele como uma construção, um vir a ser, que clama a inclusão
do autóctone.
Segundo Alfredo Bosi, a desmistificação da idéia de raça que Mariátegui realiza
é uma “limpeza de terreno” para a reflexão da identidade nacional peruana, uma vez que
esse seu pensamento resulta em uma postura, concomitantemente, anti-imperialista –
que permite compreender o valor do índio – e anti-xenófoba – que recusa uma exaltação
cega da cultura indígena e evita um nacionalismo retórico. Quanto a esse segundo
ponto, Mariátegui não deixa dúvidas:

“Do preconceito da inferioridade da raça indígena, começa-se a passar ao extremo


oposto: o de que a criação de uma nova cultura americana será essencialmente obra
das forças raciais autóctones. Subscrever esta tese é cair no mais ingênuo e absurdo
misticismo. Ao racismo dos que desprezam o índio, porque acreditam na
superioridade absoluta e permanente da raça branca, seria insensato e perigoso opor
o racismo dos que superestimam o índio, com fé messiânica em sua missão como
raça no renascimento americano”.85

Assim, da negação do racismo o eixo da questão é trazido para a questão da


nacionalidade peruana. Uma nacionalidade em formação, como Mariátegui define no
artigo “O nacional e o exótico”.86 Segundo o texto, a Conquista destruiu a única
“peruanidade” que existiu, e a Independência não foi realização peruana, posto que se
baseou em um modelo europeu de República. Logo após afirmações tão contundentes, o
autor nega um nacionalismo exacerbado e repousado sobre a cultura inca, e defende a
incorporação, de maneira genuína, de feições técnicas e culturais desenvolvidas ao redor
do mundo:

“Temos o dever de não ignorar a realidade nacional, mas também temos o dever de
não ignorar a realidade mundial. O Peru é fragmento de um mundo que segue uma
trajetória solidária. Os povos com mais vocação para aceitar as conseqüências da sua
civilização e da sua época. O que se pensaria de um homem que rechaçasse, em

85
Idem, “O problema das raças na América Latina”, p. 55.
86
Idem, “O nacional e o exótico”. In: Por um socialismo indo-americano, pp. 43-46.
nome da peruanidade, o avião, o rádio, o linotipo, considerando-os exóticos? O
mesmo se deve pensar do homem que assume esta atitude diante das novas idéias e
dos novos fatos humanos. (...) As relações internacionais da intelectualidade devem
ser, forçosamente, livre-cambistas. Nenhuma idéia que frutifique, nenhuma idéia
que se aclimate é uma idéia exótica”

Temos, aqui, uma aparente contradição: por um lado, Mariátegui defende a


cultura pré-colombiana incaica como única expressão realmente nacional já existente;
por outro, não se coloca contrário à incorporação de “novas idéias” presentes na
“realidade mundial”. A questão é resolvida ao analisarmos a maneira como o autor
concebe o que chama de “tradição”87 – uma concepção que, em sentido mais lato,
poderia ser entendida como “cultura” –: para ele, a tradição, em contraponto ao que
querem os tradicionalistas, é “viva e móvel”, é “patrimônio e continuidade histórica”.
Com isso, Mariátegui dirige sua crítica aos conservadores que definem a tradição
enquanto algo estático prolongado ao presente. Ademais, reflexão é clara: ao contrário
do que interpreta Löwy, Mariátegui se coloca contrário a uma postura romântica em
relação ao indígena e sua cultura.
Em suma, a nacionalidade peruana a ser construída não consiste nem em um
retorno romântico a um passado pré-capitalista ignorando o contexto mundial, nem em
uma aceitação passiva de um idioma, uma cultura, uma religião, uma concepção política
e, principalmente, uma estrutura econômica impostos à força. Essa dualidade – tradição
quéchua/ modernidade burguesa européia – se faz presente na própria composição
humano-geográfica do país. Não realizando estudos profundos da Amazônia Peruana,
Mariátegui trabalha com a oposição entre a sociedade na costa (em especial em Lima,
onde se encontra uma burguesia europeizada) e na serra, onde a comunidade e os
costumes indígenas quéchuas subsistem. E não é apenas essa falta de coesão cultural
que faz do Peru uma nação a ser construída. O Peru encontra-se fragmentado, nessas
duas regiões, em todos os sentidos, de forma que as relações políticas e econômicas,
profundamente assimétricas, levam a discussão da nacionalidade a uma questão de
classe e poder. É assim que o socialismo aparece a Mariátegui como resolução deste
dilema. O problema do índio, o problema da terra, e o problema da nacionalidade
peruana se encontram, na medida em que estão todos ligados às contradições da

87
Segundo o artigo “A heterodoxia da tradição” (Idem, ibidem, pp. 112-114)
estrutura econômica peruana. Em última instância, trata-se do problema da feudalidade,
tal como sintetiza o autor:

“Chamamos problema indígena à exploração feudal dos nativos na grande


propriedade agrária. O índio, em 90% dos casos, não é um proprietário, mas um
servo. O capitalismo, como sistema econômico e político, manifesta-se incapaz, na
América Latina, de edificação de uma economia emancipada dos estigmas feudais.
O preconceito da inferioridade da raça indígena permite-lhe uma exploração máxima
dos trabalhos desta raça; e não está disposto a renunciar a esta vantagem, da qual
tantos proveitos obtém”.88

Assim, a “solução social” proposta por Mariátegui para esta questão,


invariavelmente, terá como grande objetivo uma profunda mudança no regime
fundiário, por meio da revolução socialista. Nesse sentido, realiza um trabalho de
interpretação histórica da questão da terra no Peru, para melhor entender as razões da
permanência do que denomina “feudalidade” subsistente. Este é, precisamente, o tema
do próximo capítulo.

88
Idem, “O problema das raças na América Latina”, p. 51.
5. O PROBLEMA DA TERRA

“O que nas comunidades indígenas do Peru subsiste de elementos de


civilização é, principalmente, o que sobrevive da antiga organização
autóctone. No campo feudalizado, a civilização branca não criou
focos de vida urbana, não significou sequer industrialização e
maquinismo; no latifúndio serrano, com exceção de certas estâncias
de gado, o domínio do branco não representa, nem ainda
tecnologicamente, nenhum progresso a respeito da cultura
aborígene”
José Carlos Mariátegui, 1929

O ensaio sobre o “problema da terra” é, possivelmente, o mais importante dos


Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. Uma vez que Mariátegui
caracteriza-se enquanto pensador marxista, sua análise sócio-histórica está,
inevitavelmente, fundamentada no estudo das forças produtivas e relações de produção
do incipiente sistema capitalista peruano. E sendo a economia peruana movida,
principalmente, pela produção agrícola, a reflexão sobre a questão da terra e sua
evolução histórica é central a uma interpretação histórico-materialista.
A inventividade e a heterodoxia de Mariátegui residem, sobretudo, na exaltação
que faz do indígena incaico e sua cultura agrária. Exaltação talvez exagerada, mas não
idealista: o foco do elogio indígena não está apenas nas virtudes morais quéchuas e
aimarás, mas recai especialmente sobre a forma de distribuição agrária, sobre a
organização do trabalho coletivo e sobre estrutura estatal inca que amparava as
instituições tradicionais que promovem a repartição da terra e seus produtos.
No decorrer do ensaio, o jornalista peruano analisa, de forma descontínua, a
anatomia da antiga “comunidade”89 para o cultivo da terra e as transformações ocorridas
na organização fundiária a partir da Conquista. Realiza, ainda, uma discussão acerca da
questão da terra no Peru de seu tempo, e como as tradições indígenas de organização
econômica são estranguladas no liberalismo burguês, trazido no advento da República.

89
No texto de Mariátegui, a palavra comunidade aparece sempre entre aspas. Acredito que o objetivo
do autor fosse indicar que o termo é trazido em sentido estrito, referindo-se, especificamente, ao
agrupamento familiar indígena dessa região, caracterizado por determinadas relações de parentesco e
por uma forma específica de organização para produção agrícola.
5.1. O ayllu e a terra sob o Império Inca
Desenvolvendo uma de suas principais teses – segundo a qual o problema do
índio é, em última instância, econômico –, Mariátegui realiza um importante estudo da
economia local anterior à Conquista, análise imprescindível à sua crença na
potencialidade revolucionária do índio peruano. Trata-se de uma economia que se
baseia no cultivo comunitário da terra, cujo valor para a cultura indígena daquela região
é dotado de sentido religioso.
O Amauta postula que desde o início do Estado Inca desenvolveu-se entre as
populações aborígenes um regime de propriedade coletiva da terra organizado por
grupos que se constituíam em comunidade. Essa “comunidade” é o ayllu, caracterizado
pela associação de pessoas por relações específicas de parentesco90.
Sob o domínio do império inca, cujas origens remontam, aproximadamente, ao
início do século XIII, as terras continuaram a ser cultivadas e usufruídas coletivamente.
Todas as riquezas pertenciam ao Inca (terras, bosques, gados, minas), não existindo
propriedade privada nem o dinheiro. Sobre o cultivo da terra, Mariátegui faz uma
sucinta descrição:

“As terras dividiam-se em três partes: uma do Sol, outra do Inca e outra da aldeia.
Primeiramente, cuidava-se das terras do Sol. Em seguida, daquela dos anciãos,
viúvas, órfãos e soldados que se achavam no serviço ativo. Depois, era a aldeia que
cultivava suas próprias terras e tinha a obrigação de ajudar aos vizinhos. E depois
disso, cultivavam-se as terras do Inca. (...) Uma diretriz muito sábia determinava que
qualquer déficit nas contribuições para o Inca podia ser coberto com o que estava
guardado no celeiro do Sol. A economia do governo gerava excedente. Este
destinava-se aos depósitos, que, na época de escassez, eram franqueados aos
indivíduos mergulhados na miséria por doença ou desgraça” 91.

90
Cf. PUGA, M. A. “El ayllu: su naturaleza y régimen económico-social”. America Indígena. México, D. F.:
Vol. X, n. 4, outubro de 1950, p. 283-299. Neste artigo, o peruano Mario Alberto Puga traz uma
interessante discussão antropológica sobre a evolução das relações de parentesco no ayllu. Segundo
ele, a comunidade, inicialmente, se pautava pelo matriarcalismo, inclusive com figuras religiosas
femininas. Assim, nesse primeiro momento, a avó era a autoridade máxima e a constituição da
comunidade dava-se pelas mulheres, de forma que, por exemplo, quando os homens se casavam
passavam a integrar a comunidade de suas esposas. Com o tempo, o ayllu teria “evoluído” (termo
empregado pelo autor) ao patriarcalismo, embora em algumas regiões as relações permanecessem
matriarcais ou mistas. Essa passagem é atribuída por certos autores como decorrente da centralização
dos poderes político e militar pelo inca Sinche Roca, em 1228. Com essa medida, a chefia militar da
comunidade, que antes era exercida pela autoridade masculina de forma temporária em casos
excepcionais, passou a ser atribuída ao homem permanentemente.
91
MARIÁTEGUI, “O problema das raças na América Latina: IV. Desenvolvimento econômico-político
indígena desde a época Inca até a atualidade”, p. 139.
As terras eram re-divididas anualmente em lotes individuais e de mesmo
tamanho (regra válida para homens e mulheres). Não se alienavam nem se expandiam as
posses. Quando alguém morria, sua terra voltava ao Inca, que a repartia novamente. Nas
marcas92, desenvolveu-se o costume de ajuda mútua para o cultivo e construção de
habitações, denominado minka.
Em razão dessa tradição agrária coletivista, Mariátegui denomina tal sistema de
“comunismo agrário”, o que ocasionou grande discussão com alguns críticos. O autor
faz questão de esclarecer que não se pode confundir o comunismo agrário dos incas com
o comunismo moderno de Marx. Este trata de uma civilização industrial, em que a
natureza se submete ao homem, enquanto aquele se refere a uma civilização agrária, na
qual o homem se submete à natureza. A principal objeção que lhe é feita ao uso do
termo – a de que o Estado inca era centralizador e, portanto, negava a liberdade
individual, não podendo ser denominado comunista – Mariátegui rebate afirmando que
o conceito de “liberdade individual” foi desenvolvido na Idade Moderna e serviu como
base jurídica para a civilização capitalista liberal. Não se pode, assim, utilizá-lo como
parâmetro para um estudo das sociedades pré-colombianas sem que isto culmine em um
anacronismo etnocêntrico.
Feitas tais restrições e observações, fica justificado o que se entende como
“comunismo agrário” na América pré-colombiana. Todavia, essa sociedade exaltada
pelo autor teve seu fim no ano de 1532, quando a chegada dos espanhóis destruiu o
império inca e sua economia, iniciando um longo processo de extermínio e
marginalização dos antigos donos da terra, que perdura até os dias de hoje.

5.2. Colonialismo e feudalismo


Com a Conquista, estabeleceu-se uma nova base econômica, conforme o
interesse dos colonizadores. Essa transição ocorreu de maneira nada pacífica: no
período colonial, a população indígena foi reduzida a um décimo da composição do
império inca. Estabeleceu-se um regime de despovoamento que, segundo o autor,
exterminou uma população “fabulosa” economicamente e não substituiu sua economia
por uma superior.
Os espanhóis, nesse primeiro momento, estavam mais interessados nos minérios
andinos que nos frutos da terra peruana. E, evidentemente, não eram os conquistadores

92
A marca, ou tribo, constituía a “federação de ayllus estabelecidos em torno de uma mesma aldeia”
(ESCORSIM, op. cit., pp. 332-333).
que realizavam o duro trabalho nas minas. Pelo contrário, a cobiça espanhola por metais
fez um povo agrário transformar-se num povo de mineradores, sob a imposição de um
regime de escravidão, como nos fala Mariátegui: “O trabalho agrícola, dentro de um
regime naturalmente feudal, teria feito do índio um servo, vinculando-o a terra. O
trabalho nas minas e nas cidades devia fazer dele um escravo”.93 Além disso, como em
praticamente toda América Latina, para o serviço escravo também foram levados negros
ao Peru, ainda que em pequena escala quando comparada à quantidade de africanos
trazidos ao Brasil ou a Cuba, por exemplo.
A Conquista destruiu todo o modelo econômico inca, e a nação indígena se
dissolveu em comunidades isoladas, de forma que seu trabalho já não mais funcionava
de forma orgânica e solidária como outrora. Os espanhóis buscaram dar uma nova
organização político-econômica às suas colônias, através do cultivo do solo (na costa) e
da extração de ouro e prata (na serra). Esse primeiro momento de organização
econômica peruana é fundamental: o contraste econômico entre o litoral e os Andes
existente até hoje é decorrente da política econômica dos tempos coloniais.
Diego Meseguer Illán aponta um paradoxo fundamental, constatado por
Mariátegui: dentro de um sistema feudal, o índio era mais freqüentemente escravo que
servo. Conforme afirma o próprio Mariátegui, a colonização, incapaz de implantar no
Peru um regime autenticamente feudal, “enxertou nesta os elementos de uma economia
escravista”.94 O comentador vê nesse fragmento uma tripla acusação à colonização:

“a) la destrucción de la economía comunista incaica, b) la implantación de un


feudalismo demodado y antihistórico, c) que asume elementos de un régimen
esclavista. La consecuencía lógica es la condenación de un tal sistema que supone
uma marcha hacia atrás en la historia al no producir mayor rendimiento
econômico.”95

No contexto da produção de Mariátegui, ainda estavam muito presentes as


teorias e idéias que acreditavam na superioridade da raça branca sobre as demais96.

93
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 73.
94
Idem, ibidem, p. 72.
95
ILLÁN, op. cit., p. 172.
96
Sarmiento, em seu clássico Facundo, escrito em 1845, é um exemplo de autor que parece partir de
premissas racistas: “Las razas americanas viven en la ociosidad, y se muestran incapaces, aun por medio
de la compulsión, para dedicarse a un trabajo duro y seguido. Esto sugirió la Idea de introducir negros en
América, que tan fatales resultados ha producido” (SARMIENTO, D. F. Facundo. Disponível em:
<http://dc143.4shared.com/download/114744547/605f03bd/Domingo_Faustino_Sarmiento_-
Facundo.pdf>).
Nesse sentido, o professor Javier Prado – cujos conceitos Mariátegui costumava criticar
em seus textos – chega a acusar o regime colonial de ter trazido uma “raça inferior” para
ser escrava, em alusão à importação de negros africanos. O jornalista, em discordância
de tal pensamento, acusa o regime colonial de ter trazido a escravidão como meio de
organização econômica, que consolidava um regime fundado na conquista e na força.
Vale notar que, com esse tipo de afirmação, ele revela novamente que sua análise se
pauta por critérios materialistas, colocando na base do problema peruano a questão do
modo de produção.
Seu estudo, entretanto, não se resume a expor as relações objetivas de produção.
O autor também busca, na caracterização da subjetividade religiosa do colonizador
espanhol, elementos para descrever o tipo de colonização que se desenvolveu na
América Latina: no primeiro ensaio da obra fala da ausência, no empreendimento
espanhol, dos “elementos morais, políticos e psicológicos do capitalismo”.97 Segundo
ele, a colonização espanhola foi um empreendimento mais militar e eclesiástico que
político-econômico. Para a América Hispânica vieram vice-reis, cortesãos, clérigos,
aventureiros, doutores e soldados. Estes não teriam aptidão 98 para criar núcleos de
trabalho, parecendo mais querer exterminar o índio que utilizá-lo.
Vale aqui uma digressão: em diversas passagens, Mariátegui faz alusão à
questão moral-religiosa do colonizador. Uma vez que para ele a subjetividade do ator
político é importante, na medida em que o mito – e a práxis política dele decorrente –
são fundamentais no desenvolvimento histórico, o autor se dedica a compreender que
convicções carregam os sujeitos dos processos históricos que estuda – a colonização
americana, neste caso.
Na América Latina, a colonização foi um empreendimento católico, cuja
mentalidade era ainda feudal, contrária ao desenvolvimento do capitalismo. Para a
América do Norte, por outro lado, vieram colonizadores abertos ao capitalismo
nascente, dotados da ética protestante da qual Weber fala. Esta parece ser uma questão
relevante para autor dos Sete ensaios.
Convém ressaltar que não há menção a Weber em nenhum momento do livro e,
possivelmente, Mariátegui o leu. É nos próprios escritos de Marx e Engels que ele
parece ter se inspirado para a compreensão da relação entre o ethos protestante com o

97
MARIÁTEGUI, op. cit., p.50.
98
Em diversos momentos, neste e nos outros ensaios da obra, Mariátegui dedica-se a caracterizar a
subjetividade do espanhol, que, ausente de elementos liberais e protestantes, seria inapta ao
desenvolvimento capitalista.
capitalismo, tal como se vê nas seguintes passagens cita de Socialismo utópico e
socialismo científico (de Friedrich Engels) e O Capital (de Karl Marx):

“A reforma de Calvino – escreve o célebre autor do Anti-Düring – respondia às


necessidades da burguesia mais avançada da época. Sua doutrina da predestinação
era a expressão religiosa do fato que, no mundo comercial da concorrência, o êxito e
o fracasso não dependem nem da atividade nem da habilidade do homem, mas sim
de circunstâncias não subordinadas a seu controle”.99

“O sistema da moeda é essencialmente católico, o do crédito eminentemente


protestante. O que salva é a fé: a fé no valor monetário considerado como a alma da
mercadoria, a fé no sistema de produção e no seu ordenamento predestinado, a fé
nos agentes da produção que personificam o capital, o qual tem o poder de aumentar
por si mesmo o valor. Mas assim como o protestantismo quase não se emancipa dos
fundamentos do catolicismo, também o sistema de crédito não se elevou sobre a
base do sistema da moeda”.100

Vê-se, nesses escritos, uma clara diferença em relação à concepção weberiana: o


autor de A ética protestante e o espírito do capitalismo coloca o desenvolvimento de
uma conduta ascética intra-mundana como fator fundamental na gênese do espírito do
capitalismo moderno, que se caracteriza pela “busca do lucro, do lucro sempre renovado
por meio da empresa permanente, capitalista e racional”.101 Engels, por outro lado, crê
que a ascensão do protestantismo decorre, em última instância, de uma necessidade que
nasceu durante a formação do capitalismo burguês. É a essa segunda concepção que
Mariátegui parece aderir.
Posto isso, é possível retomar a descrição da colonização peruana. O autor dá
ênfase, em vários momentos, às mazelas históricas geradas por uma economia colonial
que, ao invés de priorizar a criação de formas de produção e circulação de riqueza nos
campos e nas manufaturas, se preocupou com a extração descontrolada e precária dos
tesouros do subsolo, os quais faziam escala na Península Ibérica e se dirigiam à
Inglaterra. Foram esses recursos que financiariam mais tarde a Revolução Industrial.
Nesse momento, a extração mineral era a principal atividade da Coroa, mas não
a única. Desenvolve-se também uma economia agrária, na costa, que Mariátegui
classifica como feudal. Conforme a classe proprietária enriquecia e ganhava espaço no

99
ENGELS, F. apud MARIÁTEGUI, op. cit., p. 177.
100
MARX, K. apud MARIÁTEGUI, op. cit., p. 178.
101
WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2007, p. 26.
mercado internacional, suas terras absorviam a mão de obra e as terras indígenas, por
meio da encomienda, desintegrando os agrupamentos autóctones.
Entender o conceito legal e as implicações práticas da encomienda é
fundamental para assimilar o processo de “enfeudamento” da terra peruana.
Legalmente, o encomendero era o encarregado pela cobrança de impostos dos nativos
de uma determinada área e pela organização catequética dos tributários. Na realidade
efetiva, diz Mariátegui ao citar um longo trecho da obra de Cesar Ugarte, era um senhor
feudal que dispunha da força de trabalho dos índios e se apossava de suas terras. A
encomienda foi, dessa forma, uma instituição essencial do regime agrário colonial para
a substituição de grandes áreas de comunidades agrárias por latifúndios, nos quais o
cultivo era realizado pelos índios sob uma organização feudal.
Em relação às “comunidades”, o autor ressalta que não faltaram defensores
humanitários de relevância – como o frade Bartolomé de Las Casas – nem mesmo leis
que as protegessem. As Leis das Índias, por exemplo, reconheciam e amparavam sua
organização comunista. A Coroa bem sabia que o comunismo agrário do ayllu, sem o
Estado Incaico, não era incompatível nem com o espírito religioso nem com o caráter
político da Colônia. Pelo contrário, a organização comunitária indígena foi aproveitada
pelos jesuítas em alguns lugares para fins de catequização. Na grande maioria dos casos,
porém, essas leis não eram aplicadas. Na prática colonial, era quase impossível defender
a propriedade indígena e o cultivo da terra comum frente ao poder político e econômico
dos espanhóis e criollos que compunham a classe latifundiária. Os proprietários,
encomenderos, expandiam violentamente seu território, destruíam a comunidade e
submetiam os indígenas, criando um regime de trabalho forçado dentro de imensas
propriedades de terra.
Para explicar mais detalhadamente esse processo de expropriação da terra e
submissão do índio, o autor traça uma comparação com o feudalismo russo, onde os
senhores, que respondiam pelos impostos, distribuíam a mesma quantidade de terras a
todos camponeses a fim de que cada um, com seu trabalho, contribuísse para o
pagamento. Quando variava o número de servos, um novo reparte acontecia. Dessa
forma, o feudalismo transformava a propriedade comunal em meio de exploração, pois a
propriedade disponibilizada ao camponês possibilitava cada vez menos sua sustentação,
enquanto garantia sempre para o proprietário braços para o trabalho.
“Quando em 1861 a servidão foi abolida [na Rússia], os proprietários encontraram
um meio de substituí-la, reduzindo os lotes concedidos a seus camponeses a uma
extensão que não lhes permitia subsistir de seus próprios produtos. A agricultura
russa conservou, desse modo, seu caráter feudal. O latifundiário usou a reforma em
seu proveito. Havia percebido que era de seu interesse outorgar uma parcela aos
camponeses, desde que esta não bastasse para sua subsistência e a de sua família.
Não havia meio mais seguro para vincular o camponês à terra, limitando assim, ao
mesmo tempo, ao mínimo, sua emigração. O camponês se via forçado a prestar seus
serviços ao proprietário, o qual contava para obrigá-lo a trabalhar em seu latifúndio
– se não bastasse a miséria a que a ínfima parcela o condenava – com o domínio dos
prados, bosques, moinhos, águas, etc.” 102.

Em suma, manter o camponês com sua pequena parcela de terra, desde que esta
seja insuficiente para satisfazer suas necessidades, é uma maneira de prendê-lo ao local
(pois terá dificuldades em conseguir outro lote de terra) e, ao mesmo tempo, do
latifundiário valer-se da exploração de seu trabalho, pois não lhe há outra opção de
obter o sustento familiar. Na concepção de Mariátegui, o processo peruano foi análogo.
No Peru, assim como na Rússia, a comunidade não era amparada, mas sim tolerada;
sobrevivia dentro de um regime de servidão.

5.3. O problema da terra na república


A concepção trazida pelo autor em relação ao processo que resultou na
independência hispano-americana leva em conta principalmente a questão econômica, a
saber, os interesses econômicos da elite agrária criolla em se emancipar das restrições
impostas pela Coroa. Os escritos do autor, no entanto, não tendem a discorrer sobre esse
processo, mas analisar suas conseqüências na questão fundiária.
A emancipação, como já é sabido, não foi liderada pelas massas e não foi porta-
voz de seus interesses. Para Mariátegui, “a revolução não era um movimento das
populações indígenas. Era um movimento das populações crioulas, nas quais os reflexos
da Revolução Francesa haviam gerado um estado de espírito revolucionário”. 103 Essa
afirmação – somada a outro fragmento em que o autor exalta a importância de “uma
geração heróica, sensível à emoção de sua época, com capacidade e vontade para
desenvolver uma verdadeira revolução nesses povos”104 – pode nos causar a impressão

102
MARIÁTEGUI, op. cit., p. 80.
103
Idem, “A unidade da América Indo-Espanhola”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 80.
104
Idem, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 36.
de que a análise de Mariátegui sobre a independência nada tem de histórico-materialista.
Impressão negada pelo seguinte fragmento:

“Os condutores, os caudilhos, os ideólogos dessa revolução não foram nem


antecessores nem superiores às premissas e razões econômicas desse acontecimento.
O fato intelectual e sentimental não foi anterior ao fato econômico.
A política da Espanha obstaculizava e contrariava totalmente o desenvolvimento
econômico das colônias ao não lhes permitir comerciar com nenhuma outra nação e
reservá-las para si, como metrópole, monopolizando o direito de todo o comércio e
os empreendimentos em seus domínios. (...) A economia nascente das embrionárias
formações nacionais da América necessitava imperiosamente, para conseguir seu
desenvolvimento, desvincular-se da autoridade rígida e emancipar-se da mentalidade
medieval do rei da Espanha”.105

De todo modo, Mariátegui acredita que, uma vez que foi inspirada nas
revoluções burguesas européias, a organização republicana na América Latina deveria
representar a ascensão do capitalismo liberal. Contudo, a classe criolla latifundiária que
a efetivou foi incapaz de se livrar de seu caráter aristocrático, e os princípios liberais
foram apenas parcialmente implantados, mantendo-se os traços feudais da economia
peruana.
Segundo o Amauta, para que a revolução democrático-liberal resultasse na
liquidação do feudalismo e do absolutismo eram necessárias duas condições:

“a existência de uma burguesia consciente dos fins e interesses de sua ação e a


existência de um estado de ânimo revolucionário na classe camponesa e,
principalmente, sua reivindicação do direito à terra em termos incompatíveis com o
poder da aristocracia fundiária.”106

No Peru, menos ainda que nos outros países, não havia essas condições
amadurecidas. A revolução, na interpretação do autor, ocorreu pela solidariedade
continental dos povos que se rebelaram contra o domínio espanhol, dentro de um
contexto internacional favorável. “O nacionalismo continental dos revolucionários
hispano-americanos juntou-se a essa convivência forçada de seus destinos, para nivelar

105
Idem, ibidem, pp. 36-37.
106
Idem, ibidem, p. 82.
os povos mais avançados em sua marcha rumo ao capitalismo com os mais atrasados
nessa mesma via”.107
Um novo regime deveria representar uma nova política agrária. Porém, por um
lado, a solução liberal típica para a questão da terra – que consistiria na divisão do
latifúndio para a criação da pequena propriedade – era irrealizável devido ao caráter da
burguesia peruana.; por outro, os postulados liberais serviram para atacar a
“comunidade”, que contrariava a propriedade privada. Assim, enquanto o
individualismo liberal-democrático destruía a economia tradicional indígena, os
gamonales tinham condições de se colocarem acima das leis que protegiam os índios,
conseguindo tomar suas terras sem grandes dificuldades. De nada adiantava a abolição
formal da encomienda nem a promulgação de leis para emancipação indígena e as
tentativas de transformar o índio em pequeno proprietário se o poder do latinfúndio
feudal era capaz de invalidar qualquer medida de amparo à pequena propriedade e seu
trabalhador.
De acordo com o ensaio sobre o “Problema da Terra”, o período do caudilhismo
militar peruano, instituído no momento imediatamente posterior à independência, foi de
grande relevância para a manutenção das estruturas coloniais. Em primeiro lugar
porque, naturalmente, os militares não realizaram a reforma agrária; depois, porque a
violência policial foi intensificada, negando os princípios do novo direito que se
defendia; e, por fim, porque o caudilho, ainda que ocasionalmente se proclame inimigo
da propriedade, costuma sustentar o latifúndio, acabando ele mesmo como fazendeiro
em muitos casos. O autor sintetiza essa idéia ao citar José Vasconcelos: “o poder militar
traz fatalmente consigo o delito de apropriação exclusiva da terra; chame-se soldado,
caudilho, rei ou imperador: despotismo e latifúndio são termos correlacionados”.108
Mariátegui vê a ascensão do caudilhismo como resultado de uma classe
burguesa incipiente e incapaz de organizar um Estado que correspondesse a seus
interesses. Para ele, só uma classe consolidada poderia gerar uma nova ordem jurídica e
econômica: não era o caso da burguesia peruana naquele momento. Contudo, assim que
o militarismo deixasse de ser indispensável, seria substituído. Para tal, de acordo com o
destaque dado pela obra, o governo militar de Ramón Castilla constituiu um momento
essencial.

107
Idem, ibidem.
108
VASCONCELOS, J. apud MARIÁTEGUI, op. cit., p. 85.
Castilla, percebendo que os liberais não constituíam uma classe, se preocupou
em travar boas relações com os conservadores. Ao mesmo tempo, teve atitudes
progressistas, como a abolição da escravatura negra e da contribuição dos indígenas. O
Código Civil do Peru, promulgado em seu governo, iniciou a decadência do
militarismo. Foi inspirado nos primeiros decretos republicanos sobre a terra e reforçou a
política de desvinculação e mobilidade da propriedade agrária. Ou seja, tratava-se de
eliminar a “comunidade” indígena e incentivar a pequena propriedade. Até mesmo essa
intenção de se democratizar o acesso privado à terra não trouxe grandes resultados, já
que a legislação buscava a divisão por meios negativos, abolindo os entraves, e não
propiciando aos agricultores condições positivas. Segundo Mariátegui, “em nenhuma
parte a divisão da propriedade agrária, ou melhor, sua redistribuição, foi possível sem
leis especiais de expropriação que transferisse o domínio do solo à classe que o
trabalha”.109 Assim, como previsto, o latifúndio se consolidou e se estendeu no período
republicano.
Esse período constitui-se como um momento de fortalecimento político da
aristocracia rural: uma vez que o comércio e as finanças se concentravam em mãos
estrangeiras – inglesas, a princípio – era impossível que uma burguesia urbana local
ascendesse e se consolidasse. O autor mostra que sem uma burguesia urbana peruana
em condições de se tornar classe dominante, a aristocracia latifundiária assumiu esse
papel, conservando seu domínio político e associando-se a capital comercial estrangeiro.
Assim, consolidava-se uma classe dominante, num sistema capitalista, com traços
aristocráticos.
Enquanto isso, mantinha-se a condição de exclusão social e política dos
indígenas, de maneira que estes não faziam oposição consistente aos interesses dos
latifundiários. Não havia, assim, obstáculos à manutenção e desenvolvimento da grande
propriedade. Em meio a esse contexto nos lembra Mariátegui que o ayllu – instituição
cara às culturas quíchua e aymara – está inscrito numa tradição camponesa. Não se
podia esperar que os indígenas, antes cultivadores da terra comunitária, se
transformassem espontaneamente em pequenos proprietários, mesmo que lhes fossem
dadas condições efetivas – e não apenas legais – para tal, o que não ocorreu.
A fim de se evitar generalizações em relação à formação econômica peruana
como um todo, o ensaísta trata de esclarecer a dualidade existente entre costa e serra. A

109
MARIÁTEGUI¸ op. cit., p. 87.
origem do latifúndio na costa remonta ao início do período colonial: naquele momento,
a região fora despovoada devido ao foco nos minérios andinos. Com braços escassos, o
proprietário recorreu, num primeiro momento, ao escravo negro e, mais tarde, à
imigração chinesa. Na República, o desenvolvimento da agricultura na costa para
exportação apareceu subordinado ao imperialismo britânico, que se interessou pela
exploração dessas terras assim que viu a possibilidade de dedicá-las ao açúcar e ao
algodão. Com a queda da exportação de minérios e o auge do guano e do salitre, a
economia costeira se consolidou como eixo nacional. Desenvolveu-se nos latifúndios
dessa região a técnica capitalista, fazendo desaparecer definitivamente a “comunidade”
indígena da costa.
Como a terra estava refém do capital monopolista, a produção nesses núcleos
capitalistas passou a ser ditada por interesses estranhos às necessidades peruanas, e os
próprios incentivos governamentais favoreciam a cana e o algodão. Como resultado, os
gêneros alimentícios destinados ao mercado interno eram geralmente produzidos por
pequenos proprietários ou arrendatários, quando não importados. O autor nos dá o
exemplo do trigo, cuja produção é compatível com o clima peruano, mas precisava ser
comprado do exterior, e critica a dependência e a subordinação da economia de seu país.

“A economia do Peru é uma economia colonial. Seu movimento, seu


desenvolvimento, estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados
de Londres e Nova York. Estes mercados vêem o Peru como fonte de matérias-
prima e destino para suas manufaturas. Por isso, a agricultura peruana só obtêm
créditos e transportes para os produtos que pode oferecer com vantagem nos grandes
mercados. (...) Esta dependência da economia peruana faz-se sentir em toda a vida
da nação. Com um saldo favorável no comércio exterior, com uma circulação
monetária solidamente lastreada a ouro, o Peru, por causa desta dependência, não
tem, por exemplo, a moeda que devia ter. Apesar do superávit no comércio exterior,
apesar das garantias de emissão fiduciária, a cotação da libra peruana sofre 23 ou
24% de desconto. Por quê? Nisto, como em tudo, aparece o caráter colonial de nossa
economia”.110

Com a inserção, de tal modo, da economia peruana no capitalismo internacional,


a técnica da agricultura na costa sofreu grande evolução. Isso não aconteceu com o
regime de trabalho: os hábitos na relação entre senhor e servo – agora patrão e
funcionário – permaneciam coloniais no tempo de Mariátegui. Os antigos “senhores

110
Idem. “Economia colonial”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 89.
feudais” peruanos ainda enxergavam seus trabalhadores sob critérios escravistas,
considerando-se superiores aos camponeses até mesmo etnicamente. Ou seja, o Peru
adotou a técnica capitalista, mas não sua mentalidade.
O autor não vê a sobrevivência dos caracteres feudais apenas na yaconagem111 –
que vincula a população local à terra, impedindo-a de emigrar – e no enganche112 – que
assegura à agricultura da costa braços da serra –, mas em todo ambiente da fazenda: as
leis não são válidas dentro do latifúndio sem o consenso do proprietário; os transportes,
comércios e costumes estão sujeitos a ele; os ranchos, em que a população trabalhadora
mora, se assemelham muito às senzalas. Evidentemente, isso não ocorre com aprovação
legal, mas a condição de classe dominante permite aos latifundiários um poder
incontrolável.
Na serra, onde também se encontram as práticas mencionadas, o latifúndio
conservou quase integralmente seu caráter feudal, consistindo uma resistência ao
desenvolvimento capitalista ainda maior que a “comunidade” – esta, ao articular-se com
o comércio, transformou-se em cooperativa113. Mariátegui mostra, com dados de seu
tempo, que a produtividade do trabalho coletivo indígena superava muitas vezes à do
latifúndio serrano. Para explicar tal fenômeno, o autor, primeiramente, discorre sobre os
estímulos morais provenientes do sentido religioso que o trabalho comunitário tem ao
indígena. Em seguida, toca na essência da questão: na serra, o regime de salário livre
ainda não se desenvolveu. O fazendeiro se preocupava mais com a rentabilidade que
com a produtividade, conforme podemos ver neste longo fragmento:

“Os fatores de produção se reduzem para ele [latifundiário] a quase que unicamente
dois: a terra e o índio. A propriedade da terra permite que explore de maneira
ilimitada a força de trabalho do índio. A usura praticada sobre essa força de trabalho
– que se traduz na miséria do índio – soma-se à renda da terra, calculada ao tipo
usual de arrendamento. O fazendeiro se reserva as melhores terras e reparte as
menos produtivas entre seus braceiros índios, os quais se obrigam a trabalhar de

111
Imposição de obrigações pessoais em regimes de parceria com terríveis condições.
112
Sistema de recrutamento e exploração do trabalho por dívida. É uma prática comum em vários países
da América Latina, inclusive no Brasil, onde perdura até os dias atuais.
113
No artigo “O futuro das cooperativas”, Mariátegui estuda a situação das cooperativas no Peru e
indica a possibilidade da “comunidade” indígena converter-se em cooperativa. Para o autor, trata-se do
país latino-americano em que a cooperação encontra raízes mais espontâneas. “As comunidades
indígenas reúnem o maior número possível de faculdades morais e materiais para transformarem-se em
cooperativas de produção e de consumo. Castro Pozo estudou com precisão esta capacidade das
‘comunidades’, nas quais reside, indubitavelmente, contra o ceticismo interessado de alguns, um
elemento ativo e vital de realizações socialistas” (Idem, ibidem, p.187)
preferência gratuitamente as primeiras e contentar-se com as segundas para obter os
frutos com que se sustenta. O arrendamento do solo é pago pelo índio em trabalhos
ou frutos, muito raramente em dinheiro (por ser a força do índio o que mais de valor
existe para o proprietário), mais comumente em formas combinadas ou mistas” 114.

Mariátegui alerta que não se deve buscar indícios da sobrevivência da


feudalidade em instituições políticas e jurídicas de ordem feudal, uma vez que o Peru
republicano assume para si um modelo liberal de legislação e organização política. Os
traços feudais sobrevivem na estrutura da economia agrária. E, sendo o Peru um país
predominantemente agrícola, a economia agrária reflete de modo decisivo na prática
política e nas instituições.

“O latifúndio não é a única prova da feudalidade ou semifeudalidade agrária. Na


cordilheira, temos a prova conclusiva da sua típica expressão econômica: a servidão.
Nas relações de produção e trabalho, o salariado assinala a passagem para o
capitalismo. Não há regime capitalista propriamente dito ali onde não há, no
trabalho, regime de salário. A concentração capitalista também cria, com a absorção
da pequena propriedade pelas grandes empresas, seu sistema de latifúndio. Mas no
latifúndio capitalista, explorado segundo um princípio de produtividade e não de
capacidade de gerar renda, vigora o salariado, fato que o diferencia
fundamentalmente do latifúndio feudal”.115

Em suma, o latifúndio, em si, não é o que define a permanência de caracteres


feudais no Peru. O fator decisivo é o regime de trabalho que se dá no interior dessa
propriedade. Mariátegui defende que subsistem traços feudais no Peru porque, além da
permanência do latifúndio (que também pode ocorrer num sistema plenamente
capitalista), o trabalho assalariado não se desenvolveu em muitos lugares, havendo
servidão e até mesmo escravidão; e, ainda, porque nesses lugares o critério decisivo
para a exploração da terra é o da rentabilidade, e não da produtividade.
É assim que temos, no Peru de Mariátegui, a convivência contraditória do capital
monopólico com traços feudais, como já pudemos constatar116. Contradição que resulta
da estrutura econômica e suas relações – sobretudo no que tange a questão da terra –
desde o período colonial até o momento em que realiza sua produção. E tais relações

114
Idem, ibidem, p. 105.
115
Idem, “Resposta à pergunta nº4 do Seminário de Cultura Peruana”. In: Por um socialismo indo-
americano, pp. 145-146.
116
Ver capítulo 2.
são expostas de forma clara, sucinta e brilhante nos Sete ensaios, bem como em muitos
de seus artigos.

5.4. Para uma nova política agrária


Sendo uma obra majoritariamente analítica, não se encontram nos Sete ensaios
muitos fragmentos de proposições políticas explícitas. Ainda assim, a obra nada tem de
imparcial: ao criticar a estrutura agrária peruana por meio de uma reflexão histórico-
materialista, Mariátegui crê na superação das contradições dessa estrutura pela via do
socialismo, para o qual a tradição indígena teria muito a contribuir.
De todo modo, num dos raros momentos do texto em que o Amauta deixa
explícita uma proposta para uma nova política agrária, ele o faz de maneira incisiva ao
dizer que “a política liberal do laisser faire, que tão pobres frutos deu ao Peru, deve ser
definitivamente substituída por uma política social de nacionalização das grandes fontes
de riquezas”.117
Proposições como essa são descritas e desenvolvidas com mais detalhes em um
artigo publicado em 1927, denominado Princípios de política agrária nacional.118 Nele,
Mariátegui traz as medidas primeiras e imediatas para uma distribuição socialista da
terra. Defende a nacionalização da terra peruana, o controle do crédito agrícola pelo
Estado, o confisco das terras não cultivadas e sua destinação a cooperativas, a
expropriação das terras de rendeiros improdutivos e seu repasse aos arrendatários, o
ensino agrícola através de escolas rurais primárias, dentre outras propostas. O fragmento
mais curioso, todavia, é o que trata do índio e sua “comunidade”: “O ayllu, célula do
Estado incaico, sobrevivente até agora, apesar dos ataques da feudalidade e do
gamonalismo, acusa ainda uma vitalidade bastante para se converter, gradualmente, em
célula de um Estado socialista moderno”.119
Esta parece ser a idéia, ora implícita ora explícita, presente em toda obra do
autor, no que tange o problema da terra. Mais que criticar o feudalismo presente na
estrutura fundiária peruana, Mariátegui nos apresenta uma peculiaridade de seu país: a
existência de um povo cuja origem desconhece a propriedade privada. Um povo que
traz consigo uma tradição eminentemente socialista. Um povo, por fim, cuja

117
Idem, “Indigenismo e socialismo: intermezzo polêmico”, p. 111.
118
MARIÁTEGUI, J. C. “Princípios de política agrária nacional”. In: Política. São Paulo: Ática, 1982, pp.
108-111.
119
Idem, ibidem, p. 109.
participação revolucionária seria indispensável na construção do socialismo americano,
ou melhor, indo-americano.
Embora parta de pressupostos marxistas, o estudo mariateguiano da terra
peruana não se volta a uma análise economicista e fria, tampouco filosófica ou abstrata.
É um escrito que em suas linhas – e, muitas vezes, em suas notas de rodapé – se exibe a
esperança de uma nova Indo-América, cuja construção se daria por uma aliança entre
proletários urbanos estranhados nas fábricas citadinas – a classe revolucionária por
excelência no pensamento marxiano – e índios campesinos que, mesmo explorados e
agredidos por séculos nos latifúndios, não teriam perdido sua propensão à propriedade
comunitária e aos costumes coletivistas. Dessa maneira, o autor quer mais que
demonstrar o “problema” da terra: busca refletir também sua solução, de forma original
e esperançosa, mas, ao mesmo tempo, material e efetiva.
Essa solução, contudo, não viria com reformas graduais, mas com a revolução
socialista, na qual Mariátegui vê a possibilidade de participação dos povos indígenas.
Acreditando em tal feito, o autor empreende um trabalho intenso nos breve sete anos de
vida depois que retorna do exílio. Como visto, através dos Sete ensaios de interpretação
da realidade peruana e da revista Amauta, realizou seu trabalho intelectual de reflexão
da realidade peruana. E através das organizações que ajudou a criar – a APRA, o
Partido Socialista do Peru, e a CGTP – se empenhou na efetivação da luta que acreditou
ser necessária.
6. A CONSTRUÇÃO DO SOCIALISMO INDO-AMERICANO

“E o socialismo, afinal, está na tradição americana. A mais avançada


organização comunista que a história registra é a inca. Não
queremos, certamente, que o socialismo seja na América decalque e
cópia. Deve ser criação heróica. Temos de dar vida, com nossa
própria realidade, na nossa própria linguagem, ao socialismo indo-
americano. Eis uma missão digna de uma geração nova”
José Carlos Mariátegui, 1928

6.1. A política de frente única e a ruptura com a APRA


A frente única constituiu-se importante forma de atuação política para
Mariátegui desde seu retorno da Europa até 1928, quando rompeu com a APRA e
fundou o Partido Socialista do Peru. Esta opção, muito adequada – na concepção do
autor – à realidade peruana, foi certamente influenciada pela orientação política dada
nesse sentido por Lênin, em 1921, no III Congresso da Internacional Comunista.
Essa postura é defendida intensamente em um artigo de 1924, denominado “O 1º
de maio e a frente única”, do qual foi extraído o seguinte fragmento:

“O movimento classista, entre nós, ainda é muito incipiente, muito limitado, para
que pensemos em fracioná-lo e cindi-lo. Antes de chegar a hora, talvez inevitável, de
uma divisão, cabe-nos realizar muita obra comum, muito trabalho solidário. Temos
de empreender em conjunto muitas e amplas jornadas. Cabe-nos, por exemplo,
suscitar consciência de classe e sentimento de classe na maioria do proletariado
peruano. Este esforço pertence por igual a socialistas e a sindicalistas, a comunistas
e a libertários. (...)Formar uma frente única significa ter uma atitude solidária diante
de um problema concreto, diante de uma necessidade urgente. Não significa
renunciar à doutrina a que cada um se filia nem à posição que cada qual ocupa na
vanguarda”.120

Em um momento em que o proletariado peruano é incipiente e a consciência de


classe ainda não se desenvolveu em seu meio, é preciso um esforço conjunto das
diferentes forças político-ideológicas proletárias em nome de bandeiras comuns,
sobretudo em relação a questões imediatas. Isso não significa, contudo, anular a
identidade de cada movimento que compõe a frente. Não se trata de unir programas,

120
Idem. “O 1º de maio e a frente única”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 166.
utopias, ideologias, mas sim de unir forças em lutas e projetos que atingem a todos,
como a formação de uma consciência de classe no proletariado.
A formação de consciência de classe é o principal tema abordado no texto
“Mensagem ao Congresso Operário”, escrito por ocasião do II Congreso Obrero de
Lima, em 1927. No documento, Mariátegui insiste que o debate no congresso não se
perca em divagações teóricas e definição de etiquetas. Não se deve, segundo ele, buscar
princípios num proletariado em que os princípios têm raízes frágeis. O objetivo deve ser
a organização do proletariado, e sua unidade.

“O sindicato só deve exigir dos seus filiados a aceitação do princípio classista.


Dentro do sindicato, cabem tanto os socialistas reformistas quanto os sindicalistas,
tanto os comunistas quanto os libertários. O sindicato constitui, fundamental e
exclusivamente, um órgão de classe. A práxis, a tática dependem da corrente que
predomine no seu interior. E não há por que desconfiar do instinto das maiorias. A
massa sempre segue os espíritos criadores, realistas, seguros, heróicos”.121

Apesar de, enquanto marxista, Mariátegui combater as vertentes pequeno-


burguesas do socialismo, o autor acredita que é preciso unidade na luta dos
trabalhadores. Para que o proletariado peruano, ainda pouco engajado, tenha força, é
preciso a constituição de uma frente ampla que se forme a partir do princípio da luta de
classes. Para ele, os operários ainda têm apenas espírito de cooperação ou grêmio.
Assim, os dois primeiros obstáculos a serem superados seriam o espírito individualista,
expressão da ideologia burguesa, e o espírito da corporação de ofício, de categoria, uma
concepção ainda medieval.
Não é só em relação ao movimento operário que Mariátegui crê na eficácia da
frente única: este método também lhe parece adequado na luta antiimperialista, como se
pode verificar em sua atuação na APRA (Alianza Popular Revolucionaria Americana).
Trata-se de uma frente única antiimperialista, fundada por Haya de la Torre, que visava
uma dimensão continental, mas raramente ganhou destaque fora de seu país de origem.
No Peru, a frente integrava as principais correntes ideológicas que se opunham à ordem
oligárquica e imperialista. Mariátegui, de todo modo, deixava explícita sua postura
socialista, o que não significava obstáculo para sua participação.
Contudo, em 1928, como resultado simultâneo de um amadurecimento do autor
e de um desvio dos objetivos do movimento, Mariátegui acabou por romper com a

121
Idem. “Mensagem ao Congresso Operário”. In: op. cit., p. 105
APRA. Exilados no México, Haya e outros apristas propuseram que o movimento se
tornasse um partido nacionalista no Peru, aproveitando a estrutura organizativa, já
consolidada. Conforme relata Luiz Bernardo Pericás:

“Quando recebe a notícia, Mariátegui fica indignado. Escreve uma carta para Haya
de la Torre e para a célula mexicana da APRA que havia feito a sugestão, afirmando
que aquilo era uma atitude eleitoreira detestável, ao estilo do velho regime, e que
isso transformava um movimento antiimperialista numa mentira”.122

De fato, Mariátegui não via sentido que um movimento de frente única – que,
por definição, abrigava dentro de si correntes diversas – se transformasse em um
partido. Além disso, o Amauta via-se em discordâncias teóricas com Haya, sobretudo
no que tange às concepções relativas ao marxismo. O fundador da APRA defendia que a
proposta do movimento era se valer das contribuições de Marx, mas superando-as e
adaptando-as a América Latina e à realidade imperialista. A revolução socialista, nessa
interpretação não estava em pauta: era necessária a união de todas as correntes
contrárias ao capital monopólico para, antes de pensar em revolução, superar essa
conjuntura de dominação econômica estrangeira. Essa postura foi veementemente
contestada pelo comunista cubano Julio Antonio Mella123. Mariátegui, da mesma
maneira, discorda desse posicionamento e solidifica sua posição de defesa do marxismo
enquanto interpretação da realidade latino-americana e ação política. A revolução
socialista era, para ele, uma necessidade e uma possibilidade perfeitamente compatível
com a realidade peruana. Assim, esse momento marca uma ruptura de Mariátegui com a
APRA e a revista Amauta deixa de erguer a bandeira do movimento.
Convém ressaltar que, não obstante seu rompimento com Haya e sua suposta
frente única, Mariátegui não deixa de se colocar politicamente contrário ao
imperialismo. Em um texto de 1929 denominado “Ponto de vista antiimperialista”, o
autor deixa clara essa sua posição após iniciar explicando sua ruptura com a APRA:

“Para nós [Partido Socialista do Peru], o antiimperialismo, por si só, não constitui
nem pode constituir um programa político, um movimento de massas voltado para a
conquista do poder. O antiimperialismo, supondo-se que possa mobilizar, junto com

122
PERICÁS, L. B. “Introdução: José Carlos Mariátegui e o marxismo”. In: MARIÁTEGUI, José Carlos. Do
sonho às coisas: retratos subversivos. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 23.
123
Um dos fundadores do Partido Comunista Cubano, responsável pela Liga Antiimperialista da America
Latina, organismo animado pela Internacional Comunista.
as massas operárias e camponesas, a burguesia e a pequena burguesia nacionalistas
(já negamos terminantemente essa possibilidade), não anula o antagonismo entre as
classes, não suprime a diferença de interesse entre elas. (...) A tomada de poder por
parte do antiimperialismo, como movimento demagógico populista, se fosse
possível, não representaria nunca a conquista do poder pelas massas proletárias, pelo
socialismo. A revolução socialista teria como inimigo mais encarniçado e perigoso –
perigoso por causa do seu confusionismo, da demagogia – a pequena burguesia
estabelecida no poder, mediante suas palavras de ordem”. 124

Feita sua crítica à transformação do aprismo em partido político, Mariátegui


proclama: “nossa missão é explicar e demonstrar às massas que só a revolução socialista
oporá ao avanço do imperialismo um obstáculo definitivo e verdadeiro”. 125 Ou seja: o
autor não apenas rompe com a APRA, mas também com a defesa intransigente da frente
única: Mariátegui era antiimperialista porque socialista, e não o contrário. O socialismo,
cada vez mais, aparece a ele como o único meio efetivo de resolução das questões
peruanas emergentes. Assim, passa a trabalhar no fortalecimento dessa opção sócio-
analítica e política. E seu primeiro grande empreendimento nesse sentido é a fundação
do Partido Socialista do Peru, ainda no ano de 1928.

6.2. O Partido Socialista do Peru e as polêmicas com a Internacional Comunista


O Partido Socialista do Peru foi organizado, inicialmente, por Mariátegui e
outros apristas dissidentes de orientação socialista. Assim, o grupo forma em 16 de
setembro de 1928 a célula inicial do partido, afiliado à III Internacional – a filiação,
contudo, não indica uma adesão total ao bolchevismo; pelo contrário, o partido opta por
não denominar-se comunista, mas sim socialista, porque seus líderes discordam da
rigidez das normas impostas pela Internacional Comunista. Em 7 de outubro do mesmo
ano, são fixados os princípios programáticos, e Mariátegui é eleito secretário-geral.
O partido visava reunir dentro de si o movimento proletário, as massas
camponesas indígenas e a intelectualidade socialista peruana daquele momento.
Segundo Aricó, a formação responde, a um só tempo, três necessidades dos movimentos
populares de anseio socialista:

“1) a necessidade de disputar a orientação do movimento social com uma APRA


reconstituída em torno de Haya de la Torre; 2) a urgência de encontrar uma forma de

124
MARIÁTEGUI, J.C. “Ponto de vista antiimperialista”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 133.
125
Idem, ibidem.
relação „autônoma‟ com a Internacional Comunista; 3) as exigências políticas e
organizativas do movimento de massa”.126

No documento em que constam os princípios programáticos, Mariátegui afirma


categoricamente a urgência da adoção do “marxismo-leninismo” enquanto método
revolucionário em um contexto em que o capital monopólico estrangeiro domina sobre
uma realidade ainda semifeudal. Segundo o terceiro ponto elencado no texto:

“A economia pré-capitalista do Peru republicano, pela ausência de uma classe


burguesa vigorosa e pelas condições nacionais e internacionais que determinaram o
lento avanço do país na via capitalista, não pode libertar-se sob regime burguês –
enfeudado aos interesses imperialista, mancomunado com a feudalidade
gamonalista e clerical – das taras e resíduos da feudalidade colonial”.127

A libertação da economia pré-capitalista, impossível sob o domínio local dos


gamonales e estrangeiro dos bancos e corporações britânicas e estadunidenses – ambos
interessados na manutenção desse semifeudalismo –, só se torna possível, do ponto de
vista de Mariátegui e seu partido, pela via da revolução socialista.
No ponto seguinte do documento, a questão agrária é tratada novamente, agora
sob o ponto de vista das terras comuns indígenas e os costumes coletivistas que nelas
foram historicamente desenvolvidos. O partido vê nessa forma peculiar de cultivo
agrário elementos para uma solução socialista da questão. Contudo, Mariátegui nega,
novamente e veementemente, uma postura de “restauração” do passado inca através de
um impulso romântico – e é curioso notar que o trecho seguinte é encontrado
justamente na coletânea que Löwy organiza.

“Mas isto, tanto quanto o estímulo que se conceda ao livre ressurgimento do povo
indígena, à manifestação criadora das suas forças e do seu espírito nativo, não
significa absolutamente uma romântica e anti-histórica tendência de ressurreição
do socialismo inca, que correspondeu a condições históricas completamente
superadas e do qual só restam, como fator aproveitável, dentro de uma técnica de
produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo dos
camponeses indígenas”.128

126
ARICÓ, op. cit, p. 458.
127
MARIÁTEGUI, J.C. “Princípios programáticos do partido socialista”. In: op. cit., p. 123.
128
Idem, ibidem, pp. 123-124, grifos meus.
Em suma, para Mariátegui, é preciso efetivar a superação dos traços feudais
prevalecentes na economia peruana, cuja resolução o capitalismo liberal prometeu
efetivar mas revelou incapaz e desinteressado em fazer acontecer. Este feito, bem como
a democratização da educação, seriam tarefas de uma etapa ainda democrático-burguesa
da revolução socialista. Cumprida essa etapa, a revolução tornar-se-ia proletária, na
prática e doutrina. “O partido do proletariado, capacitado na luta pelo exército do poder
e pelo desenvolvimento do próprio programa, realiza nesta etapa as tarefas de
organização e defesa da ordem socialista”.129
Ademais, o documento também enumera uma série de reivindicações imediatas
do partido, que inclui; direito de associação e greve dos trabalhadores; estabelecimento
de seguro social e assistência social pública; cumprimento das legislações trabalhistas,
com destaque para a jornada máxima de 8 horas diárias na agricultura; estabelecimento
da jornada de 7 horas para trabalhos insalubres, como é realizado nas minas; abolição
efetiva do trabalho forçado; entrega de terras de latifúndios e congregações religiosas às
comunidades; direito dos arrendatários obterem a posse definitiva das terras em que
trabalharam por mais de três anos, “mediante pagamentos anuais não superiores a 60%
do valor atual do arrendamento”130; implantação do salário mínimo; gratuidade do
ensino em todos os níveis.
O texto é levado a I Conferência Comunista Latinoamericana, da qual
participam, representando o PSP, Hugo Pesce e Julio Portocarrero. Na ocasião, os
documentos expostos pelo partido – além dos “Princípios programáticos” também são
levados “O problema das raças na América Latina” e “Ponto de vista antiimperialista” –
são contestados veementemente pela cúpula stalinista, ao ponto de alguns afirmarem
que o partido misturava elementos de comunismo e de aprismo. Vale ressaltar que,
nesse momento, a orientação da Internacional já abandonara o incentivo à consolidação
da frente única. De todo modo, a crença de Mariátegui no potencial revolucionário
indígena e sua relativa “rebeldia” em relação ao stalinismo ocasionaram uma forte
pressão bolchevique na ocasião.
Nesse momento, a saúde do Amauta piora, e o autor se afasta da secretaria-geral
partido, em favor de Eudocio Ravines, que acabara de voltar do exílio em Paris.
Ravines, pouco após a morte de Mariátegui, cede às pressões da Terceira Internacional e
muda o nome do partido para Partido Comunista do Peru, se comprometendo em afastar

129
Idem, ibidem, p. 124.
130
Idem, ibidem, p. 125.
os resquícios de “amautismo” do interior do partido. Com as cisões resultantes dessa
mudança, o partido enfraquece. Enquanto isso, a APRA consolida-se enquanto partido
nacionalista, tornando-se a principal referência partidária dos trabalhadores do país por
muitos anos.

6.3. Mariátegui e o sindicalismo


Coerente com sua compreensão, apontada por Florestan Fernandes e José Aricó,
da organização socialista a partir dos movimentos das massas populares, Mariátegui não
apenas é cauteloso em relação às imposições da Internacional Comunista e da APRA,
como também visa colaborar intensamente com a organização dos trabalhadores, por
meio do sindicalismo. Esse trabalho é expresso, sobretudo, no periódico Labor e na
fundação da Confederación General de los Trabajadores Peruanos (CGTP).
Labor era um jornal de impressão quinzenal dedicado aos trabalhadores do país,
fundado pelo autor em 10 de novembro de 1928. Diferentemente da revista Amauta, que
discutia as mais diversas esferas da formação sócio-cultural peruana sob as óticas das
novas correntes indigenistas e do socialismo, este periódico surgia com o objetivo claro
de conscientização dos trabalhadores e organização do proletariado. E, para tal, possuía
três grandes adversários: a repressão governamental, a “pequena-burguesia” aprista e o
anarco-sindicalismo, já em decadência.
O jornal, todavia, não lidava apenas com o proletariado urbano, ainda incipiente
nesse momento: a partir de agosto de 1929, surge a seção Ayllu, dedicada ao
campesinato. A iniciativa dura pouco: sob imposição do governo ditatorial de Leguía, o
periódico é fechado em setembro de 1929 – certamente não é coincidência que a atitude
do governo tenha ocorrido pouco após Labor divulgar os estatutos da nascente CGTP,
que surgia sob a direção do Partido Socialista.
O trabalho realizado por Mariátegui em Amauta e Labor foi importantíssimo
para o lançamento das bases sobre as quais se construiria a CGTP, bem como para a
divulgação da mesma. A origem da Confederación encontra-se em outubro de 1928,
quando os futuros organizadores do Congresso Sindical Latinoamericano – que
ocorreria em maio de 1929 – publicaram, em Amauta, um Manifesto “en que indicaban
la necesidad de unir al proletariado latinoamericano para combatir el capital extranjero y
las burguesias nacionales unidas a aquél”.131

131
ILLÁN, op. cit., p. 218.
No ano seguinte, em maio, Mariátegui propõe a formação de uma Central
Sindical Nacional, visando a unidade proletária sob uma concepção socialista
revolucionária. Ao fim do mesmo mês, constituí-se o comitê organizador da CGTP, que
já havia sido representada no Congresso Sindical Latino-Americano, articulado pela III
Internacional. Finalmente, em 1º de setembro de 1929, são publicados os estatutos da
CGTP. Segundo Löwy, no ano seguinte, a Confederación já contaria com 58 mil
trabalhadores da indústria e 30 mil indígenas que se agrupavam na Federação
Indígena.132
Em 16 de abril de 1930, quando falece Mariátegui, os membros da CGTP, e
milhares de trabalhadores, estudantes, artistas e intelectuais, levam o corpo do pensador
militante pelas ruas de Lima, homenageando-o com canções e erguendo bandeiras
vermelhas. A história justificaria o tamanho da homenagem: a CGTP existe ainda hoje,
sendo uma importante entidade combativa e socialista do proletariado peruano; e o
pensamento do autor ainda traz contribuições de relevância aos trabalhadores da cidade
e do campo.

132
Cf. LÖWY, M. “Introdução”, p. 28.
7. CONCLUSÃO: A IMPORTÂNCIA E A
ATUALIDADE DE MARIÁTEGUI

Apesar de seu pouco tempo de vida, e sua saúde precária, Mariátegui conseguiu
realizar um trabalho vasto e profundo, deixando um grande legado aos seus seguidores:
a construção do socialismo indo-americano. Através de um marxismo criativo e
herético, pôde trazer grandes inovações ao pensamento social de seu tempo, agregando
seguidores e conquistando adversários políticos e teóricos.
A importância e atualidade desse autor revelam-se em três sentidos: 1) na
antecipação de certas concepções que seriam posteriormente desenvolvidas por outras
correntes ligadas ao marxismo; 2) na leitura inovadora das questões indígena e agrária,
que ainda hoje encontra ecos nas mais variadas lutas políticas dos diversos povos
indígenas latino-americanos; 3) no seu entendimento do marxismo que, não obstante
suas limitações, coloca o autor entre os grandes pensadores do marxismo ocidental.
Em relação ao primeiro ponto, é possível verificar diversas concepções ou idéias
que se encontram em Mariátegui antes mesmo de grandes movimentos intelectuais e
políticos no ocidente. Um exemplo é a grande importância dada à subjetividade do
sujeito revolucionário, de sua fé, suas crenças, suas motivações simbólicas. Tal
concepção, inserida em uma proposição socialista, converge não acidentalmente com
alguns preceitos da Teologia da Libertação, movimento cristão-marxista que emergiu a
partir dos anos 60 em todo subcontinente. Michael Löwy credita à influência de
Mariátegui, dentre outras, a crença na possibilidade de convergência entre o marxismo e
uma crença extraterrena133, apontando para a constante citação do autor na obra
Teologia da Libertação – Perspectivas (1971), de Gustavo Gutierrez, tida como um dos
textos fundantes da nova teologia.
Mariátegui também antecipa, de certa maneira, algumas concepções que mais
tarde seriam caras à chamada Teoria da Dependência. Tal fato ocorre, sobretudo, na
forma pela qual o autor compreende, muitos anos antes do mencionado movimento
intelectual, o termo “dependência” e sua implicação para a caracterização das relações
econômicas dos países latino-americanos para com as grandes potências. Diversas
passagens de sua obra poderiam ser utilizadas para justificar tal ponto de vista, mas nos
atemos, aqui, a apenas duas, mais expressivas:

133
Cf. LÖWY, M. “Mariátegui e a religião”. Estudos Avançados, n.19 (55), 2005, pp. 105-116.
“Por causa das deficiências de sua posição geográfica, de seu capital humano e de
sua educação técnica, está vedado ao Peru sonhar em se converter, em curto prazo,
em um país manufatureiro. Sua função na economia mundial tem que ser, por
longos anos, a de um exportador de matérias-primas, gêneros alimentícios, etc. No
sentido contrário ao surgimento de uma indústria fabril importante, atua, além disso,
atualmente, sua condição de país de economia colonial, feudalizada aos interesses
comerciais e financeiros das grandes nações industriais do Ocidente” 134.

“A economia do Peru é uma economia colonial. Seu movimento, seu


desenvolvimento, estão subordinados aos interesses e às necessidades dos mercados
de Londres e Nova York. Estes mercados vêem o Peru como fonte de matérias-
prima e destino para suas manufaturas. Por isso, a agricultura peruana só obtêm
créditos e transportes para os produtos que pode oferecer com vantagem nos
grandes mercados. A finança estrangeira interessa-se num dia pela borracha, noutro
pelo algodão e noutro mais pelo açúcar. (...) Nossos latifundiários, nossos
proprietários, quaisquer que sejam as ilusões que tenham sobre sua independência,
na realidade só atuam como intermediários ou agentes do capitalismo estrangeiro.
(...) Esta dependência da economia peruana faz-se sentir em toda a vida da nação.
Com um saldo favorável no comércio exterior, com uma circulação monetária
solidamente lastreada a ouro, o Peru, por causa desta dependência, não tem, por
exemplo, a moeda que devia ter. Apesar do superávit no comércio exterior, apesar
das garantias de emissão fiduciária, a cotação da libra peruana sofre 23 ou 24% de
desconto. Por quê? Nisto, como em tudo, aparece o caráter colonial de nossa
economia”.135

O “teórico da dependência” Ruy Mauro Marini, em sua Dialética da


Dependência, de 1973, realiza um estudo marxista da economia latino-americana. A
seguinte passagem da obra sintetiza bem sua concepção de “dependência”:

“A revolução industrial, que dará início a ela [a grande indústria], corresponde na


América Latina à independência política que, conquistada nas primeiras décadas do
século 19, fará surgir, com base na estrutura demográfica e administrativa construída
durante a colônia, um conjunto de países que passam a girar em torno da Inglaterra.
Os fluxos de mercadorias e, posteriormente, de capitais, têm nesta seu ponto de
entroncamento: ignorando uns aos outros, os novos países se articularão diretamente
com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a
produzir e a exportar bens primários, em troca de manufaturas de consumo e –
quando a exportação supera a importação – de dívidas. É a partir desse momento

134
MARIÁTEGUI, Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, p. 217, grifos meus.
135
Idem. “Economia colonial”. In: Por um socialismo indo-americano, p. 94, grifos meus.
que as relações da América Latina com os centros capitalistas europeus se inserem
em uma estrutura definida: a divisão internacional do trabalho, que determinará o
sentido do desenvolvimento posterior da região. Em outros termos, é a partir de
então que se configura a dependência, entendida como uma relação de subordinação
entre nações formalmente independentes, em cujo marco as relações de produção
das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução
ampliada da dependência”.136

Apesar de não utilizar o conceito de “divisão internacional do trabalho”, a


análise de Mariátegui da dependência latino-americana parece convergir – ainda que em
nível superficial, sem aprofundar nas minúcias dos conceitos – com toda uma corrente
de pensamento latino-americano que se consolidou quase meio século depois da
publicação dos Sete ensaios. O jornalista uruguaio Eduardo Galeano, por exemplo,
caminha na mesma direção em seu clássico As veias abertas da América Latina, no qual
alia um sério estudo sócio-econômico do subcontinente com uma linguagem repleta de
metáforas e ironias, tal como no seguinte fragmento:

“Há dois lados na divisão internacional do trabalho: um em que alguns países


especializam-se em ganhar, e outro em que se especializaram em perder. Nossa
comarca do mundo, que hoje chamamos de América Latina, foi precoce:
especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do
Renascimento se abalançaram pelo mar e fincaram os dentes em sua garganta”.137

Não se pretende, de modo algum, insinuar que Mariátegui tenha sido altamente
influente ou decisivo na obra desses autores, ainda que Galeano revele-se, na mesma
obra, seu admirador. Ou seja, não é o caso de enxergar nesses dois autores, e muito
menos na Teoria da Dependência, uma decorrência ou continuidade da obra do Amauta:
trata-se apenas de ilustrar o olhar inovador, à frente de seu tempo, que possuía o autor,
uma vez que proposições próximas às suas se consolidariam anos mais tarde.
Em relação ao segundo item enumerado, pudemos visualizar, durante todo este
trabalho, a inovação trazida por Mariátegui na leitura da ocorrência de uma intersecção
entre um problema étnico-cultural e outro sócio-político-econômico. Ou seja, a
convergência entre o problema indígena e o problema da sobrevivência de traços
feudais na economia peruana, predominantemente agrária. O autor, também aqui de

136
MARINI. R. M. “Dialética da dependência”. In: Trespaldini, R.; Stédile, J. P. (orgs). Ruy Mauro Marini:
vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005, pp. 140-141.
137
GALEANO, E. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008, p. 17
forma inovadora, contesta a forte tendência de seu tempo a mascarar, por meio de uma
“tergiversação casuística”, este caráter sócio-político-econômico da questão indígena
por meio da racialização.
Esta análise, precisamente, revela-se extremamente relevante na atual conjuntura
política da América Latina, sobretudo no que tange a emergência e consolidação de
movimentos sociais, indígenas inclusive, que se fortalecem em pautas que decorrem de
tal convergência. É interessante notar que estes movimentos – muitos dos quais se
formaram ou se consolidaram a partir da inserção dos países do subcontinente na
política econômica neoliberal, em negação aos efeitos devastadores às economias e
populações locais – não se organizam institucionalmente na esfera política, ou seja, não
se compõem em partidos ou sindicatos, e não visam ocupar o Estado diretamente.
Andréia Galvão, defendendo que esses movimentos possuem, todavia, uma
dimensão política, justifica-se por dois ângulos: “de um lado, [possuem dimensão
política] porque se constituem em contraposição a instituições, projetos e medidas
políticas; de outro, porque ao resistirem a essas instituições, projetos e medidas
produzem um impacto político de monta”.138 No mais, relacionam-se com os
movimentos mais institucionalizados, como os sindicatos e partidos, de diversas
maneiras. A respeito do movimento indígena, Galvão nos mostra este entrecruzamento
de demandas, já presente em Mariátegui: o reconhecimento de uma composição étnica
historicamente marginalizada e a luta político-econômica – no caso citado pela autora, a
luta é contrária ao avanço neoliberal e na contestação da própria concepção de Estado,
visando a constituição legal da plurinacionalidade, como se observa atualmente na
Bolívia e no Equador, principalmente.
Esta reivindicação, em especial, revela novamente a importância atual do autor
aqui estudado. Aníbal Quijano estuda a atuação indígena nos países em que esta
população é majoritária e mais organizada, e define da seguinte maneira a luta pelo
Estado plurinacional:

“Se trata de que la estructura institucional del Estado sea modificada en sus
fundamentos, de modo que pueda representar efectivamente a más de una nación. Es
decir, se trata de una múltiple ciudadanía, ya que en la existente los «indígenas» no
tienen, no pueden tener, plena cabida. Es también cierto, sin embargo, que ese no es
aún el horizonte de la mayoría de las poblaciones que se re-identifican como

138
GALVÃO, A. “Os movimentos sociais da América Latina em questão”. Revista Debates, Porto Alegre,
v. 2, n. 2, jul.-dez. 2008, p. 9.
«indígenas» en América Latina. Pero esa demanda implica, de todos modos, el final
del asimilacionismo político y cultural en América, ya que, después de todo, nunca
fue plena y consistentemente practicada por los dominantes no-indios o «blancos».
Y si eso logra abrirse realmente paso, si no es simplemente reprimida y derrotada,
ese es también el fin del espejismo eurocéntrico de un Estado-Nación donde unas
nacionalidades no han dejado de dominar y de colonizar a otras, además,
mayoritarias.”.139

É evidente que a questão da plurinacionalidade, nos termos em que é trazida por


esses movimentos, não se encontra em Mariátegui. O autor, na realidade, trabalhou
intensamente no passo anterior, e sumamente necessário, para que esta bandeira fosse
possível: a colocação do indígena no cenário político, de forma organizada e capaz de
articular-se aos grandes movimentos populares de contestação dos rumos da política e
da economia, ditados pelos interesses da burguesia estrangeira. Ou seja: Mariátegui
indica a possibilidade e a necessidade do engajamento dos povos indígenas, na luta
contra uma estrutura que lhes marginaliza. O texto de Quijano revela, em outra
passagem, mais uma questão em que toca a luta indígena, e que a aproxima do
pensamento do Amauta:

“En los congresos que decidieron la formación de la COICA [Coordinadora de


Organizaciones Indígenas de la Cuenca Amazónica] y de la UNCA [Unión Nacional
de Comunidades Aymaras], el problema de la ausencia y de la hostilidad del Estado
fue explícitamente debatido y fue decidido, por eso, la necesidad y la urgencia de la
autoridad comunal. La cuestión de la autonomía territorial y política, que había sido
el vacío eslogan de losseguidores de la Internacional staliniana a fines de los 20s y
comienzos de los 30s del siglo XX, reaparecia ahora, autónomamente colocada en la
mesa del debate de las «comunidades indígenas»”. 140

Aqui, vemos a persistência em um dos grandes temas do pensamento e da ação


política de Mariátegui: o debate acerca das comunidades e do proveito de tal unidade
econômico-cultural para a construção do novo que é visado. Toda a cosmovisão
indígena – que implica nos costumes coletivistas e no que Mariátegui denomina
“comunismo agrário” – é trazida ao primeiro plano na reflexão da plurinacionalidade
nos tempos contemporâneos. Afinal, quando reflete sobre a questão da nacionalidade

139
QUIJANO, A. El «Movimiento Indígena» y las cuestiones pendientes en América Latina. Disponível
em: <http://sisbib.unmsm.edu.pe/BibVirtualData/publicaciones/san_marcos/n24_2006/a01.pdf>, p. 37
140
Idem, ibidem, p. 33.
peruana, o autor demonstra a necessidade da reflexão e inclusão do autóctone em
qualquer projeto de “peruanização” do Peru.
A respeito do terceiro ponto mencionado – o enquadramento de Mariátegui
dentre os grandes pensadores do marxismo ocidental – é possível traçar paralelos,
comparações e cotejos da obra do autor com grandes clássicos dessa corrente de
pensamento. É sabido que Mariátegui, em sua concepção agônica de marxismo e em seu
estreito período produtivo, não se ocupou em desenvolver novos conceitos e teorias a
partir de Marx – preocupou-se, principalmente, em estudar a América Latina pelo viés
marxista e em promover, a partir de tal análise, a atuação socialista dos trabalhadores
urbanos e rurais em seu país.
Todavia, uma leitura atenta dos textos do autor culmina na observação de suas
concepções de fundo mais teórico, ainda que estas não sejam externadas em formas de
teses gerais e abstratas. Demonstramos, no decorrer dessa pesquisa, alguns pontos de
convergência acerca da concepção de trabalho entre Mariátegui, Lukács e Karl Marx.
Este tema, muito relevante a qualquer autor marxista, poderia ser debatido em uma
pesquisa posterior, uma vez que é alvo de grande polêmica – Moishe Postone, por
exemplo, aponta que Lukács desenvolve concepções de trabalho e de capitalismo
diferentes do próprio Marx.141
Outro tema que poderia levar a uma discussão a respeito de Mariátegui e o
marxismo é a concepção de cultura, a qual pode ser comparada com aquela
desenvolvida por Gramsci. Conforme foi apontado nesse trabalho, pode ser equivocado
apontar uma influência de Gramsci sobre Mariátegui, sendo mais razoável admitir a
influência dos principais escritores de L‟Ordine Nuovo no início do anos 20 sobre
ambos.

141
Segundo Moishe Postone, a concepção de trabalho, em Marx, não é universal e trans-histórica, tal
como interpretou Lukács na Ontologia. Essa postura fica bastante clara em “Repensando a crítica de
Marx ao capitalismo”: “(...) a análise de Marx não se refere ao trabalho como ele é concebido em geral e
transhistoricamente – uma atividade social direcionada para um objetivo que estabelece a
intermediação entre o homem e a natureza, criando produtos específicos a fim de satisfazer
determinadas necessidades humanas – mas atribui-lhe um papel peculiar que desempenha na
sociedade capitalista” (POSTONE, M. Repensando a crítica de Marx ao capitalismo. [Versão portuguesa
do primeiro capítulo do livro Time, Labor and Social Domination, divulgada no Seminário Internacional
"A Teoria Crítica Radical, Superação do Capitalismo e a Emancipação Humana", Fortaleza, Ceará,
29.10.2000]. Disponível em: <http://www.krisis.org/2000/repensando-a-critica-de-marx-
aocapitalismo>) Este autor, ao contrário de Lukács, entende que a teoria marxiana não deve ser
entendida como universal, mas como uma teoria da sociedade capitalista, e suas especificidades
históricas.
De toda maneira, ao olhar para o trabalho jornalístico e intelectual empreendido
por Mariátegui – através de Amauta, Labor e seus dois livros publicados em vida – não
é exagero afirmar que o autor empreendeu um verdadeiro trabalho de “organização da
cultura”, passível de comparação com as concepções desenvolvidas por Gramsci
posteriormente. 142
Mariátegui realizou também um grande trabalho de crítica literária sob uma ótica
marxista, ainda que este tópico não tenha sido muito estudado nesta pesquisa. Assim
como faz em outros temas de estudo, o autor não se preocupou em definir sua
concepção de estética, e até se recusa a delimitar um conceito fechado. Contudo,
demonstra alguns preceitos de suas análises, de forma sutil, ao longo de sua obra.
Escorsim destaca três pontos: 1) “a recusa da identificação imediata entre a posição
143
política de um artista ou intelectual e sua obra” ; 2) “a recusa da arte como esfera
144
pura, produto de uma „torre de marfim‟” ; 3)”a recusa de uma crítica de arte
„objetiva‟, „imparcial‟ ou „estritamente artística‟”145. A autora enfatiza, ainda, a
aproximação do Amauta a Lukács em relação à crítica do “anticapitalismo romântico”
que, paradoxalmente, Löwy enxerga na produção do próprio Mariátegui.
Vemos, em suma, a dupla face do trabalho marxista de Mariátegui: por um lado,
é criativo, inovador, heterodoxo e, até certo ponto, eclético, sendo alvo de críticas por
parte do emergente stalinismo; por outro, é uma concepção agônica, revolucionária e
combativa, que recusa o academicismo e desenvolve um trabalho de conscientização de
classe e organização proletária junto às bases.
O autor, cujo exílio europeu lhe rendeu a possibilidade de levar ao Peru um novo
ponto de vista para a superação da dominação capitalista estrangeira, foi, se não
pioneiro, um grande destaque teórico e prático nas origens do marxismo latino-
americano. A “criação heróica” do marxismo indo-americano, proposta por ele,
encontra ecos e novas possibilidades neste início de século XXI, em que os povos
autóctones reivindicam novos direitos políticos e acesso à terra historicamente
usurpada, ao mesmo tempo em que alguns autores proclamam a morte do

142
Vide: GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1982
143
ESCORSIM, op. cit., p. 236
144
Idem, ibidem, p. 237
145
Idem, ibidem.
campesinato146 – seja enquanto categoria investigativa, seja enquanto realidade
empírica.
A obra de Mariátegui, nesse contexto, é enriquecedora na compreensão da
cultura e das questões sócio-político-econômicas dos povos ameríndios e colaborativa
para ação dos movimentos em que se organizam, sobretudo no que tange à cultura
agrária “comunista”, relevante a uma proposição socialista para o subcontinente.
Embora ainda pouco conhecida no Brasil, a vida e obra de Mariátegui revelam-se, por
tudo isso, merecedoras de lembrança e estudo diante de tal cenário político.

146
Ver ALMEIDA, M. W. B. “Narrativas agrárias e a morte do campesinato”. Ruris – Revista do Centro de
Estudos Rurais do IFCH. Vol.1, nº2, set. 2007.
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