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internacional situacionista

antologia

O PONTO CULMINANTE DA OFENSIVA DO ESPECTÁCULO


Esta imagem foi bastante notada quando passou, em
Outubro de 1967, no canal protestante da televisão
holandesa. O seu director, não por acaso um antigo pre­
gador, declarou nessa altura: «Queríamos mostrar que
as mulheres nuas podem ser multo belas.,, Convenha·
mos que a inversão espectacular da vida real atingiu
assim um cume inultrapassável. Na sua crescente afoi·
teza, os peritos dos meios de formação de massas pre­
tendem revelar ao gado que os contempla uma verdade,
segundo julgam, que de outra maneira esta gente nunca
veria; e gabam-se da contribuição dada para o progresso
cultural destas multidões que eles estão convencidos de
terem reduzido a uma passividade definitiva e absoluta.

~antígona

internacional
situacionista

antologia
internacional situacionista

antologia

organização, tradução, notas e prefácio


Júlio henriques

O. fundadora da LS em CoalO d'Amleclli (ltàfia, 1!157) G Pl~llizlo. Piero


srmonc1o, ei.na Vemine, Mc:IWle l!Semstmin, Guy Oebonl, Ast;/er Jom. Waltef Olmo

edições antfgona
lisboa • 1997
Esta edição
Este volume integra textos extraidos de uma só das revistas da l.S. a
lntcmalionale SituaJionniste (de língua francesa), de que foram publicado~ do1.c
números entre Junho de 1958 e Setembro de 1969. A l.S. i<boletim central
editado pelas secções da Internacional S11uac1onis1a>>, confonne aparece nos
números 1 a 8 (~ nenhuma designação es-pecifica nos n.• 9 a 11, e mdicando
no último, o 12, <<revi ta da secção francesa>>), foi ~em duvida o õrgão mais
importante de todo o movimento - que publicou, além desta, as seguintes
revistas: Spur; revista da secção alemã (Munique, sete número , 1960-62);
S1tuationis1ik Rerolu1ion, orgão ccnl.ral da secção escandinava (Copenhaga e
Titulo IS'TEJL"l,\CJONAL Srrw.aONISTA - ANTOUlGIA Randcrs, trQ, números, 1962-70); Der Deutscht. Gedanke, órgão da LS para a
Auton5 Vários Europa Central (Bruxelas., um oúmero, 1963)· Situa11onist lntemational, mista
Organização, lmduçào, da secção aorte-nmericana (Nova Iorque, um número, 1969); lntema:iona/e
notas e prefácio Júlio Hennques, a par1ir da edição Van Gennep, Sihtazionista, Jt\.ista da <.ecção italiana (Milão, um número, 1969).
Amesterdão, 1970
A revista lntematronak Situarionniste, num grosso volume com cerca de
Capa Amigona
700 pãgma.s, tem »do reeditada deste J970; encontra-se traduzida na íntegra
Fotocompos1çjo A 1íanumêrico em alemão (1976-77) e italiano (1994), existindo também uma ampla nntologfa
lmpressio IAG - Ar1es Gn\licas em mglês, editada em 1981 nos Estados Unidos, e uma mill.S pequena em
Dam de publicação Dezembro de 1997 grego (1997).
Antlgomi Editores Refrnciários Os elementos que aparecem no texto entre parênteses n:ctos são acrescentos
Apartado 4192 nossos. Todos o texto· ão tradUZJdos na íntegra, com excepção de «Técnica
1504 Lisboa Code:11
do golpe do mundo», de Alexander Troo:hi. As fotografia.~. tlustraçõcs e legen­
Depósno legal n.• 119 2n.97 das são em geral parte integrante deles; nalguns casos, procedemos a uma
ISBN 972-608-088-6 n:fonnulaçào gráfica d~ elementos..

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ÍNDICE

adoro a minha
máquina de filmar
porque adoro viver

11 Prefácio
23 Questões preliminares à construção duma situação
27 Definições
28 Os situacioni'bs e 11 automatização. Jom
33 Acção na Bélgica contra a A.o;sembleia
dos Criticos de Arte Internacionais
36 Senudo do deperccimento da arte
44 O cmcna depois de Alain Resnais
49 Posições silu:u:iorustas sobre a cin:ulação. Dtbord
51 O urbanismo urutãrio no fim doe; anos 50
57 O fim da economia e a rcnliz:açào da arte. Jom
61 Instruções para um onnamento
gravo os melhores momentos da existência
65 Sobre a decomposição, mais uma \'CZ
ressuscito-os quando me apetece
em todo o seu esplendor 68 Defesa moond1cional
72 Perspc:cU\'as de modificações consctentcs na ,;da quotidiana Dcbord
85 Geopolltica da hibernação
96 Comunicação prioritária
1().1 Dominação da natureza, ideologia e cla.s.5CS
122 A vangonrda da presença
A D OMIN AÇÃ O DO ES P E C T ÂCU L O S OB RE A V ID A
Esta publicidade da dlmara EUHIG (Verão de l 967) evoca multo precisa­ 138 AJI lhe kíng's men
me nte a glaciação da vida 1ncfividual, que na penpectlva espect.acular se l45 Técnica do golpe do mundo. Trocchi
Inverteu: o presente ê dado a viver imedlawnente como recordoçdo. 157 Serviço de anti-relações publicas da Internacional Sillll!cionista
Através desta espaclala:açio do tempo, submetido à ordem ilusória dum
presente ace.ssivel em permanência. o tempo e a vida perde~-se para
158 OqucstJonário
os homens. 165 Rci.-posu a um mquérilO do Centro de Arte Socioapcrimc:ntal

9
173 O cleclinio e a qu.cda da economia espectacular-mc:n:antil. Debord Prefácio
187 As lutas de classes na Argélia
201 De algumas questões teóricas
sem questiúnculas nem equívocos. ~eigem
203 O ponto de ~plosão da ideologia na China. Debord
219 Duas guerras locais
237 Os nossos objectivos e o nossos m6odos no escândalo de Estrasburgo
252 Contn'buiçõcs para rcctilicar a opinião do público a respeito da revolução
nos países subdesenvolvido.. Kbayati
258 O começo duma época
A Internacional S1tuac10nista (1957-1972) foi uma organização
ANEXO revoluetonária sui generi.s. tanto pelas questões que suscitou como
J 17 Teses sobre a lntemílCiooal Situacionista e o seu rempo.
pelo seu modelo organizativo. <<A l.S. só poderá ser uma Conspiração
Debord e Sangumclú dos Iguais, um estado-maior que não quer tropas [...] Nós apenas
organizamos o detonador: a livre explosão deverá subtrarr-se-nos
para sempre, e subtrair-se também a qualquer outro controle.» (/ S
n.• 8, J963 ). Impôs-se como o pensamento do desmoronar de wn
mundo, que encarou de frente em fins dos anos 50 e depois foi
tom.ando explicito, do mesmo passo expondo o regresso da negação
revolucionária ao terreno social imediato. numa altura em que por
toda a parte se mantinham os profundos reveses da subversão prole­
tária, de que a impossível revolução libertária espanhola fora o clf­
ma'< Mas a insurreição operária de Berlim, em 1953, e a revolução
na Hungria, em 1956, anunciavam jã os novos tempos em que a
Internacional Situacionista surgia.

A l.S. resulta da unificação de três agrup:m1entos de artistas cm


dissidência com a arte: o Comité Psicogeogrãfico de Londres, a Inter­
nacional Letrista e o Movimento por uma Bauhaus lmaginista. Entre
a sua fundação. ocorrida numa pequena aldeia de llália, Cosio
Em última análise, a soereviv~a média garantida e sempre antagónica a
d'Arroscia, na Ligúria, e a autodJssolução em Paris, apenas teve
uma busca da Vida verdadeira. E isso que a seguinte fórmula enuncia multo
bem: •Uma morte venlJJrosa ~o eslá ao alcance de qualquer um.• (Na foto­ setenta membros; destes, ao longo dos anos. demitiram-se dezanove
grafia: em 1936, militares franqu1stas vão abater os elementos caixurados e dois criaram uma cisão (secção norte-americana. 1970); quarenta e
duma mdlcia operãna} cinco foram e:<cluldos: 1van Chtcheglov, iniciador das deri\ as
10 li
em 1953. internado num hospital psiquiátrico cm França. foi «mem­
Movimento radicalmente critico dos fundamentos da sociedade de
bro de longe»; restando, no fim Jcppesen Vidor Martin, da ecção
cl~es no seu período de afirmaçào n:forrnista, a acção da l.S decor­
escandinava, Guy Debord. da secção francesa, e Gianfranco Sangui­
reu nos paises de capitalismo avançado, onde a dialéctica das contra­
netti, da ~"Cçào italiana SeJ<1 como for, a média dos participantes nas
dições sociais foi forjando a necessidade teórica e prática duma nega­
actividades permanent~ o c1la\a entre dez a vinte pes.soas, tornando
ção qualitativa. implicando a destruição do Estado e o fim do homem
estes números mais impressionante o que a l.S. pôde realizâr com tão
explicitamente red.uzjdo a mercadoria. As regiões em que o movi­
pouca gente.
mento situacionista se desenvolveu foram assim (por ordem de
A actividade do movimento divide-se em dois grandes peiiodos. importância) sobretudo a França, a Alemanha, a Escandinâvia, a
Entre 1957 e 1965, através da criiica da arte e do urbanismo, numa Bélgica, a Holanda, a Inglaterra e os Estados Unidos; mas também
visão já global da revolução da vida quotidiana a empreender, a aná­ teve uma pequena base na Argélia. A classificação dos seus membros
lise sitll4lciomsta é elaborada e concluída. A partir dai, trata-se para a por nacionalidades mostra que a l.S. foi de facto uma mganização
r.s. de pôr em prática O!> seus rn1.ios teóricos originais, identificando internacional e nunca teve predominância francesa; mas os franceses,
as manifestaçôes do nO\'O proletariado - definido como o conjunto os alemães e os ttalianos constituíram quase metade dos efecllvos
dos indivíduos sem meios para dominar a SU4l própria vida - e situacionistas, venficando-se que a I.S. foi um movimento essencial­
fazendo parte delas. mente europeu.

Mas, desde o inicio, a actividade da I S não se limitou â escrita O seu programa é uma das expressões mais significativas da nega­
à dcspinturo ou à subversão do cinema. A partir de 1958, com a ção dum capitab.s:mo já apontado para o simulacro e as 1crealidades
sabotagem na Bélgica da Assembleia Geral dos Criticas de Ar1e, os virtuais», assente numa aceleração hipertécnica da produtividade,
situacionistas começaram a ensaiar uma prática pública através da numa cada vez mais ampla internacionalização empresarial, na imbri­
criação de escândalos. que vêm a ocorrer na Itália (1958), com a cação econ6mico-politica das empresas e do Estado, e na utilização
defesa dum 11sabot.ador de arte" inculpado como louco, nos Estados de mais msidiosas técnicas de controle das populações, fundadas nas
Unidos l1960). com a prisão do situacionista Alexander Trocchi, redes cibernettcas e na apücaçào omnipresente dum novo tipo de
acusado como «utente de droga», na Alemanha (1961). com a proi­ propaganda política, a publicidade comercial. Os proprietários deste
bição da Spur. revista da secção alemã, e a inculpação de varios dos mundo em moderni7.ação tinham descoberto o segredo do seu êxito:
seus redactores por '<atentado aos costumes», na Dinamarca (1963­ mudar tudo, para que nada se altere.
-65), com iniciativas antimilitaristas e <<atentados aos costwncs», na Longe das questões polillcamente arcaicas que a generalidade do
França (1966), com o «l.'Scàndalo de Estrasburgo», dW11Dte o qual se esquerdismo continuava a brandir, da '<independência nacional» ao
promoveu pela primeira vez a destruição da Universidade. «governo populan>, passando pela «democratização do ensino e da
cultura», a I.S. manifestava-se no âmago da alienação moderna, onde
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A divisão da lntCJUaCional em ocçõcs só cxÍsllu até Novcmlro de 1962; a parur dai, a economia, o progresso, a democracia ou a cultura surgiam como
a IS. tomou-se wn ünico centro unido. Mas a noção nunca se desfez (uma nova llSCCÇio sinónimos do capitalismo, revelando ao mesmo tempo que este sis­
itahallll,. foi criad.1 cm Julho de 1969 e as várilb muw i:di111das pel.3 l.S. mantwcram tema de tirania por fim demonstrava, na sua própria acção «desen­
a dcsi~ de origeni- 4U'CVi~IA dl socçiio c:scindinavaio, etc.)
volvímentista», já não poder desenvolver as forças produtivas, ao
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em 1953, internado num hospital psiquiátrico em França, foi «mem­
Movimento radicalmente cmico dos fundamento!) da sociedade de
bro de looge»: restando, no fim, Jeppesen Victor Martin. da secção classes no eu periodo de afinnaçào reformista, a acção da LS. decor­
escandina\a, Guy Debord, da secção francesa. e Gianfranco Sangui­ reu nos países de capitalismo avançado, onde a dialéctica das contra­
netti, da secção italiana'. Seja como for, a média dos partJC!pantes nas
dições sociais foi forjando a necessidade teórica e prática duma nega­
actividadcs permanentes oscilava entre dez a vinte pessoas, tomando
ção qualitaÚ't'll. implicando a destruição do Estado e o fim do homem
estes números mais impres.siooante o que a l S pôde realiz.;ír com tão explicitamente redUZJdo a mercadoria. As regiões em que o movi­
pouca gente.
mento situacionista se desenvolveu foram assim (por ordem de
A actividade do mo\iimcnto di\·ide-sc em dois grandes períodos. importância) sobretudo a França, a Alemanha. a Escandinávia, a
Entre 1957 e 1965, através da critica da arte e do urbanismo, numa Bélgica, a Holanda. a Inglaterra e os Estados Unidos; mas também
visão já global da revolução da vida quotidiana a empreender, a aná­ teve uma pequena base na Argélia. A classificação dos seus membros
lise situacionista é elaborada e concluída. A partir dai, trata-se para a por nacionalidades mostra que a l.S. foi de facto uma organização
I.S. de pôr em prática os seus meios teóncos originais, idenllficando internacional e nunca teve predommânc1a francesa; mas os franceses,
as manifestações do novo proletariado - definido como o conjunto os alemães e os italianos constituíram quase metade dos efecbvos
dos indivíduos sem meio) para dominar a sua própria vida - e situacionistas, venficando-se que a l.S. foi um movimento essencial­
fazendo parte delas. mente europeu.

Mas. desde o inicio, a nctividadc da l.S. não se limitou à escrita, O seu programa é uma das expressões mais significativas da nega­
à dt:Spinturo ou à sub\-ersào do cinema. A partir de 1958, com a ção dum capitalismo já apontado para o simulacro e as <'realidades
sabotagem na Bélgica da A o;embleia Geral dos Críticos de Arte, O!> vutuais», assente numa aceleração hipertécnica da produtividade,
situacionistas começaram a ensaiar uma pnilica púbLica através da numa cada vez mais ampla intemacionaliz.ação empresarial, na imbri­
criação de escândalos, que vc!m a ocorrer na Itália ( 1958), com a cação económico-política das empresas e do Estado, e na utilização
defesa dum «sabotador de ane» inculpado como louco, nos Estados de mais insidiosas técnicas de controle das populações, fundadas nas
Unidos ( 1960), com a prisão do situacionista Alcxander Trocchi, redes cibernéucas e na aplicação omnipresente dum novo tipo de
acusado como «utente de droga», nn Alemanha ( 1961}, com a proi­ propaganda política, a publicidade comercial. Os proprietários deste
bição da Spur. revista da secção alemã, e a inculpação de vários dos mundo em modemiiaçào tinham descoberto o segredo do seu eXJto:
seus redactores por «alentado aos costumes», na Dinamarca ( 1963­ mudar tudo, para que nada se altere.
-65). com iniciativas antimihfaristas e 1<ntentados aos costumesl>, na Longe das questões polillcamente arcaicas que a geJJeralidade do
França (1966). com o e<escàndalo de Estrasburgo», durante o quaJ se esquerdismo continuava a brandir, da «independência nacional» ao
promoveu pela primeira vez a destruição da Universidade. «governo populan1, passando pela c1democratização do ensino e da
cultura>>, a I.S. manifestava-se no âmago da alienação moderna, onde
Adívtsão cb Internacional cm ~õcs só C:(ÍS11u nté Novemlrode 1962;1 parttrdaí, a economia, o progresso, a democracia ou a cultura surgiam como
a l.S tomou-se um úma> couro unulo. Mib a noção nwica se desfez (wna nO\a ICSCCÇào sinónimos do capitalismo, revelando ao mesmo tempo que este sis­
ibh:m11» foi c:riadn cm Julho de 1969 e as \1Ínas revi~tas c:d11a<bs pela l.S 11llUltivcram tema de tirarua por fim demonstrava. na sua própria acção «desen­
a designação de mgon: !ln:\ ista da lllCçào cscanilill3valf, etc.)
volvimentista», já não poder desenvolver as forças produtivas, ao
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tomar-se organicamente um sistema mortífero, assente na poluição e duma nova civilização -. bem como na linguagem e nos processo:.
no desperdic10 cientemente organizados e numa fuga em frente para que empregou para o~ tomar manifeslos. Num texto inaugural de
o desastre estrutural. Ao apreender esla lógica, a I.S. identificou, Deborcl, em 1957 (Rela1ório sobre a Cons1ruçào das Situaçàc.:;),
muitas vezes ad hominem, o papel exercido pela intelectualidade, de denota-se Já uma orientação que sublinha o grau de complexidade,
direita ou de esquerda, na alimentação e modernizaçàp ~ sistema e ao mesmo tempo de franqueza, do discurw situacionista: «Nós
económico-político como um todo, em panicuJar a camada social a não devemos recusar a cultura moderna, devemos apoderar-nos
que se chama «os quadros». dela, para a negarmos.1> Do mesmo modo que não se limitou a
empunhar a arma da critica contra os governantes e seus assessores,
Deste modo. e apesar da inegável iniluência que também teve em empunhando-a também contra os governados - um pouco à
Portugal antes de 1974 e nos anos subsequentes', a I.S. nunca pôde maneira do anarquista Albert Libertad, que no inicio do século
aqui implantar-se, nomeadamente porque as contradições políticas publicava panfletos como o célebre Ao Gado Elei1oral -, a I.S.
portuguesas se encontravam submersas no dilema interclassista fas­ assestou as suas baterias contra um conjunto de entidades misUfi­
cism<Y'antifascismo, muito mais atrasado do ponto de vista teórico­ cadas até à medula mas tidas como neutras ou mesmo progressistas.
-prático. em particular a arte, o urbanismo, o casino e a oência. o jorna­
lismo, as quais pôde, com fundamentação, descrever como elemen­
Uma das particularidades da I.S , porventura explicativa do facto tos-chave duma reprodução alargada, ideológica. da servidão que o
de uma pequena organização exercer tão grande influência interna­ sistema mercantil promove sistematicamente. De resto, a I.S. foi em
cional, reside cm ela ter procurado desmontar, desde o inicio, os parte herdeira de movimentos que anteriormente se nolab1hzaram
fenómenos do capitalismo enquanto civili:ação, não se limitando a na critica radical da cultura do capitalismo, em especial da corrente
uma critica da exterioridade estatal e cconomica. Isto distingue-a, dadafsta alemã, que neste século os inaugurou.
não só do esquerdismo, marcado por um populismo decorrente da Politicamente anarquista, segundo o princípio de que não hã
sua detenninação messiânica e dirigista, mas lambem dos grupos melhor governo do que governo nenhum, promotora dos Conselhos
«de vanguarda» que vieram a aceitar uma colaboração com as ins­ Operários e da au1ogestão generalizada, a l.S. fundamentou-se, no
tituições para-estatais da cultura ou a resvalar para wn reformismo entanto, numa parte da obra de Marx, nomeadamente na relativa ao
sofisticado. As elevadas exigências de que a I.S. partiu tomaram-se feiticismo da mercadoria e à alienação central dela decorrente. Esta
visíveis na coerência dos seus propósitos - a necessária criação heterodoxia - que deverá entender-se como oposição a toda a orto­
doxia ou petrificação doutrinal e não como um ecletismo sem prin­
1Da \fisina no J.f.:10 f.studamil rurg1u cm portuguó logo no inicio de 1970, em cípios -, bem como a pretensa arrogância dos sítuacionistas em
Li.Woa, oo.le cm 1972 wnbém foi ed1bda ASudrdadr. do E.sp«tót:ulo. de Debord;aincb geral e de Deborcl em particular, eitpõ-Jos com frequência à total
nesse ano. cm Coimbra. foi lalnbém publicado o lmu de \micigcm, BOJUJÍidada de Bm•. incompreensão de outras correntes, anarquistas ou esquerdistas, e até
Depois do 2S de Ahril de 1974, de autores ponuguescs rrl!cionados com a trona situa­
a uma hostilidade baseada num abSW"do espírito de concorrência ­
cionista, são de realçar dois lcxtoS cujn lucida contrasta com 15 produçõo da época:
sem falar da incompreetL~ào da imprensa comercial, que, tirando raras
A Queda da Fascumo, de António Ferreira, Assino&; Alvim, Lisboa, 1974; e RejluJo
sobte a f.stratigia da luta das Classa t111 Porrugrú, Anónuno do Século XX (pseudó­ excepções. constitui por si só uma espantosa documentação sobre a
nimo de TOftltO Sepuh·cda), Edições EsP'!Ço, Braga. 1'>76. indigência cultural no nosso século.

14 IS
Naturalmente, a l.S. não foi um e:i1.ernplo impecável da crítica do gem em 1967: «A re\olução cessa <lc imediato ao impor-se que o
mundo; vários situacionistas não só o reconheceram como o critica­ indivíduo tem de se sacrificar por ela. O que falam de revolução e
ram. em especial Debord e Sanguinetti. Uma certa tendência para a de luta de classes sem se referirem explicitamente à vida quotidiana,
megalomania manifestou-se em diversas ocasiões, sobretpdo nos últi­ sem compreenderem o que há de subversi\o no amor e de posítho na
mos anos, revelando uma menor inscrição nas realidmtes A crise que recusa dos constrangimentos têm um cadáver na boca.»
paradoulmente a I.S. irá atravessar, após Maio de 68. decorre duma Depois de Mlllo 68. a 1.S começa a exl>rccr um verdadeiro fascí­
avaliação excessiva quanto à possível ~pçào de grupos autónomos nio. especialmente junto do~ sectores juvenis que os recentes anos de
radicalizados no meio operário: o número destes, contra as e:i1.pecta­ revolta social haviam radicalizado; o papel da organiz.ação no movi­
tivas dos situacionistas, foi muito insuficiente para a prossecução. mento das ocupações, VISlo retrospectivamente a partir de tudo o que
com a amplitude esperada, da crítica prátJca da economia desenca­ anunciara e s~ concrc:ti::ara, chegou mesmo a criar em seu redor wna
deada em 1968; o «golpe de Estrasburgo das fábricas» nunca pôde aura mílica. Em tais condições. ser-lhe-ia fácil recrutar adeptos, não
concretizar-se. às centenas, mas aos milhares. Mas ela sempre recusara seguidores,
Neste capítulo. por outro lado, será necessário fazer uma destrinça exigindo de cada aderente uma participação em todas as actividades.
entre os situacionistas propriamente ditos, membros da l.S., e os mui­ teóricas e pr:iticas. E além disso, para Debord e outros situacionistas,
tos epfgonos que depois levaram a um paroJÜsmo formal o seu estilo, aquela euforia exterior não só não correspondia à situação verídica da
preciso e contundente, ao copiarem-no sem substància.1 organização {que em Novembro de 1970 a demissão nada enérgica de
A clareza da J.S. t de facto uma das suas marcas mconfundívcis, Vaneigem aclarara). pondo eles então a nu a passfridade actiw1 da
sendo ela. aliada à perenidade das análises que tomaram a crítica maioria dos seus membros e a pretensa impecabilidade do movi­
situacionista uma logística mental que mantém vivo o interesse des­ mento, como lhes parecia que a definição da I.S. como t<estado-maior
pertado junto de quem vive por dentro a asfixia das presentes rela­ sem tropas>) não podia conciliar-se com a adesão em mas.sa de discí­
ções sociais e a infâmia que as legitima. pulos. Fora aliás Debord que involuntariamente despertara os proble­
mas internos. ao anunciar, em Julho de 69, cm conformidade com os
A autodissolução da l.S. em 1972, para a qual Debord contnbuiu princípios sobre a rotação de tarefas, que deixava de assegurar a
decisivamente, foi um e~press1vo episódio final da acção deste movi­ responsabilidade legal e redactorial da revista l11temationale Situa­
mento, que sempre se manteve nos antípodas do proselitismo. Os tionniste. que ele assumia desde o n.0 1. A sua decisão é aceite, visto
situaciomstas criticaram com muito a-propósito o militantismo, equi­ corresponder a regras elementares da organização, mas a verdade é
parando-<> a um.a actividade derivada da alienação religiosa ou do que um ano depois o coleclivo redactorial nomeado para essa tarefa
sacrificio missionário. Debord, desde 1957, proclamava ser «preciso ainda não tinha conseguido preparar o n. 13 da revista. que nunca
pôr a desgraça a recuar em toda a parte>>, explicitando depolS Vanei­ chegou a sair. Esta situação tornava evidentes as incapacidades inter­
1 No cn131llo. nmn documento intm!O de 1970, crit:iamdo as tCldCnc::W «eontempla­
nas, mostrando-se inaceitável para a minoria que constitui, em
tivas» que paralisavam a ocuvidadc real da organÍlllçiio, ruonhctt-se o seguinte: «Há
Novembro de 1970, uma tendência contra a indiferença e a pas­
revolucionários que: não são membros da LS. e que: fm:ram muito mm para difundir a sividade (Debord, Riesel, Viénet), tendência esta que depois também
TICl8SI tcona (e: algumas \'CleS 111é para a desenvolver) do que \ÍOOS ..situacionisw­ se desagrega, ficando apenas, para criticar a J.S., Sanguindti e
im.obilistlls; e sem ngidamcnte alardc:arcm 1 ..qualidade:" de: situ:.icionistas..1t Debord.

16 17
É por fidelidade às exigéncias de sempre, por conseguinte. que a subdesenvoMda. produto que é duma abr:mgente restauração rcac­
organização se dissolve, apôs quinze meses dum longo debate de cionária. A simples leitura desta colcctânea o pode mostrar em con­
orientação, ao fim do qual a l.S. fica reduzida. na prática. aos refe­ traponto. A meio duma maior abWldância de mercadorias, a pobreza
ridos dois membros - dando ambos um desenlace à aventura situa­ das ideias é agora mais notável - impondo-se. por isso mesmo,
ciani!l1a ao publicarem, em Maio de 1972, a «Cimll_!lí Pública da contribuir para inverter wna tal tendência suicida.
[ S » intitulada À i~rrJadeim Cisão na lntcrnaciunal, lhTo onde
incluem cinco documentos essenciais. entre os quais a carta de Recentemente, a nova vaga do capitalismo mlllldializado pôde dar­
demis.5ão de Vaneigem. -se ao luxo de criar, nos periféncos Portugais á-.idos de produtos.
eufóricas expectalJvas de enriquecimento das classes de baixo, graças
Vinte anos depois. e após a morte de Debord em 1994, por certo à int~gração num bloco transnacional de empresas e respectivos Esta­
a figura mais citada da l.S. (para bem e para mal), a tentação duma dos (ou vice-versa). [já a essa gesticulação de hã pouco se seguem
abordagem historiográfica deste movimento ter-se-á acentuado Mas as presentes ruinas, o mesmo de sempre com tendência a piorar.
a acção da l.S., organiz.ativamcnte concluída em 1972, mantém-se, É que a mercadoria contem no seu âmago a guerra de classes; e a
nas projecções mai vigorosas que criou, muito para além dessa data. transformação de tudo em mercadorias só pode intensificar a violén­
Os prosseguido fenómenos resultantes da decomposição amplificada cia nas relações sociais. Quanto ao optimismo, este so existe na
do capitalismo, sob a aparência. encenada através dos meios de for­ dimensão publicitária do espcctáculo, na sua linguagem legitimadora
mação de m~sas, de mais uma cmova ordem mundial». tomam-se da mercadoria como única relação social possivel: porque na prátic:i
num l'i.siveis. por antecipação. nos textos da 1S.. \isto esta ter des­ efectiva o lastro que fica é o do caos mais íntimo, alimentado pelo
crito em seu tempo os respectivos mecarnsmos e não apenas as cinismo. Os progressos são óbvios: nos nossos dias. até um político
vestimt!Dt:ls que então envergavam. Do urbanismo concentracionário de Estado na oposição pode ver-se obrigado a aceder a uma inteligên­
ao papel e"ercido pela mdústria cultural com vista a uma submissão cia declarável: «A democracia é um sistema hoje reduzido a mecanis­
activa do cidadão-espectador, passando pela automist1ficaçào dos mos formais que a esgotam e a levam à implosão.» 1 O espectáculo,
eleitores e outro:s <<participante!>1>, sem esquecer o grande circo da arte cujo principio reside na não intervenção, é aquilo que fala e ordena,
cotada na Bolsa. o desenvolvimento alucinante das guerras !OcaJs, as enquanto os átomos sociais se limttam a ouvir. No empobrecimento
sinistras manipulações genéticas ou a autodestruição do trabalho, as do vivido e na fragmentação dos indivíduos em esferas cada vez mais
perspectivas que a l.S. pôde elaborar, a partir de tais bases separadas, vai-se expondo a perda de qualquer feição unitária da
ci~ilizacionais, constituem o diagnóstico estratégico dum corpo social sociedade. Atirada para o dissolvente sorvedouro da economia mun­
a caminho da desintegração cancerizada - que a qualquer cura radi­ dial, a sociedade portuguesa conhece agora muitíssimo melhor o
cal prefere manter a sua marcha cega até à instauração definitiva dum mundo que a l.S. descreveu e com rara eloquência combateu.
inferno na Terra.
JÚLIO HENRIQUES
A diferença da nossa época é que esta, comparada com o periodo
em que se descobriu o fim do trabalho como reivindicação prévia à
criação das situações sem retrocesso, se apresenta mentalmente mais 1
M31'i:! de Lunlc5 P1ntass1lgo, lúJo, Lisboa, 8·1·9 .

18 19
MAS ESSA É A MERCA- '.! - - - - - - - - - ' " "
DORIA IDEAL. A QUE
OBRIGA A PAGAR
TODAS AS OUTRAS.
NÃO ADMIRA. QUE A
QUEIRAM PÔR AO
ALCANCE DE TODA__J
AGENTE_

Oespaço social do consumo dos lazeres. A superfide cira.ilar cinzenta que


nesta fotografia vemos na parte de cima, do lado esquerdo (estádio da cidade
de Mllwaukee, Wlsa>nsin, E.LIA.), está ocupada pelos 18 membros de duas
equipas de beisebol. Na primeira zona reslnta que a rodeia, há 43 000 espec­
tadores. Estes, por sua vez, estão rodeados pela imensa zona de estaciona­
mento Oflde se encontram os seus carros desocupados.

20

Questões preliminares
à construção duma situação

<<A construção de situações começa após o desmoronamento moderno da


noção deespecuiculo. É faol ver a que ponto se enconlra associado à aliennção
do velho mundo o principio mesmo do espcctáculo: a não-intervenção. Inver­
samente, vemos como as mais válidas im·estigações revolucionárias na cultura
procunuam dc:.struir a identificação p-;icolõgica do espectador com o herói. para
levarem este ~Uldor à activídade [-·]A situação é feita para ser vivida pelos
seus construton:s. O papel do "público··. senão pas.sivo pelo menos apenas
figurativo, de\crá diminuir constantemente, aumen1.ando. cm contrapartida, a
porção dos que não deYem ser chamado. nctores, mas sim. num novo sentido
da expressão, pessoas vivas.» - Rtlatóno sobre a construção das situações

A nossa concepção duma i<situação construida» não se limita a um


emprego unitário de meios artísticos que concorram para um
ambiente, por maiores que possam ser a extensão espacio-temporal e
o vigor deste ambiente. A situação é SIIllultaneamente uma unidade de
comportamento temporal. É feita de gestos contidos no cenário de um
momento. Estes gestos resultam do cenário e de si mesmos. Produ­
zem outras formas de cenário e outros gestos. Como será possível
orientar tais forças? Não vamos contentar-nos com ensaios empíricos
de meios ambientes de que, por provocação mecânica. esperaríamos
surpresas. A direcção realmente e.~perimental da actividade situacio­
nista consiste em estabelecer, a partir de desejos mais ou menos cla­
ramente reconhecidos, um campo de actividade temporária favorável

23

-
a estes de-.cjo:1. Só o seu estabckcimc:nto pode levar à clarificação tor ou encenador, encarregado de coordenar os elementos prévios de
dos primitivo:. de cjo:. e ao aparecimento confuso de novos desejos, construção do cenário e também de pm.er certas int~·n-enções nos
cuja raiz material será precisamente u now1 n.:alidade constituída acontecimentos (devendo este último processo ser partilhado entre
pelas construções situacionistas. vários responsãveis que ignorem mais ou menos os planos de inter­
Epois necessário encararmos uma espécie de psi~á!ise com fins venção de outrem), e, por outro lado, os agentes directos que \ i\'am
situacionistas, devendo cada participante nesta aventura fonnular a sítuação, que tenham participado nn criação do projecto colcctho
desejos precisos de ambientes para os reali=ar. contrariamente aos e trabalhado na composição prática do ambiente, e alguns espectado­
objectivos das correntes oriundas do freudismo. Cada qual deverá res passivos estranhos ao trabalho de construção. os quais de\t.'Tlio ser
procurar aquilo que ama. aquilo que o atrai (neste caso, também, ao reduzidos à acçiio.
contrário de certas tentativas da escrita moderna. a de Leiris, por Naturalmente, a relação entre o director e as «pessoas vivas>• da
exemplo, o que nos interessa não é a estruturo individual do nosso situação criada não pode tomar-se uma relação de especializações.
espírito nem n e'plicação da sua formação, é a sua aplicação posshel Trata-se apenas da subordinação momentânea de toda uma equipa de
em situaçõe construidas). Com este método, podem recensear-se situacionistas ao responsável duma experiência isolada. Estas pcrs­
elemento constituti\os das situações a edificar. bem como projectos pectívas. ou o seu vocabulãrio pro\isório, não devem levar a crer que
para a dinâmica destes elementos. se trataria duma continuação do teatro. PirandeUo e Brecht mostra­
Uma lal investigação só tem sentido para indivíduos que actuem. ram a destruição do espcctáculo teatral, bem como algumas reivindi­
na pr.itica, com vista a uma construçiio de situações. Todos eles são, cações que estão para além dela. Podemos dizer que a construção das
neste caso, espontaneamente ou de maneira consciente e organizada, situações substituirá o teatro apenas no sentido em que a construção
pré-sit11acioni.~1as, ou seja, indivíduos que sentiram a necessidade real da vida terá substituído cada vez mais a religião. Visivelmente,
objei:tiva desta construção alr.l\és duma mesma carência da cultura o principal domínio que vamos subsútuir e realizar é a poesia, que se
e das mesmas expressões da sensibilidade experimental imediata­ queimou na vanguarda do nosso tempo e desapareceu por completo
mente anterior. Aproximam-nos uma especialização e a sua pertença. A realiiaçào real do indivíduo. também na experiência artística que
nesta especialização. a uma mesma vanguarda histórica. É portanto os situacionistas d&obrcm, passa forçosamente pela sober.tnin colec­
provã' d que encontremos em todos um grande número de temas tiva do mundo; antes dela não existem ainda individuos, aJ>1-11as som­
comuns ao desejo situacionista, que se llh-ersificará cada \ez mais no bras percorrendo as coisas que c:ioticamente lhes são UilllSIDitidas por
d.ar-si: a passagem par.i uma fase de actividade real. outros. Em situações ocasionais encontramos indiv1duos si:parados que
A situação construida é forçosamente colt.-cliva. devido à sua pre­ vagueiam. As suas emoções divergentes neutralizam-se, mantendo a
paração e ao modo como se desenrola. É provável. no entanto, pelo sólida ambiência do enfado. Arruinaremos estas condições fazendo
menos durante o período das experiências iniciais, que um dado indi­ aparecer em certos pontos o sinal incendiário dwn jogo n1pcrior.
viduo exerça uma certa preeminência numa dada situação. sendo ele Na nossa época. o funcionalismo, 1 que é uma e:tpressão necessária
o seu encenador. Apartir dwn projecto de sítuação, estudado por uma do avanço técnico, procura eliminar inteiramente o jogo. sendo os
equipa de investigadmes, na qual ocorra n combinação, por exemplo,
do encontro como\'Cilor de algumas pessoas dwunte uma noite, será 1Referência à u:ndincia füncionahsu 5obmuJo m:u11tí:sta n:1 mt(Uiu:dura, no mb.1­
sem dúvida necc sãno fazer a destrinça cn1re, por um lado, um direc­ nwno e no da1gn, lb &uh:u1S (\\hlrcr Grop111i) à Escola de Clncago, pmando por

24 25
partidários do 111dus1ria/ design le\'ados a lamentar o apodrecimento Definições
da sua acção devido à tendência que o homem demonstra pelo jogo.
Sta tendência., abjectamente explorada pelo comércio industrial, põe
de imediato em causa os mais úteis resultados. exigindo novas apre­ sifrlação constr11ída - Momento da vida.. concreta e deliberadamente
sentações. Parece-nos evidente que não se deve encorajar a penna­ construído peJa organização colectiva dum ambiente unitário e dum
nente renovação artística dos frigoríficos. Mas o funciê>nãlismo mora­ jogo de acontecimentos
lizador nada pode contra isso. A única saída progressiva consiste em siJuacionista - Aquilo que se relaciona com a teoria ou a actividade
libertar noutros campos, e mais amplamente, a tendência para o jogo. prática duma construção das situações O indivíduo que constrói
Antes disso, as ingénuas indignações da -teoria pura do industria/ situações. Membro da Internacional Situacionista.
design não poderão impedir o facto profundo, por exemplo, de o situacionismo - Vocábulo sem sentido, abusivamente forjado
automóvel individual ser principalmente um jogo imbecil. e nc~o­ por derivação do termo anterior. O situacionismo não existe; isso
riamente um meio de transporte. Contra todas as formas regressivas significaria uma doutrina de interpretação dos factos existentes.
do jogo, que são o seu retorno a estádios infantis - sempre ligados A noção de situacionismo é obviamente concebida pelos anti-situa­
às políticas de reacção -, impõe-se apoiar as formas experimentais cionistas.
de um jogo revolucionário. psicogeograjia - Estudo dos efeitos exactos do meio geográfico,
consc1entemente ordenado ou não, que age directamente sobre o
lntmuwonale Situucion11iscc n! I, Junho Jc 1Q58 comportamento afectivo dos indivíduos.
psicogeográjico - Relativo à psicogeografia. Aquilo que manifesta a
acção directa exercida pelo meio geográfico sobre a afectividade.
psicogeógra/o - Indivíduo que in\ CS1iga e transmite as realidades
psicogeogrãficas.
deriva - Modo de comportamento experimental ligado às condições
da sociedade urbana: técnica da passagem brusca através de ambien­
tes variados. Emprega-se também, mais partículrumente, para desig­
nar a duração dum cxerc1cio continuo desta experiência.
urbanismo unitário - Teoria da utilização global das artes e técnicas
que concorrem para a construção integral dum meio ambiente em
ligação dinâmica com experiências de comportamento.
desiio - Emprega-se como abreviação da seguinte fórmula: desvio
de elementos estéticos pré-fabricados. integração de produções artis­
hcas actuais ou antigas numa construção superior do meio ambiente.
Lc Corbusic:r e Óscar Nicmc:ycr, pilares do funcionalismo corucmporãnco. A teoria do Neste sentido, é impossível existir uma pintura ou uma música situa­
espaço funcional dcscnvolv11Lt por c:stb autorn já servi.a, nos anos 70, de alib1 cionista; o que pode ocorrer é uma utilização situacionista destes
modc:mmii!0nt ao sWcnia comen:ial 1moh111ário. meios. Numa acepção mais básica, o desvio no interior das antigas

26 27
esferas culturais con!>titui um método de propaganda. testemunhando
o desgaste e a perda de importância destas esforas. minéncia dns ócios sobre o tempo de trabalho. A questão úa automa­
culhtra - Reflexo e prefiguração. em cada momento histórico, das tização é a que contém mais possibilidades positivas e negativas.
possibilidade · de organização da vida quotidiana; complexo da esté­ O objectivo úo sociafümo é a abWJdãncia: o maior número de
tica, dos sentimentos e do~ costumes graças ao qual uma colectívi­ bens para o maior número de pessoas, coisa que esla~sticam:nte
dade reage sobre a vida objectivamente determifl~~ pela economia. implica a redução até ao impro'<ávcl da irrupção do tmprevisto.
O crescimento do número do bens reduz o valor de cada um deles.
(Apenas definimos este termo na perspectiva da criação dos valores,
não na do seu ensino.)
Esta desvalorização de todo os bens humanos, até atingirem um
decomposição - Processo atra\·~ do -qual as fonnas tradicionais da
estado de neutralidade por assim dizer perfeita, será o resultado ine­
cultura se autodestruiram. sob o efeito do aparecimento de meios supe­
vitavel dum desenvolvimento puramente cientifico do socialismo.
riores de dominação da natureza, pennitindo e exigindo construções E lamentável que muitos intelectuais não ultrapassem a ideia da
culturais superiores. Distinguimos wna fase acliva da decomposição, reprodução mecânica., limitando-se a preparar a adapta~o do hom~
demolição efcçtiva das velhas superestruturas - que se conclui por a este futuro incolor e simetrizado. De forma que os arustas, especia­
volta de 1930 - e wna fase de repetição. que desde então domina. lizados na investigação do único, hostilizam, em número crescente. o
O atraso na pas.<>agem da decompostçào às novas construções decorre socialismo. Ao invés, os politicos do socialismo vão alimentando a
do atraso que se \ erifica na liquidação revolucionária do capitalismo. suspeita que hostiliza todas as manifestações artísticas vigorosas ou
originais.
I S. n.• 1. Junho de 195 Agarrados às suas posições confonnistas, uns e outros_ mos~
um certo mau humor perante a automatização. que pode por prolun­
damente em causa as suas concepções económicas e culturais.
A propósito da automatização, verifica-se aliás em t~ as_tendé.n­
cias de <<VanguardM um derrotismo - ou uma .subest~çao, ~el.o
menos - dos elementos positivos inscritos num tuturo CUJa proxmu­
clade os começos da automatização bruscamente revelam. lsto ª.º
Os situacionistas e a automatização mesmo tempo que as forças reaccionárias fazem alarde dum optt­
mismo parvo. .
Hã uma anedota sil!lliticativa. O ano passado. na rensta Q11a­
É bastante espantoso que quaçe ninguém, até agora, tenha ousado trieme /nternationale. ~atava o militante marxista Livio Maitan que
levar o conceito de automatização às suas últimas consequéncias. um padre italiano adiantara já a ideia duma se~da ~ semanal,
O facto mo~tra que não hã \ erdadciras perspectivas. Parece-nos até exigida pelo aumento dos tempos livres. Ret~ Maitan: '.<0 erro
que os engenheiro~. os peritos e os sociólogos tentam introduzir ã consiste em considerar que o homem da nova sociedade_será tgual ª.º
socapa n autornatiz.içào na sociedade. da presente sociedade, quando de facto ele terá necessidades e e:o­
E no entanto a automatização encontra-se hoje no âmago do pro­ gências completamente diferente.s, que ainda mal podemos conce­
blema da dominação socialista exercida S<lbre a produção e da pree­ ber.» O erro de Mnit.an reside em dei.'W para esse vago ~l~ as
novas exigências que «mal pode conctbeo). A funçã<J.dialect1ca do
28
29
espírito consistc- cm conduzir o possh el para formas desejáveis. depende pois do- proj1.'Ctos que a ultrapassem e que libertem novas
Maitan esquece que emprc uos t'lementos duma sociedade nova se energias human:is num plano superior.
fonnaram na amiga mciedade», conforme reza o Manifesto Comu­ A actividade eltperimental na cultura dispõe nos nossos dias
nista. Certos elementos duma nova existência de"\'cm estar já em deste campo incomparável Sendo a atitude derrotista a demissão
formação entre nós - no campo da cultura -. competindo-nos a nós perante as possibilidades da época, ~intomática das antigas van­
servirmo-nos deles para tomarmos o debate apaixo~te. guardas, que querem ficar. como escreve Edgar Morin, i<a roer um
O socialismo, que tende pJ.ra a mais completa libertação das ener­ osso do passado». Um surrealista. Benayoun. diz no n.0 l da revista
gias e capacidades em cada incli\ iduo, será obrigado a ver na auto­ Le S11"éalisme mime, última expressão deste movimento: «A ques­
matização uma tendência anriprogrcsslsta em si, transformada em tão dos lazeres já atormenta os sociólogos [...] Debtarão de clamar
tendência progressista unicamente pela relação que estabeleça com por técnicos, passando a exigir palhaços, cantores, bailarinas,
novos estímulos capazes de exteriorizar as energias latentes do homens-borracha. Um dia de trabalho por seis dias de descanso: o
homem. Se e \'erdade, como pretendem os cientistas e os técnicos. equilfbrio entre o sério e o fútil, o ócio e o labor, corre até o risco
que a automatização constitui um novo meio de libertação do de se ver desfeito um dia destes [..] e o "trabalbadorn, na sua
homem, ela tem de implicar uma superação das anteriores actividades desocupação, ver-se-â cretinizado por uma televisão convulsioná­
humanas. Coisa que obriga a imaginação activa do homem a ultrapas­ ria, invasora. de ideias curtas, em busca de talentos». Este surrea­
sar a realização da própria automatii.açào. Ora onde vemos nós essas lista não vê que uma semana de seis dias de descanso não provo­
tais perspectivas capazes de tomar o homem senhor e não escravo da cara um ((desequilíbrio» entre o fútil e o sério mas sim uma
automatização? mudança de natureza do sério e do fútil . Não espera senão equívo­
Louis Sallcron, no seu estudo intitulado l 'Automation, explica que cos, ridiculas viragens ao ª"e~ _o do mundo determinado que ele
esta. m:~mo quase sempre sucede em matéria de progresso [...] acres­ concebe, à imagem do surrealismo envelhecido, como uma espécie
Ct.'11ta mais do que substitui ru suprime». Ora o que é que a automa­ de intangivel comédia revisteira. Por que razão terá de haver neste
tização, em si mesma, \em acrescentar às possibilidades da acção futuro uma hipenrofia das baixezas do presente? E por que razão
humana? Ficámos a saber que ela suprime completamente o homem haverá nele «falta de ideias»? Querera isso dizer que lhe faltarão
no seu próprio terreno. ideias surrealistas de 1924 melhoradas em 1936? É provável. Ou
A crise da industrialização é uma crise de consumo e de produção. significa que os imitadores do surrealismo estão com falia de
A crise de produção é mais importante do que a crise de consumo 1de1as? Bem sabemos que assim é.
visto esta ser condicionada pela primeira. Transposto para 0 plan~ Os novos ócios parecem um abismo que a sociedade actual só
individual, isto equivale à tese segundo a qual é mais satisfatório dar pensa em atafulhar, multiplicando os pseudojogos de irrisórios passa­
do que receber. mais interessante poder acrescentar do que .çuprimir. tempos. Mas esses ócios são ao mesmo tempo a base sobre a qual
A automatização tem assim duas perspectivas opostas: retira ao indi­ pode edificar-se a mais grandiosa construção cultural nunca imagi­
viduo qualquer possibilidade de acrescentar seja o que for de pessoal nada. Este objectivo está evidentemente fora do círculo de interesses
à produção automatiz.ada. que é uma fi.taçào do progresso, e ao dos partidários da automatização. Sabemos até que é antagónico à
mesmo tempo economiza energias humanas amplamente libertas das tendência dirccta da automatização Se quisermos discutir com os
actividades reprodutivas e não-criativas. O valor da automatização engenheiros, temos de passar para o seu próprio campo de interesses.
30 31
rr
Maldonado, 1 qu~ dirige actualmente em Ulm a llochschule für A ideia de estlllldardiz:ição é um esforço para reduzir e simplificar
Gestaltung [Universidade de Artes Aplic:adas), explica que o desen­ o maior número das necessidades humanas com a maior igualdade.
\'olvimcnto da auromatizaç.lo está comprometido por não se ver na Depende de nós que a estandardização abra ou não domínios de
ju,entude entusiasmo nenhum para se lançar na via politécnica. com experiência mais interessantes do que aqueles que fecha. Segundo o
excepçào dos especialistas dos próprios fins da automatização. des­ resultado, poder-se-á desembocar num embrutecimento total da \'ida
providos duma perspectiva geral sobre a cultura. Maldonado, porém, humana ou na possibilidade de descobrir em pcnnanência novos
que justamente deveria mostrar esta pcrspecti\'a geral, ignora-a por desejos. Mas estes novos desejos não hão-de manifestar-se sozinhos,
completo: a 11uroma1i::.açào só pode Jescm•ofrer-sc rapidamente a no quadro opressivo do nosso mundo. É necessária uma acção
par1ir do momenlo em que o seu objectfro se tome uma perspectiva comum para os detectar, os manifestar e os realizar.
contrária ao ~eu próprio estabelecimento, e caso se saiba n:ali:ar
uma tal p1."rSpcctfra geral em conformidade com o di!SCtn'Olvimenlo ASGER JORN
da automntfroçào. /. s~ n.• t, J1mho de 1958
Maldonado propõe o contrário: estabelecer-se primeiro a automa­
tização e depois a sua utilização. Poderíamos discutir sobre este
modo opcratóno se o objcctivo não fosse precisamente a automatiza­
ção; porque esta não constitui wna acção num dado domínio capaz de
provocar uma anti-acção. O que ela constitui ea neutralização de um
domínio. que acabaria por neutralizar também os campos exteriores
se ao mesmo tempo não fossem empreendidas acções contraditórias. Acção na Bélgica contra a assembleia
Pierre Drouin. ao falar no Le fonáe de 5-1-57 da c>..tensào dos dos críticos de arte internacionais
hahbies como realização das virtualidades cuja utilização os trabalha­
dores já não podem encontrar na sua acthidade profissional, conclui
que em cada homem «há um criador adormccido11. Esta velha bana­ A 12 de Abril [de 1958], dois dias antes da reunião em Brwtelas
lidade tem hoje uma verdade abrasadora se a associarmos às reais duma assembleia geral dos críticos de ar1e internacionais, os situacio­
possibilidades materiais da nossa época. O criador adormecido tem nistas difundiram amplamente uma mensagem dirigida a esta ns.sem­
de despertar. podendo perfeiramente o seu estado de vtgilia chamar­ bleia, assinada - em nome das st:cções argelina, alemã. belga. fran­
-se situacionista. cesa, italiana e escandinava da 1.S - por Khatib, Platschek, Korun,
Debord, Pinot-Gnllizio e Jorn:
1
O professor Thomas MaWon:Mlo. Jom já antc:nOITTlCllle cootcstm as po1tções deste «0 que está a fazer-se aqui parece-vos simplesmente chato.
fimciooalisLa: 11Sc Makloaado Ú\'CSSC rnriio, o;e a partir de agora as QCÇÕ..:S revolucionárias A Internacional Situacionista, no entanto, considera significati\·o,
no âmbito do em1110 r~ 1mpos~ivc:15 fora do contexto oficial, isso significari:I que
embora ridículo, este ajuntamento de tantos críticos de arte como
mais nenhuma revolução educativa \erla possh el, (11.lrquc nenhum sistema é cap:iz de se
rcnoyor por dentro Este ponto de \"Í$b é uma traição definitiva da tradiçilo da antiga atracção da Feira de Bm~elas.
&uluius, wi1 m'Ollllllte abandono de tudo o que fo1 conquistlldo desde Jean-Jacques Visto verificar-se que o pensamento moderno tem sido perfeita­
Rousseau (Pour la forme, 1954-57.) mente estagnante para a cultura desde há vinte e cinco anos; \isto

32 33
toda uma época, que nada percebeu e nada mudou. ganhar consciên­ A Internacional Situacionista não \ 'OS há-de deíxar lugar nenhum.
cia do seu falhanço, os seus responsáveis tendem a transformar em Vamo condenar-vos à fome.11
instituições as actividades que exercem. Pedem assim estes responsá­ Coube à nossa secção belga levar a cabo localmente a oposição
veis que se reconheça oficialmente um conjunto social caduco de nL'CeSSária. Logo a 13 de Abril [de 1958], véspera da abertura dos
todos os pontos de vista mas ainda materialmente dominante e de que trabalhos. quando os críticos de arte dos dois mundos. presididos pelo
eles foram. na maioria dos casos, bons cães de guarda. A carência norte-americano Sweeney, foram acolhidos em Bnuelas, o texto da
principal da critica na arte moderna está em nunca ter sabido conce­ proclamação situacionista foi levado ao seu conhecimento de diversas
ber a totalidade cultural, nem as condições dum movimento experi­ maneiras. toram entregues, pelo correio ou directamente. muitos
mental que a ultrapassa constantemente. Neste momento, a maior exemplares a muitos críticos. A outros o texto foi telefonado, em
dominação da natureza pennite e exige que se empreguem poderes parte ou na integra. através de chamadas pessoais. Um grupo forçou
superiores de construção da vida. Nisto residem os actuais problemas; a entrada da Casa da Imprensa. onde os críticos foram acolhidos, para
e estes intelectuais promotores de atraso, com medo da subversão atirar panfü:tos por cima da assistência. Para a via pública ariraram­
geral duma certa fonna de existência e das ideias que esta produziu, -se ainda mais, de alguns prédios ou de cima dum carro. Pudemos
só podem afrontar-se irracionalmente uns com os outros, na quali­ deste jeito contemplar críticos de arte à cata de panfletos pelo chão,
dade de campeões deste ou daquele pormenor do velho mundo ­ para os subtraírem à curiosidade dos transeuntes. Foram. em suma.
dum mundo acabado cujo sentido nem sequer perceberam. Os críticos tomadas todas as medidas para que os críticos de arte não corressem
de arte reÍlnem-.;e pois para entre si trocarem migalhas da sua igno­ o risco de ignorar este texto. Os dito!> críticos não hesitaram sequer
rância e das suas dúvidas. Algumas pessoas, que sabemos estarem em chamar a policia. fazendo quanto podiam para cuidar dos negó­
presentemente a fazer um esforço para compreenderem e apoiarem as cios implicudos na Exposição Universal, com vista a impedirem a
novas investigaçÕl"S, aceitaram. ao virem aqui, confundir-se numa reprodução na imprensa dum escrito nocivo ao prestigio daquela sua
imensa maioria de medíocres; prevenimo-las de que só poderão con­ feira e das suas ideias. O nosso camarada Korun ficou sob a alçada
tinuar a ter algum interesse para nós rompendo com este meio. judiciária pelo papel que teve na manifestaçào.
Sumam-se, sumam-se, críticos de arte, imbecis parciais, incoeren­
tes e divididos! É em vão que vocês montam este espectáculo dum IS. n.• 1, Junho de 1958
falso encontro. Em comum só têm um papel a desempenhar: o de
alardearem. neste mercado, um dos aspectos do comércio ocidental
- o vosso palavreado confuso e oco sobre uma cultura em decom­
posição. Pela História estão vocês depreciados. Até as vossas audá­
cias já pertencem a um passado de que não se pode extrair coisa
nenhuma.
Dispersem-se, bocados de críticos de arte, críticos de fragmentos
de artes. É na Internacional Situacionista que se organiza agora
a futura acthidade artística unitária. \bcês já não têm patavina a
declarar.

34
Sentido do deperecimento da arte se eximem a escrever arugos para disso nos pcrsuadirem, dando a
público romances para nos provarem que se não de\ e contar uma
história.»
A chilização burguesa, agora propagada ao conjunto do planeta e Perante tais zombarias, os críticos que fizeram opção de moder­
cuja supemçào ainda se não viu realizada nenhures, é perseguida por niSJno tecem loas às belezas da dissolução, com \'olos de que não se
um fantasma: o questionamento da sua cultura. que 5urge aquando da apresse demasiado. Sentem-se embaraçados como Geneviê\e Bonnc­
dissolução moderna de todos os meios arusticos. Tendo esta dissolu­ foi, quando esta relata. sob o titulo <1Mortc ou transfiguração?», a infe­
ção começado por se manifestar DO p~nto de partida das forças pro­ liz Bienal de Paris (Le//res No11vclles n.º 25). Conclui ela. melancolica­
dutivas da sociedade moderna. ou seja, na Europa e mais tarde na mente: (~Só o futuro dirã se esta "nadadizaçào" da linguagem pictórica,
América do Norte, ela constitui, desde hã muito, a verdade primeira muuo semelhante à que no plano literário tentaram Beckett, Ionesco e
do modem.ismo ocidental. A Libertação das formas artísticas signili­ os melhores jovens romancistas aciuais, constitui o prelúdio duma reno­
c0u por toda a parte a sua redução a nada. Pode aplicar-se à expres­ vação da pintura ou do seu desaparecimento enquanto arte maior da
são moderna no seu conjunto o que W. Weidlé escrevia em 1947, no nossa época. Por falta de espaço não falarei aqui da escultura, que
n.º 2 dos Cahicrs de la Pléiade, a propósito de Fínnegans WaA-r 1: parece encontrar-se em completa desintegração)> Ou então, abdiC<Uldo
1<Esm Soma desmedida das mais aliciadoras contorsões verbais, esta de todo e qualquer sentido do ridículo, encaram com desdém o partido
arte poética em dez mil liçõe~ não é uma criação de arte: é a autóp­ do quase nada atra\.és de: fórmul.fil dignas de passarem à história, para
sia do seu cadá••er.» resumirem a indigência duma época, como Françoise Choay, que
Os críticos reaccionários não deixam de assinalar. a fim de susten­ el<Wosamente intitula assim um rutigo sobre Tapies: uTapiês místico
tarem o seu estúpido sonho dum regresso às belas maneiras do pas­ do quase nada>> (France Obsem1te11r, 30-4-59).
sado, que por dctris do florescimento inflacionista de novidades que A atrapalhação dos críticos modernistas é completa.da pela atrapa­
só podem servir uma vez, o caminho desta libertação só ao vazio lhação dos artistas modernos, a quem a decomposição acelerada, em
conduz. Como Émile Henriol, que no Le Monde (11-2-59) nota o todos os sectores, impõe continuamente o exame e a explicação das
seguinte: «A aparência, tantas e !antas vezes assinalada, que adquiriu W1S hipóteses de trabalho. A isso se entregam numa ml.'SID.8 confusão,
uma certa literatura dos nossos dias, virada para a "linguagem das e graças, com frequência, a uma comparável imbex:ilidade. Pode dis­
formas", para uso de literatos especializados DO exerclcio duma "lite­ tinguir-se assim por todo o lado, entre os criadores modernos, o sinnl
ratura para literatos", tem ela própria o seu próprio objecto, tal como dulllll consciência traumatizada pelo naufrágio da expressão enquanto
existe uma pesquisa n~ pintura destinada a pintores que pesquisam.» esfera autónoma e objectivo absoluto e pela lenta ocorrência de
Ou como Mauriac no E.tpress (5-3-59): ((Nem sequer os filósofos, outras dimensões da actividade.
cuja lição consiste em que o propósito do poema deva ser o silêncio, A obra fundamental duma vanguarda actual deverâ residir num.a
tentativa de critica geral desta actualidade; e constituir uma primeir.i
1 Úhimo livro de J:imcs Joyce, cuj11 n:dacçio começou cm 1923 e ~io 1 ser pubLicodo tentativa de resposta às novas exigências.
cm 1939 Assinale-se que Joyce chegou a Paris, cm 1920, CllÍllndo de Zurique, onde o Se o artista põde passar, no decurso dum lento processo. do estado
dadaísmo tnauguma cm 1916 um3 genérica ncgnção cultural. F'mnegall.f llál.r e um de truão - que gentilmente mobilaxa alguns ócios - ao estado da
lon~ cmprmidimcnto ~do 11.11 dissoluçio d:i per!Olllllidadc
ambição profética. que le\'allta questões e pretende propor um sentido
36 37
para a vida. é porque, cada \·cz mais, a questão do emprego da vida nelas o pont.> comum de haverem associado muitos contributos posi­
se põe efectivam~'tlte na margem da crescente liberdade já alcançada tivos, bem tomo importantes chamadas à ordem sobre a verdade
pela no~ apropriação da narureza. progressista numa altura em que a ideologia de esquerda se perde
Deste modo, na prática, a pretensão do artista na sociedade bur­ num confusi.Jo.ismo cujos interesses são bem visíveis: mas veremos
guesa evolui a par da redução a zero do seu domínio de acção real também, ao mesmo tempo, que se mostraram ausentes ou insuficien­
e da negação que ele passa a formular. Toda a arte moderna exprime tes em dois tipos de questões: a organização duma força política e a
a reivindicação revolucionâria de outros oficias, que estão para além descoberta de meios culturais de acção. E estas questões, justamente,
do abandono das actuais especializ.ações da expressão unilateral em constiruem ci>is elementos essenciais e inseparáveis da acção transi­
conserva. tória que serâ preciso levar a cabo doravante, com vista a essa práxis
Os atrasos e as deformações do projecto revolucionârio são na enriquecida que ambos estes autores em geral nos apresentam como
nossa época coisas conhecidas. A regressão que nele se manifestou, uma imagea: exterior, inteiramente separada de nós - em vez de
tornou-se mais evidente na arte. E tanto mais facilmente quanto os vinculada - pelo lento movimento do fururo.
clássicos do marxismo não tinham desenvolvido, nesse campo. uma
critica efectiva. Numa célebre carta a Mehring, notava Engels, já no Num artigo inédito de 1947 («Será o materialismo dialecbco uma
fim da sua vida: «Insistimos sobretudo, e a isso nos vimos obrigados, filosofia?»), que faz parte do seu livro Recherches dialectiques,
no modo como as noções poUticas e jwídicas. bem como as restantes Goldmann analisa muito bem o resultado, no futuro, do movimento
noções ideológicas e, em suma, as acções que brotam de tais noções, cultural que encara, ao escrever: (<Tal como o Direito, a economia ou
derivam todas elas dos factos económicos fundamentais. Ao fazê-lo, a religião. a arte, enquanto fenómeno autónomo separado dos outros
porêm, descurámos a feição fonnal - o modo como tais noções domínios da vida social. será le\'ada a desaparecer numa sociedade
surgiam - em proveíto do conteúdo.» Na época em que o pensa­ sem classes. Deixará provavelmente de existir uma ane separada da
mento marxista se constituiu, o movlDlento formal de dissolução da vida, na medida em que a própria vida terá um estilo, uma forma na
arte não era, aliás. ainda aparente. Da mesma maneira se pode dizer qual deparara com a sua expressão adequada.» Mas Goldmann, que
que foi só em presença do fascismo que o movimento operário depa­ esboça esta perspectiva a muito longo prazo, em função das previsões
rou praticamente com o problema de «como surgia» formalmente globais do materiahsmo dialéctico, não reconhece na expressão do
uma noção política. E se viu tão pouco armado para o do!Dlll3I. seu tempo a verificação do que afinna. Considera a escrita ou a arte
Os representantes dum pensamento revolucionário independente do seu tempo em função da alternativa clássico/romântico, vendo
manifestam eles próprios uma cena carência quanto a assumirem um apenas no romantismo a expressão da reificação. É certo que a des­
papel na investigação cuJrural dos nossos dias. Se encararmos as
iniciativas, diferentes. em muitos aspectos, de filósofos como Henri a l.S. accítou reloc:ianar~. A Sll3 clabonlção duma cntica da vida quotidiana, a partir de
Lefeb\Te1 - nestes últimos anos - e Lucien Goldmann, veremos 1947, estudando a passngan da \'1da nua! à 'lida urbana, \'eio a influenciar a aitie11
situacionista; mas a influéncia da l.S robrc Lcfebvrc foi reciproca Lucicn Goldmano
(1913-70). de origem romena, foi .iss~tcnte de JC1111 Piaget na Suíça, quando ali se
1
Henri Lcfcb\'11! (1901-9t), fil66ofo e sociólogo, membro do P.C.F. até 1958. Arua refugiou cm 1942; pensador marxista, a:im base no 1Cjovan Mm.Dem esteira de LukAcs,
rrloção com os muacionisw, \ ú Dcbord e Bcmstcin, foi notivtl, upcsar de ter acabado inlcn:ssou tmnbém <» 5111W:ionisw, por odoplllr (formalmente} 110 ponto de '1sta d.t
mal i(\cr oott p. 263); foi ele, de ~to. o Wiico mtclccwal «Ü:slllucional• com quem lOtllídadeio.

38 .. 39
truiçào da linguagem, após um século de poesia, se fez seguindo a çio, a negatividade, que em si mesmo este mundo jâ continha desde
tendência da profundidade, romântica, retficada e pequeno-burguesa; há muito. afinna-se. desmentindo-o. corroindo-o. desmantelando-o,
e isso confonne o explanara Pau1han 1 no 9:U Les F/cun de Tarbcs, abatendo-o. Só uma totalidad1: realizada pode revelar que não é a
ao postular que o pensamento inexprimhel valia mais do que a pala­ totalidadc.>1 Este esquema, que se aplica mais à filosofia posterior
\TB. Mas a feição progressiva desla destruição, na· poesia, na escrita a Hegel, define perfeitamente a crise da nrte moderna, como mwto
romanesca ou nas artes plásticas, reside cm ela ser. ao mesmo tempo, facilmente se verifica estudando uma das suas tendências extremas:
o t~1emunho de toda uma época sobre a insuficiência da expre:;sào a poe:.ia. por exemplo, de Mallanné ao surrealismo. Estas condições,
artística. sobre a pseudocomunicaçào. Reside no facto de ela ter cons­ já dominantes a partir de Baudelaire, constituem aquilo a que Paulhan
tituido a destruição pratica dos instrumentos desUI pseudocomunica­ chama o Terror. por ele considerado como uma crise acidental da
ção. levantando a quc!-.tào da invenção de instmmentos superiores. linguagem, sem ter em conta o facto de tais condições dizerem res­
Henri Lefobvre (em la Somme et /e n:ste) acaba por perguntar «se peito, paralelamente. a todos os outros meios de e~pressão anislica.
a crise da filosofia não s1gruficará o seu depcrecimento e o seu fim Mas a amplitude de tais perspectivas de Lefebvre de nada lhe serve
enquanto filosofia>'. esquL-cendo que isto esteve na base do pensa­ quando escreve poemas que se apresentam datados segundo o mo<lelo
mento revolucionário a partir da l l.1 das Teses sobre Feuerbach [de de 1925 e do mais baixo nhcl quanto à eficácia dessa fórmula.
Marx]. Expô depois unrn critica mais radical, ao n.0 IS da revista Quando por fim propõe uma concepção da arte moderna (o roman­
Àrgum nfj, encarando a história humana como a tra\'essia e o aban­ tismo revolucionário). eis o que aconselha aos artistas: que voltem a
dono succssi\·os de diversas esferas: o cósmico, o matcrnal, o divino, este género de expressão - ou a outros ainda mais antigos - para
e igualmente a filosofia, a economia, 11 política e. por fim, «a arte. exprimirem a sensação profunda da vida bt!m como as contradições
que define o homem atra\és de cintilações deslumbrantes e o humano dos homens avançado do seu tempo: quer dizer, indistintamente, as
atra\és de instantes excepcionais, por conseguinte ainda exteriores e contradições do público desses artistas e as deles próprios. Lefebvre
alienantes no esforço para se atingir a libcrtaçào.n Deparamos aqui. pretende ignorar que esta sensação e mas contradições foram já
porém, com a ficção cientifica do pensamento revolucionário pregada e~primidas por toda a arte moderna, e justamente chegando assim à
na revista Algi1m~nl.S. tão audaciosa plll1I abordar milénios de História destruição da própria expressão.
como se mostra incapaz de propor uma única novidade para daqui ao Para os revolucionários n3o há nenhum passivei regresso ao pas­
fim deste séct!lo - e na actualidade, bem entendido, se vê engodada sado. O mundo da expressão, qualquer que seja o seu conteildo, é jã
pelas piores exumações do neo-reformismo. Lefebvre \ê claramente caduco. É escandalosamente que ele se repete, para se manter, tanto
que cada domínio se desmorona ao explicitar-se. atingidas que foram quanto possa a sociedade dominante conseguir manter a privação e a
as suas virtunlidades e o seu imperialismo, «quando se proclamou raridade que constituem as condições anacrónicas do seu reinado.
totalidade à escala humana (e portanto esgotada). No decurso deste Mas a manutenção ou a subvrnào desta sociedade não é uma questão
desea,·olvimcnto, e só depois duma tal ilusória e e:tcessiva proclama­ utópica: pelo contrário, trata-se da mais ardente questão dos nossos
dias, a que domina todas as outras. Lefebvre deveria levar mais longe
1 Jean Paulluln ( t 884-1968), «t111ínênci.s·S<1I1ln» ~
a reflexão a partir duma questão que expõe no mesmo artigo: «Não
letras fumcesas, chefe diKrcto
di N.R F. (/l'ouw:J/c /Wue FN111çaise). \'Cflbde1ra autonciadc ~ubr O seu livro w terá sido cada grande época da arte uma feSla fúnebre em honra dwn
Fleun de Tarlx.s ê considi:rudo wn monumento analiúoo. momento desaparecido?>• A questão é igualmente verdadeira no plano

40 41
individual, nesse pleno em que cada obra representa a fes1a fúnebre ambiente que nos condiciona. O construtor de situações. retomando
e comemorativa dum momento desaparecido na existência do indivf­ uma expres.sào de Marx, «ao agir, com os seus movimentos, sobre a
doo. As criações do futuro de\ erâo modelar drrectamente a vida, natmeza exterior e ao transformá-la (...], transforma simultaneamente
criando e banalizando os «instantes excepcionais». A dificuldade a sua propria naturezm>.
deste salto em frente é avaliada por Goldmann quandÔ observa (numa Uma tese de Asger Jom, nas discussões que levaram à formação
nota das Recltcrches dialec1iqucs, p. 144): «Não dispomos de qual­ da I.S., consistia no projecto de pôr fim à separação que se deu por
quer meio de acção dirrxta sobre o aíectivo..>> Será essa justamente a volta de J930 entre os artistas de vanguarda e a esquerda. revolucio­
tarefa dos criadores duma nova cultura: inventarem tais meios. nána. antes aliados. Mas o fundo do problema reside nisto: depois de
É necessário encontrar instrumentos operatórios intennédios entre 1930 não voltou a haver movimento revolucionario nem vanguarda
esta práxis global em que se dissolverá um dia cada um dos aspectos artística para dar resposta às possibilidades da época. Um novo ponto
da ,;da total duma sociedade sem classes, e a actual prática indivi­ de partida, aqui e ali, deverã por certo faJ.er-se na unidade dos pro­
dual da vida (<privada», com os seus pobres recursos artísticos ou blemas e das respostas.
outros. Aquilo a que chamamos sihJaçÕt!S a construir reside na busca Os evidentes obstáculos da actualidade determinam uma certa
duma organiz4ção dialéctica de realidades parciais passageiras, que ambiguidade do movimento situacionista como pólo de atracção para
André Frankin' designou como «Uma planificação da existência.» artistas prontos a fazer outra coisa. Tal como os proletários acampam.
individual - que não exclui o acaso, devendo, pelo contràrio, teoricamente. diante da nação, os sítuacionistas acampam frente às
·~contrá-lo» (cf. a sua Critique du Non-Àl'enir). portas da cultura. Faz.em-no. porém, sem nesta se quererem estabele­
A siluaçào é concebida como o contrário da obra de arte, que é cer, inscrevendo-se às avessas na arte moderna, são os organizadores
uma lt:ntativa de valorização absoluta - e de conservação - do da ausência duma vanguarda estétit.-a que a critica burguesa espera e
instante presente. É isto a fina mercearia estética de um Malraux, a que, continuamente decepcionada, se apronta a saudar na primeira
propósito do qual convêm notar que os «intelectuais de esquerda» ocasião. A J.S. não faz tal coisa sem correr o risco de passar por
que hoje se indignam, vendo-o à testJ da mais desprezível e néscia divmas interpretações retrógradas, incluswe ao seu próprio seio. Até
trafulhice polftica. o únham antes levado a sério - confissão que os artistas da decomposição - por exemplo, no último mercado
subscreve a falência deles. Cada situação. por mais conscientemente organizado em Veneza 1 - jâ falam de «situações». Os que entendem
que possa,ser construida, contém a sua negação e caminha inevitavel­ sempre tudo em termos de velharias artísticas, como medíocres fór­
mente para a sua alteração. No comportamento da vida individual, mulas verbais destinadas a assegurar a venda de obrinhas pictóricas
uma acção situacionista não as.senta na ideia abstracta do pro~ ainda mais medíocres, podem ver a I.S. já guindada a um certo êxito
racionalista (à maneira de Descartes~ •(tomarmo-nos senhores e de­ e reconhecimento; mas é por não terem percebido o lance, ainda a
tentores da natureza»). mas sim numa prática da composição do meio empreender; para o qual nos associámos.
Bem entendido, o deperecimento das formas artísticas. se é yer­
1 dade traduzir-se na impossibilidade da sua renovação criadora, nem
Siwacioni.sta belga, damttu-5e cm 1961, coo1 base cm divergências sobre 1 acçiio
politic::i a descm·ohcr rui Bc!lgica após a grande greve de 1960-<i 1, de canícter cspolllli­ por isso conduz de imediato ao seu verdadeiro desaparecimenlo prã­
neo, que mobilizou durante meses muilOI mtlhma de trahtlhadórcs e na qual algum
i1UlaC•oni.stns esuwnun envolvidos. fnmkin Íl.llnl já pnrte da Internacional Letrista. 1
Ou ltjo. Bicnnl de \\:JJCZ1
42 43
llro. Tais formas nrtb11cas podem repetir-)e com diversos matize:;. este jogo de \alorização pode substituir. num plihlico bastante \asto,
Mas tudo isso re,ela <io tremor deste mundon, para falanno como as dispendiosas atracções do star 911.:m. A <mova vaga» é principal­
Hegel no prefacio à Fe.11ome110/ogia do Espínto: «A frivolidade e o mente expressão dos interesses desta camada de críticos.
tédio que mvadem o que ainda subsiste. o vago p~cnlimento do Na confusão de que estes s1:mpre viveram, como críticos e como
incógnito. são os sinais anunciadores de algo diferente que já está cm cineastas, o filme de Alain Resnais, lfirolhima mo11 amour, passa
cursou. juntamente com a fomosa vaga. recolhendo o mesmo género de admi­
E m:us longe que de,emos ir, sem no_s vinculannos seja ao que for ração. É fácil reconhecer a sua superioridade. Mas poucos, ao que
da cultura moderna e a nada, tão-pouco, da sua negação. parece. tratam de definir a sua natureza.
Não é do espectáculo do fim dum mundo que queremos ocupar­ Resnais realizara já várias curtas metragens com enorme talento
nos; do que queremos ocupar-nos é do fim do mundo do espectáculo. (Nuit et Brouillaní), mas é Hirosliüna que marca um salto qualitativo
no desenvolvimento da sua obra e no do espectáculo cinematográfico
l S, n.• J, Dacmbro de 1959 mundial. Se excluirmo e.~pL'liências que até aqui ficaram à margem
do cinema, como certos filmes de Jean Roucb no referente ao con­
teúdo, ou as do grupo letrista, por volta de 1950, quanto às investi­
gações formais (lsou, Wolman, Marco' - as correspondências,
sobretudo do primeiro, não são curiosamente assinaladas por nin­
guém). Hiroshima SUJl!e como o filme mais original e inovador desde
a êpoca da afirmação do cinema c;onoro. Hirofhima. sem renunciar a
O cinema depois de Alaln Resnais um domínio dos poderes da imagem, basefa-se na preeminência do
som: a importância da palavra provém não só duma quantidade e até
duma qualidade incomuns, mas do facto de o desenrolar do filme ser
A «nora \'agai> de n.'llliZ<Jdorcs que neste momento procede à reno­ muito menos apresentado pelos gestos das personagens filmadas do
vação do cinema francês, wttcs de mais nada define-se pela ausência que pelo seu recitativo (que chega a estabelecer soberanamente o
notória e completa de novidade artística. até no mero plano das inten­
ções. Menos negativamente. caracterizam-na algumas condições 1 lsidorc lsou, n cm 1924 na Roménia, foi o criadoc cm Paris, cm 19-t7, do ktrismo,
económicas particulares cuja feição dominante reside sem dúvida na
tcndi:ntia de ~illlgwudi que ~e pmpunlw, ieumanilo a iconoclastm d~ dadaisw e dos
importância que adquiriu em França, desde há W1S dez anos. uma primeiros ~urmtlísw, IC'VBJ' atê ao fim a au100cstruiç:io das tOOn&s anisüc&t Dcbonl
certa criuca cinematográfica. que representa uma força complementar encontra os letti~taS cm t951, no Festival de UmllQ, onde eles aprcsen13111 (vaiado) o
l11il para a exploração comercial dos filmes. Estes criticas acabaram filme d.-: lsou.. Tratado dt Baba t Etemidodt!. sem llll3gtnS e com uma lxind2 sonor.i
por empregar esta for~ dircctarnenle para uso próprio, na qualidade comtiruídll por JlOCIIlb onomatopciitm e monólogos !sou e o gnipo !mista C\iolumio
dtpois para posições nco-artistiQIS, provoc:mdo isso a cnnçio dwna IJO'o'll. tcndélcia. a
de autores de filmes. E isto que constitui a sua única wiidade. As
lnu:macional Letrista. - Gal J Wolrnan rcalil.Oll cm 1952 OAntu:onceiJo. filme com UITQ
valorizações respeitosas, que eles aplicavam numa produção de que banda 'iOllll'il não namtiva. incluindo ruidos fisiotógi'Os, e imagem constituida por cír­
nada percebiam, ser\'em doravante para as suas próprias obras, que se culos pmlki e ~ prajcctada sobn: um cera csfõico. - M.ll'CC, autor de fan!{Clw
tornaram realizáveis por bom preço na medida justamente em que por um Cinrma Engloban1<· e outros texlos cmc:mntográlic:o5.
4-l 45
sentido da: i1TBgem, como acontece no longo travelling pelns ruas que no cinema ((comerciah•. do movimento de autodestruição que domina
conclui a pnnc:i.ra scqul!ocia). toda a arte moderna.
O público conformista sabe que é permitido admirar Resnais. Os admiradores de Hiroshima esforçam-se por encontrar neste
Admira-o, potanto, tal como admira um Cbabrol. Resnai.s, em diver­ filme os pequenos aspectos admiráveis graças aos quais se lhe asso­
sas declaraçõ:s, mostrou ter seguido uma orientai?,~· que se reílecte ciariam. E deste modo toda a gente se põe a falar de Faulkner e da
na investignç{o dum cinema baseado na autonomia do som (ao defi­ sua temporalidade. Aeste respeito. Agnes Varda. que não possui nada.
nir HiroshiTTU como uma «longa curta-metragem» comentada; ao diz-nos dever tudo a f aulkner. Na realidade, cada qual insiste na
reconhecer o ·cu interesse por alguns ..film~ de Guitry1; ao falar da subversão do tempo, visível no filme de Resnais, para nele não ver
sua tendência para uma ópera cinematográfica). Toda\'ia, a discrição os outros aspectos destrutivo~. Da mesma maneira. fala-se de Faul­
pessoal e a mxléstia de Resnais contribuíram para encobrir o sentido kncr como dum especuilista, meramente acidental, da extrema frag­
da evolução Clle ele representa. A critica, deste modo, dividiu-se em mentação do tempo, encontrada por acaso por Re~-nais. para esquecer
reservas e lowores igualmente inadequados. o que já acontecera ao tempo, e mais geralmente à narrativa roma­
A objecçào mais banal e mais falsa consiste em dissociar Resnais nesca. com Proust e Joyce. O tempo de Hirosliima, a confusão de
de Marguerite Duras. saudando o talento do realizador para deplorar Hiroslúrna. não são uma anexação do cinema pela literatura; são a
o e.~gero littrário dos diálogos. O filme é o que é graças a este sequência. no cinema, do movimento que levou toda a escrita, e antes
emprego da làguagem, por que Resnai5 optou e que a sua argwnen­ de mais nada a poesia, para a dissolução.
tista conseguit. Jean-François ReveJ. denunciando muito justamente, Da mesma maneira que Resnais é explicado devido a talentos
na revista Aro (26-8-59), a 11revolução retrospectiva>> conduzida pelo excepcionais, verifica~se também a tendência para o explicar com
pseudomodemsmo das imovas \agas>>, romanesco ou cinematográfi­ base em motivações psicológicas pessoais - ambas as coisas com
co, comete o Q'ro de nisso englobar Rcsnais por causa do seu comen­ um papel evidente. que não e.~aremos aqui. Ouvimos assim dizer
tãrio, 1 <imita~ de Claudel". Revel, por conseguinte, que desde há que o tema de todos os filmes de Alain Resnais é a memória, tal como
muito é apreciado pela inteligência dos seus ataques sem nunca defi­ o dos filmes de Hawks, por exemplo. é a amizade viril. e por aí fora.
nir aquilo que preza, mostra uma súbita fraque:za quando se trata de Pretende-se assim ignorar que a memória é forçosamente o tema
distinguir. na riacotilha da moda, uma novidade efectiva Aquilo que significativo do eclodir da fase de crítica interna duma arte, do seu
prefere, segundo o .seu artigo na Àrts, simplesmente por causa do questionamento; a sua dissoh:cnte contestação. A questão do sentido
conteúdo simpático, é. a desgraçada convenção cmematogrâfica da memória está sempre ligada à questão do sentido duma permanên­
~ Tripas ao Sol, de Bemard-Aubert. cia transmitida pela arte.
Os partidános de Resnais falam com bastante liberalidade de O mais simples acesso do cinema ao meio de expressão livre
génio, por cau;a do prestigioso mistério do termo, que os dispensa encontra-se já, ao mesmo tempo, na perspectiva da demolição deste
de explicarem a importância objectiva de Hirosluma: o aparecimento, meio. Logo que o cinema se enriquece com os poderes da arte
moderna. atinge a crise global da arte moderna. Este passo
1 em frente aproxima o cinema da sua morte. ao mesmo tempo
Actor e autOI' rrancõ de farus ( l88S-l 957), também c1ncnsL1 Guitty, cujos filmes
asscru:un no tato, no tiiãlogo, ecm geral mociado a Jcm Renoir e M=I Pagnol no que o aproxima da sua liberdade: ou seja, da prova da sua insufi­
ldVCJto dum cmcma e.n:afi1UI). ciência.
46
No cinema. a rei\ imlicação duma liberdade dc expressão igual à posições situacionistas sobre a circulação
das outras wtes esconde a falência geral da expressão na recta final
de todas as artes modernas. A expressão artística em nada constitui
uma ,crdadeira seif-expression, uma realiz:tçào individual da Yida. 1
A proclamação do «filme de aurom é jâ caduca_-antes de efi.'Ctiva­ O defeito de todos os urbmili"tas consiste em coosidcrarem o automó­
mente ter ultrapassado a pretensão e a quimera. O cinema. que \ir­ vel imfü,idual (e os seus subprodutos, do tipo scooter) es.sencialmente
tualmcnlc possui poderes mais fortes do que as artes tradicionais, está como um meio de transporte. Nisto reside a principal materialização
por demais preso a cadeias económicas e morais para alguma vez duma concepção da felicidade que o capitalismo desenvolvido tende a
poder cr livre nas presentes condições sociais. De modo que o litígio disseminar em toda a sociedade. O automóvel como bem soberano
do cinema scrã sempre um litígio a interpor recurso. E quando o duma vida alienada. e inseparavelmente como produto essencial do
derrube previsível das condições culturais e sociais permitir um mercado capitalista, está no centro da mesma propaganda global: diz­
cinema füTe, muitos outros domínios da acção terão necessariamente -se este ano, correntemente, que a prosperidade económica norte-ame­
surgido. É prová\'el que então a liberdade do cinema seja amplamente ncann dependerá em breve do êxito do lema: 1<l)ois carros por familia».
superada e esquecida, no desenvolvimento geral dum mWldo onde o
espectãculo tcrã deixado de ser dominante. O carácter distinti\'o e 2
fundamental do espectáculo moderno e a encenação da sua própria O tempo de transporte. como muito bem viu Le Corbusier. é um
ruína. A importância do filme de Resruis, seguramente concebido sobrctrabalho que reduz na mesma proporção a jornada de \ida pre­
fora desta persp~'Ctiva histórica. consiste em acrescentar-lhe urna tensamente livTe.
nova confirmnção.
3
1. S. n! 3, Dezembro de 1959 Temos de passar da circulação como suplemento do trabalho à
circulação como prazer.

4
Querer refazer a arquileclura em função da existência actuaJ,
maciça e parasitária, dos carros mdiVJduais, e deslocar os problemas
com um grave irrealismo. É preciso refazer a arquitectura em função
de todo o movimento da sociedade, cnticando todos os valores pas­
sagdros, ligados a formas de relações sociais condenadas (a familia,
em primeiro lugar).

5
Mesmo que possa admitir-se provisoriamente, num período de
transição, a divisão absoluta entre zonas de trnbalbo e zonas de habi­
lação, é pelo menos preciso preYer uma terceira esfera: a da própria 9
vida (a esfera da liberdade, dos ócios - a verdade da Yida). Sabemos Os urbanis1
que o urbanimo unitário não tem fronteiras; que pretende constituir com a circular;JlS revolucionários não hão-de preocupar-se apenas
uma w1idade otal do meio ambiente humano onde as separações. do coisas. TentariO das coisas e dos homens coaguJados num mundo de
tipo trabalho. ios, colectivosfrida privada. serão finalmente dissol­ terrenos para p desfazer eslas cadeias topológicas, experimentando
vidas. Mas anes disso, a acção mínima do urbanismo unitãrio hã-de circulação dos homens com base na vida autêntica.
ser o terreno lc jogos alargado a todas as construções desejáveis. Este
terreno terá o grau de complexidade duma cidade antiga. IS n.• 3, ~ DE BORO
~bro de 1959
6
Não se traa de combater o automóvel como um mal. É a sua
extrema con~o nas cidades que acaba por negar o seu papel.
O wbanismo .Ião de\crá certamente ignorar o automóvel, mas deverá
ainda menos ceitá-lo como tema central, impondo-se-lhe que aposte
no seu depe:re<.imento. Seja como for. pode prever-se a sua proibição no O urbanls1
interior de teros conjuntos novos. tal como em certas cidades antigas. mo unitário no fim dos anos 50
1 Em Agosto
Os que julgam que o autotnÓ\el é eterno, não pensam, nem sequer paravam a forn.le 1956, um panfleto assinado pelos grupos que prc­
dum ponto de vista estritamente técnico, nas outras formas de trans­ <b Arte de Variação da I.S, apelando a boicotar o pretenso «Festival
porte futuras. Por exemplo, certos modelos de helicópteros indi\'i­ -se da mais cc:igwmi:l» 1 convocado para Marselha. assinalava tratar­
duais. actualm!nte e~perimentados pelo exército dos Estados Unidos, anos represemdllpleta selecção oficial «daquilo que dentro de vinte
estarão prova,-elmente difundidos entre o publico daqui a menos de Com efeito rá a imbecilidade dos anos 50».

vime anos. quase eitclusiv11 a arte moderna deste período tera sido dominada, e
estagnação queomente composta, por repetlções camufladas, por umn
8 tro de OJ>eraçõc-traduz o esgotamento definiti\'O de todo o antigo tea­
A ruptura da dial~lica do meio ambiente humano em favor dos ootro. Todavia s cultural. bem como a impotência para descobrir um
automóveis (projecta-se a abertura de auto-estradas em Paris, levando tempo certas f~ subterraneamente, foram-se constituindo ao mesmo
is.so à destruição de milhares de alojamentos. ao mesmo tempo que rças. É o que se passa com a concepção do urbanismo
1
a crise da habitação se agrava sem cessar) esconde a sua irraciona­ Enco1uro ll:ah
lidade por trás das explicações pscudopráticas. Mas a sua verdadeira Corbusicr, para n:uz;ido cm Mmclha. cm AgosLo de 1956, sob os auspícios de Le
necessidade prática corresponde a um estado social preciso. Os que loncseo, Bttkctt, enir os artistas e cscritllf?S da vanguarda oficial (Agnes Ylrda, Tnpie,
julgam que °' dados do problema são permanentes, na realidade de 80 1CtJte, ªlacandc ). AInternacional Lctrisb difundiu nn ocasião wn panfleto, Ordem
ª
baseado sua carro 1<1odos os cscrilllrCS e anlStls con1Cmporãncos coohccidos por 1cn:m
querem acreditar na pemumência da sociedade actual.
antcnorcs. cm Etta:1ra 111 cópul e vulgariz.ação rcacdonãria duma ou outra nombdcs
50 de fraco alcance.»

51
unitário (U.U.), apreendida desde IC53, designada piela primeira vez ornamento acrescentado, são boje banalidades. Mas o seu campo de
em finais de 1956 num panfleto dilribuido em Turim durante uma aplicação, no fim de contas limitado, não conduziu o funcionalismo
manifestação dos nossos camaradru (1<Palavrns obs.curas)1, escrevia a urna correlativa modéstia teórica. Para justificar filosoficamente a

.ÍA Nuom Stampa de 11 de Dezemtro, no género dtesta advertênci~


O futuro dos vossos filhos depende disto, manifestem - o vosso apoio
80 urbanismo unitário!»). O urbanimio unitário é unna preocupação
extcrisào dos seu. princípios renovadores a toda a organização da
vida social, o funcionalismo fundiu-se, quase sem dar por isso, nas
mais imóveis doutrinas conservadoras (ao mesmo tempo que ele pró­
prio se coagulou como doutrina imóvel). Impõe-se-lhe construir
central da l.S.: e sejam quais forem cs prazos e as difiiculdades quanto
à sua aplicação, o relatório inaugunl da Conferência de Munique' annosferas inabitáveis; construir as ruas da vida real, os cenãrios dum
constata mwto justamente que com ~seu aparecimemto no plano da sonho desperto. A questão da construção de igrejas apresenta um
investigação e do projecto o urbaninno unitário já 1começou. critério particularmente notório. Os arquitectos funcionalistas tendem
Os anos 50 estão prestes a acablI'. Sem procuramnos prever se a a aceitar construir igrejas, pensando - caso não sejam llllS idiotas
sua imbecilidade na arte e no empr~o da vida, depemdente de causas deístas - que a igreja, edificio sem função num urbanismo funcio­
gerais, poderá imediatamente atenwr-se ou agra\~-se'. é te~~o de nal, pode ser tratada como um livre exercício de formas plásticas.
vennos em que pé se encontra o UU. após um pnnnerro estádio de O erro deles reside em descurarem a realidade psico-funcíonal da
desenvolvimento. São \'iÍrios os portos a explicitar. igreja. Os funcionalistas, que exprimem o utfütarisrno técnico duma
Antes de mais, o urbanismo unitaio não é uma dloulrina urbanís­ época. não podem sair-se bem numa só igreja. no sentido em que a
tica, é uma critica do urbanismo. Do mesmo modo, m nossa presença catedral foi o êxito unitário duma sociedade a que temos de chamar
na arte experimental é wna critica d., arte, impondo-si;e a investigação primitiva, afundada muito mais longe do que nós na miserável pré­
sociológica como uma crítica da 10ciologia. Nenlhuma disciplina -história da humanidade. Os arquitectos situacionistas, quanto a eles.
separada pode ser aceite em st mesna, avançamos p)ara urna criação ao procurarem criar, na própria época das técnicas que permitiram o
global da e:cistência. . funcionalismo, novos contextos de comportamento libertos da bana­
o urbanismo unitário distmgue-se dos problennas do habitat, Udade e de todos os velhos tabus, opõem-se absolutamente à edifica­
embora esteja destinado a englobá-la>; ainda com maus razão, distin­ ção, e até à conservação, de cdificios religiosos com os quais se
gue-se das actuais trocas comerciais Neste momentm encara um ter­ encontram em concorrência dirt.'Cta. O urbanismo unitáno está objec­
reno de experiência para o espaço stcial das cidad~ futuras. Não é li\·amente ligado aos interesses duma subversão global.
uma reacção contra o funcionalismo [urbanistico], é •sim a sua supe­ Tanto como se distingue do habitat, o urbanismo unitário diferen­
ração: trata-se de aLingir. para além do utilitário im~diato. um meio cia-se dos problemas estéticos. Opõe-se ao espectáculo passivo, prin­
ambiente funcional apaixonante. O funcionalismo, que aindn pre­ cípio da nossa cultura, na qual a organiz.ação do espectáculo se vai
tende estar na vanguarda por dep3.ral com resistência!S pass:idistas, já alargando mais escandalosamente conforme vão aumentando os
triunfou amplamente. As suas contriluições positivnss: a adnptaçào a meios de intervenção humana. Ao passo que nos nossos dias as pró­
funções práticas, a inovação técnic, o conforto, ltl proscrição do prias cidades existem como um lamentável espectáculo. um suple­
mento museológico para turistas passeados em autocarros de vidro, o
1Rcalizadn cm Abril de 1959, com a p:uti:ipaçilo dos snuacioonislll d.1 Alcmimha,
U.U. encara o meio ambiente urbano como terreno dum jogo em
Bêlgica. Dinamarca. flilJlÇll. Holanda e hàliL Participação.

52 SJ
O urbanismo unitário não está idealmente separado do lerreoo Sendo a experiência situacionista da deriva simultaneamente ins­
actual das cidades. Fomia-se a partir da experiência deste terreno e trumento de estudo e de jogo no meio ambiente urbano, ela encontra­
a partir, também, das construções existenles. Devemos explorar os -se, por isso mesmo, na \'ia do urbanismo unitário. Não querer sepa­
cenário:. actuais, pela afirmação dum espaço urbano lúdico cujo rar o teórico do prático. a propósito do U.U.• é não só fazer evoluir
reconhecimento a deriva estabelece, tanto como devemos construir a construção (ou as investigações sobre a construção, através de
cenários inteiramente inéditos. Esta interpenetração (utilização da maquetas) a par do pensamento teórico, mas também. e sobretudo,
cidade presente, construção da cidade futura) implica o manejo do não separar a directa utilização lúdica da cidade, colectivamente sen­
des\io arquitecturaJ. tida, do urbanismo como construção. Os jogos e emoções reais nas
O urbanismo unitário opõe-se à lixação das cidades no tempo, cidades de boje são inseparáveis dos projectos do urbanismo WlÍtário,
levando, pelo contrário, a que se precomze a sua transformáção tal como mais tarde as suas realizações não se devem separar de
permanente, promovendo um movimento acelerado de abandono e jogos e emoções que hão-de brotar desta realização. As denvas que
reconstrução da cidade no tempo, e, sendo possível, também no a lntemacionaJ Situacionista empreenderá na Primavera de 1960 em
espaço. Pôde assim encarar-se a possibilidade de tirar partido das Amesterdão. com meios de transporte e telecomunicações bastante
condições climaténcas onde já se desenvolveram duas grandes civi­ poderosos, são encaradas, na mesma proporção, como um estudo
lizações arqwtectónicas - no Cambodja e no sudeste do México objectivo da cidade e como um jogo das comunicações. Com efeito,
- para construir na floresta virgem cidades moventes. Os novos a deriva, afora os seus ensinamentos essenciais, só permite um conbe­
bairros de uma tal cidade poderiam ser construídos cada vez mais C!Dlenlo datado. Em poucos anos, a construção ou a demolição de
para oeste, desbravado confonne se fosse avançando, deixando-se casas. a deslocação das trucro-sociedades e das modas, bastam para
a parte correspondente ao Leste entregue à invasão da vegetação transformar a rede de atracções superficiais duma cidade; fenómeno
tropical, criando esta, por si mesma, uma passagem gradual entre a este, de resto, muito animador na altura em que cbegaanos a uma
cidade moderna e a nntureza selvagem. Uma cidade assim perse­ ligação dinâmica entre a deriva e a construção urbana situacionista.
guida pela floresta, além da inigualãvel zona de deriva que por É óbvio que até lá o próprio meio ambiente urbano se transformará,
detrás dela se formaria e duma associação com a natureza mais caoticamente, ultrapassando as derivas cujas conclusões não tenham
ousada do que as tentativas de Frank Lloyd Wright. teria a vanta­ podido traduzir-se em alterações conscientes deste meio ambiente.
gem duma encenação da fuga do tempo, num espaço social conde­ Mas o primeiro ensm.amento da deriva reside na sua própria existên­
nado à renovação cnadora. cia em jogo
O urbanismo unitário, oposto à fornção das pessoas em pontos Estamos apenas no início da civilização urbana; temos ainda de a
determinados duma cidade, constitui o pedestal duma civilização dos edificar nós próprios, embora partindo de condições preexistentes.
ócios e do jogo. Dever-se-á notar que na acanhada coacção do sis­ Todas as histórias que vivemos, a deriva da nossa existência, estão
tema económico actual, a técnica foi empregue para multiplicar os marcadas pela busca (ou pela falta) duma construção superior.
pseudojogos da passividade e da extrema fragmentação social (tele­ A transformação do meio ambiente faz surgir novos estados de sen­
visão), ao mesmo tempo que as novas formas de participação lúdica timentos, primeiro passivamente apreendidos e depois capazes de
também possíveis são regulamentadas por todas as polfcias: caso dos reagir construtivamente, com o crescimento da consciência. Londres
radioamadores, reduzidos a um escutismo técnico. foi a primeira realização urbana da revolução industrial, sendo a lite­

55
ratura inglesa do século XIX aquela que testemunha uma conscicncia­ O fim da economia e a realização da arte
liz.açào dos problemas da atmosfera e das possibilidades qualitativa­
mente diferentes numa grande aglomeração. A len1a evolução histó­
rica das paixões adquire uma das suas novas direcções com o amor O tempo. para o homem. é simplesmente uma sucessão de len6­
de Thomas de Quincey e da pobre Ann, fortuitamente separados e cm menos num ponto de observação do espaço. enquanto que o espaço
busca um do outro sem nunca se encontrarem ((no imenso labirinto é a ordem de coexistência dos fenóme11os no tempo. ou o seu pro­
das ruas de Londres: talvez a poucos passos um ºdo·outro... ». A vida cesso.
real de Thomas de Quincey no período que vai de 1804 a 1812 faz O tempo é a transformação só concebível sob a fonna de mO\i ­
dele um precursor da deriva: c<Pr~o amb1c1osamente encontrar mento em progressão no espaço, enquanto que o espaço é o estável
a minha passagem do Noroeste, para C\Ítar ultrapassar de novo todos só concebível como participação num mo\imento. Nem o espaço
os cabos e promontórios com que deparara na minha primeira via­ nem o tempo possuem uma realidade, ou valor, fora da mudança, ou
gem, entrei subitameme em labmntos de vielas [...] Teria por vezes processo, quer dizer, fora da combinação activa espaço-tempo.
podido pensar que era eu o primeiro a descobrir algumas destas teme A acção do espaço-tempo é o processo, sendo este processo ele pró­
incognita, duvidando que tivessem sido assinaladas nos modernos prio a transfonnação do tempo em espaço e a transformação do
mapas de Londn.'S.» Já em ímais do século, esta sensação é tão cor­ espaço em tempo.
rentemente aceite na escrita romanesca que Stevenson apresenta Vemos assim que o aumento de qualidade, ou resistência contra a
uma personagem que se espanta. na noite londnna. por ucaminbar mudança, se deve ao aumento quantitativo. Ambos estes aumentos
durante tanto tempo num cenário tão complexo sem sequer encontrar evoluem conjuntamente. É este desenvolvimento que constitui o
a sombra duma a\·entura» (i\~·-w Arabian Nighrs). Os urbanistas do objectivo do progresso socialista: o auml.'IltO da qualidade através do
século xx den.Tào construir a\'enturas. aumento da quantidade. E este desenvolvimento admite que o refc­
O mais simples neto siluacionista há-de consistir em abolir todas rido duplo aumento é forçosamente idêntico à diminuição do valor, à
as recordações da utilização do tempo da nossa época. Uma época diminuição do espaço-tempo. É isso a reificaçào.
que até agora tem vivido muito abaixo das suas possibilidades. A grandeza que determina o valor é o espaço-tempo, instante ou
acontecimento. O espaço-tempo reservado à existência da espécic
/. S n.• J, Dcz.cmbm de 1959
humana na Terra manifesta o seu valor cm acontecimentos. Não
havendo acontecimentos, a História não e:tiste. O espaço-tempo
dwna vida humana é a sua propriedade privada. Foi esta a grande
descoberta de Marx, na perspectiva da libertação humana; mas, ao
mesmo tempo. isto foi o ponto de partida dos erros dos marxistas,
porque uma propriedade só se toma valor ao realizar-se, ao libertar­
-se. ao utilizar-se. e aquilo que toma realidade o espaço-tempo duma
vida humana é a sua variabilidade. E o que torna o indiYíduo um
valor social é a sua variabilidade de comportamento relativamente
aos outros indivíduos. Tomando-sc privada esta variabilidade,
excluída da valo1nz.ação ocial, como acontece no socialimio autori­ A riqueza na variabilidade do consumo foi econ.o~da pelo capi­
tário, o espaço-te!Jllpo do homem toma-se irrealizável. Deste modo, 0 talismo. porque a mercadoria não passa dum soc1ahza~ obJeclo de
carácter privado idas qualidades humanas (os hobbies) tomou-se uma . É por isso que os socialistas evitam ocupar-se do obJecto de uso.
USo
A socialização do objecto de uso, que pemute . "d • l
COJlSl era- o como
desvalorização ruinda maior da vida humana do que a propriedade
privada dos mei(QS de produção. visto no detenninismo socialista 0 wna mercadoria, tem três aspectos principais:
inútil ser inexiste'llle. O socialismo, em vez de abolir o carácter pri­ a) Só o objecto de uso de interesse comum, desejado por um
vado das proprietdades, não fez senão aumentá-lo áe modo extremo. :úmero de pessoas bastante grande, pode servir como mercadoria.
n ah . .
tomando o próprlO homem inútil e socialmente inexistente. A mercadoria ideal é o obJectO desejado por todos Para nr caDl.1­
O objectivo do desenvolvimento ~co é a libertação dos valo­ nbo à produção industrial com vista a uma tal sociahzaçào, o capita­
res humanos atratvés da transformação das qualidades humanas em lismo precisava destruir a ideia da produção mdividual e artesanal,
valores reais. E ,é aqui que começa a re\'olução artística contra 0 apodando-a de «fonnalismo».
desenvolvimento socialista, a revolução artística associada ao pro­ b) Para que se possa falar de mercadoria, é necessário dispor duma
jecto comumsta... quantidade de objectos exactamente similares. A indústria ocup~-se
O valor da arte. relativamente aos valores práticos, é assim um apenas dos objectos em série, que fabrica em número cada vez nuuor.
contravalor. sen~o avaliado no sentido inverso destes últimos e) A produção capitalista é caracterizada por uma propa~an~ ~o
A arte constitui o convite a um dispêndio de energia sem objectivo consumo popular que atinge uma força e um volume mcnve1s.
preciso, afora aqLtele com que o próprio espectador pode contribuir o reclamo em prol duma produção socialista é simplesmente a con­
para essa actividltde. É a prodigalidade... Imaginou-se, no entanto, sequência lógica do reclamo em prol dum consumo socializado.
que o valor da arte residia na sua duração, na sua qualidade Jul­ A moeda é a mercadoria completamente socializada, indicando a
gou-se que o ourr> e as pedras preciosas eram valores artísticos. que medida de valor comum a toda a gente...
o valor artístico t:ra uma qualidade inerente ao objecto em si. Mas A socialização constitui realmente um sistema edificado sobre a
a obra de ane ~ simplesmente a confirmação do homem como poupança absoluta. \\:jamos o objecto de uso. Conforme observámos,
essencial fonte de valor... 0 objecto de uso devém mercadoria no momento em que se torna
A revolução cllj)italista foi essencialmente uma socialização do unediatamente inútil, no instante em que o elo causal entre consumo
consumo. A industnalizaçào capitalista traz à humanidade uma socia­ e produção se vê anulado. Só um objecto de uso transformado em
lização tão profunda como a socialização proposta pelos socialistas poupança. depositado, se toma mercadoria., e isto apenas no caso em
- a dos meios de produção. A revolução socialista constitui a inteira que houver um.a quantidade de objectos de uso em depó~to. ::St:
ellecuçào da revolução capitalista. O único elemento a tirar do SIS­ sistema do armazenamento, que está na raiz da mercadona, nao e
tema capitalista é a poupança, porque a riqueza do consumo Já foi eliminado pelo socialismo, bem pelo contrário: o sistema socialista
eliminada pelos píÓprios capitalistas. Encontrar nos nossos dias um baseia-se no depósito de toda a produção sem ellcepçàO, antes de ser
capitalista cujo cai.sumo ultrapasse as mais mesquinhas exigências é distnouida, com o objectivo de assegurar um controle perfeito desta
coisa muito rara. f>. diferença entre a vida que levava um grão-senhor distribuição. .
do século XVII e ~ grande capitalista da época de Rockfcller é gro­ Até agora, mmca se analisou a acumulação - o depósllo ~u. a
tesca, acentuand~c sem cessar. poupança ­ na sua própria forma, que é a do recipiente. O depósito

58 59
faz-se em função da relação entre recipiente e conteúdo. Registámos,
(fe inicio, que a substância, anuude designada conteúdo, é simples­ Em nome do controle da economia, a burocracia econo~ inconn:o­
mente o processo; e sob a forma de conteúdo ela significa uma Jadamente (para os seus próprios fins, para a conservaçao do exis­
matcria élil depósito, uma força latente. Mas sempre a considerámos tente). Tem todos os poderes, com excepçào_do .poder de transformar
partir da sua própna forma estável. A forma dum n:cipiente, quanto . E toda a transformação se faz pnmeiramente contra
as coisas. miniela..
da
a ela, é contraria à forma do seu conteúdo; a sua função consiste em O comunismo real será o salto da comwlicaçào para o do .. º. .
impedir o conteúdo de entrar em processo, excepto em condições liberdade e dos valores. O valor artístico, contrário ao val.or u11htano
controladas e limitadas. (habitualmente chamado material), é o valor progressivo porque
-
A forma-recipiente é assim algo muito diferente da forma da constitw a valorização do própno homem. atmves dum processo de
matéria em si, em que nunca há nada que não seja a forma do coo­ provocação. . .
tieúdo; um dos termos é posto aqw em contradição absoluta com o A política económica. desde Marx, mostrou as suas impotenc1as_e
()utro. Sô no domínio biológico o recipiente devém função elementar. as suas revira\'oltas. Uma hiperpolítica deverá tender à realiz.açao
Toda a vtda biológica evoluiu, por assim dizer, opondo fonnas-reci­ directa do homem.
Jl!ientes às formas da matéria. O desenvolvimento técnico segue o AS GER JORN
mesmo caminho; e todos os sistemas de medida, de controle cien­
tifico, são relacionamentos de formas objeclivas com formas-reci­ Tc:xlo cxtnn.do do opu...wu ~- Jom intitulado Cnt•nue
·' -·'- w:; ..,. dt /'konomit polilll/llt, ccli­

ptientes. ····'
......,- na 5Crle 1 8·~ n""'""'tnJos à 1S.» (Bruxelas, Maio de 1960). recdu.'.ldo na
• · «Re.....,...,.....-·-·
J. S. n. 4, Junho de 1960.
As formas-recipientes são estabelecidas como contradição das
farmas medidas. A fonna-recipiente normaJmente esconde a forma do
CQilteúdo, possuindo assim uma terceira forma; a da aparência. Estas -~ .. . ·. ..
..:· \-..- -. ' 'i
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.. ' \ .
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k
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..

.~ ,,.. . ,,.

ires formas nunca são claramente distinguidas nas discussões sobre a #":-.. '
fonma...
O dinheiro é a medida do tempo no espaço soc1aJ. O dinheiro é
o meio de impor a mesma velocidade num dado espaço, que é o da
Instruções para um armamento
sociedade. A invenção da moeda encontra-se na base do soctalismo

«c:ientífico», estando a destruição da moeda na base da superação do

lllJeCallÍsmo socialista. A moeda é a obra de arte transformada em


Se algo há de irrisório em falarmos de revolução. é com certe~
míuneros. O comWJ.Ísmo realizado será a obra de arte transformada
porque o movimento revolucionário organizado desap_areceu ha
enn totalidade da vida quotidiana... muito tempo dos países modernos. onde prec~~e estão c.oncen­
É a burocracia que aparece, cm toda a parte onde se marufesta (no tradas as poss1·b·J
1 ·dad
1 es duma transformação dec1S1va da sociedade . .
CélJpitalismo, no refonnismo, no poder dito <•comunista»), como a Mas tudo o n!StO é muito mais irrisório amda, visto tratar-se do ~x•:
reílllização da socialização contra-revolucionária, comum, de certa tente e das di versas uc-.ormas da sua aceitação. O termo «revoluc1ona­
. .
IruDneira, aos diversos sectores rivais do mundo actual. A burocracia rio» está tão desengatilhado que até já designa, como publicidade, as
é ai forma-recipiente da ·ocie<lade: bloqueia o processo, e revolução. mínimas mudanças operadas, com ponnenor, na incessantemente
modificada produção mercantil, porque em lado nenhum se \'êem
60
61
~das as possibilidades duma dt!Seján:l transformação central. do vivido. É este também o ünico caminho para «encolerizar o
Nos nossos dias. o projecto revolucionário comparece como réu povo». fazendo aparecer o rerrivel contraste entre construções possí­
perante a História; reprovam-lhe o facto de ter falhado, de haver veis da vida e a sua preseme miséna. Sem a critica da \ida quoti­
contribuído com uma nova alienação. Verifica-se assim que a socie­ diana. a organização revolucionária não passa de um meio separado,
dade dominante oube defender-se, a todos os ..nívêis da realidade, tão convencional e tão passivo, no fim de contas, como esses aldea­
muito melhor do que pre\'iram os revolucionários. Não que ela se mentos turisticos que constituem o terreno especializado dos ócios
tenha romado mais aceitá\'el. O que acontece é que a revolução pre­ modernos. Certos sociólogos, como Henri Raymond ao estudar Pali­
cisa de ser reinventada. nuro, evidenciaram o mecanismo do espectáculo, que recria nas
Isto põe wn conjunto de problemas que deverão ser dominados teó­ férias, à laia de Jogo, as relações da sociedade global. Mas, ingenua­
rica e praticamente nos proximos anos. Podemos assmalar sumaria­ mente, estes sociólogos aplaudiram. por exemplo, a m:nultiplicidade
mente alguns aspectos. a respeito dos quais é urgente entendermo-nos. dos contactos humanos», sem reconhecerem que o mero aumento
Da tendência para um reagrupamento que hoJe se manifesta na quantitativo destes contactos faz deles coisas tão desanimadas e
Etrropa em diversas minorias do movimento operário, só podemos reter inautênticas como em todo o lado. Mesmo no mais anti-hierárquico
a coerente mais radical. que antes de mais nada se identifica com base e libertário grupo revolucionário, a comunicação entre as pessoas
no lema dos Conselhos de Trabalhadores. Convuá não esquecer que mmca fica assegurada com base no seu programa político comum. Os
certos elementos meramente confusionistas procuram situar-se nesta sociólogos são por nonna partidários dum reformismo da .,,da quo­
confrontação (ver o acordo há pouco estabelecido entre algum.as revis­ tidiana. defendendo que nesta se organize, durante o tempo de férias.
tas filosófico-sociológicas «de esquerda». de diversos palses). uma compensação. ~1.as o projecto revolucionário não pode aceitar a
A maior dificuldade dos grupos que procuram criar uma organiza­ ideia clássica do jogo limitado no espaço, no tempo e na profundi­
ção revolucionária de novo tipo consiste em estabelecerem novas dade qualitativa O jogo revolucionário. a criação da vida. opõe-se a
relações humanas no seio duma tal organização. É certo e seguro que todas as recordações dos jogos do passado. As aldeias de férias do
a sociedade exerce uma pressão omnipresente contra esta tentativa <1Club Méditerranée», para tomarem a direcção oposta ao género de
Mas se não for possível lá chegar através de métodos que pres.supõem nda que as pessoas levam durante quarenta e nove semanas de tra­
a eitperiência. não se podera sair da poUtica especializada. Na ge.5tiio balho, baseiam-se numa ideologia polinésica de trazer por casa, um
duma organização, e duma sociedade, depois, realmente novas, a pouco como a Revolução Francesa se e.'libiu com o disfarce da Roma
reivindicação duma participação de todos passa de necessidade sine republicana, ou como certos re\'olucionários dos nossos dias se vêem
qua non à conchção dum desejo abstracto e moraliz.ador. Os militan­ eles próprios e se definem em conformidade com o papel do mili­
res, mesmo deixando de ser simples executantes das decisões dos 1o111e. de estilo bolchevique ou outro. A revolução da vida quotidiana
donos do aparelho partidário, eitpõem-se ainda a ver-se reduzidos ao não poderá extrair a sua poesia do passado, mas apenas do futuro.
papel de espectadores daqueles que no seu seio são os mais qualifi­ Precisamente, na crítica da ideia marxista de extensão do tempo de
cados na política, concebida como uma especializ.açào; reconstituindo la:er, há naturalmente uma justa correcçào suscitada pela experiência
assim a relação de passividade do \'elho mundo. dos ocos lazeres do capitalismo moderno: porque é verdade que a
A participação e a criatividade das pes.soas dependem dum pro­ plena liberdade do tempo implica, antes de mais nada, a trnnsforma­
jecto colectivo que explicitamente diga respeíto a todos os aspectos çào do trabalho. bem como a apropriação deste trabalho com objec­
62 63
mir-se como a passagem da \eUi a teoria da revolução pennanente
tivos e condições em tudo diferentes do trabalho forçado até hoje
restrita a uma teoria da revolução permanente generalizada.
existente (cf. a acção dtos grupos que em França publicam Soc1alisme
ou Barbaric, em lnglatc.erra Soltdan·t} for Workers •Power. na Bélgica
/. S. n.• 6, Agi.x;to de 1961
Alternatfre). Mas a pantir daí, os que sublmham inteiramente a neces­
sidade de transformar io próprio 1rabalho, de o rac~naliz.ar, de nisso
interessarem as pessoais, correm o risco. ao descurarem a ideia do ' ~· ... - ~,

-- .......... >'· ~" . . ., . ·--·


.
- ., '"<llc ..... - • ­
conteúdo livre da vida: (dum poder criativo materialmente equipado - 4\

que se trata de desenvolver para além do clássico tempo de trabalho ~


- também ele modifocado · • bem como para além do lempo de
descanso e distracção), de na realidade darem cobertura a wna har­
monização da produção actual, promovendo um maior rendimento,
Sobre a decomposição, mais uma vez
sem que seJa posto em causa o próprio vivido da produção, a neces­
sidade desta vida, no plano mais elementar da contestação. A tio.Te
Em que pé está a produção cultural? Se confrontarmos os fen6me­
construção de todo o espaço-tempo da vida individual e uma reivin­
nos dos doze últimos meses com a análise da decomposição apresen­
dicação que se impõe defender. contra toda a espécie de sonhos de
tada desde há alguns anos pela 1.S., essa produção confmna todos os
harmonia apresentado:i pelos candidatos a gestores da próxima arru­
mação social. nossos cálculos (cf. «A ausência e os que a vestem», LS. 2 Dezembro
tle 1958). No México, o ano passado [1960], Max Aub publicou um
. Os diferentes momentos da actividade situacionista até agora rea­
grosso volume sobre a \'ida dum pintor cubista imaginário,
hzada só podem ser entendidos na perspectiva dum súbito surgimento
Campalans, chegando a demonstrar a legitimidade do 5eu5 louvores
da revolução, duma re,·olução não só cultural mas também social
cujo campo de aplicação deverá desde logo ser mais vasto do que ~
apoiado nalguns quadros, cuja importància se re\elou de imediato.
Em Mwtique em Janeiro [de 1961 ], um grupo de pmtores animado
todas as suas tentativas anteriores. Por conseguinte, a l.S. não tem
por Max Strack compõe e enfeita. ao mesmo tempo, a biografia.
discípulos ou partidários a recrutar, tem de rewtir pessoas capazes de
pintada com sentimento. e a exposição da obra completa dum jovem
se entregarem a esta tarefo nos próximos anos. por todos os meios e
pintor tachí.He prematuramente falecido - e também ele imaginário:
sem que os rótulos mtcrcssem. Quer isto dizer, nomeadamente, que
Bolus Krim. A televisão e a imprensa, incluindo quase todos os sema­
devemos recusar, tanto como as sobrevivências dos comportamentos
nários alemães, mostram-se arrebatadas por um géruo tão represent.J­
artísticos especializado as sobrevivências da política especializada;
tivo - até ser proclrunada a mistificação, que leva alguns dos iludi­
e em particular o masoquismo pós-cristão, peculiar, neste terreno, a
dos a querer processar os falsários. «Julgava jã ter visto tudo»,
tantos intelectuais. Não pretendemos desenvolver sozinhos un novo
escreve em Novembro de 1960 o critico coreográfico de Paris-Presse
programa revolucionário. O que afirmamos é que este programa em
a propósito de Ao Fim da Noite, do alemão Harry Kramer, «bailados
fo~~o contestará um dia. na pratica, a realidade dominante. e que
sem tema e bailados sem figurinos, outros sem cenários, outros tam­
participaremos dessa contestação. Seja lá o que for em que possamos
bém sem música. e até bailados desprovidos de tudo isto ao mesmo
tomar-nos individualmente, o novo mo\"imento revolucionário não se
tempo. Pois muito me enganei. Vi ontem à noite o inédito, o inespe­
fará sem ler em conta o que juntos buscámos; e que pode expri­
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rado, o imrnaginável· um bailado sem coreografia.. Digo bem: sem a cartazes especiais. cujo Unico fim consiste em serem garatujados por
mintma tentativa coreográfica, um bailado imlÕvel.» Quanlo ao vândalos. De resto, o gangue da electrónica, pelo menos desde este
Evening Sta11dard de 28 de Setembro do mesmo mio. este revela ao Veriio, apresenta em Liêge uma torre dinâmico-espacial, com a altura
mundo Jerry Brown, um pintor de Toronto que ptelende demonstrar, de 52 metros, integrada no «espectáculo Forma e Luw do habitual
graças a uma teoria e uma prática pessoais, «que não há, na realidade, Nicolas Schoeffer, que desta vez dispora de «70 tratadores de tuw
diferença nenhuma entre a arte e o lixo.» Em Paris, ·esta Primavera, para projectar frescos abstractos, a cores. num ecrã gigante de 1500
uma nova galeria baseia-se já na estética torontonógica, expondo os metros quadrados. com musica a preceito. Integrar-se-á este belo
resíduos reunidos por nove criadores «11ovo-realis:tas», determinados esforço, segundo espera o autor, «na vida da cidade>>? Só poderemos
a refazer Oadá, mas «40° acuna», os quais, apesar disso, cometeram sabê-lo quando eclodir na Bélgica o próximo movimento grevista,
o erro de respeitar a justificação por dematS legível dum sentencioso porque da última vez que os Lrabalhadores tiveram a possibilidade de
apresentador, vários graus abaixo visto nada de melhor ter topado se exprimir em Liege. a 6 de Janeiro, esta Torre Schoeffer ainda
senão pô-los «a ver o Mundo como um Quadro11>, chamando até a não e~istia, tendo os grevistas destro.Ido as instalações do jornal
sociologia «em auxilio da consciência e do acaso para nesciamente Ln Meuse.
e mais uma vez darem de caras com isto: «emoção, sentimento. e em Twguêly, mais bem inspirado, mostrou em plena acção, no Museu
suma e ainda, poesia » Ora pois! Niclci de Samt-Pb.alle vai feli71Denle de Arte Moderna de ~ova Iorque, uma máquina sabiamente apare­
mais longe. com os eus quadros-alvo pwtados à carabina. o pátio lhada para se destruir a si mesma. Mas for um amencano, Richard
do Louvre, um russo, disc1pulo de Gallizio,1 executa, em Janeiro Grosser, que deu a ultima demão, há uns anos. no protótipo duma
passado, um rolo de pinrura com 70 metros de comprimento, podendo •1máqUllla inútil>) destinada a não servir rigorosamente para nada.
ser vendido a ret.alho. Mas põe pimenta na coisa, aj udado pelas lições «Construida em alumínio, de pequeno formato, contém tubos de néon
de Mathieu. visto executar a obra em apenas 25 minutos, e com que se acendem e se apagam conforme calha.>1Grosser vendeu mais
os pes. de quinhentas, uma delas, segundo consta, a John Foster Dulles.
Anlonioni, cuja moda recente se confinna. explica em Outubro de É certo que mesmo quando têm algum humor, todos estes inven­
1960 à revista Cméma 60: «Nestes ú!Lunos anos, examinámos e estu­ tores se agitam muito, dando-se ares de quem descobriu a destruição
dámos os sentimento , tanto quanto possível, até à exaustão. foi tudo da arte, a redução de toda uma cultura à onomatopeia e ao silêncio
o que pudemos fazer (...] Não conseguimos descobrir novos senti­ como se se tratasse dum fenómeno desconhecido ou duma ideia nova
mentos, nem sequer entrever uma solução para este problema (...] que só estava à espera deles. Todos voltam a matar cadáveres que
Antes de mais nada, diria que partimos dum facto negativo: o esgo­ desenterram, num no man s Land cultural cujo além não imaginam.
tamento das técnicas e dos meios correntes.>>Andarão então em busca Nem por isso deixam de ser, mwto exactamente, os artistas actuais,
de outros meios culturais, de novas formas de participação? Desde embora sem verem como. Exprimem com justeza o nosso tempo de
Março, são afixados nos corredores do metropolitano de Nova Iorque velharias solenemente proclamadas novas; este tempo de incoerência
planificada; de isolamento e surdez assegurados pelos meios de
1
Gi1J$C11PC Pinot-Galli:z10 (falecido cm 1964), mnigo de Jom, um dos fundadm:s da comunicação de massas; dum ensmo univers1tario de formas superio­
l.S. e criador da o.qiinllml industriabl, a tndrO foi excluído an 1960, por não ltr l'õlStido res de analfabetismo, duma impostura cientificamente garantida; e
a fmr lllll'1 cancir.t pessom Wb galcrios de 111e. dum decLSivo poder técnico à disposição da debilidade mental diri­
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gente. A história incompreensh'CJ que eles lradizem incompreensi­ onde o acesso às condições de vida do capitalismo moderno. embora
\'elmente é mesmo este espectáculo planetário. tão burlesco como menos notório, tem efeitos muito rutidos ao ver-se multiplicado pelo
sangrento, em cujo programa tivemos oportuni~e de ver. num rico factor particular que constitui o novo tipo de habitat. Os bandos orga­
semestre: Kennedy lançar os seus policias para Cuba pra ver se o nizam-se a partir do terreno baldio, que é o últtmo ponto de fuga
povo annado tomava cspontaneameme o partido dçles; as di\'isões de existente no uterritóno ordenado», ponto este que podemos conside­
choque francesas mancarem para um golpe de Estado e desfazerem­ rar como a representação sumária, num estádio primitivo desmunido
-se sob a arremetida dum discurso televisivo; ~ Gaulle recorrer à de tudo, das zonas não ocupadas. designadas no nosso programa de
política do canhão para abrir um porto de África à influi!ncia euro­ urbanismo wutãrio como um desvio da ideia de «buraco positivo» em
peia; e Krutchov friamente anuncfur que daqui por mais dezanove flsica.
anos. quanto ao essencial, terá realizado o comunismo. Mais profundamente, e me.sino sem falar do fenómeno extremo dos
Todas estas velharias são solidárias; e todas estas irrisões se apre­ bandos de jovens, venfica-se o falhanço total do enquadramento da
sentam insuperáveis opondo-se-lhes um retorno a esta ou àquela juventude pela sociedade. Felizmente, o enquadramento familiar vai
forma de «seriedade11 ou de nobre harmonia do passado. Esta socie­ desabando, junta.mente com as outrora admitidas razões de viver, com
dade vai tornar-se, a todos os níveis. cada vez mais penosamente o desaparecimento do rrunimo de convenções comuns entre as pessoas
ridícula. até ao momento da sua completa reconstrução revolucio­ (e, com razões de sobra, entre as gerações), partilhando ainda as gera­
nária. ções mais velhas fragmentos de ilusões passadas e vendo-se estas
sobretudo adonnectdas pela rotina do trabalho, pelas «responsabilida­
1 S. n.- 6, Agosto de 1961 des» aceites, pelos hábitos resumidos ao hábito de não esperarem mais
nada da vida Podemos coDSJderar os actuais bandos de jovens como o
produto dum novo género de de.smembramento das familias em clima
de paz e num elevado estatuto de consumo, se os compararmos aos
bandos de crianças errantes da guerra civil ~ formados a partir da
fome e da destruição fisica dos pais. O enquadramento politico fica
reduzido a quase nada, seguindo o destino das formações políticas tra·
Defesa incondicional dicionais. Um documento sobre a Juventude, redigido este ano a pro­
pósito duma Conferência Estudantil do P.S.U.,I constata que em França
«a época em que os movimentos de jovens levavam atrás de si a massa
A crise da juventude, cm todos os países modernos, tornou-se um da JUventude está ultrapassada: há menos de l0% dos JOV~ nos
assunto de preocupação oficial que só por si levaria o mais crédulo movimentos e estes 100/o, na sua maioria, fazem parte de orgaru.zações
indiV1duo a duvidar das posstbdidades que a sociedade de consumo mais ou menos abertamente conf~onais».
tem para integrar as pessoas. No caso-limíte da constituição dos ban­ Com efeito, é obviamente no muito reduzido sector da juventude
dos de adolescentes, é fücil venficar nos mapas que estes bandos ainda submetido aos conformismos mais retrógrados (também os
correspondem à localização das «grandes torres» de habitação, sobre­
tudo em países relativamente retardatários como a França ou a ltãlia. ' Pnnulo Sociahslll Unificado, orpnà3çio esquerdisl3.
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mais coerente!>), que subsistem. para os educadores .ie toda a espécie, apartamento, em geral devoluto. da 3\Ó de um deles. Segundo expli­
as maiores possibilidades de recrutamento. Deste modo, em Ingla­ caram. estas rurprise-parties aonde vinham apenas rapazes e rapari­
terra, o ê:tito que os clubes das «Juventudes Cons:rvadaras» obtêm gas de 15 a 18 anos, eram muito despidas. Tais reuniões eram até tão
com o seu snobismo perturbou os burocratas trabáhistas, que dora­ licenciosas que oito rapazes e raparigas da região de Melun que delas
vante procuram organizar bailes. segundo o mesmo modelo, com a participavam foram inculpados por ultrage aos bons costumes. e tam­
especffica originalidade do Labour. É óbvio que as lDstes de ponta do bém por roubo e cumplicidade. Foram presos um rapaz de 15 anos e
enquadramento propriamente cultural já deram o qtr tinham a dar: a uma rapariga e um rapaz de 17 anos. Os outros cinco inculpados
época em que o aumento constante da escolaridade [e\a a maioria da ficaram em liberdade provisória.»
juventude a aceder a uma certa dose de cultura é tmbém a época em É claro que os situacionistas apoiam a recusa global do pequeno
que esta cultura já nllo acredita em si mesma; jâ não engana nem leque das condutas lícitas. A I.S. formou-se. em larga medida, a partir
interessa ninguém. duma experiência mwto avançada do vazio da vida quotidiana e da
Esta sociedade do consumo e do tempo livre é mcarada, na eXIs­ busca duma superação desse vazio. Não poderá desviar-se desta
lência real, como sociedade do tempo vazio, como conswno do vazio. linha, e é por isso que todo e qualquer êxito oficial (no sentido muito
A violência que ela gt'I'OU. e que já leva a polícia & muitas cidades amplo da palavra: qualquer êxito nos mecanismos dominantes da
none-americanas a instituir um toque de recolher pn os menores de cultura) que \enhaID a obter as suas teses ou algum dos seus mem­
18 anos. põe tão radicalmente em causa o uso da nda. que esta s6 bros devera ser encarado como extremamente suspeito. Estando todo
poderá ser reconhecidu, defendida e salva por um movimento revo­ o aparelho da informação e das sanções em poder dos nossos inimi­
lucionário que explicitamente proponha um prograaa de reivindica­ gos. a clandestinidade do víVIdo, aquilo a que nas condições actuais
ções respeitante a este uso da vida em todos os seus aspectos. se chama escândalo. s6 se torna manifesto em certos pormenores da
Vai tomar-se cada vez mais dificil dissimular a temível realidade repressão. A l.S. propõe-se lançar contra este mundo escândalos mais
da juventude por detrás das lamentáveis equipas de tclore profissio­ violentos e completos a partir da liberdade clandestina que se afirma.
nais que representam no palco da cultura a expurgaea imitação desta um pouco por toda a parte, sob o pomposo edificio social do tempo
crise, com os nomes de bcalniks, angr)' young men ou. de modo ainda morto, apesar de todas as policias do vazio climatizado. Sabemos
mais açucarado, 11011w/le vague. Aquilo que hã coisa duns dez anos qual é a sequência possível. A ordem reina e não governa.
era característico duma «vanguarda», indignando tanta boa gente. por
exemplo, em Saint Gcrmain des Prés (mas nessa alti:ra não se distin­ 1 S. n. 6, Agos10 de 196 1
guia ainda bastante da· antiga boemia artística, eram antiartistas que
se expunham a ser recuperados na cultura), vê-se agcra espalhado por
toda a parte. Le Jo11n1"/ du Dimancht de 14 de Max> toca a finados
por alma da honesta província francesa a propósito da fortuita deten­
ção. em Melun, por uma ronda polkial, de dois jovC!lS «que transpor­
tavam, noite fechada. uma mala, bastante pesada. coe várias dezenas
de garrafas de vinho fino roubadas». «Os dois larápios. com efeito,
confessaram que o vinho ia ser bebido numa grande ..superfesta" no
70
Perspectivas de modificações ccnscientes
de outro modo inteiramente abstracto) a própria conferência. como
na vida quotidiana
tantas outras disposições da utilização do tempo ou dos objectos,
disposições estas com fama de «normais», e que nem sequer se vêem:
e que. no fim de contas, nos condicionam. A propósito de semelhante
Estudar a vida quotidiana seria um empreendinent~ perfeitamente pormenor, tal como a propósito da vida quotidiana no seu c-0njunto.
ridículo, e desde logo condenado a nada discernir no seu objecto, se a modificação é sempre a condição necessária e suficiente para fazer
explicitamente não nos propuséssemos estudar esta vida quotidiana surgir experimentalmente o objecto do nosso estudo, que sem isso
com Vista a transformá-la. ­ continuaria a ser duvidoso; objecto este, quanto a ele, que mais
A conferência, a exposição de certas considerações intelectuais deverá ser modificado do que estudado.
perante um auditório, como forma extremamente banal das relações Disse portanto, agora mesmo, que a realidade dum conjunto obser­
humanas num ~ctor bastante .amplo da sociedade, integra-se, tam­ vável a que poderemos chamar «vtda quotidiana>> pode manter-se
bém ela, na crftJca da vtda quotJdiana.1 hipotética para muita gente. Com efeito, desde que este grupo de
Os sociólogos, por exemplo, têm uma evtde~te tendêncta para investigação se constituiu, a sua característica mais notória não é,
retirar da vida quotidiana, para rejeitar para esferas separadas _ ditas evidentemente, que nada tenha ameia encontrado, é, isso sim. que a
superiores - o que lhes acontece a par e passo É 'O hâbito, em todas contestação da própria existência da vida quotidiana nele se tenha
as_ suas formas, a começar pelo hábito de se man~jarem alguns con­ feito ouvir logo de início; e nele se tenha até constantemente refor­
ceu~ profissionais - produzidos pela divisão do trabalho, por con­ çado, de sessão em sessão. A maioria das intervenções que até aqui
segwnte - que assim dissimula a realidade por clietrás das con\:en­ se ouviram nesta discussão emanava de pessoas nada convencidas de
ções privilegiadas. que a vida quotidiana existe, porque cm Lado nenhum deram com ela.
É por isso desejãvel mostrar, graças a uma ligeiua deslocação das Um grupo de investigação sobre a vida quotidiana que parta de tais
fórmulas correntes, que a vida quotJdiana se encO)ntra aqw mesmo. bases é perfeitamente comparável a um grupo que se houvesse lan­
Como é ób\.10, a difusão destas palavras através ctlum gravador não çado em busca do léti1 e cuja investigação, do mesmo jeito, con·
pretende ilustrar exactamente a integração das t~cnicas nesta vida clu.ísse que o Iéti não passava duma brincadeua folclórica
q.uotid1ana ~ginal ao mundo técnico, mas sim 1aproveitar a mais Toda a gente, no entanto, reconhece que certos gestos, repetidos
simp~:S ocasia~ d~ romper com as aparências da p:,seudocolaboraçào, todos os dias, tais como abrir portas ou encher copos, são perfeita­
do diálogo artificial, que- se encontram instttwdas entre 0 conferen­ mente reais· mas estes gestos situam-se num plano tão trivial da
cista, «em pessoa. ao vivo», e os seus espectadores~. Esta hgeim rup­ realidade que a justo titulo se contesta poderem eles justificar uma
tura num dado ~onforto pode servir para levar dee imediato para o nova especialização da investigação sociológica. E bastantes sociólo­
campo do questionamento da vida quotidiana (quriestionamento este gos parecem pouco inclinados a imaginar outros aspectos da vida
quotidiana, a partir da definição proposta por Henri Lefebvre, ou seja,
1
o prt:SCnlc tc.xlD é 1 transcrição duma conferência om, ICnondo ido originalmente «aquilo que resta quando se retiram do vivtdo todas as actividades
exposto discurso gra~'ldo. num CllC<lllro que n:unia várinos :-. o
• conlicn:nc....... especializadas». Descobrimos nisto que a maior parte dos sociólogos
. . como .
s1tuac10t1JStaS recormam a cstn prática scmpll: que foram a>nvi~idados 1 participar cm
cncollll'OS, exteriores à l.S~ baseados na formalidade da conf,...a..,- .•
...""'l1C ta. 1 Ser miLico, <IO abominAvcl homem das llC\CSID•
72 73
- e bem sabemos como justamente eles se sentem à vontade nas ou se encontram muito acima na escala dos poderes humanos, como
actividades especializadas, e como em geral nutrem por elas uma se não fossem, também eles, uns pobres.
crença cega! - , que a maior parte dos sociólogos, como ia dizendo, É eVldente que as actividades especializadas existem; têm até,
reconhece em todo o lado a presença de acthidades especializadas, numa dada época, uma utilização geral que convém sempre reconhe­
não enxergando em lado nenhum a vida quotidiatlll." Para ele::., a vida cermos de forma desmistificada. A vida quol!d1ana não é tudo,
quotidiana está sempre noutro sitio. Na existência dos outros. Está embora se encontre em osmose com as actividades especializadas. a
sempre. seja como for, nas classes não-sociólogas da população. pontos, de certa maneira, de nunca ninguém estar fora da vida quo­
Houve alguém que disse aqui que os operários seriam interessantes tidiana Mas se recorrermos à imagem fácil duma representação espa­
como objecto de estudo, provavelmente como cobaias inoculadas cial das actividades, temos também de situar a vida quotidiana no
com este vírus da vida quotidiana, porque os operários. por não terem centro de tudo. É dela que partem todos os projectos, e todas as
acesso às actividadcs especializadas, ~ó têm para viver a vida quou­ realizações a ela voltam para adquirirem a sua wrdadeira significa­
chana. Esta maneira de uma pessoa se debruçar sobre o povo, em ção. A \.ida quotidiana é a medida de tudo: da realização, ou, melhor
busca dum longínquo prinutivismo do quotidiano, e sobretudo esta dizendo, da não-realização das relações humanas; da utilização do
satisfação confossada sem rodeios. este orgulho ingénuo de fazer tempo vivido; das buscas da arte; da política revolucionária.
parte duma cultura cuja estrepitosa falência e radical incapacidade de Não basta lembrar que a piedosa velha imagem científica do
compreender o mWJdo que a produz ninguém pode pensar em dissi­ observador desinteressado é sempre falaciosa. Con\.em sublinhar o
mular. são coisas que não dei'WD de ser espantosas. facto de a observação desinteressada ser aqui ainda menos possível
Há nisto a vontade manifesta de se abrigarem por detrás duma do que em qualquer outra circunst.ãncia. O que constitui a dificuldade
formação do pensamento que se baseou na separação de domínios do próprio reconhecimento de um terreno da vida quotidiana não
parcelares artificiais, com vista a rejeitarem o conceito inútil. invul­ reside apenas em ele jâ ser o lugar de encontro duma sociologia
gar e incómodo, de «vida quotidiana». Semelhante conceito cinge um empirica e dumn elaboração conceptual, reside também em ele ser
resíduo da realidade catalogada e classificada, resíduo este com que neste momento aquilo que está em Jogo em toda a renovação revo­
alguns repugnam ver-se confrontados, porque ele é ao mesmo tempo lucionária da cultura e da poUtica.
o ponto de vista da totalidade, implicando por isso a necessidade A vida quotidiana não criticada significa agora o prolongamento
duma avaliação global, duma política Dir-se-ia que certos intelec­ das formas actuais, profundamente degradadas, da cultura e da polí­
tuais se gabam assim duma participação pessoal ilusória no sector tica. formas estas cuja cnse extremamente avançada. sobretudo nos
dominante da sociedade, por terem uma ou duas espec1ahzações países mrus modernos. se traduz numa despolitização e num neo­
culturais; coisa. no entanto. que os coloca na primeira fila para per­ ·analfabetismo generalizados. Em contrapartida, a crítica radical e em
ceberem que o conjWJto desta cultura dominante está notoriamente actos duma dada Vlda quotidiana pode levar a uma superação da
roído pela traça. Seja porém qual for a avaliação que se faça da cultura e da política no sentido tradicional, ou seja, num plano supe­
coerência desta cultura, ou do seu interesse, visto em pormenor, a rior de intervenção sobre a vida.
alienação que ela impôs aos intelectuais em questão consiste em levá­ Hão-de porém retorquir-me: como pode a importância desta vida
-los a pensar, a partir do céu dos sociólogos. que eles. intelectuais. quotidiana, que a meu ver é a única real, ser tão completa e imediata­
são totalmente exteriores à vida quotidiana das populações vulgares mente depreciada por pessoas que não têm nenhum interesse dira:to
74 15
~~ ~ê-lo? E entre as quais muitas estão• .sem dúvida. longe de ser rápido crescimento dos seus poderes técnico~ e a expansão forçada
1Il11Illgas dwna qualquer renovação do movimento re\'olucionário? do seu mercado. A História - ou seja, a transformação do real - não
Penso que é porque a vida quotidiana se encontra organizada e actualmente utilizável na vida quotidiana porque o homem da \ida
adentro de limites duma pobreza escandalosa. E sobretudo porque quotidiana é o produto duma história que ele não controla. É ele.
esta pobreza da vida quotidiana nada tem de acidental, tratand<rse, obviamente, que faz esta história; m.as não a Faz lhTemente.
como se.trata, _duma pobreza imposta a todo o mom~o pela sujeição A sociedade moderna contém fragmentos especializados. mais ou
e pel~ VIolên~ra ~uma sociedade dividida em classes; duma pobreza menos mtransmissiveis; e sendo assim. esta vida quotidiana onde
orgaruzada h1stoncamente segundo as necessidades da história da todas as questões podem pôr-se de modo unitário, constitui natural­
exploração. mente o domínio da ignorância.
.?uso da vtda quotidiana, no sentido de um consumo do tempo Esta sociedade, através da sua produção industriill, tirou todo o
VIVJd~, é comandado pelo reino da raridade: randade do tempo hvre sentido aos gestos do trabalho E nenhum modelo de comportamento
e randade das utilizações passiveis deste tempo livre. humano conservou no quotidiano uma verdadeira actualidade.
. ~ª. mesma maneira que a história acelerada da nossa época é a Esta sociedade tende a atomiz.ar as pessoas como consumidores
~stona da acumulação e da industriaJízaçào, o atraso da vida quoti­ isolados. tende a interditar a comunicaç-:io. A vida quotidiana é assim
diana, a sua tendência para o imobilismo. resultam das leis e dos vida privada. domínio da separação e do espcctáculo.
interesses que guiaram esta industrialização. A vida quotidiana mostra De r:naoeira que a \ida quotidiana constitui também a esfera da
de facto. até agora, uma resistência ao histórico. Isto sentencia antes demissão dos especialistas. E nesta esfera. por exemplo, que um dos
de mais nada o histórico, como herança e projecto duma sociedade raros indivíduos capazes de compreender a mais recente imagem
de exploração. cientifica do universo se pode tomar estúpido, pondo-se a avaliar
A pobreza extrema da organização consciente, da criatividade das longamente as teorias artísticas de Alain Robbc-Grillet ou a enviar
pessoas na vida quotidiana, traduz a necessidade fundamental da petições ao Presidente da República com o propósito de influenciar
mc~nsciência e .da mistificação numa sociedade exploradora, numa a sua pol!tica. É a esfcra do desarmamento, da confissão da incapa­
sociedade da alienação. cidade de viver.
Henri Lefebvre aplicou aqw uma extensão da ideia de desenvol­ Não se pode, portanto, caracterizar apenas o subdesenvolvimento
vimento desigual para caractemar a vida quotidiana, deslocada mas da vida quotidiana com base na sua relativa mcapacidade para inte·
não separada da historicidade, referind<ra como um sector atrasado. grar técnicas. Esta característica é um produto importante., mas ainda
Julgo não ser exc~ivo ,ualificarmos este nível da vida quotidiana parcial do conjunto da alienação quotidiana. que poderá ser definida
como sector c:otoruzado. A escala da economia mundial vimos que 0 como a incapacidade de inventar uma técnica de libertação do quo­
subdesenvolVImento e a colonização são factores em interacção. tidiano.
Tudo leva a crer que o mesmo acontece à escala da formação econó­ E, de facto, muitas técnicas modificam mais ou menos claramente
mico-sociaJ, da práxis. certos aspectos da vida quotidiana: os electrodomésticos, como se
A vida quotidjana, mistificada por todos os meios e controlada de disse aqui. mas também o telefone, a televisão, a gr.ivação de música
modo polic~al, é uma espécie de reserva para os bons selvagens que em discos, as viagens aêreas popularizadas, etc. Estes elementos
fazem funcionar, sem a compreender, a sociedade moderna, com 0 inter..-êm caotica.mente, ao acaso. sem que alguém haja previsto as

76 77
respectivas conexões e consequências. Mas é óbvio que, no seu con­ Tudo deP:ende efectivamente do nível em que ousarmo~ pôr o
junlo. este movimento de introdução das téaiicas na \ida quotidiana. seguinte prol,Jerna: como é que as pessoas vi.. em? Como se Sc.."Illcm
sendo afinal enquadrado pela racionalidade do capitalismo moderno satisfeitas? E insalisfeitas? E isto sem nos deixarmos intimidar um só
burocratizado. evolui no sentido duma redução da independência e da instante pe~ diversas publicidades que visam persuadir-nos que se
criatividade das pessoas. É o caso das novas cidades dos nossos dias pode ser ícfut por causa da existência de Deus. do dentífrico Colgate
'
que mostram claramente a tendência totalitária da organização da ou do C.N.R.s.'
\ida pelo capitalismo moderno: os indivíduos i~ol~do.s (em geral iso­ Parece-me que esta e.."tpressàO, «critica da vida quotidiana», pode­
lados no contexto da célula familiar) vêem neste tipo de cidade a sua ria e deveria ampliar-se também com esta inversão: a critica que a
vida ser reduzida à pura trivialidade dQ repetitivo, associada à absor­ vida quotid1~na exerceria, soberanamente, sobre tudo aquilo que lhe
ção obrigatória dum espectáculo igualmente repetitivo. é inutilmenu; exterior.
É pois de crer que a censura que as pessoas exercem sobre a A questão. da utilização dos meios técnicos, na vida quotidiana e
questão da sua própria vida quotidiana se explica pela consciência da no resto, é simplesmente uma questão poütica (e entre todos os meios
sua insustentável miséria, e ao mesmo tempo pela sensação, talvez técnicos destobertos, os obtidos são na verdade seleccionados em
inconfessada mas inevitavelmente sentida mais cedo ou mais tarde conformidadl. com os obJectivos da continuidade da dominação duma
de que todas as verdadeiras possibilidades, todos os desejos qu; classe). Qu.ax\do se encara a hipótese de um futuro. tal como é admi­
foram unpedidos pelo funcionamento da vida social, residiam nisso e tido pela literatura de ficção científica, em que as aventuras interes­
não em actividades ou distracções especializadas. Quer isto dizer que telares coexi\tiriam com uma vida quotidiana conservada nesta terra
o conhecimento da nqueza profunda, da energia perdida na vida na mesma Íl\digência material e no mesmo moralismo arcaico, isto
quotidiana, é inseparável do conhecimento do miséria da organização quer dizer, ~actamente. que haveria ainda uma classe de dirigentes
dominante desta vida; ó a existência perccptivel desta riqueza especiafu.ad% que continuaria a ter ao seu serviço as multidões pro­
inexplorada nos leva a definir por contraste a vida quotidiana como letárias das f;ibricas e dos escritórios; e que as aventuras interestela­
miséria e como prisão; levando-nos logo a eguir, nesse mesmo res seriam 1'mamcnte a empresa escolhida por estes dirigentes, a
impulso, a negar [revolucionariamente] o problema. maneira que teriam encontrado de desenvolverem a sua economia
Nestas condições, dissimularmo-nos a questão politica posta pela irracional. o cúmulo da actividade especializada.
miséria da vida quotidiana é o mesmo que dissimularmo-nos a pro­ PergunlÍUI\o-nos: <<A vida privada está privada de quê?» Da vida,
fundidade das rcivindicaçõe relativas à riqueza possi\'el desta "i~ muito simplesmente, que nela se vê cruelmente ausente. As pessoas,
reivindicações estas que deverão conduzir a um reinventar da revo­ tanto quanto possível, estão também privadas de comunicação; e da
lução. Dever-se-á compreender que islo de uma pessoa se esquivar à realização de si mesmas. Convina dizer: privadas de fazerem a sua
polit.Jca não é. a este nível, de modo nenhum contraditório com o própria hist6fia, pessoalmente. As hipóteses para se responde: po~­
facto de ser militante do Partido Socialista Unificado, por exemplo, li\'amente a ~ questão sobre a naturez.a da privação só poderão pois
ou de ler com confiança o jornal L'Humanité.'
1 Centre NJ\ onal de 111 Rcchcrchc Sc1cnrifiquc, ins1ítuição •de prcstlgioit onde
1
1
Órgão centrnl do P.C.F. Após 1968, popularizou-se em frança, wb a f<l'llla do decorre o encontro e onde tmbalham O!o rc:.1:1111.0 participmtes. O C.N R.S. cnado cm
dcs"io, • seguinte divisa: •Para fic:ar a cheirar mal da boca, lci:i o Humanité.11 1939, é uma in ituição nacional com autooomia fwanccira e ob tutela mínistenal

78 79
enunciar-se como projectos de cnriquecimentios; projecto de wn outro
estilo de vida; e quanto a isto de wn estilo._ Caso se considere que antes de se terem dominado racionalmente, na vida quotidiana e no
a vida quotidiana se encontra na fronteira dio sector dominado e do resto, as novas forças industriais que cada vez mais nos escapam. são
sector não donúnado da vida. sendo portamto o lugar do aleatório, factos que produzem não só a insatisfação quase oficial da nossa
dever-se-á conseguir substituir ao presente IDUetO uma fronteira sem­ cpoca. insatisfação esta particulannente intensa no seio da juventude.
pre em movimento; trabalhar em pennanênc·ia.em prol da organiza­ mas também o movimento de autonegaçào da arte. A actividade artís­
ção de no\115 oportunidades. tica fora sempre a única a dar conta dos problemas clandestinos da
A questão da intensidade do livido põe...se agora, por exemplo vida quotidiana. embora de maneira velada. deformada e parcial­
com a utilização dos estupefacientes, nos ternnos em que a sociedade mente ilusória. Temos agora perante os nossos olhos o testemunho
da alienação é capaz de pôr qualquer questião, ou seja. como falso duma destrwçào de toda a expressão artistica, e este testemunho é a
reconhecimeuto dum projecto falsificado, ccomo fixação e apego. arte moderna
Convém notar também a que ponto a imageim do amor elaborada e Se considerarmos em toda n sua extensão a crise da sociedade
difundida nesta sock-dade se aparenta à droma A paixão é nela de contemporânea, não creio que seja possfvel continuar a encarar os
imediato reconhecida como recusa de todas ai.s outras pai~ões; e além ócios como uma superação do quotidiano. Admitiu-se aqui que é
disso vê-se impedida, acabando por só se proder encontrar nas com­ preciso «estudar o tempo perdido». Mas vejamos então o mo\imento
pensações do espectáculo reinante. Escrev·eu La Rocbefoucauld: recente desta ideia de tempo perdido. Para o capitalismo clássico, o
«0 que nos impede, com frequência, dt nos a:ntregarmos a um único tempo perdido é aquele que é exterior à produção. à acumulação. à
vício, é o facto de possuirmos vários.>, Aqui temos nós uma consta­ poupança. A moral laica. ensinada nas escolas da burguesia, implan­
tação muito positiva. se a pusermos de pé, rc.ejeitando as conjecturas tou esta regra de vida. Mas acontece que o capitalismo moderno,
moralistas, como base dwn programa de reallização das capacidades graças a uma manha inesperada, tem necessidade de aumentar o
humanas. consumo. de ccelevar o nível de vida» (se quisermos fazer o favor de
Todos estes problemas estão na ordem do cdia porque, \'Ísivelmen­ ter em conta que esta expressão não tem rigorosamente sentido
te, o nosso tempo está dominado pelo aparrecimento do projecto, nenhum). Como ao mesmo tempo as condições da produção. parce­
exprimido pela classe operária, de abolir toda1 a sociedade de classes larizada e minutada ao extremo, se tornaram perfeitamente indeten­
e de começar a história humana; e dominadfo, por isso, corolaria­ sáveis, a moral, que jé se exprime na publicidade, na propaganda e
mentc, pela resistência encarniçada a este pnojccto, pelos deS\'los e em todas as formas do cspectácuJo dominante, admite francamente,
reveses com que 1..>ste projecto tem deparado até agora. pelo contrário, que o tempo perdido é o do trabalho, jé só justdicado
A crise actual da vida quotidiana insere\ e- se nas novas formas da pelos di\'ersos graus do salário, o qual permite adquirir ~i.:anso,
crise do capitalismo, formas estas que continuaam a ser imperceptíveis consumo. ócios - ou seja. uma passividade quotidiana fabricada e
para os que se obstinam a calcular o clássico RJrazo fixo das próximas conuolada pelo capitalismo.
crises cíclicas da economia Se encararmos agora o carácter artificial das necessidades do con­
O desaparecimento, no capitalismo desenvoblvido, de todos os anti­ sumo que a indústria moderna cria a panir do zero e estimula sem
gos valores, de todas as referências da antiiga comunicação, e e cessar - se reconhecermos o vazio dos ócios e a impossibilidade do
impossibilidade de os substituir por outros, scejam eles quais forem. descanso - , podemos pôr a questão de maneiro mais realista: o qu.e
ê que não será tempo perdido? Por outras pala\Tas: o desen\'oh.1 ­
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8I
mento duma sociedade da abundância deverá rematar na abwtdâucia vada contém os factores da sua negação e da sua superação, tal como
de que? a acção colectiva revolucionária pôde alimentar os factores da sua
Em muitos aspectos, isto pode evidentemente servir como refe­ degenerescência), cometeríamos um erro fazendo o balanço duma
rência. Quando, por exemplo, num dos jornais onde se escancara a alienação dos indivíduos na polltica revolucionária, quando _de facto
inconsistência do pensamento dessas pessoas chamadas intelectuais se trata"ª da alienação da própria política revolucionâria. E conve­
de esquerda - refiro-me ao France-Obsen·at;ur - lemos um niente dialectizar-se o problema da alienação, assinalar as possibili­
titulo a anunciar qualquer coisa como «o automóvel lança-se ao dades de alienação sempre a renascer na própria luta contra a aliena­
ataque do socialismo», por cima .dum artigo explicando que os ção; mas sublinhemos, nesse caso, que tudo isto deve aplicar-se ao
russos acorrem individualmente, hoje em dia, a um consumo pri­ nível mais elevado da investigação (por exemplo, à filosofia da alie­
vado dos bens ã maneira americana e naturalmente começam pelos nação no seu conjunto), e não ao nível do staluiismo, cuja explicação
carros, não podemos impedir-nos de pensar que não era sequer é desgraçadamente mais grosseira.
indispensável ter as imitado, depois da de Hegel, toda a obra de A civilização capitalista ainda não foi ultrapassada em lado
Marx para descobrir pelo menos isto: que um socialismo que recua nenhum, mas contmua, em toda a parte, ela própria a produzir os seus
diante da invasão do mercado por automóveis não é em nada o inimigos O movimento revolucionârio, radicalizado pelos ensina­
socialismo por que lutou o movimento operário. De fonna que não mentos das anteriores derrotas e cujo programa reivindicahvo deverá
é numa qualquer preeminência da sua láctica. ou do seu dogma­ enriquecer-se em conformidade com os poderes práticos da sociedade
tismo, que devemos opor-nos aos dirigentes burocrabcos da Rússia, moderna, poderes estes que desde jã constituem virtualmente a base
mas na base, no facto de a vida das pessoas não ter realmente material que faltava às correntes ditas utópicas do socialismo - na
mudado de sentido. E isto não sigrúlica a fatalidade obscura da \'ida sua próxima ascensão, na próxima tentativa de contestação total do
quotidiana, destinada a manter-se reaccionária. É uma fatalidade capitalismo, saberá inventar e propor um outro emprego da vida
imposta exterionncnte à \ida quotidiana. em todos os seus aspectos, quoudiana, apoiando-se de imediato em novas praticas quotidianas,
pela esfera reaccionária dos dirigentes especialiutdos, seja qual for em novos tipos de relações humanas (deixando de ignorar que qual­
o rótulo com que planifiquem a miséria. quer conservação. no interior do movimento revolucionário, das rela­
Assim sendo, a despolitiz.ação actual de muitos ex-militantes de ções que dominam na sociedade existente, reconstitui insensivel­
esquerda, o seu afastamento duma certa alienação para se meterem mente, com diversas variantes. esta mesma sociedade).
noutra. a da vida privada. não tem propriamente o sentido dum Da mesma maneira que outrora a burguesia. na sua rase ascen­
regresso à privatização como refúgio contra as <ffesponsabilidades da dente teve de levar a cabo uma liquidação impiedosa de tudo o que
historicidade>>. mas antes o dum afastamento do sector político espe­ excedia a vida terrena {o Céu, a eternidade), o proletariado revolucio­
cializado, e por isso sempre manipulado por oull'Os: onde a única nãrio - que nunca poderá. sem deixar de existir como tal. identifi­
responsabilidade verdadeiramente assumida foi a de deixarem todas car-se com um passado ou com modelos - deverá largar tudo o que
as responsabilidades entregues a chefes incontrolados; onde o pro­ exceda a vida quotidiana. Ou antes. que pretende excedê-la: .º. cspee­
jecto comunista foi defraudado e iludido. Da mesma maneira que não táculo, o gesto ou a palavra «históricos», a «grandew> dos dirigentes,
podemos opor cm bloco a vida privada a uma vida pública, sem o mistério das especializações, a «imortalidade)> da arte e a sua
perguntar. que vida pmada? que vida pública? (porque a vida pri­ imponânc1a exterior à vida. Isto é, devera renunciar a todos os
82 83
subproduto da eternidade que sobrevheram como armas do mundo gências, sendo o outro termo da alternativa uma acentuação da escra­
dos dirigentes. vatura moderna Esu transformaçào hã-de assinalar o fim de toda a
A_ ~~lução na \ida quotidiana. desfazendo a sua actual oposição expressão artística unilateral, armazenada sob a forma de mercadoria
e, ao mesmo tempo, o fim de toda a política especializada. '
ao histonco (e a toda a ~pécie de mudança) criará tais condições que
o prese11tt. nelas dominará o passado e a porçã~ da criatividade Vai ser esta a tarefa duma organização revolucionária de novo
le\'B.r!Í sempre a melhor sobre a porção repetitiva. A feição da vida l!po. mal se constitua
quotidiana exprimida pelos conceitos da ambiguidade - equívoco, 0.-E. DEBORD
compromisso ou abuso - deverá assún perder muita importância. em
proveito dos seus contrários: a opção consciente ou a aposta. Tcxio transmitido em l?~ilÇiio, 11 17 de Maio de 1961, nu Grupo de lnvcsugação
O actuaJ questionamcnlo artístico da linguagem, contemporâneo
some a Vida QuoUdÍ3111, organiznd1> por Henn Lcfcb\.11: no Couro de &tudcx Suc:1oló­
gicos do C N.R.S. Rcproduzidll na IS. n• 6. Agosto di: 1961.
~esta metalíngua das máquinas que não passa da linguagem burocra­
llzada da burocracia no poder, será deste modo ultrapassado por for­
mas superiores de comunicação. A actuaJ noção de texto social dcci­
fuhel deverá chegar a no\ o~ processos de escrita deste texto social,
apontando para o que buscam hoje em dia os meus camaradas situa­
ci~tas com o urbanismo unitário e o esboço dum comportamento
e.'tpenmental. A produção central dum trabalho industrial inteira­
mente recomertJdo suscitará novas configurações da vicia quotidiana, Geopolftica da hibernação
uma livre criação de acontecimentos.
A crítica e a ~rpétua recriação da totalidade da vida quotidiana,
antes de serem fenas naturalmente por todos os homens, devem ser O <'equilíbrio do terrom entre dois grupos de Estados rivais, sendo
empreendidas nas condições da prc ente opressão. com \isla a arru­ o matS visível dos dados essenciais da política mundial neste
inar estas condições. momento, significa também o equilíbrio da resignação: para cada um
• Não é ~ ~~vimento cultural de vanguarda, mesmo com simpa­ dos antagonistas. resignação quanto à permanência do outro; e no
tias revoluc1onanas, que pode le\'ar a cabo tais coisas. Tão-pouco 0 interior das suas fronteiras, resignação das pessoas a um destino que
poderã fazer um partido rerolucionário de modelo tradicional lhes escapa tão completamente que a própria existência do planeta
mesmo que atribua grande importância à critica da cultura {enlen~ não é mais do que uma vantagem aleatória, suspensa à prudência e
d~do neste tei:"'o o conjunto dos instrumentos artísticos ou concep­ à habilidade de impenetráveis estrategos. Isso implica, decidida­
tuais pelos quais uma socieillide se explica a si mesma e a si mesma mente, uma resignação generalizada ao existente, aos poderes coexis­
apresenta objectivos de \;da). Esta cultura. tal como esta política, tentes dos especialistas organizadores deste destino. Estes vêem uma
estão gastas; é com razão que a maior parte das pessoas se desinte­ vantagem suplementar num tal equilíbrio, na medida em que permite
ressa ~ ambas. A transfonnaçào revolucionãria da vida quotidiana, a liquidação rápida de qualquer experiência original de emancipação
que nao fica reservada para um vago futuro, surge-nos de imediato que sobrevenha a margem dos seus sistemns, e desde logo no actual
com o desenvolvimento do capitalismo e as suas insuportáveis exi­ movimento dos países subdesenvolvidos. Foi através da mesma

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engrenagem de neutralização duma ameaça pela outra - seja qual projecto indissolúvel consiste em impedir a \Ída das pessoas. organi­
for o protector que vença - que o impulso revolucionário do Congo zando, do mesmo passo. a sua sobrevivência (cf. a oposição dos
se viu esmagado com o emio do corpo expedicionário das Nações conceítos de vida e sobrevivência descritos por Vaneigem nas Bana­
Unidas (dois dias após o desembarque, no início de Julho de 1960, as lidades de Base). De fonna que o Doomsdm System, pelo desprezo
tropas do Gana, que chegaram primeiro, serviram para destroçar a que mostra por uma sobre\'ivência que continua a ser a condição
greve dos transportes em LeopoldviUe) e o de Cuba com a fonnação indispensável da exploração presente e futura do trabalho humano, só
dum partido único (em Março de 1962, o general Lister, cujo papel pode ter o papel de ultima ratio das burocracias reinantes; só pode.
na repressão da revolução espanhola é conhecido, acaba de ser paradoxalmente, ser o garante da seriedade destas burocracias. Em
nomeado chefe de Estado-Maior ad]unto do exército cubano}. geral, porém, o espectáculo da guerra futura. para ser plenamente
Os dois campos não preparam efecbvamente a guerra, mas sim a eficaz, tem desde já de modelar o estado de paz que conhecemos,
conservação ilimitada desie equilíbrio, correspondente à estab1ltzação servir as suas exigências fundamenta.JS.
interna do seu poder. É óbvio que isso deverá mobilizar recursos A este respeito, o desenvolvimento extraordinário dos abrigos
gigantescos, \isto ser imperativo erguerem-se cada vez mais alto no antiatómicos em 1961 constitui certamente a viragem decisiva da
espectáculo da guerra possfvel. Deste modo, Barry Commoner, pre­ guerra fria. um saJto qualitativo cuja imensa imponàneta se verá mais
sidente do comité cientifico encarregado pelo governo dos Estados tarde no processo de formação duma sociedade totalitária
Unidos de avaliar as destruições previstas por uma guerra termonu­ cibemetizada à escala planetária. Este movimento começou nos Esta­
clear, anuncia que após uma hora desta guerra 80 milhões de norte­ dos Urudos, onde Kennedy, em Janeiro passado, na sua «Mensagem
-americanos seriam mortos. e que os outros não teriam esperança sobre o Estado da União», já se via em condições de garanltr ao
nenhuma de viver em condições normais na sequência disso. Os esta­ Congresso: c<O primeiro programa sério de abrigos da defesa civil
dos-maiores que, no~ seus preparativos, já só calculam agora em está a ser e~ecutado, com a identificação, a marcação das posições
megabody (representando esta umdade um milhão de cadáveres),
admitiram a presunção de manter os seus cálculos para aJém do
primeiro meio dia, faltando por completo a informação relativa à
experiência da planificação ulterior. Segundo Nicolas Vichney no
Le Monde de 5-1-62, uma tendencia vanguardista da doutrina de
defesa none-amencana já começou a considerar que «o melhor pro­
cesso de dissuasão residiria na posse duma enorme bomba termonu­
clear enterrada no solo. O adversário atacaria, faziamo-la explodir e
a Terra sena deslocada».
Os teóricos deste «sistema do Juízo Final» (Doomsday System)
descobriram por certo a arma absoluta da submissão; pela primeira
Publiodade
vez traduziram em poderes técnicos precisos a rejeição da História.
a abrigos
Mas a lógica rigorosa destes doutrinános só corresponde a um
antiatómicos
aspecto da n~idade contraditória da sociedade da alienação, cujo nos E.UA
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exactas e a reserva de cinquenta milhões de sítios; solicito ü vossa Considerava-se em geral, no~ Estados Unidos desde 1955. que Ulll:l
aprovação do apoio dado pelas autoridades foderais à construção de saturação relativa da procura de ubcns duráveís>> le\'ava à insuficiência
abrigos antiatómicos nas escolas, nos hospitais e instalações seml!­ do estimulo que o consumo de~e fornecer à eitpansão económica.
lhanres.» Esta organização estatal da sobre,·ivência propagou-se rapi­ Podemos certamente compreender assim a \ oga dos ac~rios de toda
damente. mais ou menos em segredo, aos outros países imponantes a 1::1-pécie, que represcnbm uma excrc cência muito maJeá, el do 51.'cior
dos dois campos. AAlemanha Federal, por exemplo,.começou por se dos bens semiduráveis. Mas a importância do abrigo surge plenamente
preocupar com a sobre,ivência do chanceler Adenauer e da sua nesta perspectiva do relançamento necess:irio da expansão. Com a
~uipa. levando a divulgação das realizações feitas neste domínio ao implantação dos abrigos e os seus previsíveis prolongamentos, tudo.
sequestro da re\ista Quick, de Muniq~e. A Suécia e a Suiça encon­ debaixo de terra. se apresenta para ser feito de novo. As possibilidades
tram-se no estádio da instalação de abrigos colectívos escavados nas de equipamento do habitat deverão ser reconsideradas: e agora a
montanhas, onde os operários, ml!tidos debaixo da terra com as suas dobrar. Trata-se, efechvamente, da instalação de um 110~·0 produto
fábricas, poderão continuar a produzir sem descanso até à apoteose tlunht!l, numa nova dimensão. Estes investimentos subterràneos, em
do Doomsclay S;s1em. Mas a base da política de defesa civil está nos estratos até agora deLudos em pousio pela sociedade da abundância,
Estados Unido , onde um grande número de florescentes empresas, introduzem eles próprios um rel:inçamento económico no re5p1..--itante
tais como a Peace O'Mind Shelter Company, oo T~ a American aos bens semidurávcis já utilizados à superficie. tais como o incremento
SurvivaJ Products Corporal!on, no Marylancl a Fox Hole Sheller lnc., repentino das conservas alimentares, visto cada abrigo nec~itar dum
na Califórnia. ou a Bee Safe Manufacturing Compan}~ no Ohio. as e­ armazenamento com a máxima abundãncia; ou os novos acessórios
guram a publicidade e a mstalaçào dum sem-número de abrigos indi­ específicos. tais como os sacos em matéria plástica para conterem os
viduais ou seja, edificados como propriedade privada para a nova corpos das pessoas que deverão morrer no abrigo. permanecendo ali.
organização da obrevivência de cada familia. É sabido que está a naturalmente, com os sobre\.ivcntes.
desenvolver-se à volta desta moda uma nova interpretação da moral É sem dlhida fácil apercebermo-nos de que estes abrigos indivi­
religiosa, opinando certos eclesiãsticos que o dever consistirá clara­ duais já espalhados por toda a parte nunca são eficazes - devido a
mente em recusar o acesso de tais abrigos aos amigos ou aos des­ negligências técnicas tão grosseiras como, por exemplo, a falta de
conhecidos. mesmo dcYendo isso ser feíto à mão armada. com \'Ísta autonomia no aprovisionamento de oxigénio; e que os mais aperfei­
a garantir a salvação exclusiva da familia em questão. Na realidade. çoados abrigos colectivos apenas teriam uma margem muito reduzida
a moral devia aqui adaptar-se para ajudar a levar à sua perfeição este de sobrevivência caso a guerra termonuclear fosse de facto desenca­
terrorismo da conformidade, subjacente cm toda a publicidade do deada. Mas. como em todas as chantagens, a protecçào não passa
capitalismo moderno. Jâ era dificilmente sustentável, perante a famI­ aqw de um pretexto. A verdadeira utilização dos abrigos reside na
lia e os \izinhos, uma pessoa não ter detenninado modelo de automó­ avaliação - e ao mesmo tempo no reforço - da docilidade das
vel que determinado nível de salário permite adquirir a prestações pessoas; e na manipulação desta docilidade num sentido favorivel à
(reconhecível nas urbanizações de tipo norte-americano, visto a loca­ sociedade dominante Os abrigos, como criação de um novo género
lização do habitar se fazer justamente em função deste nível salarial). consumível na sociedade da abundância, provam, mais do que qual­
E menos fácil hã-de ser que cada qual não garanta aos seus familiares quer outro dos produtos precedentes, que é possível ~r-s~ os home~s
o estaluto de sobm·ill:"ncia at1.'SShel na conjuntura do mercado. a trabalhar para suprirem necessidades altaml."tlle artificais; as qurus,
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'9
com toda a certeza. «se mantêm necessidades sem nunca terem sido qualquer crítica humana sobre o meio ambiente cccom o simples argu­
desejos» (cf. Preliminares de 20 de JulhJ de 1960)1 nem correrem 0 mento de cada qual precisar dum teclo».
risco de alguma vez o serem. A força desta sociedade, o seu temível O novo habitat que vai adquirindo forma nas novas urbanizações
génio automático, pode avaliar-se neste caso extremo: se um belo dia citadinas não está realmente separado da arquitectura dos abrigos;
ela brutalmente declarasse impor uma existência de tal modo vazia e nesta apenas representa um grau inferior. E embora a sua aliança seja
desesperadora que a melhor solução sena as pessoas enforcarem-se. restrita e a passagem de um à outra se preveja sem solução de con­
ainda assim conseguiria abrir um negócio salutãi ê rendível com base tinuidade, o primeiro exemplo em França é um bloco de prédios
na produção de cordas uniformizadas. Mas em toda a sua riqueza construido em Nice cujo subsolo está já adaptado às funções de
capitalista o conceito de sobrevivência significa um suicídio difen'do abrigo antiatómico destinado à multidão dos moradores. A o~­
ate ao esgotamento, uma renúncia à vicb executada todos os dias. ção concentracionária da superficie é o estado normal duma socie­
A rede dos abrigos - que não se destinam a servir na guerra, mas dade em formação cujo resumo subterràneo representa o excesso
sim de imediato - esboça a imagem. ainda indignada e caricatural, patológico. Esta doença revela melhor o esquema desta saúde.
da existência efectiva num capitalismo burocrático levado à perfei­ o urbanismo do desespero, à superflcie, está cm vias de se tornar
ção. Um neocristiarusmo vem rusto substituir o seu ideal de renúncia. rapidamente dominante, não só nos centros de povoamento dos Esta­
uma nova humildade conciliável com o novo impulso da economia. dos Unidos mas também nos de países muito mais atrasados da
O mundo dos abrigos a si mesmo se reconhece como um i"a/c de Europa ou até, por exemplo, na Argélia do período neocolonialista
lágrimas de ar condicionado. A coligação de todos os gestores e de proclamado a seguir ao «Plano de Coostantina>1. Em finais de 1961,
todos os seus sacerdotes de variadas espécies poderá concordar com a primeira versão do plano nacional de reordenamento do território
base numa palavra de ordem unitária: o poder da catalepsia mais o fumcl!S - cuja formulação foi depois atenuada - lamentava. no
sobreconsumo. capítulo sobre a região parisiense. a @bsunação em morar no interior
A sobrevhêncta enquanto oposto da vida, sendo embora tão rara­ da capital duma população inactiva», ao mesmo tempo que os ~s
mente plesbicitada de modo tão claro como pelos compradores de redactores, especialistas encartados da felicidade e do possível, assi­
abrigos de 1961, verifica-se em lodos os aspectos da luta contra nalavam que esta dita população <<poderia mais agradavelm~nt_e
a alienação; na antiga concepção da arte, que sobretudo sublmhava a alojar-se fora de Paris». Pediam assim, por co~le, q~e s~ elimi­
sobrevivência graças à obra. como confissão de renúncia à vida. nasse esta penosa uracionalidade, legafuando «a dissuasao ~temá­
como desculpa e consolação (sobretudo desde a época burguesa da tica quanto à permanência destas pessoas inactivas» ~ Pan_s.
estética, substituto laico do além religioso). E outro tanto no estádio Tendo em conta que a única actividade válida conslSte obviamente
mais irredutível da necessidade, nos apertos da sobrevivêncta alimen­ na dissuasão sistemállca dos cálculos dos gestores que fazem funcio­
tar ou do habitat, com a ccchantagem à utilidade» que o Programa nar semelhante sociedade, até à sua completa eliminação, e que eles
Elementar do urbanismo unitário denuncia (/. S o. 0 6), eliminando pensam msso muito mais constantemente do que a multidão anes~e­
siada dos executantes, os planillcadores estabelecem as suas própn~
1
Alusão BO texto de G. Dcbord e P. Outjucrs, Prtlim11111JFt:S pour Wlt difiniliDn de
defesas em todos os reordenamentos modernos do território. A plaru­
l 'untté clu programme révol1111onna1re. Pari~ 1960, IClllaliva duma plamforma comum ficação dos abrigos para a população, sob a forma ?~ai de um. tec~o
entre a LS e o colcctiYO da revista Sodal.tsme ou &riarie. ou sob a forma «da abwidância» dum túmulo familiar para habitaçao
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pre\.entha, na realidade tem de servir para abrigar o poder dos por um ttiz não deu c.abo dos estuques ainda frescos da capital ~~
planificadores. Os dirigentes que controlam a máxima conservação e crática; a qual, ao m~mo tempo, como se sabe, representa a v1tana
isolamento dos .eus súbditos sabem deste modo entrincheirar-se eles exemplar da arquitectum funcional. . .
próprios com objectivos estratégicos Os Haussmann do século xx já Estando as coisas rusto. vemos muitos especialistas começarem a
não precisam de utilizar as suas forças de repressão com base num denunciar um grande número de absurdezas inq~et~tes. Mas é p~r
enquadramento militar das an11gas aglomerações urllanas. Ao mesmo não terem percebido a racionalidade central (rac1onahdad~ .dum deh­
tempo que dispersam a população, num vasto raio de acção, graças rio coerente) que determina estes aparentes absurdos parciais, para os
a novas urbanizações que constituem este enquadramento em estado quais as suas própnas acllv1dades forçosamente contn'buem. A sua
puro (onde a inferioridade das massas desarmadas e privadas de denúncia do absurdo só pode pois ser absurda nas formas que reveste
meios de comwiicaçào e \ê claramente agravada perante as forças e nos meios de que se dota. Que pensar, por exemplo, dos nov':entos
cada vez mais técnicas das policias), edificam capitais fora de professores de todas as universidades e institutos de mvesugaçao das
alcance onde a burocracia dirigente, para maior segurança, poderá regiões de Nova lorque e Boston que solenemente se ctingrram, a 30
constituir a totalidade da população. de Dezembro de 1961, no ~e1~ York Hera/d Tribunt:, ao presidente
Podemos realçar, cm divmos estádios de desenvol\'imcnto destas Kennedy e ao governador Rocktetler - di~ antes de. o ynmeiro s.e
cidad~govemo: a «zona militar>> de Tirana, bairro separado da cidade gabar de ter seleccionado, para começar. cmquenta milhoes de abn­
e defendido pelo exército, onde estão concentradas as moradias dos gos - para os convencerem do caracter nefasto do desen"olv'.mento
dirigentes da Albânia. o edificio do Comité Central, bem como os duma «defesa civil»? Que pensar da horda pululante ~o~ s~1ologo~.
estabelecimentos escolares e sanitários. os armazéns e as distracções juizes, arquitectos, policias, psicólogos, pedagogos higienistas. psi­
para este escol que vhe em autarcia. A cidade administrativa do Rocher quiatras e Jornalistas que se encontram constantemente em congres­
Noir. construida num ano para servir de capital à Argélia, ao verificar­ sos comi.s.~õcs e colóquio . de toda a lata, todo eles em busca duma
• · - fie1'tas de
para humani:aT'CJll as novas urbaruzaçoe
se que as autoridades francesas se tinham tomado incapazes de se
sou 1 ção nrm>nte
Ulfl~ b . - é
manterem numa grande cidade. em condições normais; esta, pela sua torres de betão? A humanização destas novas ur aruzaçoes . uma
função, corresponde exactamentc à «zona militam de Tirana, ma.s foi mistificação tão ridícula como a humanização da guerra atómica, e
edificada em campo raso. Com Brasília. por fim, temos o exemplo mais pelas mesmas razões Os abngos trazem com eles, não a gu~ mas
alto: a cidade construída no meio dum vasto deserto, cuja inauguração . a ameaça de gu..rra
sim ...... na sua «dimensão humana>>no senttdo do
coincidiu precisamente com a e:<oncração do presidente Quadros1 pelos que defme o homem no capitalismo .moderno:-
o seu de\'er de consu­
ecamente o estabe­
seus militares e com os preâmbulos duma guerra civil no Brastl que só midor. Este mquérito sobre a humamz.açao V1Sa m _
· - fi ara rechaçar a resis­
lecimento comum das mentrras mais e cazes P . . .
1
Jãnio da Silva Qwdros (o 1917). Presidente da R<'(lúblicn em Outubro de 1960, tência das pessoas. Visto o tédio e a total ausênc!ª. ~e 'ida social
cm~o cm 1961, renunciou às funções cm Agosto desse ano, no c~to das con­ caracterizarem as novas grandes urbanizações penfencas de forma
lllldições dum:l classe dom11111111e mca(l3l de wlaptar-se a um poderpolíuco resultante do 1
tão imediata e tangível como o frio • •
caractenza verr.o•ansk ' certas
" •· 1
sistema elcítoral. Em Abnl de 196-1. com o irnplnntaçiio da ditllllW'3 militar, Jwo Qu:idrtl5
tm os seus dirc1t0s polillCOJ suspcn~s. Brasília, inaugurada a 21 de Abril de 1960,
- • frias da Tcrr:i as tcmpe­
durante 1 presidêlcaa antcnor, a de Juscelíno Kubitschck, teve associado à sua concepção 1 Cidad d3 Sibéna Oriental, situada null13 das rcgi1io mais •
wn dos arqwtcctos m:iis rcpmcntatl~os do funcionalismo, o brasileiro ÓSCII Nicmeyer. raturas neg;inv chegam 11li a rondar os Oº C.
93
92
revistas têmininas chegam a organizar nas novas periferias repona­ dos arquitectos sindicalizados é coerente: os seus clubes de vidro
gens dedicadas à ultima moda, fotografando os manequins nessas pretendem ser um instrumento de controle suplementar da existência
zonas e fazendo por lá entreYistas a pessoas satisfeitas. Como o poder nesta alta vigilõ11cia da produção e do consumo que constitui a
embrutecedor do cenário se pode avaliar pelo desenvolvimento inte­ famosa integração levada por diante. O recurso, candidamente con­
lectual das crianças, sublinha-se a sua desagradffevçl hereditariedade fessado, à estética da montra, vê-se iluminado na perfeição pela teo­
de mal alojados do pauperismo clássico. A última teoria reformista ria do espectáculo: nestes bares desalcoolizados. os consumidores
deposita as suas esperanças numa espécie de centro cultural - sem tomam-se eles próprios espectaculares, tal como o devem ser os
empregar, todavia. esta expressão, paJa não deitar a fugir esses mal objectos de consumo, por não terem outra atracção. O homem perfei­
alojados. Nos planos do Sindicato dos Arquiteclos do Sena. o Clube tamenle reificado tem o seu lugar na montra, como imagem desejâvel
Bar pré-fabricado. que há-de humanizar por toda a parte a sua obra. da re1ficação.
apresenta-se (cf. Le Monde de 22-12-61) como uma «célula plástica» O defeito interno do sistema consiste em não poder reificar perfei­
de fonna CUbica (28 X 18 X 4 metros), incluindo «UIII elemento está­ tamente os homens; precisa de os pôr a agir e de obter a sua parti­
vel; o bar sem álcool onde também estarão à venda tabaco e jornais: cipação. porque sem isso a produção da reificação, e o seu consumo,
o resto poderá ficar reservado a diferentes actividades artesanais de não iriam mais além. O sistema reinante, por conseguinte. combate
bricolagem [.•.) O Clube Bar tem de tornar-se uma montra. com todo a l listória; luta com a sua própria lust6ria. que é simultaneamente a
o carácter de sedução que isso autoriz.a. É a razão pela qual a coo· história do seu reforço e a da sua contestação.
cepção estética e a qualidade dos materiais serão cuidadosamente Hoje, e apesar de certas aparências. quando mais do que 11u11ca
estudadas, para projectarem o máximo efeito, tanto de noite como de (após um século de lutas e a liquidação. entre as duas guerras, pelos
dia. O jogo de luzes deverá infonnar sobre a vida do Clube Bam. sectores dmgentes tradicionais ou de novo tipo, de todo o movimento
Aqui temos pois, e apresentado em termos profundamente revela­ operario clássico que representava a força da contestação geral) o
dores, o achado que (<poderá facilitar a integração social ao nivel da mundo dominante se apresenta como definitiro, com base no enrique­
qual se há-de forjar a alma duma pequena urbaniz.ação». A ausência cimento e na extensão infinita dum modelo insubstituível a com­
de âlcool será pouco notada: é sabido que em França a juventude dos preensão só pode alicerçar-se na contestação. E esta contestação só
bandos nem sequer precisa, hoje em dia, de recorrer ao álcool para tem verdade e realismo como contestação da totalidade.
espatifar tudo. Os blusões negros parecem ter acabado com a tradição É isso que e.'plicn a assombrosa falta de ideias visível em todos o
francesa do alcoolismo popular, ao mesmo tempo que o papel do actos da cultura. da politica, da organização da vida e do resto, sendo
álcoaJ continua a ser tão importante no liooliganismo [desordens de a fraqueza dos construtores modernistas de cidades funcionais apenas
rufias] dos países de Leste; e ainda não chegaram, como a juventude um exemplo particularmente notório. Os especialistas inteligentes
estadunidense, ao uso da marijuana ou de estupefactentes mais fortes. apenas têm a inteligência de agir como especialistas; dai o medroso
Apesar de empenhados numa tal passagem sem efeito. entre os exci­ conformismo e a falta fundamental de imaginação que os levam a
tantes de dois estádios históricos dJstintos, nem por isso deixam de aceitar ser esta ou aquela produção útil, boa, necessária. Na realidade,
marufestar uma nítida violência, Justamente como resposta a este a ratz da falta di: imaginação reinante só é apreensível acedendo-se
mundo que descrevemos e à borrlvel perspectiva de nele ocuparem à imaginação ela falta; ou seja, concebendo-se o que na vida moderna
uma posição qualquer. Pondo de parte o factor da revolta, o projecto está ausente, mterdito e escondido - e que apesar disso é possivel.
94 95
Isto não ~onstitui uma teoria desügada do modo como as pessoas mõmo tempo 1<massifica» a «alia cultura». esquecem-se apenas de
encaram a vida; trata-se, pelo contrário, de uma realidade existente na que a cultura, mesmo alta, está agora enterrada nos museus, incluindo
cabeça das pessoas mas ainda sem ligações com a teoria. Aqueles que as suas manifestações de revolta e de autodestrwção. E que a massas
ao levarem bastante longe «a coabitação com o ncgath•O>•. no 1;entido - de que afinal todos fazemos parte- são mantidas fora da vida (da
be.gel_iano, reconhecerem ell:plicitamente esta falta co"mo a sua força participação llll vida), fora da acção livre· subsistentes, inc;endas na
pnnc1pal e o seu programa. farão surgir o único projecto positilo que moda do espectáculo. A lei actual é que toda a gente consuma a maior
pode derrubar as par~es do sono; e as normas da sobrevi\,ênc1a; e ns quantidade possível de nada; incluindo até o respeitável nada da
bombas do juízo final; e as megatoneladas da arquitectura velha cultura perfeitamente separada da sua sigmlicação original
(o cretinismo progressista há-de sempre enternecer-se vendo o teatro
1 .S: n • 7. Abnl de 1962 de Racine televisionado ou os lacutes 1 a ler Bali.ac: justamente por­
que não encara outro progresso humano a não ser este).
A noção, quão reveladora, de bombardeamento de infonnações,
deverá ser compreendida no seu sentido mais amplo. A população
encontra-se boje submetida em permanência a um bombardeamento
de imbecilidades que de maneira nenhuma depende dos mass media.
Nada seria mais falso, mais digno da esquerda antediluviana, do que
Comunicação prioritária imaginar estes mass media em concorrência com outras esferas da
vida social moderna onde O:> problemas reais das pessoas senam
posto com seriedade A Universidade, as Igrejas, as convenções da
A questão .do poder está tão bem escondida, nas teorias sociológi­ política tradicional ou a arquitectura emitem lambem, para as ondas
cas e culturais•. que os peritos podem encher milhare de páginas do confusionismo, uma grande quantidade de incoerentes trivialida­
sobre a comumcaçào ou os meios de comunicação de massas na des que tenderão. caótica mas imperativamente, a modelar todas as
~cicdade moderna, sem nunca notarem que a comunicação de que atitudes da vida quohchana (como devem as pessoas vestir-se, quem
1à1am se faz em Sl.."lltido único, não tendo os consumidores de comu­ devem encontrar, como deverão contentar-se com tais coisas). Um
n'.c~ção nada a responder. Há na pretensa comunicação um.a rigorosa qualquer sociólogo da «comunicação», para quem a acaciana afirma­
diV1Sã~ de tarefas, que afinal faz coincidir a mais geral di\isâo entre ção de infalível efeito consisttrá em opor a alienação do empregado
orgaruzadores e consumidores do tempo da sociedade industrial dos mass media à satisfação do artista, que, quanto a ele, se identifica
(lempo este que ~ntegra e dá forma ao conjunto constituído pelo tra­ com a sua obra e graças a ela se justifica, não fará senão alardear
balho e pelos ócios). Quem não se sinta, a este nfre/, incomodado sistematicamente a sua eufórica mcapacidade de conceber a própria
pela tirania exercida sobre a sua própria vida, nada entende na socie­ alienação artística.
dade actual; ficando por isso perfeitamente qualificado para escovar
todo os seus artísticos frescos sociológicos. Todos quantos se inqui­ ' Alusão ao povo incute, da Sibói:s Oriental, pc'l'tCDCC11te ao rumo mrto d.:i fo.miha
etam ou se maravilham ante esta cultura de massas que, atran!s dos ctnohnguisúca allllca Alacúúa, c:ri:ida cm Abril de 1922, foi Wllil das n:rublicas socw­
mass media unificados plnnetariamente. cultiva as massas e ao listas sovieticas. Éaqui refendo como wn co1llrnStll1ltc exemplo de C'(Otbmo.

96 97
A teoria da informação começa logo por ignorar o principal comum. a comunidade de intcrl!SSe!> em aparência tão diferentes já só
poder da linguagem, que consiste cm combater-se a si mesma e se baseia hoje no impernti\o das lembranças (coisa que fazta - e,
superar-se no seu plano poético Só urna escrita que atinja o vazio, mais amiúde, deveria ter feito - o anugo movimento operário para
a perfeita neutralidade do conteúdo e da forma, poderá agrr em apoiar os explorados das colónias). De modo que certo!> reflexos que
função duma experiência matemática (como a 1<literatura poten­ também se tomaram arcaicos. e portanto abstractos, constituíam a
cial», últlIDo ponto da longa página branca escrit;i por Queneau). úruca solidariedade concebida. esperar que esta eterna e mitológica
Apesar das soberbas hipóteses duma «poética informacional» esquerda francesa P.C.-P.S.U.-S.F.1.0.. mais o G.P.R.A. 1 se compor­
(Abraham Moles) e da enternecedora confiança dos seus contra­ tassem (tendo em conta as suas diversas «asneiras)) ou «traições»)
sensos a respeito de Schwitters ou T2!1ra. a única linguagem que os como duas secções da llJ Internacional.
técnicos da linguagem poderão compreender e a da técnica. Igno­ Tudo o que ocorreu desde 1920 parece todavia mostrar que uma
ram aquilo que avalia tudo isso. critica fundamental destas soluções é inevitável em toda a parte,
Considerada em toda a sua nqueza, a partir da práxis humana lIDpondo-se do lado argelino, forçosamente, pela sua actual luta
como Um todo e não a panir do movimento acelerado das operações armada A solidanedade internacionalista, se não se degradar em
bancárias graças à utilização de canões especiais, a comunicação só morahsmo de cristãos esquerdistas. só pode ser uma solidariedade
existe na acção comum. Os mais notórios exagero da mcompreensào entre os revolucionários de ambos os paises. Isto, obviamente, pres­
estão asstm Ligados aos excessos da não-intervenção Não há exemplo supõe que os hnja em França; e que na Argélia se distingam os seus
mais claro do que a longa e deplorável históna da esquerda fr.mcesa interesses no futuro pró~mo, quando a actuaJ frente nacional se vir
perante a msurreição popular da Argélia. A prova de que a antiga perante a opção a tomar quanto à natureza do seu poder.
política e extmguiu, ficou patente em França não só pela abstenção As pessoas que procuraram levar a cabo uma acção de vanguarda
da quase totalidade dos trabalhndores, mas mais ainda, sem duvida, em França, neste período. viram-se divididas entre, por um lado, o
pela tolice política da minoria decidida a agir; deste modo. as ilusões receio de se separarem totalmente das antigas comunidades pollticas
de militantes de el(trema-esquerda a respeito da c<frente popular» (cujo avançado estado de glaciação no entanto conheciam) ou pelo
podem ser qualificadas como ilusões de segundo grau, antes de mais menos da sua linguagem; e. por outro lado, um certo de ·dém pda
nada porque a fórmula era rigorosamente impraticável neste período, emoção real de certos sectores (os estudantes, por el(emplo, motiva­
e depois porque proVilfa amplami.!nlC.. desde 1936, a que ponto era dos pela luta contra o extrenusmo colomalista). por causa da compla­
uma arma contra-revolucionária particularmente segura. Tendo as cêocta desse\ sectores perante toda uma antologia dos arcaísmos
mistificações das velhas organizações políticas revelado nessa altura políticos (unidade de acção contra o fascismo, etc.).
a sua derrocada, nem par isso surgiu nenhuma polfüca nova. Com
efeito, o problema argelino revelava-se como um dos arcaísmos fran­
1 Govmio Provisório da RcpUblica Argehoa. cnJdo em Setembro ele 1958, resultante
ceses, na medida em que a principal tendência em França aspira à
da guerra anticoloníal desencadead:i na Argélia a 1 de Novembro de 1954 A S.F 1.0.
situação do capitahsmo moderno Os fenómenos ainda não oficiais,
(Secção F~ dJ Internacional Opcníria), ~'Clha organlL1Çio refomüsta criri.do cm
«selvagens», de decepção e recusa que acompanham esta evolução, 1905 com o nome de Partidó SociaL.slD, ficou hlitoncamcruc ligada às chw outras orp­
em nada se viam ligados à luta dos subdesenvolvidos argelinos. Para ntz3ÇÕCS t1tadas o PC.F. e o P.S.U (Parudo Socialista Unificado), que nela tiveram
quem não apreende no futuro a realidade duma contestação radical origem

98
'Nenhum grupo soube aproveitar esta op0;irtunidade, de maneira nos a.nos 20. Esforça-se esta gente por põr no esquecimento quanto
exemplar. ligando o programa máximo da revoltta virtual da sociedade 0 dadaísmo autêntico foi o da Alemanha e a que ponto esteve asso­
capitalista a um programa máximo da actual rcevolta dos colonizados. ciado à ascensão da revolução alemã após o annisticio de 1918.
Naturalmente, isto explica-se pela fraqueza dle tais grupos: uma tal A necessidade duma tal hgação não mudou para que.m boje contribui
debilidade, porém, nunca deverá ser consideradla como uma desculpa, com uma posição cultural nova. Impõe-se simplesmente descobrir
mas, muito pelo contráno. como um defeito ide fuitcionamento e de esta no\idadc sím11/taneamen1e na arte e na polltica
ngor. É inconcebível que uma organização itapaz de representar a A simples anticomunicação pedida hoje de empréstimo ao
contestação vivida pelas pessoas, e que sab,e falar-lhes disso, se dadaismo pelos mais reaccionários defensores das mentiras estabele­
mantenha débil, mesmo sendo duramente rep1rimida cidas é coisa sem valor numa época em que a urgência consiste cm
A completa separação dos trabalhadores de França e da Argélia, criar, ao nível mais simples e ao m.alS complexo da pratica, uma nova
separa9âo esta, convém compreendê-lo. que niilo se situava principal­ comunicação. A sequência mais digna do dadaísmo, a sua legitima
mente no espaço. mas çim no tempo, levou a lUID tal delíno da mfor­ sucessão, deverá ser reconhecida no Congo do Verão de 1960.
mação, mesmo «de esquerda», que um dia dep,ois do 8 de Fevereiro, A revolta espontânea dum povo mantido na m1ancia (mais do que em
quando a policia matou oito manifestantes fr.unceses, os jornais fala­ todas as restantes áreas) soube imedtatamente, logo que a racionali­
vam dos recontros mais sangrentos verificndos em Pans di?sdt 1934, dade da sua exploração foi abalada uma e~ploração ainda mais
esquecendo-se por completo que menos de q1uatro meses antes os estrangeira do que noutros sítios ·, desviar a linguagem ~xtcrior d~s
manifestantes argelinos de l 8 de Outubro linlllam sido massacrados donos e senhores. tomando-a poesia e modo de acção. E necessário
em Paris às dezenas.' Ou que um «Comité AnttifascistJ do Bairro de empreendcr. respeitosamente, o estudo da expressão dos congueses
Saint Gennain de~ Pré~», em Março. escre\era1 num cartaz «Ü povo neste período, para nela reconhecermo - além do papel do poeta
francês e o porn argelino impuseram a negoiciação... 1> em o dito Lumumba 1 - a grandeza e eficácia da única comunicação possível,
Comité morrer fulminado pelo ridkulo de enwmerar por esta ordem que melhor ou pior acompanha a intervenção sobre os acontec1men­
as duas forças citadas. tos. ou seJa a transformação do mundo.
No momento em que a realidade da comuniicação se encontra tão
profundamente podre, não é de admirar que se desenvolva em socio­
1 Palrice Lumumba (1925-1961), rcvolucionãno conguês de inspiração l!Ulnist3,
logia o estudo mineralógico das comumcações 1petrificadas. Nem que
deito, em 1960, chefe do pnmeiro gmcmo pós-mdcpend&icia do Congo (actUAl Za~).
na arte a canalha neodndaista redescubra a iimportància do movi­ O seu nome ficou wociado il maior rn'tllln cmnpmcsa deso;e período. com fortes tcn­
mento Dadá como positividade fonnal a explOlrar ainda, depois de dãicias mikn:mstls e libauirias, que eclode Já depois da iodcpo:ndência.. Este mo~1-
tantas oulras correntes moderrust.as dele sacarenn o que puderam logo mcn10, animado pelo verbo de Lumumba e opoodo-51! ao regime jii corrupto d~ oo"os
dirigentes africanos. reclama 1euma now mdependàxta... l<Asavubu, o Prcsi~ .da
República, orquestra então um golpe de Estado e ~83 Lumumb:I aos.mcn:cnanll'i
A8-2-62, numa manifc:.lílÇiio mi Paris contta a 0.A.S (Orpniznção do Exercito bel~ que defendem os ~1orustas da província do CnWlga. Lumumba e ~mado
Secreto, fracção tc.rronsta fmm:c:sn da Argého), foram morttos 0110 mllllifcsumtcS. Nas cm Janeiro de 1961 cm cin:unsuincias nunca elucida~. O seu nome. reduzido dl-pols
jcrna~ de !ut:1 de 17 a 20 de Ouwl.o de 1961, organÍZ3d:l.s por trabalhadores argdmos a lconc. na quali~e de •herói nacwnal> , scr.i obscc:namenJe cxplorudo pelo smistro
cm Paris, a policia, no dia 1 , procalcu a uma repressão fc:rodssima, nb:itendo vánns Mobutu, que se mstala no poder cm 1965 cstrib.ido no cxércno e num «go~-cmo de
dezenas de manifcsumtes. técnicos"

100 101
Embora o público seja fortemente ancitado a pensar o contrãrio. com que dar ao dente. O sono da razão dialéctica engendrava
e não só pelos meios de massa - a cocrenc1a da acção dos monstros.
conguescs. enquanto a sua \'anguarda não foi abatida, e a eltcelente Tocbs as ideias unilaterais sobre a comunicação eram obviamente
utilização que fizeram dos raros meios que detinham, contrastam as ideias da comunicação unilateral Correspondiam à frào do
precisamente com a incoerência fundamental da organização social mundo e aos interesses da sociologia, da velha arte ou dos estados­
de todos os países desen\'olvidos e oom a perigosa incapacidade -maiores da direcção política. É tudo isto que ,.ai mudar. Nós conhe­
que revelam para empregarem de modo ace.itá~ el os seus poderes cemos agora «a incompatibilidnde do nosso programa, enquanto
técnicos. Sartre. tão representali\O da sua desvairada geração, no expressão, com os meios de eltpressào e de recepção disponi\'eis»
sentido em que conseguiu ser, por_ si só, lorpa de todru as mislifi­ (Kotányi). 1 Trata-se. ao mesmo tempo, de ver o que pode servir à
caç~ por que optaram os seus contemporâneos. responde agora comunicação e para que pode servir a comunicação. As fonnas de
sem rodeios, numa nota do n.0 2 da mista Jfédiations, sustentando comunicação e'istentes, e a sua presente crise.. compreendem-se e
que não se pode falar duma linguagem artística dissolvida corres­ justificam-c;e apenas na perspectiva da sua superação. Não deveremos
pondente a um tempo de dissolução, pois oa época constrói mais do mostrar pela arte ou pela escrita um respeito tão grande que nos leve
que deslrói». A balança do merceeiro inclina-se para o mais pesado, a querer abandoná-los totalmente. Nem deveremos mostrar tal res­
mas fá-lo a partir duma confusão entre construir e produzir. O que peito pela história da arte ou cb filosofia modernas que nos leve a
Sanre en.,erga é que há hoje nos mares uma mais forte tonelagt.'tll desejar prossegui-las como si: nada fos e. O nosso juizo é desenga­
de navios do que antes da guerra, apesar dos bombardeamentos; nado porque é histórico. Para nós, por conseguinte. tocb a utilização
que há mais prédios e mais automóveis apesar dos incêndios e dos dos modos de comunicação permitidos deverá constituir e não cons­
acidentes. Até há mais livros. visto Sartre ter sobrevivido. E no tituir a recusa desta comurucação: uma comunicação que contenha a
entanto, as razões que esta sociedade linha para \'Íver, destruíram­ sua recusa; uma recusa que contenha a comunicação, ou seja, a trans­
-se. As variantes. apresentando transformações artificiais, não posição desta recusa em projecto positivo. Tudo isso deverá levar a
duram mais tempo que um chefe da polícia, indo logo juntar-se ã algum lado. A comunicação irá agora conter a sua própria critica.
dissolução geral do antigo mundo. O único trabalho útil está para
ser feito: reconstruir a sociedade e a vicb noutras bases. As diversas J S. n.• 7, Abril de 1%2
neofilosofias das pessoas que reinaram tanto tempo no deserto do
pensamento pretensamente moderno e progressista não conheciam
estas bases. Os seus grandes vultos não irão sequer parar ao museu,
porque esse será um período excessivamente oco para os museus.
Pareciam-se todos, eram os mesmos produtos da imensa derrota do
movimento de emancipação humana nos primeiro· trinta e tal anos
deste século. Todos aceitaram esta derrota. sendo isso que os defme
exaustivamente. Mas os especialistas do erro hão-de defender até
ao fim a sua especialização. Embora estes dinossauros da pseudo­
-explicação. agora que o clima está a mudar. não tenham mais nada 1Alusão •Cl ~ituacionim Anila Kutãnyi, hung;iro c:dlatlo, aclu1Jo da t S cm 1963

102 103
Dominação da natureza, ideologia e classes
vimento minilll:) que se impõe atingir desde já, aqui e ali, depende
justamente do ~rojecto de libertação por que se optou. e portanto de
A apropriação da natureza pelos homens é exactamente a aventura quem fez essa opça~o as massas autónomas ou os especialista no.
em que estamos metidos. É uma aventura indiscutivel; mas só sobre poder. Os que ~doptam as ideias de determinada categoria de org:iru­
ela e a partir dela podemos discuttr. O que está .sempre em questão, i.adores sobre o mdispt:nsávcl, poderão ficar li\TCS de qualqu~ pn~11-
no centro do pensamento e da acção modernos, é'<> emprego possível çào no respell31ite aos objectos que os organizadores em questao .hao­
do sector dominado da natureza. A hipótese de conjunto relativa a -de optar por p1odll.Zlr; mas nunca ficarão, com toda a cene_z~ livres
este cmprege determina as opções nos cruzamentos que todo e qual­ dos próprios orWiizadores. As formas mais modernas e ma1S mespe­
quer momento do processo apresenta; -dctennina também o ritmo e a radas da bierar~uia serão sempre um dispendioso remake do \'elho
duração duma e)(pansâo produtiva em cada sector. A ausência duma mundo da passividade, da impotência e da escravatura, seja qual fo~
hipótese de conjunto, ou seja, o monopólio duma linica hipótese não a força material que abstractamente a socfodade possua, represen~
teorizada. correspondente ao produto automático do crescimento sempre o opost; da soberania que os homens exercem sobre aqrnlo
cego do poder actual, const1tu1 o vazio que desde ha quarenta anos é que os rodeia I.' sobre a sua história.
o quinhão do pensamento contemporâneo Pelo facto 4 a dotrunação da natureza na sociedade actual se
A acumulação da produção e de capacidades técnicas sempre apresentar com-, uma nhenação constantemente agra\'ada e c-0m~ a
superiores avança ainda mais depressa do que na previsão do comu­ única grande ~uçào ideológica para justificar esta alienação s~al,
nismo do éculo x1x. Mas nem por isso deixâmos de ficar no estádio ela é cnticada de maneira unilateral, sem clialéctJca nem suficiente
da pré-história, que agora é uma pré-história com obreequipamento. compreensão hi tórica, por alguns do!> grupos de vung~ que nes!e
Aquilo cm que um século de tentativas revolucionárias falhou, foi em momento se e'!c.ontram a meio caminho entre a anuga concepçao
não ter racionalizado e tomado apai:tonanlc a vida humana (o pro­ degradada e mi';tificada do movimento operário. que eles superaram,
jecto duma sociedade sem classes não foi ainda realizado). Entrá.mo "'
e a próitima ÍQroia de contestação global, que am "da esta• 3· no.ssa
hum incremento de meios materiais sem fim, mas que continua ao frente (ver, por ~xemplo, na revista Sccialisme 011 Barbarie, as teonas
~erviço de interesses fundamentalmente estático ; continuando, por muito significativas de Cardan e outros). Opondo-se estes grupo •
\sso mesmo, ao serviço de \'alores cuja morte antiga é de notoriedade com toda a 11ll:io à reificaçào cada vez tnaIS · p1.a
.-".1e1ºta do trabalho
,

pública. O esplrito dos mortos pesa imenso sobre a tecnologia dos Luumano e ao sbu ' corolano • • moderno ( o consum0 passivo de ócios .
Vivos. A planificação económica que reina em toda a parte é demente, manipulados pela - classe dominante), acabam por sustentar, mru s ou
'rlão tanto devido à sua obsessão escolar dum enriquecimento of&Bil.i­ menos tnconsci~ntemente, uma espécie de nostalgia do trabalho :~
ÍJ:ado dos anos que hão-de vir, mas justamente devido ao sangue podre suas formas ant· as e das relações realmente «humanas» que pu ­
'Jo passado que já circula, por si mesmo, nessa plaruficação - inces­ ram expandir-se.1gem sociedades de outrora ou até em r.ases, menos
S:antemente atirado de novo para diante, a cada pulsação anificial desenvolvidas d3 sociedade industnal. Isto concorda, de resto,.com ª
<\este «coração dum mundo sem coração)>. .tntençao• de se obter um melhor rendimento da Produção CXJ51ente,
A libertação material é um preâmbulo à libertação da história b
a olindo-se nel~ em sunuJtâneo, o despcrdJ cio
. . e 8 desumarudade
. que
~u.mana., e só assim pode ser ajuiz.ada. A noção do nível de desenvol­ •
caracteriz.am a indústria modem.a (cf., a este propósito.
· o artigo «1ns­
truções para un1 armamento», p. 61 ). Es · tas coni;~cnrões
n abandonam

105
y _.., ...... uuo proJccto re\ olucionarfo, que radica na
dl

supressão do trabalho em sentido corrente (e i~mentc na supressão


do proletariado) e em todas as justificações do lrabalho obsoleto. ão
~e pode compreender a frase do \lanifc.sto Corrrmista que diz que «a
burguesia desempenhou na História um papel tminenternente molu­
cionário>> descurando a possibilidade. aberta pela dominação da natu­
reza. do desaparecimento do trabalho em proveito de um nom tipo de
actfridade liv~ e descurando, ao mesmo tcipro, o papel e:<crcido
pela burguesta na t(dissoluçào das velhas ideias>1 - ou eja., seguindo
a desgraçada propensão do movimento operário dássico para se defi­
nir positivamente cm termos de «ideologia re\ducionári:m.
Vaneigem expõe nas BanalidJrdes de Base o rtO\.imento de disso­
lução do pensamento sagrado e a sua inferior subuítuiçào, pela ideo­
logia. nas funções de analgésico, hipnótico e calmante. A ideologia,
tal como aconteceu com a penicilina., ao mesmo iempo que foi dis­
seminada cada vez mais maciçamente, tomou-se cada vez menos
operante, sendo necessário aumentar sem parança as doses e a apre­ Asmá~~~!!!!!!!!!!!!!!!!!:!!~~~~~:=::~~~~:=..i
EmMa1
sentação: basta pensar nos \'ários e:<ce5..;os do na.zWno ou na propa­ trai qulnas ldlllcas
ganda consumista dos nossos dias. Podemos considerar que desde o para aio de i962 l0t d1lund1da a ímagem dum protóllpO amencano que serro
1
.•. anscrever directamente as palavras num ted aoo de maquina
verA . de esae­
desaparecimento da sociedade feodal as classes dominantes estão
lelicidao human tocdl da ptJblicsdade desta invenção reS1de naturalmente na
cada vez mais mal servidas pelas suas próprias ideok>gias, no sentido ~nha de da seaetària: doravante basta-lhe olhar para a mãqu1na a escrever
em que estas - enquanto pensamentos críticos petrificados - lhes nização a. Sem examinarmos aqui as reais 1oodênClas económicas desta moder·
serviram de armas universais para a tomada do poder e agora aprc­ Imagem o do trabalho das secretanas, oonvem notarmos a que ponto semelhante
entam contradições no seu reino particular. Aquilo que na ideologia tes dumm traduz um sonho bâsico da sooedade ac:Wal (os devaneios dominan­
era mentira inconsciente (deter-se em cooclusões pa-clais), toma-se um momma época~ os devaneios da dasse dominante). E a expectativa de
da p<_OOvmento da evolução social em que a contemplação passiva das mãqu1nas
mentira sistemática quando alguns dos interesses que ela mascarava
~:~ução passana a arucular-se, sem ruptura senslvel, com acontemplação
passam a estar no poder e dispõem duma polícia para o· proteger. pa ~ das maquinas do consumo. Num nirvana tecn1cizado do puro coosumo
O exemplo mais moderno é também o mais evidente: foi pelo desvio este ·.'~ do tempo tudo o que haveria a fazer consistiria em ve1 lazer; e sendo
mãqu1nai '
operado na ideologia do movimento operário que a burocracia cons­ azer. apenas odas máqull\aS, sena para senve o dos propnetarios de
tituiu o seu poder na Rússia. Todas as tentativas de modernização e abusarlas lapagando-se cada vez mais a propriedade juridica-d1reito de usar
duma ideologia - aberrantes como o fascismo ou consequentes ar - em IXOVei!.o do poder dos ~es <:01fP8lentes e oatemais)
como a ideologia do consumo t:Sp\."'ttacular no capitalismo desenvol­
vido - promo\"em sempre a conservação do presente., ele próprio
dominado pelo passado. Um reformismo da ideologia num sentido

106
107
assim o ponto CC!ilfal do projecto m oluciontrio, que radica na
supreiSão do traball o em sentido corrente (e igualmente na supressão
do proletariado) e ern todns as justificações do Ira alho obsoleto. Não
se pode compreender a frase do Jfanifesro Comrlfista que diz que «a
burgue ia desempenhou na História um papel emnentemente revolu­
cionário» descurando a possibilidade, aberta pela-dôminaçào da natu­
re:za, do desaparecin1ento do trabalho cm proveito de um no,·o tipo de
actfridadc lfrn:: e descurando, ao mesmo tempo, o papel exercido
pela burguesia na <<dissolução das velhas ideias» - ou seja, seguindo
a desgraçada propensão do movimento operário cbssico para se defi­
nir positivamente ern termos de «ideologia revolocionária>>.
Vaneigem e.'põe tias Banalidades de Base o rmrimento de dtso;o­
Jução do pensamento sagrado e a sua inferior substituição, pela ideo­
logia. nas funções de analgésico, hipnótico e calmante. A ideologia,
tal como aconteceu com a penicilina. ao mesmo tempo que foi dis­
seminada cada vez mais maciçamente. tomou-s' cada vez menos
operante, sendo necessário aumentar sem parança as doses e a apre­ As máquinas idlllcas . ue serve
sentação; basta pens:ir nos vários exces~os do nazismo ou na propa­ Em MalO de 1962 foi d1fund1da a imagem dum protollpo amer:icano q escre
ganda consumista da~ noso;os dias. Podemos cODSJderar que desde o ra transcrever directamente as palavras num teclado de maquina de ­
pa fOIX:/1 da pubhodade desta invenção reside naturalmente na
desaparecimento da sociedade feudal as classes dominantes estão a escrever
vet. A de
f 1cid da secretária: doravante basta-lhe oIhar para a .maquina
human .
c:ida vez mais mal scr\'idas pelas suas prôpnas ideologias, no sentido e i . ha Sem examinarmos aqui as reais •ioo'dênaas . ec:onom1cas desta moder­
em que estas - enquanto pensamentos críticos petrificados - lhes sozm a. d !árias convêm notarmos aque ponto semelhante
sen·iram de armas W1Í\1ersais para a tomada do poder e agora apre­ nização do trabalho as se:~co d~ socíedade actual (os devan01os clomman­
lmagem traduz um sonho . da classe dominante). É a expectativa de
sentam contradições 110 seu reino particular. Aquilo que na ideologia tes duma época são os devaneios . adas máquinas
era mentira inconscu.'utc (deter-se em conclusões parciais). toma-se um rromento da evolução sooal em que a contempla~o passiv ntemplat;ao
mentira sistemática quando alguns dos interesses que ela mascarava da produção passaria a artJcular-se. sem rupwra sens1_v~. com a co nsumo
ssiva das máquinas do consumo. Num nirvana teauctZado do puro co ndo
passam a estar no fl<)der e dispõem duma policia para os proteger. papassivo do tempo, tudo o que haveria a fazE!f cons1stina em ver fazer. e se d
O exemplo mais modiemo é também o mais evidente: foi pelo desvio • .nas seria para semrxe o dos propnetanos e
este •fazer• apenas o das maqu1 ' nmntiedade jurídica-d1re1to de usar
operado na ideologia do movimento operário que a burocracia cons­ máquinas (apagando-se cada vez mais a..... ...,.. patemais).
tituiu o seu poder na Rússia. Todas as tentativas de moderniz.açào .,, do nnrinr dos programadores competentes e
e abusar - em provei,o """'""'
duma ideologia - aberrantes como o fascismo ou consequentes
como a ideologia do ~onsumo espcctacular no capitalismo desenvol­
\ido - promovem ~mpre a consem1çào do presente, ele próprio
dominado pelo passadJo. Um reformismo da ideologia num sentido
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hostil à sociedade e:.t.abdccida, nunca terá eficácia porque nunca Ao renunciar-se porém a todas as varianh.'.S da apologia, penetra-se de
disporá dos meio de absorção forçada graças aos quais esta socie­ imediato na critica, qu\; não possui esta má consciência subjcctiva
dade dispõe ainda duma utiliz::içào eficaz da ideologia. O pensamento porque não colabora com nenhuma força dominante do pr~entc.
revolucionário apoia forçosamente a criticJ impiedosa das ideologias, Quem admitir que uma burocracia hierarquizada possa ser um poder
incluindo nestas, bem entendido, o ideologismo espe.ciar da «morte revolucionário. admitindo igualmente como um bem e um prazer o
das ideologias», cujo titulo é ja uma confissão, visto as ideologias turismo de massas tal como é universalmente organizado pela socie­
terem sempre sido pensamento morto e congratulando-se apenas a dade do espectáculo. bem pode empreender as viagens de Sartre pela
empírica ideologia em questão com a derrota dum rival invejado. China ou seJa por onde for. Os seus erros. parvoíces e mentiras n.1o
A dominação da natureza contém a eguinte questão: 11dominã-la poderão enganar ninguém. Naturalmente, cada qual se inclina para
para fazer o quê?» Mas esta interrogação sobre a práX.is vence forço­ aquilo que aprecia; e há viajantes ainda mais detestáveis, pagos em
samente esta dominação, tem de a incluir. Rejeita ªJk'l'las a resposta moeda ainda mab sonante, capazes de se porem ao !>erviço de
mais grosseira: «para proceder como antes, com maior obstrução de Tchombé no Catanga 1• As testemunhas intelectuais da esquerda, que
produtos», à dominação reificadora que desde a origem está contida tão prontamente vão aonde as convidam. testemunham principal­
na economia capi1alista, mas que pode «por si mesma produzir os mente o abandono dum pensamento que desde há décadas renunciou
seus coveiros». É preciso pôr em dia a contradição entre a positivi­ ã sua própria liberdade para oscilar entre patrões em coníli10. Os
ci:Jde da transformação da natureza, o grande projecto da burguesia, pensadores que admiram as realizações actuais do Ocidente ou do
e a sua recuperação mesquinha pelo poder lnerarquizado, que em Leste, caindo em todas as esparrelas do espcctáculo, nunca tinham,
todas as vanantcs actuais segue o modelo unico dJ «civilizJção» por conseguinte, pensado em coisa nenhuma. constatação esta que só
burguesa. Na sua forma massificada. o modelo burguês «socializou­ pode surpreender quem os tenha lido. Obvtameute, a sociedade de
-se» na actividade dum pequeno-burguês compósito capaz de acumu­ que eles são o espefüo pede-nos que admrremos os seus admirador~.
lar todas as capacidades de embrutecimento•das velhas classes pobres Em muitos sítios, até, é-lhes fácil escolher o jogo de espelhos (aquilo
e todos os sinais de riqueza (também eles massificados) que assina­ a que chamaram <1comprom1ss0>>}, escolhendo com arrependimento
lam a pertença a classe dominante. ou sem ele n embalagem e o rotulo da socil!dade estabelecida que os
Os burocratas de Leste aderem forçosa.mente a este modelo, bas­ inspira.
tando-lhes produzir mais para que a policia sirva menos para manter Os homens alienados têm todos os dias acesso - habituam-nos a
o seu próprio esquema do ·.sumiço da luta de classes. O capitalismo isso, mostrando-lhes essas coisas - a novos êxitos que muito bem
moderno proclama alto e bom som um objectivo similar. Mas todos
1 Alusão 1 Mo~ Tchombé e aos seus
cavalgam o mesmo tigre: um mundo em rápida transformação onde cúmplices europeus. No con1010 da indcpcn·
eles aspiram ã dose de imobilidade útil ã perpetuação de uma ou d(ncia do Coogo, cm 1960, Tchombé, primeiro-ministro do Catanga. a ~~lncia do
outra cor do poder hierárquico. cobre», çniza um movimento scccssionisu, conlufado com 11S empresas mineradoras
belga , pcnmtindo 1 intcm.~nçio de forças da O.N.U. e de pâra-qucd~tru. belgas (a quem
A rede critica do presente e coerente, mas também o é a rede da será entll':gue Lumumba, dcpo1 llSS8SSinado). Defcnsur no Congo das int~'l'CSSCS
apologia A coerência da apologia só parece menos visível porque ncocolonialisw, Tchombé. após tcJ sido lll'mcido pnmciro-min1suo do pai~. dcscncadt13
tem de mentir ou valorizar arbitrariamente a propósito de muitos OcomJ.le as forç:is TC'VOIUcion:inas, com a ljUda de mcn:c:nánor., forças bcl1P5 C O 0)1(110
pormenores e cambiantes do modelo reinante, em oposição a outros. log.isuco oortc-amcricano

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dispL"rlsariam O que não significa que tais etapas do desenvolvimento ção capitalista, segundo a qual csla estagnaria. tomando-se incapaz
malerial sejam desinteressantes ou noci\'as. Essas no\'as coisas de prosseguir o seu desenvolvimento. Esta contradição, porém,
podem de focto ser utilizadas na \'ida real. mas apenas ju111a111en1e deverá interpretar-se como a conderuiçào (cuja execução falta tentar,
com 111do o resto. As vitórias actuaís são obra de vedetas-especialis­ com as armas que se impuserem) do desenvolvimento simultanea­
tas. Ga&rarine mostra que se pode sobff!\.'i~u mais lqnge no espaço, mente mesquinho e perigoso que: a auto-regulação d.:sta produção
em condições cada vez mais desfavoráveis. Mas precisamente dirige - me~umho e perigoso perante o grandioso desenmfrimento
quando todo esse esforço médico e bioquímico penníte que o homem po!iSÍvel que se baseasse na presente infra-estrutura económica.
sobre\ iva mais longe no tempo, uma tal C.'{tensào estatística da sobre­ Todas as questões abertamente postas na sociedade actual in1plicam
vivência em nada se associa a um melhoramento qualitativo da \'ida de imediato certas respostas. Nunca são levantadas questões que levem
humana. Podemos sobreviver mais longe e mais tempo, mas nunca a outra coisa que não seja este tipo obrigatório de resposta Limitando­
,;ver mais. Não nos compete, portanto, fes1ejar estas vitórias. com­ -no· nós à evidência de que esta tradição moderna consiste justamente
pete-nos assegurar a vitória da festa, cujas infinitas possibilidades no em ino\'ar, fechamos os olhos a wna outra evidência: não se trata de
quotidiano esi.cs avanços dos homens desencadeiam. inovar em todo o lado. Na época em que a ideologia ainda podia
. Trata-se de reconhecer a natureza como «adversário válido>1. acreditar no seu papel. dizia Samt-Just: «mt tempo de inovações é
E preciso que o Jogo contra ela desemolvido se mostre apaiAonante, perigoso tudo o que não for novo». Os numerosos sucessores de Deus
que os pontos marcados nesse jogo nos digam respeílo directamente. que organizam a actual sociedade do espc..-ctáculo sabem agora muito
A dominação (passageira, movediça) do no o meio ambiente e do bem que limites se devem pôr às questões que vão longe demais.
tempo reside, por exemplo, na construção dum momento da vida. O dcpcrecimento da filosofia e das artes lambém se agarra a ~te inter­
A expansão da humanidade no cosmos, numa polariz.ação inversa da dito. Na sua feição revolucionária. o pensamenlo e a arte modernas
construção (pós-artística) da vida individual - embora sempre rei\'indicnram, com maior ou menor exactidào uma práxis ainda
estreitamente ligada a este outro pólo do ~ssível -. é o exemplo ausente que seria o campo mínimo do seu desdlvolvimcnlo. O resto vai
dum tipo de empreendimento onde ocorrem em conflito a actual tecendo rendilhados sobre as qu~tões oficiais, ou elaborando a que-;tão
pequenez das competições militare de especialistas e a grandeza vã da contrO\êrsia pura (especialidade da revista .A1g11ments).
objectiva do projecto. A aventura cósmica será alargada, e por con­ Há muitos quartos idoológicos na Casa do Pai, ou seja, na velha
seguinte aberta a uma participação muito diferente da dos cobaias­ sociedade, cujas rcferências fi~as se perderam mas cuja lei se man­
-especialistas, tanto mais depressa e longe quanto neste planeta a tém intacta (apesar da inexistência de Deus, nada é permitido). Nela
derrocada deste avaro reino dos especialistas tenha aberto as compor­ têm direito de cidadania todos os modernismos que possam servir
ias duma imensa criatividade respeitante a h1do; criatividade presen­ para combater o moderno. O bando de pantomineiro da inacrcdilá\cl
temenie congelada e desconhecida, capaz todavia de levar a uma remia Planet1., que tanto impressiona os professores primários.
progressão geométrica em todos os problemas humanos, em vez do encarna uma demagogia insólita que se aproveita da ausência gigan­
actual crescimento cumulativo reservado a um sector arbitráno da tesca da contestação e da imaginação revolucionária.. pelo menos nas
produ~ão industrial. O velho esquema da contradição entre forças suas manifestações intelectuais, quase há meio século (e dos múlti­
produtt\'as e relações de produção tem obviamente de deixar de ser plos obstáculos que em toda a pane se opõem ao seu ~surgimento
entendido como uma automática condenação a curto prazo da proclu­ nos nossos dias). Jogando ao mesmo tempo com a e' idência de que
110
11 1
a ciência e a tecnologia e\ oluem com uma celeridade cada \ ez maior,
sem que se saiba para onde, a Pla11~te? arenga o bom povo para lhe
dar a saber que doravante é preciso mudar tudo - admitindo ao
mesmo tempo como um elemento imutável os 99% da vida que nesta
nossa época se \'ive el"et.:tivamente. Podem assim tais arauto~ tirar
vantagem duma vertiginosa no\ idade de feirantes _para imperturba­ logo à noite

velmente reintroduzirem as inépc1as retrógradas que mal e aguenLrun


nos confins provincianos. As drogas da ideologia hão-de acabar a sua espectáculo

história numa apoteose de estupidez de que nem o próprio Pauwels 1


faz ideia, apesar do esforço que nisso põe.
em casa

As \ ariedadcs actuais de ideologia fluida - relativamente ao


sólido sistema mítico do passado - exercem um papel crescente à
medida que os dirigentes especializados têm de planificar cada vez
mais 1odos os aspectos duma produção e dum consumo crescentes.
O valor de uso, apesar de tudo indispensãvel mas que já tendia a
tomar-se apenas implícito. a partir da predominância duma economia
O céu do espectáculo e o desejo
que produz para o mercado, é doravante explicitamente manipulado ·Um Centro Europeu dos Ócios vai ser criado em Estrasburgo para 1nvesligar
(criado artificialmente) pelos planificadores do mercado moderno. as condições duma melhor utilização dos tempos livres l·-1Um longo estudo
Jacques Ellul, no seu livro Propagandes (Colin, 1962), ao descre\ er !OI já dedicado a televisão, a qual, segundo os delegados, oferece novas
a unidade das dnmas formas de condicionamento, tem o mérito de posss1blhdades de ócio no seio da familia, com acondição de a fam!hadorT11nar
mostrar que esta publicidade-propaganda não é uma simples esta nova técmca graças a uma utilização razoável• - Le Ablde, 25-4-62
excrescência doentia que eria possível proibir. visto ela reprc)entar
•Feuerbach parte da extenonzação religiosa como facto, do desdobramento do
ao mesmo tempo o remédio destinado a uma sociedade globalmente mundo em mundo religioso e mundo profano [.•.) Mas o lacto de o fundamento
doente, remédio este que permite suportar o mal, agmando-o. As profano se destacar de si mesmo, estabelecendo nas nuvens um ímpério inde­
pessoas são em larga medida cúmplices da propaganda e do espectá­ pendente, só pode explicar-se, por sua vez, pelo facto de este lu~amento
culo reinante, porque só os poderão rejeitar contéstando a sociedade profano ter falta de coesão e estar em contradição consigo mesmo. E neces­
por inteiro. A única actividade tmpor1ante do pensamento, hoje em sário. portanto, que este fundamento se1a compreendido em si mesmo na sua
contradição e que. ao mesmo tempo, SSJª revolucionado na pratica Por exem­
dia, deverá andar à volta desta reorgarnzação da força teórica e
plo, depois de a família terrestre ter sido identificada como o llllstério da
material do movimento da contestação. sagrada família, impõe-se que a primeira seja também destruída em teoria ena
A alternativa não reside apenas numa opção entre a vida verda­ prâlica.• - Marx (1845)
deira e a sobrevivência, que só tem a perder as suas modernizadas

1
Louis Pauwcls, wn dos mL'lllorcs da lt'\lista PIDllête. aut!I" de O Despmar dos
Alágrcm.

112
113
cackias. A nltemativa põe-se também do lado da própria sobrcvi­ Nos vastos centros comerciais da ideologia, do espccuiculo, da
' ência. com os problemas incessantemente agra' ados que os dono planificação e dos nlibis da planificação. os intelectuais cspeciahz.a­
e senhores da exclusiva sobrevivência não conseguem solucionar. dos têm de conservar o seu job e a sua secção respectiva - reforimo­
O:. riscos dos annanientos atómicos. da sobrepopulaçào planetária -nos aos qul! participam na própria produção da cultura, camada esta
e do atraso crescente colado à miséria material em que sobrevive a a não confundir com a crescente massa de «trabalhadores intelec­
grande maioria da humanidade. são motivos de angústia oficiais até tuais» que vai vendo as suas condições de trabalho e de ..~da aproxi­
na imprensa de massas. Exemplo banal entre todos. numa reporta­ marem-se cada vez mais claramente do trabalho dos operários e dos
gem sobre a China (Le Monde, Setembro de 1962). Robert Guillain empregados, à medida qu...: este também vai evoluindo segundo os
escreve sem ironia: «Üs dirigentes chineses parecem reconhecer de princípios da indústna moderna. Destes intelectuais especiali1.ados,
novo o problema e ter vontade de o_ resolver. Vêmo-los voltarem à há-os para todos os gostos, como um Roberto Guiducci mostrando
ideia dum controle dos nascimentos, tentado em 1956 e abandonado logo como é legl\el ao escrever (sobre «A dificil busca duma nova
em 1958. Foi lançada uma campanha nacional contra os casamentos política». m Argumt.'1Us n.ª 25-26) que o atraso existente ccdeixa-nos
precoces e em prol duma mais lata periodização dos nascimentos no hoje entre a estupidez de vivermos no meio das ruínas de instituições
seio das novas familias.» Estas oscilações dos especialistas, logo mortas e a faculdade de apenas exprimirmos propostas ainda muito
seguidas de instruções imperativas, desmascaram tão completa­ dificilinente realizáveis>1. Que irá ele, por conseguinte, propor? Fica­
mente a realidade do interesse que eles têm na libertação do povo mos a perceber que é coisa de muito fácil realização. Após ter con­
como as perturbações de consciência e as conversões dos príncipes seguido comparar numa mesma frase Hegel e Engels a D1anov e
do século xv1 (cujus regia. ejus religio) puderam desmascarar a Stálm, propõe-nos que concordemos que «estão igualmente roidas
natureza do seu interesse pelo arsenal mítico do cristianismo. Umas pelo tempo as tendências para se reconsiderar a impaciência român­
Linhas mais â frente, o mesmo jornalista adianta que «a U.R.S S tica do jovem Marx. as exegeses atormentadas de Gramsci...1>. Aqui
não apoia a China porque a suas disponibilidades são agora temos nós um homem com ar de ter visto e entendido tudo; mas se
dedicadas à conquista do espaço, fantasticam~nte dispendiosa.» Os realmente tivesse sabido ler Hegel e Gramsci. isso via-se logo. e ele
operários russos, para fixarem o teor destas (cdisponibilidades» não o vê! Quanto a nos, poderíamos lê-lo como um Ih.To aberto no
excedentárias do seu trabalho ou a sua atribuição â Lua e não à seu passado e no seu artigo. Mas deve ter passado bons tempos res­
China. tiveram tanto direito a dizer o que pensavam como os agri­ peitando Djanov e Togliatli. Um belo dta, tal como os outros fanto­
cultores chineses para optarem por ter ou niio ter filhos. A epopeia ches da Arguments, independentemente do seu Partido Comunista de
dos dirigentes modernos, em luta com a vida real que são levados ongem. pôs tudo em questão. Mas se nem todos tinham as mãos
a tomar completamente a seu cargo, teve a sua melhor tradução sujas, a verdade é que todos andavam com o espírito ensebado.
escrita no ciclo de UbÜ1• A única maténa-prima que a nossa época O nosso homem leve pois. tambem ele, de dedicar umas quantas
experimental ainda não experimentou é a liberdatle de pensar e a semanas a <<reexaminam o jovem Marx. Mas, no fim de contas, se
liberrlade dos comportamentos. fora capaz de compreender Marx e o tempo em que \'ivemos. como
quereríamos nós que ele não tivesse compreendido Jdanov imediata­
1 Alusão ils obras ll:alrais Rei Vbu. ele., de Alfrcd Jnrr)' (187J.1907), mnctcmlo p:ua mente? Em suma, há séculos que ele e outros reexaminaram o pen­
o grolcSCo da «seriedade.. samento re\oluc1onário, de forma que esse momento jó lhe parece ler

114 115
sido <1roído pelo 1emp0>i. E no entanto, rce~rninaria ele fosse o que enquanto corpo separado e e ·pccializado - mesmo que vote a
fosse hã coisa de dez anos? Emuito improvável. Podemus pois decla­ esquerda, que interessa i so'! - , satisfeita, em última anãlise, ou
rar que se trc1ta dum homem que rceltilllÚrul mah depressa do que a mesmo claramente satisfeita com a sua medíocre insatisfação literá­
História, por nunca estar com a 1hstória. E a sua c:icemplar nulidade ria. é, pelo contrário, o sector social mais espontaneamente conJra­
não precisará de vir a ser re ·xaminada por ninguém. -situacionista. Esta camada intelectual que age como um público de
Ao mesmo tempo, uma Pil11e da lntelectuali<lade· elabora a nova anteestreia. que aprecia representativamente o consumo que a pouco
contestação, começa a conceber a critica real da nossa época, esboça e pouco será proposto a todos os trabalhadores dos países desenvol­
actos que resultam disso. No 1.!spectáculo, que constitui a sua fábrica, vidos, temos nós de a enojar ante os seus valores e prcferências
luta contra as cadências e a própria finalidade da produção. Forjou os (o mobiliário dito moderno ou os escritos de Queneau). A sua vergo­
seus próprios críticos e sabotadores. Junta-se ao novo lumpen (do nha há-de tornar-se um sentimento revolucionáno.
capitalismo do consumo), que antes de mais nada exprime a recusa Convém distinguir, na intelectualidade. as tendências para a sub­
dos bens que o actual trabalho permite adquirir. Começa assim a missão e as tendências para a recusa do emprego proposto. E logo,
recusar as condíções de concurrência indíviduais, e portanto de ser­ por todos os meios. lançar a espada entre estas duas fracções para que
vilismo, em que a intelectualidade criativa é conservada; o movi­ a sua oposição total clnnfique a vizinhança da próxima guerra social.
mento da arte moderna pode Sei" considerado como uma desqualifica­ A tendência carreuista. que fundamentalmente exprime a condição de
ção pennanente da força de \rabalbo intelectual pelos criadores (ao qualquer serviço intelectual numa sociedade de classes, leva esta
mesmo tempo que o conjunto dos trabalhadores, na medida em que camada, conforme nota Harold Rosenberg m Tradição do Novo. a
aceitam a estratégia hierárquica da clas.'>e dirigente. podem entrar em dis.ertar sobre a sua alienação sem acto de oposição, por lhe ter""m
concorrência por categorias). atribuído uma nlienação confortável. En1retanto, ao penetrar toda a
A tarefa que agora vai realizar a intelectualidade revolucionária é sociedade moderna nesta passagem para o conforto e, do mesmo
imensa, se se afastar, livre d~ compromissos, do longo período ter­ passo, ao infectar-se este conforto com um tédio e uma angústia cada
minal em que «o sono da ~zão dialéctica engendrava monstros>1. vez maiores, a prática da sabotagem pode difundir-se no seio da
O novo mundo que é preciso entender é simultaneamente o dos po­ intelectualidade. Deste modo, a partir da arte moderna da poesia
deres materiais que se multiplicam sem utilização e o dos netos - e da sua superação, daquilo que a arte moderna procurou e pro­
espontâneos dn contestação \ ivida pelas pessoas sem perspectiva. meteu, a partir da clanficação, por assim dizer, que ela soube intro­
Pelo contrário, do antigo ut°'1ismo, em que teorias manchadas ele duzir nos valores e nas regras do comportamento quotidiano, veremos
arbitrário avançavam PiITTl além de toda e qualquer prática possível agora ressurgir a teoria revolucionária criada na primeira mewde do
(mas apesar de tudo com algum frutos), há agora., em toda a proble­ século XIX a partir da filosofia (da reflexão críllca sobre a filosofia. da
mática da modernidade, uma <puantidade de práticas novas em busca crise e da morte da filosofia).
da wa própria teoria. Os valores vivos da criação intelectual e artística são negados,
Não poderá existir um 1<par\ido intelectual», como sonham alguns, tanto quanto posslvel, por todo o modo de existência da intelectuali­
porque a intelectualidade que ~ena ser reconhecida neste corpora­ dade submissa. que ao mesmo tempo pretende ornamentar a sua
tivismo seria Justamente a refllexão em conforrrudade com a lei dos posição social graças no parentesco da mão esquerda com esta cria­
Srs. Guiducci, Morin. Nacle~u. A intelectualidade com patente, ção de «valores>>. A intelectualidade com emprego. que ~ente esta

116 117
contradição, procura corrigir-se com a exaltação ambigua daquilo a rebelião artística seja sempre recuperável em obra consunúvcis pela
que se chamou a boémia artistica. A boémia é reconhecida pela geração seguinte. E ao mesmo tempo que uma imitação da maneira
criadagL'lll da reificação como o momento do 11511 qualitativo da vida pós-dadaísta, graças à mais fácil ambição sem escrúpulos exisle!nlc no
quotidiana, uso este excluído em todas as restantes instâncias; como interior do espcctáculo, pod~ boje produzir quaisquer objectos cultu­
o momento da riqueza na cxliema pobreza, etc. Mas o conto de fadas, rais Yendáveis, há em diversos países do capitalismo moderno
na ~-ua versão oficial, apresenta sempre um fim . )ll~ralizador: este núcleos duma boémia não artística, congregada com base na noção
momento do qualitativo puro na pobreza deverá ler o seu desfecho na do fim ou da ausência da arte, e que explicitamente Já não visa uma
«riqueza» corrente. Os artistas pobres, durante este período de tempo, qualquer produção artística. A insa1jsfação tenderá n radicalizar-se no
terão produzido obras-primas não valorizadas pelo mercado. Mas seu seio, com o progresso da tese segundo a qual <(a arte do füturo»
vêem-se salvos (o seu jogo com o qualitativo é desculpado e toma­ (expressão esta imprópria. Vl5to parecer dispor do futuro nos enqua­
-se até edificante) porque o seu trabalho, que neSse momento não era dramentos especializados do presente) já não poderá valorizar-se
tanto um subproduto da sua actividade real, ira depois ver-se extre­ como mercadona, por a \ermos inteiramente suspensa da transforma­
mamente valorizado. Ainda assim. os homens vt\'os da anti-reificação ção global da nossa utilização do espaço, dos sentimentos e do tempo.
produziram também a sua dose de mercadoria. Deste modo, com a Todas as experiências reais de pensamento e comportamento livres
boémia, a burguesia praticou o seu dan\.inismo, aplaudindo os valo­ que conseguem esboçar-se nestas condições evoluem sem dúvida no
res seleccionados que entram no seu paraíso qtllll\titativo. É um de'<er nosso sentido, rumo à organização teónca da contestação.
registarmos o seguinte facto como coisa puramente acidental: rara­ A nosso ver, o papel dos teóncos, indispensável mas não domi­
mente os homens que tiveram em mãos os prOldutos no estádio da nante, consiste cm fornecer meios de conbec1mento e instrumentos
criação são os mesmos no estádio da mercadoria lucrativa. conceptuais que traduzam com clareza - ou com maior clareza e
A degradação acelerada da ideologia cultural iintroduziu uma crise coerencia - a crise e os desejos latentes tal como são vividos pelas
permanente nesta valorização intelectual e artíslrica. crise de que o pessoas, ou seja, pelo novo proletanado desta cmova pobreza» que se
dad.aismo assinalou o estoiro à luz do dia. Um dupno movimento, muito impõe nomear e descrever.
aparente, caracteri7.a este fim de cultura: por umi lado a difusão de Assistimos, na nossa época, a uma redistribuição das cartas na
falsas novidades automaticamente extra!das com n(()va apresentação por luta de classes; não assistimos, com toda a evidência, ao desapareci­
mecanismos espectaculares autónomos; por outro ltado, a recusa pública mento das classes nem à sua exacta continuação segundo o antigo
e a sabotagem desferidas por indivíduos que maniJfestamente se encon­ esquema. Da mesma maneira que não assistimos a uma superação das
travam entre os mais dotados para a renovação dunna produção cultural nações, mas sim a um New Dea/ do nacionalismo adentro do dispo­
((de qualidade>>: Artbur Cravan é como que o prottótipo destes homens sitivo das supranacionalidades: dois blocos mundiais eles próprios
cuja passagem foi assmaJada na zona matS radjioactiva do desastre compostos de zonas supranacionais maJ.S ou menos centrifugas, tais
cultural e não deixaram nenhuma espécie de mercauiorias ou memórias. como a Europa ou a movediça China; no interior dos dominios nacio­
A conjunção destas duas mfluências desmoraJizladoras vai tornando nais assim enquadrados podem ocorrer, a diversos níveis, modifica·
mais espesso o mal-estar no seio da intelectualidaade. ções e reconstituições, desde a Coreia à Valónia.
A partir do dadaismo, e apesar de a cultura dtominante ter podido Segundo a realidade que actualmenle se vai esboçando, podemos
recuperar uma espécie de arte dadaísta, já não é nada evidente que a considerar como proletários as pessoas que não têm nenhuma possi­

118 119
bihdade de rnodific-M o espaço-tempi1 social que a sociedade lhes suportar esta org3Ilização. visa polariZl\I' claramente n complexidade
outorga para consumo (nos dherso~ graus da abundância e da promo­ sabiamente tecida das hierarquias de fum;Õ\:s e salários. sugerindo
ção permitidas). Os dirige.mies são os indivíduos que organi7.am este que todas as gradações são insensheis e que já quase não hã \Cfda­
espaço-tempo, ou têm uma margem de opção pessoal (decorrente até, deiros proprietários nas duas extremidades duma linha curva social
por e~emplo, da assinalá\ el sobrc,·ivência de antigas formas da pro­ que entretanto se tomou extremamente plástica. Ficando assim esta
priedade privada) Um mo\inlento molucionário será aquele que divisão estabelecida, as outras diferenças de estatuto deverão desde
transforme radicalmente a organização deste espaçO:tempo e a pr<>­ logo ser consideradas como secundárias. Em contrapartida, toda a
pria maneira de doravante se decidir a sua reorganização permanente gente sabe que um intelectual da mesma maneira que um operário
(e não wn movimento que altere apenas a fonna jurídica da proprie­ «revolucionário profissionah1, se expõe a cair a qualquer momento na
dade ou a origem social dos duigentes). integração; neste ou naquele lugar desta ou daquela familia no campo
Nos nossos dias. por toda a parte, a imensa maioria já consome o cb; mmbies dirigentes (que não é nada hannonioso ou monoUtico).
odioso e desesperador espaço-tempo social que uma ínfima minoria Até à altura em que a vida verdadeira não existir para todos. o 1<sal
«produz:. (conrém precisar que esta minoria apenas produz, literal­ da terra» será sempre ensosso. Os teóricos da nova contestação não
mente, esla organização, ao passo que o «consumo» do espaço­ poderão pactuar com o poder ou constituírem eles próprios um poder
-tempo, no sentido em que o entendemos aqui, engloba toda a produ­ separado sem com isso deixarem imediatamente de existir como tais
ção corrente. na qual oh\iamente se enraiza a alienação do consumo (passando outro , nessa circunstância, a represenlar a teoria). Quer
e da vida em geral). Tendo em conta o dispêndio humano que as isto dizer que a intelectualidade revolucionária só poderá realizar o
classes dirigentes do passado sabiam fazer da escassa parte de mais­ seu projecto suprimindo-se; que o «partido da inteligência» só pode
·\.'lllia arrancada a wna produção social estática, com base nwna pe­ efectivamente existir enquanto partido que a si mesmo se supera e
núria geral, podemos dizer que os indi\'iduos desta minoria dirigente cuja vitória constitui ao mesmo tempo a sua perda.
perderam eles próprios a sua 1<dominaçào», nos nossos dias São
apenas consumidores de poder, mas do próprio poder da organização /. S. n.• S, J31lCJ/'O de 1963
demente da sobre'<i\'ência E é apena) com vista a consumirem esse
poder que eles organizam tão misera\dm~nte esta sobrevivência.
O possuidor da natureza, o dirigente. vê-se dissolvido na mesquinhez
do uso do seu poder (o escândalo quantitativo). O domimo da natu­
reza em essa dissolução asseguraria o pleno emprego: não de todos
os trabalhadores, mas de todas as forças da sociedade. de todas as
possibilidades criativas de cada qual para si mesmo e para o diálogo.
Onde páram então os donos e senhores? Na outra extremidade deste
sistema absurdo No pólo da recusa. Os donos e senhores vêm do
negativo, são ponadores do principio anti-hierárquico.
A separação aqui traçada entre os que organizam o espaço-tempo
(bem como os agenteli d1rec1amente ao seu seniço) e os que têm de

L!U
A vanguarda da presença menos sumário do original, como poderá sentir uma tal frescura
diante do disfarce. O próprio vocabulário se adapta mal ao asswito.
Fala de «grandes escritores» de vanguarda, quando a \'anguarda jus­
No n.º 4 de Jfédiations, Lucien Goldmann. que há pouco se tornüu tamente pôs esta noção. há muito tempo. num ridículo definitivo.
um critico especializado na \anguarda cultural, fala duma "van­ Mais adiante, ao evocar os divertimentos de bom gosto que Planchon 1
guarda da ausênciw1, aquela que e.'tprime na arte e na escrita uma lindamente monta com as p~ e os pedaços duma tradição teatral
certa recusa da rcificação dominanle na sociedade moderna - mas concluída, Goldmann, nisso farejando também um certo vanguar­
que, segundo eh; só isso exprime. G~ldmann reconhece, quarenta e dismo. declara todavia não verificar neles <ruma criação literária da
cinco anos dc!pois do fenómeno ter ocorrido, o papel negallvo que a mesma importância, centrada na presença dos valores humanistas e
cultura de vanguarda exerce no nosso século; mas, estranhamente, vê do devir historicon. A notável quantidade de importância nula qu~
tal coisa entre os seus contemporâneo:. e os seus amigos Sob a indelevelmente pertence à vanguarda goldmaniana deixa as.sim Plan­
máscara de dadaistas ressusci1ados, deparamos assim, nada mats nada chon em maus lençóis. Mas é verdade que Goldmann fala de criação
menos com lonesco, Beckett. Sarraute, Adarno., e Duras, sem esque­ literária. Poderá ele não saber que a rejeição da literatura e a própria
cer o Robbe-Grillet que Marienbada. A alegre pequena equipa, na sua destruição da escrita foi a primeira tendência dos vinte ou trinta anos
totalidade, volta portanto a interpretar em farsa a tragédia da matança das pesquisas de vanguarda fertas na Europa.. que os seus farsistas
das formas artísticas. Sarraute! quem podia imaginá-lo? Adamov! a espectaculares só 'êem pelo lado errado do binóculo. explorando-a
quem teria isto passado pela cabeça? Goldmann. espectador gene­ com uma parcimónia de genle com rendimentos a prazo? A van­
roso. com gravidade comenta o que en.'terga: 1(A maior parte dos guarda da real autodes1.ruiçào da arte traduzira de modo inseparável
grandes escritores de vanguarda exprime sobretudo, não valores rea­ a ausência e a presença possível duma vida totalmente diferente.
lizados ou realizáveis. mas sim a auréncia. a impossibilidade de for­ Deverá acaso cair na mistificação do humanismo quem não deseje
mular ou apreender valores aceitáveis em nome dos quais pudessem seguir na peugada de Adamov, nesta ausência que lhe fica tão bem
criticar a sociedade..>> Ora, justamente, isto é falso, como logo se verá que até está em vias de se tomar proprietário dela?
. e pusermos de lado os aclares do romance cómico de Goldmann e Sejamos mais sérios do que Goldmann. Interroga-se ele, no
examinarmos a realidade histórica do dadaísmo alemão ou do mesmo artigo, sobre se existirão na presente sociedade. neste capita­
surrealismo entre as duas guerras. Goldmann parece ignorá-los lite­ lismo moderno a consolidar-se e a desenvolver-se tão deploravel­
ralmente - o que não dei.u de ser curioso. Julgará ele que urna mente como vemos, <<forças sociais bastante poderosas para pro-.oca­
pessoa pode com legitimidade contestar por completo a interpretação rem a sua superação, ou pelo menos orientadas com vista a essa
histórica exposta no seu le Dieu Caché. assinalando, ao mesmo superação.» Esta questão, com efeito, é muito importante. Tentaremos
tempo, que não leu Pascal nem Racine porque o século xvu é com­ responder pela afirmativa e com provas. Em todo o caso, o estudo
plexo e já constitui empreitada bastante ler as obras completas de
1
Colin? Não estamos a ver, tendo Goldmann um conhecimento pelo 1 Rogcr Planchon. actor e cua:nador, um dos mais célebrt:S homens do teatro cm

França a putir de 1950. Além de obra:; de Ad.lmov ou de clãssicm a quem deu nO\'O
1
Abade Ou!rles Cotin (1604-1682), nlllOr «prcciosisw. de pocsms galantes e Jl1nflc. vigor, encenou ttmbém vánas peças de Brccbt, um dos raros aru.~w conlmlpoinem que
tos mordaz.cs. os si1W1Cion1stas lljX'Ccia\1llll.

122 123
justamente desmistificado dos n:ais movimento· de vanguarda artís­ integração. Na mesma revista Médwtion.s convém aliás assinalar a
ticos ou pollticos pode fornecer elementos de apreciação bem raros integração dum novo oficio: a critica em prosa «abstracta» da obra
na obra de lonesco ou de Garaudy. O 1isivel social da sociedade do abstracta. corrente desde hã quinze anos nos catãlogos de pinrura e na
espectácuJo está mais afastado do que nunca da realidade social. Até qual Michel Tapiê conseguiu maravilhas. surge agora na literatura
a sua arte de vanguarda e o seu pensamento questjt>nador se vêem com Jean Ricardou, que simplesmenle transpõe a sábia e infantil
dornvante maquilhados sob as luzes deste visírel. Aqueles que se e,;plicaçào de textos introduzindcrlhe um melhoramento: comenta,
manlc!m fora desta cena varrida pelas sonoridades e os holofotes do pintando negro sobre negro, as páginas muito pouco legiveis e volun­
presente, que tanto surpreende Gold.mann. estão precisamente, C-Omo tariamente pobres de contt.:údo do novo romance puro, numa informal
por enquanto os situacionistas, na vanguarda da presença. Aquilo a linguagem critica digna do modelo quanto a conteúdo e legibilidade.
que Goldmann chama o vanguarda da ausência não é senão a a11sé11­ Pode assim integrar-se o que se quiser no <'novo realismo»: trinta
cia da 1·ang11arda. Altivamente afmnamos que de todas l!Stas preten­ colheres das de chá, cem mil garrafas, um milhão de suiços: e nisto
sões e gesticulações nada ficará na problemática efectiva e na história reside a sua força. A nova figuração quer integrar o passado, o pre­
desta época. Neste ponto. como nos demais. daqui por cem anos se sente e o futuro da pintura em tudo o que pague bem. verdadeiro
há-de ver se nos cnga11ámos. seguro contra todo:> os riscos para os amantes da arte abstracta e, ao
A vanguarda goldma.nista e o seu absentismo já andam aliás atra­ mesmo tempo. para os da arte figurativa.
sados (com excepç-Jo de Robbe-Grillct, que na roleta do cspectáculo Sendo a cultura o que é, não se podem senão integrar dissoluções
vanguardista aposta em todos os números). A última tendência con­ umas nas outras. E estas dissoluções, a bem dizer, são das própnas
siste na integração, na integração de várias artes entre s~ e em inte­ repetições inv-Jriá, eis, que ninguém deseja assinalar, de algo mais
grar a to<lo o custo o espectador. Antes de mais, desde Marie11bad, antigo {o romance-jogo de cartas de Saporta é a repetição do poema­
que se tomou a referência jornalística obrigatória. não têm conta a -jogo de cartas de Paul Nougé,1 Le jcu des mots et du hasard. anterior
obras que só podem existir «graças à participação do espectador, a 1930, reeditado hã alguns anos. Poderíamos multiplicar estes exem­
estando cada qual destinado a senti-la de modo diferentv> (Jacques plos). Quanto à integração do espectador nestas lindas coisas, ela
Siclier, Le Montk de 28-11-62, a propósito dum qualquer bailado constitui uma imagem mais pobre da sua integração nas noHs cida­
televisivo.) Marc Saporta acaba de publicar um romance-baralho de des, na densidade territorial de televisores, na empresa que o
cartas que o le1Lor tem de baralhar antes da lei~ e assim se parti­ emprega. Tem o mesmo plano que esta última, mas com muitissimo
cipa. Depois a gente integra: uma música e~erimental que o visi­ menos força e muitissimo meno· cobaias. As velhas formas da arte da
tante poderá ouvir diante de cerâmicas {exposição parisiense de neodecomposiçào estão agora. em si mesmas. longe do centro das
Starczewski). Isto vai da música de Stockhausen. cuja partitura se
toma «mõveh1 conforme o intérprete, a um filme abstracto do alemão 'Paul ·ougi: (1895-1967) Figura dcst:icada da mais tontcswãna tcndbicia sunu·
Kirchgãsser (Instituto de Música Contemporânea de Darmstadt). lisu europeia. a belgii, com Mattcl Mariên e uma plêiade de 11opcnmc:n~, Nougé
Temos tambl'.'ID a integração de 'icolas SchofTer e da empresa Philips foi mn dos fuTlliackn5. cm 1919. duccçiio belga da lntcm.1cional ComunistJ RCCll' ando
. 9~ - e
O) jogos, a seu \c:r pums, da •<CSCnlll outomAlll'1ll>, (31lÇl-SC desde 1 - cm llCÇOCS.
num clima audiovisual (a (<parede-criaçãon). Temos, em suma, por
cscntO" amiúde na fro1ucira d3 lcgzihd:idc Foi um dos rruüs ucuvo~ fazcdarcs da admi­
essa Europa fora, mil integrações que se vão interintegrnndo, por r.h'CI rr.ista Ler lê\m nutS, na qual colaboraram vârios mcmhmi da lntcmaoonal
todo o lado, nas bienais qul.! se tomam verdadeiros JlimaJaias da Lc:tristl, inclumdo lkbonl.

124 125
lutas em prol do domini11 da cultura moderna. A mudança de terreno especializadas. que dariam coisas deste género: i<Uma espécie de
cultural não é apenas a tese da vanguarda re\olucionária na cultura, esculturas para serem lutadas, daJJças para serem pintadas, quadros
é desgraçadamente também o projecio inverso, já em larga medida para praticar esgrima>>. No máximo, Le Pare atreve-se a utilizar algu­
realizado. dos dirigentes aclUais. Con\'irá todavia assinalarmos à mas fórmulas para-situacionistas: «Admitindo claramente o fim da
parte os especialistas do mo\iinento «cinétic0>1. Estes.querem apenas situação tradicional do espectador pa:>sivo, contorna-se a ideia de
integrar o tempo na arte. liv1.'Till11 azar, porque o prõgrama da nossa espect.áculo...». Esta é porém uma ideia que será melhor não se con­
época consiste justamente em dissolver a arte no tempo vivido. tornar. mas sim avaliá-la no preciso lugar que ocupa na sociedade.
Em vários pontos, certos investiga~ores, para ficarem com uma A futilidade das esperanças de Le Pare a respeito daquele seu espec­
especialização menos atravancada, começam já a a\'enturar-se para tador que o há-de regozijar ao atingir «a participação real lmanipu­
além destas integrações apressadas e das suas justificações sumárias. laçào de elementos)>' - ah pois! e os artistas visuais, bem entendido.
Há técnicos, como Le Pare, que pretendem refonnar o cspectáculo, terão ali a mão, já prontos, esses tais elementos - dará um resultado
conforme consta num panfleto do <1Grupo de Investigação da Arte mais sólido quando, no fim do texto, ele estende a mão à «noção de
Visual». de Setembro de 1962. Pensa este grupo que se pode fazer programação>•, ou seja, aos cibernéticos do poder. Hã-o:. que vão
evoluir o espectador passivo. tomando-o «cspectador-estimuladm> ou muito mais longe (cf. Francc-Observatt.'llr de 27-12-1962): é o caso
ate «espectador-intérprete», sempre, porém, no quadro das velharias de um tal «Semço de !nvc tigaçào da R.T.F. [Rádio Televisão Fran­
cesa]•>, serviço este que se deu ao luxo de «criar 11ma situaçiio» (no
dia 21 de Dezembro próximo passado). organizando uma conferência
na UNESCO com a participação dos famosos extraterrestres que dirigem
a revista Planête.
É de tal ordem a dialéctica da História que a vitória da Interna­
cional Situacionista no dominio teórico já obriga os seus ad,·ersá­
rios a disforçarr:m-se de situacionistas. A partir de agora. temos
contra nós duas tend1..i1C1as na luta infiltrada: os que se proclamam
situacionistas sem terem tdeia m:nhuma do que isto seja (caso das
variedades do nashismo) 1• e os que, pelo contrário, se decidem a

1 Nmlúsmo foi um termo lorjado pela l.S a partir de um sttu:ic1<miSU1 t.'l:cluido cm


Marcar encontro, mas onde? 1962, o dinamllfquês Jõrgcn Nash, que, com outros a-s1tu3Cioni5ta~ cscandínavos, pn:·
Enquanto na estação de Saint·lazare as pessoas oonbnuam a esperar umas tendia «a continuação da nne "modO'llista~ actmb1, segundo uma oricniação oquc llpc!W
pelas outras, a procurarem· se ou aperderem-se na sala de espera dos Passos ambiciona renovar a am: oo plano imediato, cm IOCll contradição com a tcona suuacio­
Perdidos, o aerõdromo de Orfy acaba de instalar um •ponto de encontro~ muito nisti, que sustenl.3 J3 não ser possivct contribuir com qll3!quer renovnçiio fundamental
definido que ira supnmir todas as incertezas. E uma enonne esfera metálica, paro a tradicional a11e separada, sem~ outras transfonnaçóes necessárias, sem a m:ons·
suspensa no meio do vestíbulo do rés-<lo-chão e rodeada por uma inscrição truçio líne d3 socu:daJc globel11 (/.S. n.• 8. pp. 24-25). Este diferendo ~ncinl C5tC\'C
luminosa que a proclama ·lugar de encontro•, eliminando assim qualquer na base de OUIJa) cxcllliiôe., cm cspccinl lú d.: 0110 membros da~ alemã da l.S.,
nesdação. - Ele, 31-8-62 troas eles anim.s, cm Fcvemro de 1962.

127
126
adaptar algumas ideias sem os situacionistas e sem nomearem a l.S. em 1960.1 Ate esta subtcoria levada ao cúmulo do empobn.-c1mento se
A crc.-scente probabilidade de e verificarem algumas das no. sas apresenta incómoda demais para o ecletismo dos convertidos do
teses. dentre as mais simples e menos recentes. leva bastante gente velho ÍllllcionaJismo. Quanto a nós. porém, não defendemo:. sistema
a adoptar boa parte de uma ou outra em seu próprio nome e sem nenhwn, e \emos melhor do que ninguém. a todos os níveis, o sis­
di=er de onde isso vem. Bem entendido, não se.trata aqui duma tema que eles próprios defendem e os defende o eles ao mutilâ-los
questão de antecedentes a reconhecer. de celebridades pessoais tanto. O que nós defendemos é a destruição de semelliante sistema.
meritórias, ele. Se interessa assinalar esta tendência. é apenas para Devemos fuzer o mesma objecção às pessoas que começam desde
a denunciar num único ponto crucial: estas pessoas. ao exporem um há seis ou dez meses a repensar, nas páginas de certas revistas, a
no•10 problema, fazem-no para o banalizarem, após terem feito tudo questão dos ócios. ou as novas relações humanas que se impõem no
para o rechaçarem, dele extirpando a violência e a sua ligação à seio da futura organização revolucionána. Nisso tudo, o que é que
subversão geral, tomando-o inofensivo a pontos de o redumcm falta? A experiência real, o oxigénio da crítica impiedosa do exis­
a um mero enunciado universitário, ou coisa pior. t com este tente, a totalidade. O ponto de vista sítuac10nista toma-se agora indis­
objectivo que se toma necessário, para essas pessoas e conde· pensável como o fermento. sem o qual a massa. fraca demais, acaba
rema IS por nunca levedar; e esta massa reside nos melliores temas levantados
É este o caso da revista Arcliitccturc d'aujourd'li11i, que por fim pela 1S desde há alguns an~. Os indivíduos inteiramente talhados
dedica um número (Junho-Julho de 1962) a uma selecção de c<arqui­ pelo téd10 da vida e do pensamento dominantes só podem aplaudir os
tecturas fantisticasn, entre as quais certas tentativas antigas e actuais lazeres do tédio. Os que nunca puderam apreender o presente nem o
que podem de facto ser muito interessantes - mas de cuja aplicação possível do mO\imento revolucionário só podem andar em busca
interessante só a I S. detém a chave. Com os pinta-monos da duma pedra filosofal psicotécnica. Dessa que poderá retransmutar os
Arcltitect11nt d'a11jo11ni'hui tais tentati\'as s6 ser\em para enfeitar as trabalhadores modernos. despolitizados, em militantes fiéis de orga­
muralhas da passividade. O director dessa revista, por exemplo, na nizações de esquerda, reproduzindo estas tão perfeitamente o modelo
sua actividadc pessoal de artista, se assim podemos dizer, tentou da sociedade estabelecida que bem poderiam empregar. como wna
quase todos os géneros dos escultores que estão na moda, imitando­ fábrica. uns quantos psicossociólogo:i para olearem um pouco os seus
-os tão bem que até engana, coiso que parece ter-llie atribuído uma microgrupos. Os métodos da sociometria e do psicodrama não hão­
confumada autoridade no que tange à plástica do condicionamento. -de levar ninguém muito longe na construção das situações.
Se gente desta se lembra agora que se impõe melhorar o cenário, é Conforme a participação se vai tomando menos possível, os enge­
porque age, como fázem todos os reformistas, para impedir uma nheiros de segunda classe da arte modernista reclamam a participação
pressão mais forte, antecipaodo-se·lhe. Estes responsáveis de agora de toda a gente; e reclamam-na como coisa que lhes é devida a eles.
bem querem pensar em refonnar o cenfuio, mas sem tocarem na vida Apresentam esta factura com os prospectos do modo de usar,
que as pessoas levam dentro dele. E medrosamente lá vão chamando
«sisterrum às inrestigações empreendidas a este propósito, com vista 1Alusão prov1h1:l ao cx-sttll3cíonista Constanl N1cu.... cnhws, membro da sctçiio ho­
a fic-dfem abrigados duma qualquer conclusão a que se possa chegar. lruwlcsa, que se demitiu da l S cm l960, critiaido como ICCJlOOralJ do urlmuqno
Não é por acaso que neste citado número levam pouco em conta o Constmt, pintore arquÍll:Cto, foi wn dos mentores do grupo CWR.. (1948·51), com A~gcr
subproduto «técnico11 do urbanismo unitãrio que teve de sair da 1S. llXll, participando posicrionncnte no movimento r1ovo hol:mdes.

l2H 129
uma dezena de espectadores não-acção na mais completa obscuri­
dade. imóveis. sem dizer nada11. Ao serem postas em emdhante
posição. acontece toda\ ia que as pessoas gritam muito alio, como
felizmente puderam verificá-lo todos quantos participaram na acção
real da vanguarda negaliva. que nunca foi, como julga Goldmann,
vanguarda da ausência pura. mas sempre encenação do cscãnclalo
que é a ausência, apelando a uma presença desejada, suscitando «a
provocação com vista ao jogo que é a presença humarum (11Mani­
festo», lS n.• 4}. Os alunozinhos do «Grupo de Investigação da Arte
Visual» têm uma ideia tão metafisica dum publico abstracto que não
hão-de topá-lo, seguramente, no terreno da arte - pois com uma
incrível impudência, todas estas tendências postulam um público
totalmente embrutecido e capaz duma seriedade tão enfadonha como
a que os especialistas mostram com as suas maquinetas. Em contra­
partida, porém, e.\Se público estã a canstituir-\51! no plano da socie­
Marilyn Monroe, 5 de Agosto de 1962: a especialização do espectáculo de dadl! global. É a «multidão solitária» da sociedade do espect.lculo, e
massas oonstitui, na sociedade do espectawto, o epicentro da separação e da aqui Le Pare já não está tão à frente da realidade como julga; na
não-<Xlmunicação.
organização desta alienação, não há seguramente nenhum espectador
que possa mostrar-se puramente passivo, visto a sua própria passi"i­
enquanto regra do jogo jã explícita, como se esta participação não dade ser organizada: esses tais nespectadores-cstimuJados» de Le
ti1resse sido sempre a regra implícita duma arte em que eln existia Pare encontram-se Já por todo o lado.
efectivamente (nos limites de classe e de profundidade que sempre Verificamos cada vez mais que a ideia de construção de sítuações
enquadraram qualquer arte). Instam-nos, com insolência, a «intervir» é central na nossa epoca. A sua imagem inversa, a sua simetria
num espectáculo e numa arte que nos dizem respeito tão pouco! Por escravista. aparece em todo o condicionnmento moderno. Os primei­
detrás do lado cómico desta mendicidade glonosa. ficam as esferas ros psicossociólogos - diz Max Pagês que nestes últimos \'Íflte anos
sinistras da alta policia da sociedade do cspectãculo, que organiza «a não surgiram mais de uns cinquenta - vão multiplicar-se rapida­
participação em qualquer êoisa em que é impossível participam ­ mente; começam já a saber manipular algumas situações evidentes.
trabalho ou lazeres da vida privada - (cf «Programa Elementar do ainda grosseiras, tal como o é também a permanente situação colec­
Secretariado de Urbanismo Unitário», p. 1). Convirá por certo rever llva devidamente calculada para os moradores de Sarcelles 1• Os artis­
a esta luz a aparente ingenuidade do citado texto de Le Pare, no seu
tão estranho irrealismo a propósito do público que ele pretende «esti­ 1
San:cllcs, cidade da periferia norttl da mna mctropolilalla parisiense. a uns 15 km
mulam. Segundo escreve, ccpoder-se-á até. nes1a violenta vontade de do centro de Pnru Foi wna das primeiras, cm França, a ser submcuda ao lnltnmmto de
participação dos espectadores, chegar à não realização, à não contem­ choque da modcmiznção uibana conctntraçào de muitos m11b.nres de J>CÇ'ollllS an prb.lios
plação, à não acção. Sendo então possível imaginar, por exemplo, de muitos andm:s, de constroçào nipida e ddicic:ru.; nwn coatora org;mÍlJ!dO de isola­

130 131
l~'Ilteiam wna mistura de poesia, pintura. dam,."3 e jazz. Podemos con­
SJderar esta forma de encontro social como wn caso-limite do velho
espectácuJo artístico, cujos restos são assim atirados parn uma vala
comum; como uma tentath·a de renovação, neste caso por demais
atravancada com estética, da vulgar surprise-party ou da orgia clássica.
Não é ate dificil perceber que na busca ingénua de «algo que acon­
teça•>, ~ausência d~ espectadores separados e na vontade de inovação,
por mnuma que seja, no interior do tão pobre registo das relações
huarrnnas, o happening constitui, no isolamento, a tentativn de constru­
ção duma situação com base 1w miséria (rmséna material, miséria dos
Sarcelles
encontros, miséria herdada do espcctáculo artístico, miséria da filosofia
exacta que muito tem de «ideologizarn a realidade destes momentos).
tas que :se situam neste campo para salvarem uma especialização de Pelo contrário, as situações que a l.S. definiu só podem ser construídas
decoradores da maquinaria cibernética, não escondem que dão os com base na riqueza material e espiritual. Significa isto que 0 esboço
primeiros passos na manipulação da integração. Mas do lado da nega­ duma construção das situações deve constituir o jogo e a seriedade da
ção artística, rebelde a esta integrac;ào. nin1:,iuém poderá aproximar-se vanguarda revolucionária. não podendo tal coisa existir para pessoas
do terreno minado que é a situação sem se e.<tpor a ,·cr-se recuperado, que em certos aspectos se resignam à passividade política. ao desespero
a não ser que os interessados se situem nas posições duma nova metafisico e até a uma dolorida pura ausência de criathidade ortística.
contestação coerente em todos 0.) aspectos. Antes de mais no aspecto A.~ção das situações é simultaneamente o objecti\o supremo e a
polltico, onde nenhuma futura organização re,·oJucionária poderá pnmeira maqul!la duma sociedade onde hão-de dominar comportami!n­
seriamente conceber-se sem várias qualidades «situacionistas)). tos livres e ~penmentais. Mas o lwppening não tardou muito a ser
Referimo-nos à recuperação do jogo livre, quando este fica isolado im~do para a Emopa (para Paris, em Dezembro {de 1962]. na
no terreno exclusivo da dissolução artística vi\'ida Na Primavera de Gal~a _Raymood Cordier) e a ser totalmente virado do avesso pelos
1962, a imprensa começou a relatar a pratica do liappeni11g entre a seus urutadores franceses, obtendo assim um monte de espectadores
vanguarda artística nova-iorquina. É wna espécie de espectáculo dissol­ qwetos nwn ambiente de baile da Escola de Belas Artes, como pura e
vido ao máximo, uma improvisação de gestos, de feição dadaista. por sunples publicidade à inauguração mundana dumas coisinhas swreali­
pessoas que se encon!ram juntas num sítio fechado. A d.roga, o álcool zantes.
e o erotismo desempenham nisso o seu papel. Os gestos dos «actores» Aquilo que é construído com base na miséria será sempre recupe­
rado pela miséria ambiente, e por isso há-se servir aos garantes da
menta ~. nomcadamcnu: ck\ido às g11111~ disllincias a percorrer entre o local de miséria A LS. evitou no inicio de 1960 (cf. «Die WeJt ais Lnbyrinth»,
trabalho e o emprego. A popuUçào dcsw novu c11és te\~ ongcm no novo proletnrüido, m /.S. n. 4) a armadilha em que se transformam a proposta do
incluindo o de ori!C'TI cstrungci111 com d1fiai.ldadcs de aculruração. O canicicr lk>stil
Stedebjk Museum de construir um cenário que serviria de pretexto a
destas novas zoruli lu!bilacionais tomou-as a tr.·c trecho o centro da ddinquênda ju~c:­
nil, as.>er1h.'S como estão numa violência tm~f,el de desalojar. A satu:ição. cbJc os uma série de derivas em Amesterdão e a alguns proJectos de urba­
anos 60, npc:n:is ~ tc:m de.trn~/vido. nismo unitário para esta cidade. Era vis(vel que o labmnto CUJO plano

132 133
a I.S. impusera seria reduzido, com uma séne de limites e fiscaliza­ um rombo na ideologia e confessam que o monopólio da manipula­
ções. a algo que não passaria duma manifestação dt tradicional arte ção desta ideologia é a todos os níveis 'itaJ para o seu poder. Mas
de vanguarda. Anulámos por isso o acordo. Este museu vanguardista nem por isso as pessoas que no Ocidente prosperam sobre os prolon­
parece tcr ficado inconsolá-.el durante muito tempo. visto realizar por gamentos respeitosos e as rearnmações artificiais do antigo jogo cul­
fim em 1962 o «seUl> labirinto, mais singelamente entregue ao grupo tural bloqueado deixam de ser inimigas da arte moderna. Quanto a
do cmovo realismo». que lã ajuntou algo de muito fotogénico i1com nós, somos os seus legatários universais.
dadá a peito». como dizia T:zara nos bons tempos que lã vão. Somos contra a forma convencional da cultura, mesmo na sua
Se acedêssemos às pessoas que nos instam a expor projectos de condição mais modem.a; não, evidentemente, preferindo-lhe a igno­
pormenor utilizáveis e convincentes - m:is por que deveríamos nós rância, o bom senso pequeno-burguês do comerciante ou o
convencê-las a elas? - e lhes fornecêssemos tais projectos, das duas neoprimitivismo. Hâ uma atitude anticultural que constitui a corrente
uma: ou os virariam logo contrn nós, como provas Jrovadas do nosso dum impossível retorno aos velhos mitos. Somos pcla cultura, bem
utopismo, ou pro\'ocariam de imediato a sua difusão adoçada. Por isso entendido, contra uma tal corrente. Situamo-nos do outro lado da
lhes dizemos: podem com certeza solicitar projectos de pormenor a cultura. Não antes dela, mas depois. Dizemos que é preciso rea/i:á­
quase todos os outros - são vocês que se convencem de que muitos -la. superando-a como esfera separada: não só como domínio reser­
poderiam ser satisfatórios-. mas justamente não a nós; a nossa tese vado a especialistas, mas sobretudo como domínio duma produção
é que não ocorrerá nenhuma fimdamentaJ renovação rultlll'al no porme­ especializada que afecta duectamente a construção da \iida ­
nor, mas apenas na totalidade. Estamos evidentemente muito bem col<>­ incluindo a vida pessoal dos seus próprios especialistas.
cados para inventar, llllS ano antes dos dema.is, tod~ os truques pos­ Não somos completamente desprovidos de humor; mas este humor
síveis da extrema decomposição cultural presente. Como tais truques só é dum gênero algo no\'o. Se se trata de escolher sumariamente uma
são utilizáveis no espectáculo dos nossos inimigos, guardamos na al!tude a propósito das nossas teses, sem entrar em finuras ou numa
ga\·eta algumas curtas notas sobre o assunto. Passado algum tempo, ou noutra compreensão mais subtil dos matizes. o mais simples e
muitos desses truques são inteiramente achados oatn vez, de espontâ­ mais correcto consistira em levarem-nos. com total seriedade, à letra.
neo modo, e lançados. com grande alarido, por Fulano ou Sicrano. Mas Como vamos nós atirar para a falência a cultwa dominante? De
truques desses têmo-los nós em grande número, airuh não «apanhados duas maneiras. primeiro, gradualmente, e a seguir bruscamente. Pro­
pela História». Alguns poderão nunca o ser. lsto nem sequer é um jogo, pomo-nos utiliz.ar de modo não artístico conceitos de origem artística.
é antes wna verificação experimental. Partimos duma exigência artística, que não se parecia com nenhum
Pensamos que a arte moderna, em toda a parte onde se mostrou estetismo antigo por justamente representar a exigência da arte
realmente critica e inovadora graças às próprias condições do seu moderna revolucionária nos seus melhores momentos. lntroduzimos
aparecimento, cumpriu bem o seu papel. que foi grande; pensamos esta e.~gência na vida. uma exigência por isso mesmo virada para a
também que ela continua a ser, apesar da especulação exercida sobre politica revolucionária.. ou melhor. para a sua ausência e para a obten­
os seus produtos, detestada pelos inimigos da bberdade. Basta vennos ção de explicações sobre a sua auséncia. A política revolucionária
o medo que neste momento inspira aos dirigentes da destalinizaçào lotaJ que disso decorre, confirmada pelos mais altos momentos da
homeopática o mais ínfimo c;inaJ do regresso da arte moderna aos efectiva luta revolucionária dos últimos cem anos. volta assim ao
seus Estados, onde a tinham posto no olvido. Denunciam-na como primeiro tempo deste projecto (uma vontade de \ida directa), mas

134 135
sem que ha1a nisto ane ou política como fomias independentes, nem indhiduos em função da nossa acção e da deles: de dt.-sfozcr encon­
o reconhecimento de qualquer outro domínio separado. A contestação tros com vários dos que, na sua \ida privada, - referência inaceitã­
e a reconstrução do mundo só vivem na indivisão de um tal proJecto. vel - seriam agradáveis. Porque a contestação do existente, ao enca­
cm que a luta cultural, no sentido convencional, e apenas o prete:1Cto rar também a vida quotidiana, traduz-se naturalmente em lutas na
e a cobertura para um trabalho mais profundo. vida quotidiana A lista destas dificuldades, dizemos nós. é longa. mas
É fácil estabelecer uma lista intenninável dos pro~lemas a soluci­ os argumentos que disso resultam continuam a ser extremamente
onar em prioridade; uma lista das dificuldades; ou· até de algumas débeis; na encruzilhada desta época, vemos muito bem a outra face
entristecedoras impossibilidades a curto prazo. É provável, por exem­ da alternativa do pensamento, quer dizer, a submis ão incondicional
plo, que a grande popularidade que teve entre os situacionistas o em todos os aspectos. Baseámos a nossa causa em quase nada: na
projccto dum escândalo, de grande amplitude, na sede parisiense da insatisfação e no desejo, irredutíveis no tocante à vida.
UNESCO, seja antes de mais nada testemunho da vontade, latente na A 1 S. está ainda longe de ter criado situações, mas já criou sítua­
1.S.. de encontrar um terreno de intem!nçâo concreto, onde uma ciorustas, o que é muito. Esta libertada força de contestação, além das
acti\ldade situacionista surgisse abertamente como tal. em positivo. suas primeiras aplicações directas, mostra não er impossível uma tal
como uma espécie de construção do acontecimento a acompanhar libertação. De maneira que daqui a pouco, em diversas matérias. se
aqui a tomada de posição retumbante contra o centro mundial da há-de ver o trabalho.
cultura burocratizada. Complementares a esta feição das coisas, as
pL'TSpectivas sustentadas por Ale.under Trocchi, antes e agora, sobre 1 S n.• 8, Janeiro de 1963
a clandestinidade parcial da acção situacionista. podem levar-nos a
aumentar a nossa liberdade de intervenção. Na medida em que, como
OCI'C\e Vane1gem, «até certo ponto não podemos evitar dar-nos a
conhecer de maneira espectaculam, estas novas formas de clandesti­
nidade serio sem dúvida úteis para lutar contra n nossa própria ima­
gem espectacular, que os nossos inimigos e os no~sos segutdores
caídos em d~graça já andam a forjar. Como qualquer prestigio que
pode constituir-se no mundo (e embora o nosso «prestigio» seja
muito particular), começamos a desencadear as forças funestas da
submiss.1o a nós mesmoJ. Para nunca cedennos a estas forças, preci­
samos de inventar as defesas adequadas, que no passado muito pouco
foram estudadas. Um outro motivo de preocupação da acção situacio­
nista reside sem dúvida na espécie de especialização que forçosamen­
•Critica da Separaçao•
te constitui, numa sociedade com um pensamento e uma prática alta­
•Não tenha a parvoíce, disse ela, de querer salvar o mundo, você nao pode
mente especializados, a tarefa de manter a base da não especialização fazer nada. Esta conspração não é de ãmbto terreno. nem sequer do sistema
que tudo abarque, lançando-nos sem hesitar à tarefa de envergar as solar. Nós somos os peões de um JOQO que as pessoas das estrelas estao a
cores da totalidade. Um outro, ainda, é a obrigação de encararmos os Jogar.- -A. E. Van Vogt, o Mundo dos Nao-A

136 137
All the king 's men organização da linguagem, que a comunicação imposta pelo poder se
desvenda como uma impostura e um logro. Em vão um embrião de
poder cibemi!tico tentará pôr a linguagem na dependência das mâqui­
O problema da linguagem C!ltá no centro de tnlas as lutas em prol nas que controla, de maneira a que a infonnaçào se tome a única
da abolição ou da conservação da alienação pr~eate; é inseparável comunicação possível. Mesmo neste terreno, manifest.am·se resistên­
de tcxlo o terreno destas lutas. Vivemos na linguagem como no ar cias, podendo nós considerar a música electrónica como uma tentativa,
corrompido. Contrariamente ao que julgam as pesroaúspirituosas. as obviamente ambígua e liautada, para combater a relação de dominação,
palavras não jogam. Não fazem amor, como ena Breton, a não ser em desviando as mâqwnas em pro\'eito da linguagem. Mas a oposição é
sonhos. As palavras trabalham, por COl!ta da organização dominante muito mais geral. muito mais radical. Demmcia toda a «comunicação»
da existência. E todavia não estão robotizadas; para desgraça dos unilateral, tanto na velha arte como ao infonnacionismo moderno.
teóricos da informação. as palavras não são em si mesmas «informa­ Apela a uma comunicação que arruine todo e qualquer poder separado.
cionistas»; há nelas forças que se manifestam, forças estas que podem Onde de facto houver comunicação, deixará de haver f.stado.
frustrar os cálculos. As palavras coexistem com o poder numa relação O poder \ive de receptaçào. Não cria nada. ó recupera. Se ele
análoga àquela que os proletários (tanto em sentido cláss1co como no criasse o sentido das palavras, não haveria poesia, haveria apenas
sentido moderno do termo) podem sustentar com o poder. Empregues «informaçàm> pragmática. Nunca poderiamas opor-nos adentro da
quas1. o tempo tcxlo, utilizadas a tempo inteiro, com inteiro sentido e linguagem e toda a recusa seria extenor a esta, seria puramente
inteiro sem-sentido, as pala\'ras continuam a ser, de certa maneira. letrista. Ora o que é a poesia senão o momento revolucionário da
radicalmente alheias. linguagem. e como tal não separável dos momentos revolucionários
O poder apenas fornece o falso bilhete de identidade das palavras; da História, bem e.orno da história da vida pessoal?
impõe-lhes uma licença de passagem, detenniua o seu lugar na pro­ O embargo do pcxler sobre a linguagem é assimilãvel ao embargo
dução (onde algwnas visivelmente fazem horas e:\traordioárias); atri­ que exerce sobre a totalidade So a linguagem que tenha perdido
bui-lhes, por assim dizer, uma folha de salãno. Devemos reconhecer qualquer referência imediata à totahdade pode fundamentar a infor·
a seriedade do Humpty-Dumpty de Lewis Carrol!, ao considerar, mação. A informação é a poesia do poder (a comrapoesi:i da manu­
quanto a isso de uma pessoa decidir sobre o emprego das pala\Tas, tenção da ordem); ê a falsificação mediatizada do que existe. Inver­
que toda a questão reside em «saber quem será o dono)) delas; nisso samente, a poesia deve ser compreendida como comunicação
e em mais nada. E ele, patrão de vistas largas. afirma que paga a imediata no real e modificação imediata deste real. A sua linguagem
dobrar àquelas que emprega mwto. Devemos pois entender assim o só pode ser a linguagem liberta, a linguagem que reconquista a sua
fenómeno da insubmissãd das palmras. a sua fuga, a sua resistência riqueza e, desfazendo os seus signos. ao mesmo tempo reconquista as
aberta. que se manifesta em toda a escrita moderna (de Baudelaire palavras, a música, os gntos, os gestos, a pintura, a matemática, os
aos dadaístas e a Joyce) como sintoma da crise revolucionária global factos. A poesia depende pois do maior grau de riqueza em que, num
que se regista na sociedade. determinado estâdio da formação económico-social, a vida pode ser
Sob o domínio do poder, a linguagem designa sempre algo que não vivida e transformada. Tomn-se assim inútil precisar que esla relação
é o vivido autêntico. É precisamente nisso que reside a possibilidade da poesia com a sua base material na sociedade não constitui uma
dwna contestação completa. A confusão tomou-se de tal ordem. na subordinação unilateral mas sim uma interacção.

138 J3Q
Reen1.:ontrar n poesia pode associar-se intimamente ao rcimentar
da revolução, como o pro\'lllll lào claramente cenas fases das revo­
tamente definir o seu armamento numa ••poesia e preciso for sem
luções mc:(icana, cubana ou conguense. Entre os períodos revolucio­ poemas», trata-se agora para a I.S. duma poesia necessariamente .cm
poemas. E tudo o que dizemos da poesia em nada diz respeito ao
nãnos durante os quais as massas acedem à poesia através da acção.
podemos pensar que os círculos da aventura poética continuam a ser atrasados reaccionários duma neo\ ersificaçào, ainda que alinhnda
os únicos lugares onde subsiste a totalidade da .revolução, como sobre os menos velhos dos modernismos formais. O programa da
virtualidade irrealizada mas próxima. sombra duma personagem poesia realizada consiste exactarnente em criar ao mesmo tempo (e
ausente. De modo que aquilo a que chamamos aventura poética é inseparavelmente} acontecunentos e a sua linguagem.
dificil, perigoso. e seja como for nunca garantido (na realidade. trata­ Todas as linguagens fechadas - as dos grupos informais da ju'fen­
tude; as que as vanguardas actuais. no momento em que e buscam
se da soma dos comportamentos quase impossíveis numa dada
época). Só podemos ter a certeza daquilo que já não é a aventura e definem, elaboram para sua utilização intera~ as que. outrora,
poética duma época, da sua falsa poesia reconhecida e autorizada. transmitidas em objectiva produção poética para o exterior. puderam
Deste modo. depois de o surrealismo, no tempo do assalto que lançou chamar-se trobar clus ou dolce .stil nuovo - têm como fim e resul­
contra a ordem opressora da cultura e do quotidiano, ter podido jus-­ tado efectivo a transparência imediata duma certa comunicação, do
reconhecimento recíproco, do acordo. Mas tais tentativas são expres­
são de agrupamentos restritos. a vários títulos isolados. Os aconteci­
mentos que estes puderam preparar. as festas que entre si puderam
organizar, tiveram sempre de permanecer nos mais estreitos li~1t~.
Um dos problemas revolucionários consiste em federar estas espec1es
de sovides, de conselhos da comunicação, a fim de inaugurar por
toda a parte uma comunicação clirecta. que já não precise de recorrer
à rede da comunicação do adversário (ou seja. à linguagem do poder)
e possa assim transformar o mundo segundo o seu desejo.
Não se trata de pôr a poesia ao serviço da revolução. trata-se de
por a revolução ao serviço da poesia Só assim a revolução nào trai
o seu projecto. Não iremos reeditar o erro dos surrealistas. que ~e
puseram ao seu serviço quando justamente já não havia revoluçao
AArgélia e a escrita nenhuma. Ligado à lembrança duma revolução parcial rapi~t..'DIC
•A escnra é precisamente o compromisso entre uma liberdade e uma recorda· abatida, o surrealismo tomou-se também rapidamente um refonrn mo
ção, é a liberdade soberana que só é liberdade no gesto da opção e já o não do espectáculo, a crítica duma certa forma do espectáculo reinante
é na sua durabilldade. Posso sem dúvida eSa>lher hoje para mim esta ou empreendida no interior da organização dominante deste mesmo
aquela eSCtJta, e afirmar neste gesto a minha liberdade, aspirar a uma frescura espectáculo. Os surrealistas parecem ter descurado ~ fa~to ~e o poder
ou a uma tradição; já não posso é desenvolvê-la numa duração sem a pouco impor, para qualquer melhoramento ou moJermzaçao mtema .do
e pouco me tomar pnSioneiro das palavras de outrem e até das minhas.• -
Roland Barthes, O Grau Zero da Esaita
espectáculo. a sua própria leitura.. uma descodificação com o código
de que ele e detentor.
140
141
Qualquer re\'Oluçào nasceu na poesia, começou por ser desenca­
deada pcln forç<1 da poesia. Este fenómcno escapou e continua a
csC<tpar aos teórico. da revolução - é certo que ninguém pode com­
preendê-lo c;e continuar a agarrar-se à 'clha concepção da revolução
ou da poesia -. mas foi cm geral sentido pelos contra-revolucioná­
rios. Porque a poesia. onde quer que exista. mete-lho5 medo; para se
livrarem dela, excitam-se com vários exorcismos, do auto-de-fé à
in\'esligação estilística pura. O momento da poesia real, que Htem o
tempo Lodo à sua frente», pretende de cada vez reorientar, segundo os
seus próprios fins. o conjunto do mundo e o futuro todo. Enquanto
durar, as suas reivindicações não podem cnlrar em compromissos.
Põe em jogo as dí\'idas da História que não foram pagas. Fourier e
Pancbo Villa, Laut.réamont e os dinamítciros das Astúrias - cujos
sucessores inventam agora novas fonnas de gre\e -. os marinheiros
de Cronstadt ou de Kiel. e todos quantos, por esse mundo fora. con­ Beleza da sociologia
nosco e sem nós. se preparam para lutar em prol da longa revolução, E este o retrato-tipo da ·mulher ídeal•, exposto no France-Soirde 31 de Agosto
são também os emissários da nova poesia. de 1962 a partir de dez ponnenores tidos oomo os mais belos do mundo,
A poesia é cada vez mais claramente, enquanto lugar vago. a extraldos de dez mulheres cêlebres. Esta vedeta de slntese fornece-nos um
efOQuente exemplo do que pode dar a ditadura totalitária do fragmento, aqui
antimatéria da sociedade de consumo, porque não é uma matéria
oposta ao jogo dialéctia> do rosto. Este rosto resultante do sonho obeméllco
consumível (segundo os critérios modernos do objecto consumível: o é modelado pelas técnicas da infonnação moderna, que são realmente eficazes
equivalente duma massa passiva de consumidores isolados). A poesia como reptessão, controle, classificação e manutenção da ordem (o retrato-tipo
não é nada ao ser citada, só pode ser tll!S\iada, posta de novo em provou os seus méritos na investigação policial). E obviamente no oposto dos
jogo Se assim não for, o conhecimento da velha poesia não passa meios e objedivos desta informaçOO que existem o conhecimento, a poesia. a
dum exercício universitário, decorrente das funções globais do pen­ nossa apropriação possível do mundo. A sociologia da beleza vale o mesmo
que a sooologra 1ndustnal ou a sociologia da vida urbana, e pelas mesmas
samento universitário. E a história da poesia será apenas, em tal caso.
razões: ê um resumo m1sbficado e mistificador do parcial, que esoonde os
uma fuga diante da poesia da História, se neste vocábulo tivennos con1untos e o seu movimento. Mas o exacto moralismo científico da sooolog1a,
presente, não a história espectacular dos dirigentes, mas sim a da ,,da inserido, sem sequer pensar msso, na sooedade do espectãculo, detennina
quotidiana e do seu alargamento possfvel; a história de cada vida também para cada qual, ao mesmo tempo que a beleza, o seu empfego. Asua
individual da sua realização. nova traduçao do H1c Rhodus, hic salta pode ler-se assim: •Aqui está abeleza,
Não devemos pennitir nenhum equívoco sobre o papel dos «ton­ aqui tu consomes!•
smadores» da poesia antiga, dos que aumentam a sua difusão à
medida que o Estado, por razões muitíssimo diferentes, vai fazendo Uma grande massa de poesia é normalmenLe con.senada no mundo.
desaparecer o analfabetismo. Estas pessoas representam tão-só wn Mas em lado nenhum se vêem os sítios. os momentos. as pessoas para
caso particular entre os conservadores de toda a arte dos museus. a revh·crem, para entre si a porem a comunicar, para fazerem uso
142 143
dela. Tendo nós portnnlo como certo que isto só pode ser realizado tamente que modela as forças dominantes da ociedade actual: o
através do desvio; que a compreensão da lllltign poesia tanto mudou reforço do Estado cibernético. São eles os homens inteiramente dedi­
pro:rdcndo ou adquirindo conhecimentos; e que a antiga poesia, sendo CJdos a todos os senhores feudais do feudalismo tecnológico que agora
postn perante acontecimentos particulares, pode efecfr.cuncnte ser se consolida. Nas suas piadas não há inocência. são os bobo:. do rei.
reencontrnda, isso confere-lhe um sentido que cm grande medida é A alternativa entre o infonnacionismo e a poesia já não diz res­
no\·o. Mas., sobretudo, uma situação em que a poesia é possh el não peito à poesia do passado; da mesma maneira que nenhwna vanante
poderá vir restaurar nenhum falhanço poético do passado (sendo este daquilo em que se tornou o movtmento revolucionário clássico pode
falhanço aquilo que resta. invertido. mi história da poesia como êxito agora, seja onde for, ser tida em conta para uma alternativa real à
e monumento poético). Essa situação encaminha-se naturalmente organização doaunante da vida. É da mesma avaliação que extraimos
para a comunicação e para as possibilidades de soberania da própria a denúncia dum desaparecimento total da poesia nas antigas formas
poe ia da com11nicaçào. em que pôde ser prodUZJda e consumida. bem como o anúncio do seu
Estritamente contemporâneos da arqueologia poética que restimi retorno com fonnJS mesperadas e operantes. A nossa época já não
selecções de poesia antiga recitadas em disco par especialistas, para o tem de escre-•er i11struç-ões poéticas, tem de as executar.
público do novo analfabetismo constituído pelo espectáculo moderno,
os informacionistas tomaram de empreitada combater todas as uredWl­ T S. n • 8, llllleuo de 1963
dãncias» da liberdade com \ista a simplesmente transmuiran onle11s.
Os pensadores da automatização visam de modo ~plicito um pensa­ , - . --'.J!ll!!!!!_ ~
- _....... -· - .,.
ml!llto teórico automático, por fLuçào e climinaç.lo das variáveis que -~ -~-.ã" ~~ ­
occrrem na vida e na linguagem. Mas vão ter que roer muito osso! As
máquinas de tradução, por exemplo, que começam a 8SSC1,.'lll11T a uni­
.- .~~~
- . . ~
_.... . ·'.. ... :
~~

fonnizaçào planetária da infonnação e ao mesmo tempo a revisão


informacionista da antiga cultura, estão submetidas aos seus programas Técnica do golpe do mundo
preestabelecidos. aos quais tem de escapar toda e qualquer nova acep-­
çào de uma palavra, bem como as suas passadas ambivalências
dialécticas. Assim, a vida da linguagem - associada a cada nm o «E se ne·tc tempo ainda existe qualquer coi53 de inícmal e vcnladelJ'Mlenle
avanço da compreensão.teórica: (<As ideias melhoram. E disso faz parte maldito, é isso de as pessoas pcn:ierem artisticamente tempo com formas, em
o sentido das palavras.li - vê-se e.'(pulsa do espaço mecânico da infor­ vez de ~tarem, como supliciados a nrdcr, esbracejando na fogueira.» -Anto­
mação oficial, mas, ao mesmo tempo, o pensamento livre pode orgn­ nin Attnud, O Teatro e o &u Duplo
nizar-se com vista a uma clandestinidade incontrolãvel pelas téalÍcas
da policia infonnacionista A busca de smais indiscutíveis e de classi­
ficação binária instantânea, visto ir tão claramente: no sentido do poder A revolta é impopular, e é fácil perceber porquê. Mal nós a defi­
existente, há-de ser alvo da mesma critica. Até nas sun.s formulações nimos, provocamos logo as medidas aptas a contê-la. O homem pru­
delirantes os pensadores informacionistas se comportam como gros.sei­ dente evita definir-se como revoltado, coisa que pode significar a sua
ros precursores de patentes do futuro por que opuaram. sendo isto jus­ ~cntença de morte. De resto, isso é hmitar-se.

144 145
Não desejamos apoderar-nos do Estado, como Trotski e Lé~ o quanto existe, mas apenas de passagem e inevitavelmente. O que
que queremos é apoderar-nos do mundo, passagem esta necessaria­ temos a conquistar - e dirijo-me a esse milhão (digamos) de pes­
mente mais complexa. mais geral e também mais gradual, menos soas, aqui e ah, susceptíveis de entender precisamente aquilo de que
esJK'Clacular. Os nossos métodos hão-de variar con(onne os factos falo. a esse tal milhão de cctécrucos» potenciais -. o que temos para
empiricos com que formos deparando aqui e agora; algures e mais conquistar são as nossas próprias pessoas. Aquilo que precisa de
tarde. acontecer, agora, hoje e amanhã, nesses centros e.'<pcrimentais desi­
A revolta politica não tem nem deve continuar a ter resultados, no gualmente repartidos mas v1tms, é uma desmistificação. No tempo
sentido, precisamente, em que tende ã apoderar-se do nível domi­ presente, no que amiúde é designado como a época das messas,
nante do processo político. Nos pântanos estagnados da nossa civili­ adquirimos sem dificuldade o hâbito de encarar a História e a evolu­
zação, é um anacronismo. E como, ao mesmo tempo, o mundo está ção como forças que evoluem de modo implacável, inteiramente fora
à beira da destruição, não podemos permitir-nos ficar à espera de do nosso domínio. O indivíduo sente profundamente a sua impotência
seguidores. Nem de entrarmos com eles em querelas. ao conceber a imensidade das forças em presença Mas nós. as pes­
O golpe do mundo deverá ser, no sentido mais amplo, cultural. soas criativas em todos os domínios. devemos desfazer-nos desta
Com os seus mil técnicos. Trotski apoderou-se dos viadutos, das atitude paralisadora, tomando o pulso à e\ oluçào humana e assu­
pontes, das comunicações telefónicas e das fontes de energia. Os mindo o domínio de nós mesmos. Devemos rejeitar a ficção conven­
polícias, vítimas das convenções, contribuíram para o seu brilhante cional da «imutável natureza humana» Na realidade não existe
empreendimento ficando de atalaia aos velhos homens, no Kremlin. nenhuma permanéncia deste tipo, seja onde for. O que existe é um
Estes não tiveram imaginação bastante para perceber a que ponto a devir. Esta acção de dominio do presente possível por uma van­
sua simples presença na sede tradicional do governo era incongruente guarda, constitui apenas, obviamente, o combate que antecede um
e um engano. E a História foi apanhá-los de flanco. Trotski tinha as desenvolvimento mais universal, e nós sabemos que o partido da
estações do cammho de ferro e as geradoras, acabando o c<govemo» inteligência, como nos primórdios desta re\'ista foi formulado, «só
pa ser lock-outado da História pela sua própna pohcia. poderá realizar o seu projecto suprimindo-se [rn] só pode efecti,·a­
Por ISSO mesmo, a revolta cultural deve tomar conta das redes da mente existir como partido que a si mesmo se supera.»
expressão e das geradoras do espírito. É necessário que a inteligência Organização, controle, revolução: cada unidade deste milhão n
se torne consciente de si mesma, que entenda perfeitamente o seu quem falo sentir-se-á bastante intimidada perante tais conceitos,
próprio poder e, avanÇàndo para além das suas funções obsoletas, achando quase impossível, perturbada, identificar-se com um grupo,
ouse exercê-lo à escala da totalidade. A História não vai derrubar os chame-se ele como se chamar. É a norma. Mas é ao mesmo tempo o
governos nacionais; vai apanhã-los de flanco. A m ·olta cuJturaJ é a que explica esta impotência continua da inteligência ante os aconte­
escora indispensável, a infra-estrutura arrebatada duma nova ordem cimentos de que ninguém pode ser considerado responsãvel: a tor­
das coisas. rente aber1a de desastres sangrentos, o desenlace natural deste com­
Aquilo que se impõe conquistar não tem dimensões tisicas nem plexo de movimentos, em sua mruona mconscientes e inconLrolá\'eis,
urna relação com o cromatismo das estações do ano. Não é um porto, que consutufram a história dos homens. Sem organização concertada.
wna capital, uma ilha, não ê um istmo visível do alto de um qualquer a acção é lDlpossivel, a energia dos indivíduos e dos grupos restritos
pico do Darien. Senio também, como é óbvio, todas estas coisas. tudo dissipa-se num sem-numero de pequenos gestos de rei,·in~icnçõe:,

146 147
incoerentes.- Um manifesto aqui, acolá uma greve de fome. Tais ~est3:' ~ções (alimentação, medicina, etc.). Não é preciso ter grande
protestos. além disso, baseiam-se comummente no pressuposto de unagmaçao para ver numa trnnsferência deste tipo o começo do fim
que o comportamento social é racional, sendo isso a marca da sua do Estado nacional. caso estes organismos não fossem constituídos
futilidade. Visto a transfonnação dever ser feita deliberadamente pelos próprios agentes dos Estados: deveriamos agir o melhor possí­
impõe-se que os homens, duma maneira ou doutra, coordenem a su~ vel com vista a acelerar este processo.
acção no conteitlo social. Anosso ver existe jã um niicJeo de homens Por enquanto, o nosso milhão de anónimos pode c-0ncentrar-sc na
capazes de impor uma ideia nova e fecunda, caso eles próprios se questão dos e<ócios». Uma grande parte daquilo a que com pompa se
lancem a isto de modo gradual e expenmenral. O mundo espera deles chama «delinquência juverul» é simplesmente a resposta inarticulada
que deitem mãos à obra. da juventude, incapaz de se adap1ar aos seus lazeres. A violência que
Já rejeitámos a perspc..'Ctiva dum ataque a descoberto. O espírito a isso se associa é uma consequência directa da alienação do homem
não pode afrontar a força brutal em campo aberto. A questão reside a si mesmo, tal como a modelou a Revolução lndustrial. O homem
antes em percebermos claramente e sem preconceitos as forças que esqueceu como se joga. Se pensarmos nas larefas sem alma atribuidas
se e~ercem no mwido e de cuja interacção eclodirá o futuro; e então, a cada individuo no meio ambiente industrial; se pensannos nisso e
c_almamente, sem indignação, graças a uma espécie de jiu-jitsu espi­ ao iàcto de a educação se ter tomado cada vez. mais teaiológica, não
ntual que nos pertence em virtude da nossa inteligência, pormo-nos passando, para o homem comum. dum meio de se preparar para obter
a modificai; corrigir, compromi!ter, dCS\iar, corromper, corroer, con­ um trabalho, não podemos ficar surpreendidos. Este homem vê-se
tornar: mostrando-nos, com essa acção, os inspiradores daquilo a que perdido. Quase o aterroriza um ócio maior. Preferiria fazer horas
podemos chamar a insurreição invisível. Esta insurreição há-de atin­ extraordinárias. Dai a sua hostilidade perante a automatização ­
gir a massa dos homens; mas ó o fará se os atingir, não como uma coisa que no mundo capitalista tão-pouco poderá espantar-nos. Com
coisa por que votaram nas eleições ou pela qual combateram oficial­ a sua criatividade atrofiadn, fica completamente virado para o exte­
mente, mas como uma mudança do tempo: vendo-se dentro dela, rior. Tem de ser distraído. As mesmas formas que lhe dominam a ,;da
levados pela própria situação a recriarem conscientemente tudo a no trabalho são transferidas para os ócios, que se tomam cada vez
partir desta situação, C-Onstituindo uma história interior e exterior que mais mecanizados. É por isso que ele se vê equipado com máquinas,
é por fim a sua própria história. para lutar contra o ócio que as máquinas lhe destinaram.
É óbvio que não existe, em principio, penúria da produção no E de que dispomos nós que seja capaz de compensar tudo isto,
mundo moderno. A penuna reside na distribuição, presentemente capaz de aliviar o desgaste e os obstáculos psíquicos desta época
ordenada (desordenada). segundo os critérios do sistema económico tecnológica? Dispomos, numa palavra, da distracção. Quando o
dominante nesta ou naquela área. Trata-se, ã escala global, dum pro­ nosso <thomem», após a jornada de trabalho, crispado e moído, volta
blema administrativo, que nunca será resolvido antes de desaparece­ da cadeia de montagem para aquilo a que se chama. sem a mais leve
rem os antagonismos polílicos e económicos existentes. No enLanto, ironia. «tempo livre». a que se vê ele confrontado? ~o autocarro, a
tomou-se já evidente que os problemas de distribuição seriam mais caminho de casa. lê um jornal idêntico ao jornal da véspera, idêntico
~cionalmente dominados à escala global por um organismo intema­ no sentido em que é uma nova mistura dos mesmos elementos: quatro
CJonal. Tais organizações, actualmente do tipo das Nações Unidas ou homicídios, treze desastres, dois golpes de Estado e algo muito pare­
da UNESCO, já substituiram os diversos governos nacionais nalgumas cido com uma abominação. E a menos que seja um homem verdade1·
148 149
ramente eitcepcional, um dentre o nosso milhão de «técnicos poten­ Perante esta perspectiva, nada poderã mostrar um mais aguuo
ciahi•, o prazer por procuração que obtém ao chafurdar em toda esta contraste do que as condições actuais. A arte anestesia os vivos.
violência e desordem obscurece-lhe o tàcto de nada de novo existir Estamos metidos num condicionamento em que a vida se vê conti­
em todas estas «notícias»; e de o abuso diário que disso faz o não nuamente desvitalizada pela arte, onde tudo é apresentado falsa­
conduzir a um alargamento da sua consciência da realidade, mas sim mente, com as feiçõe:> do sensacional e da compra. com vistn a ins­
a um perigoso estreitamento dela, a uma espécie de processo mental pirar a cada individuo a necessidade de responder de maneira passiva
com mais pontos comuns com o salivar dos cães de Pavlov do que e tradicional, de dar a tudo isso e a toda a hora um consentimento
com as subtilezas da intchgênc1a humª1Ja. banal e automático. Para o homem médio, desencorajado e inquieto,
O homem contemporâneo tem necessidade de ser distraido. A sua incapaz de concentração, uma obra artística s6 pode ser assinalada se
participação activa é quase ineit1stente. A arte, seja ela qual for, é um for posta em competição na esfera do espectáculo. Nada deverá con­
assunto em que a maioria raramente pensa, um assunto quase irrisório ter que em principio revele uma ruptura com o familiar, uma sur­
a respeito do qual até se orxuJba por vezes de mostrar uma atitude de presa O público deve poder identificar-se facilmente e sem reser\tas
invencível ignorância. Este deplorável estado de coisas é inconscien­ com o protagonista, enfiar-se no sofá das montanhas russas emocio­
temente sustentado pela obstinada estupidez, tão segura de si mesma, nais e renwiciar à mais lnfima capacidade própria. O que nele se
das nossas institwções culturais. Os museus têm mais ou menos os instala é a possessão, na forma mais prosaica da cegueira e da demis­
mesmos horários que as igrejas, o mesmo cheiro a sacrário e o são do sentido critico. Tanto quanto eu saiba. foi Brecbt o primeiro
mesmo silêncio. E além disso alardeiam, com arrogância, um sno­ a chamar a atenção para o perigo deste estilo de apresentação, que
bismo em oposição espiritual directa aos homens vivos cujas obras ali tudo faz para provocar no público o estado de possessão em prejuízo
ficam encerradas. Que têm esses corredores calados a ver com duma análise pessoal. Foi para contrariar esta oonfusa tendência do
Rembrandt, e a tabuleta <eProibido Fumarn com Van Gogh? Fora do público moderno para se identificar com aquilo que lhe mostram que
museu, o homem da rua está de todo separado da mfluência natural­ ele fonnulou a teoria da distanciação na encenação e na interpretnção
mente tónica da arte pelo sistema do comércio elegante, o qual, aces­ teatral, método este calculado para inspirar uma espécie de participa­
soriamente mas em função de imperativos económicos, exerce uma ção mais actJva e critica. Infelizmente, a teona de Brecht não pôde
influência maior do que em geral se admite no aparecimento e na exercer nenhum efeito sobre as distracções populares. Os zombies
instalação de pretensas «fonnas de arte>~. A arte não pode ter signi­ permanecem; e o espectácuJo vai-se tornando mais espectacular.
ficação vital numa civiJíz.açào que ergue uma barreira entre a vida e Adaptando livremente um epigrama dos meus amigos, drret que, «se
a arte, coleccionando produtos artisticos como despojos de antepas­ não queremos assistir ao cspectâculo do fim do mundo, temos de agir
sados a venerar: A arte deve ÍOllJlaT o vivido. Quanto a nós, o que com vista ao fim do mundo do espectácuJo» (cf. <tO sentido do depe­
concebemos é uma situação em que a vida seja continuamente reno­ recimento da artei>).
vada peJa arte, uma situação construída pelo imaginário e pela paixão Aquilo que merece ser designado como sério em arte só atinge
com vista a rncitar cada pessoa a responder a isso criativamente. ho1e a cultura popular através da moda, da indústria e da publicidade;
Trata-se de dar a todas as acções, sejam elas quais forem, um com­ desde há anos, o c<Sério» fot assim infectado pela trivialidade asso­
portamento criativo. Concebemos, sem dúvida, essa situação. Mas ciada a tais empresas. Quanto ao resto, a literatura e a arte coeitistem
somos nós, agora, que devemos criá-la. Porque ela não existe. com a cultura popular mecani7.ada e, cxcepto num ou noutro filme

ISO 151
ocasional, exercem muito pouco efeito sobm: ela. Só no jazz, que • um ensaio recente (1<Thc Secret Rcins», n.0 102 da revista
possui a espontaneidade e a \Ítalidade decorrrentes da vizinhança com Enco11nter. Março de 1962). Arnold Wesker,1 precisamente interes­
os seus primórdios, podemos reconhecer unna arte que jorra natural­ sado pelo fosso entre a arte e a cultura popular. bem como pelas
mente dwn ambiente criativo e que é mais ou menos popular. Com possibilidades de novos contactos, alude à grande greve que em 1919
a desgraçada ressalva de que quanto mais pUJCO for. menos popular se foi uma ameaça e a um discurso de Lloyd George. A greve poderia
torna. Outras foonas abastardadas são vistaLS como .coisa autêntica. ter abatido o governo. Declarou nessa altura o primeiro-ministro:
Na Inglaterra, por exemplo, há uma absurcda admiração pelo trad, «Vós ides vencer-nos. Mas. se o conseguirdes, acaso pesastes as
uma nova mistela da música Hmpida, simplo:s e repetitiva que se fez consequências desse acto? A greve c;erá um desafio ao governo deste
em Nova Orleães no início dos anos 20, ~obrindo este trad quase pais, e caso alcance um êxito efectivo, lançar-nos-á para uma crise
inteiramente com a sua sombra a tradição \\Íva da era iniciada por constitucional da máxima importância. Porque, se uma força se ergue
Charlie Parker. no interior do Estado, mais forte do que o próprio Estado, ela devera
Desde há muitos anos, os melhores artisl3l5 e os espíritos de qua­ em tal caso declarar-se pronta a assumir as funções do Estado. Ou faz
lidade têm deplorado o abismo que se foi lcriando entre a arte e a isso ou recua, submetendo-se à au1oridade do Estado. Cavalheiros.
vida As mesmas pessoas, em geral revolradias durante a juventude, terão os senhores considerado isto? E tendo-o feito, estais prontos?»
tomam-se inofensivas ao aproximarem-se da «idade madura». graças Como sabemos. os grevistas não estavam prontos. Comenta o
ao chamado «SUCCS50». O individuo vê-se prrivado de poder. É inevi­ Sr. Wesker: "º vento mudou por completo. muitas pessoas tentaram
tável. E o artista sente profundamente a §ua própria impotência. a sorte fora do protesto, e algures há uma multidão de Lloyd George
Fazem-no falhar, é amaldiçoado. Tal como n())s escrito:> de Kafka. um a gozar de contentes com a foição que os seus negócios tomaram[...]
medonho sentido da alienação impregna a srua obra. Dadá desenca­ Todo o protesto é permitido. até se lhe dão ouvidos benevolentes, por
deou sem dúvida, no fim da primeira guerra mundial, o ataque mais saber que a força - económica e cultural - assenta nos mesmos
isento de compromissos contra a cultura con"encional. Mas os usuais lugares obscuros e bem defendidos. constituindo ao mesmo tempo
mecanismos de defesa puseram-se logo em c::ampo e os produtos da e!>te secreto conhecimento o verdadeiro desespero do artista e do
«antiarte» viram-se cerimoniosamente encaixi1lhados e pendurados ao intelectual. Estamos paralisados por este conhecimento; cada wn de
lado da «Escola de Atenas»; Dadá foi sub!IDetido à castração dos nós protesta com tanta frequência que todo o panorama cultural ­
ficheiros e a breve trecho sepultado em segurança nos manuais de em especial à esquerda - é feito de respeitoso receio e ineficácia.
História, exactamente como qualquer outra escola artist.ica. E o facto Estou convencido de que foi este secreto oonhecimento que em grande
é que, tendo embora Tristan Tzara e/ alii podido denunciar com jus­ medida justificou o decUnio das nctividades culturais nos anos 30.
leza o cancro da politica. tendo eles conseguido lançar oi> projectores Ninguém sabia de facto o que fazer com os filisteus. Eram todo­
da sátira para cima das hipocrisias a varrer, nem por isso puderam -poderosos, amigáveis e sedutores. O micróbio entrou, introduzindo­
adiantar uma solução criativa capaz de conduzir à substituição da -se da manexra mais insuspe1tável; e este mesmo micróbio há-de cau­
ordem social existente. Que poderíamos nós fazer depois de termos
pintado um bigode na Gioconda? E tendo mesmo desejado que 1 Dramarurp> ing!Cs, n. c:m 1932. & ~u:u peças (A Cozinha. BatJJlas Fritas Com
Gengis-Cã transformasse o Louvre em cavalariças, de que nos valia Tudo) denunciam as relações de auturid4Jc e o embrutecimento das classes oo tm1undo
tal coisa? da abundânciai>

t52 153
sar, começa Jã a causar, o declínio do nosso nO\'O sobressal10 cuhural. certeiramente: os «comandos escondidos». Não julgo mostrar-me
A menos que seja concebido um novo sistema graças ao qual nós que prudente em excesso adiantando que algo de muito meno:. trh iaJ que
não somos partidános do deixa-andar. possamos apoderar-nos, um a um apelo à espiritualidade pública deste ou daquele grupo será um
um. dos comandos escondidos » imperativo da vasta subversão que temos em mente.
Apesar de ter achado a análise do Sr Wesker decepcionante na sua Contudo, numa passagem do que não deixa de ser um eru;aio inte­
conclusão, ela confirmou-me que na Inglaterra, romo por toda a ressante, o Sr Wesker ctta o Sr R.aymmd Williams. Ignoro infeliz­
pane, hâ grupos de pessoas preocupadas com este problema. Con­ mente quem é o Sr. Williams e de que obra é extraída a citação.
forme vimos. a estrutura político-económica da sociedade ocidental é Pergunto-me apenas como pode o Sr. Wesker citar a frase seguinte e
de tal ordem que os movimentos ~ inteligência criativa se vêem passar logo a outm cotsa em busca de protectores: «A questão não
captados pelas engrenagens do poder. Não só este movimento da reside em saber quem há-de proteger as artes, mas que formas são
inteligência se vê interditado na realização das suas inovações, como possíveis em que os prôpnos artistas dominarão os seus meios de
também só pode entrar na partida graças a forças (interesses parti­ expressão, de maneira a que tenham relações com uma comunidade
culares) que lhe são antipáticas por natureza. O «Centro 4211 do e não com um mercado ou um patrão.»
Sr. Wesker é uma tentativa prática com \ista a modificar esta relação Seria temerário, bem entendido, pretender compreender o
de forças. Sr. Williams com base numa firmação tão breve. Direi simplesmente
Gostaria de dizer uma vez por todas que não tenho nenhum desa­ que para mim e para os meus associados na Europa e nos Estados
cordo fundamental com Arnold Wesker. A minha única critica do seu Unidos as palavras-chave da frase atrás citada são estas: «os próprios
projecto (e reconheço aliás que dele apenas tenho um conhecimento artistas dominarão os seus meios de expressão». Quando tiverem
muito vago) diz respeito ao seu carácter limitado e nacional, que se alcançado este domínio, a sua «relação com uma comunidade» tor­
reílecte no fundo histórico. O Sr. Wesker toma a produção de nar-se-ã um problema com todo o sentido, quer dizer, um problema
Osbome, em 1956, com Look Back in Anger por exemplo, pelo pri­ susceplível de ser fonnulado e resolvido a um nível criativo e inte­
meiro marco do «nosso novo sobressalto cultural>>. A grave falta de ligente. É por isso que nós próprios devemos sem tardar ocupar-nos
perspectiva histórica, a insulandade das suas perspectivas, são carac­ da questão de saber como poderemos apoderar-nos por dentro do
terísticas que reforçam, segundo receio, uma espécie de filosofia de edificio social que exerce este controle. O nosso primeiro gesto
bazar religioso que parece subentender todo o projecto. Não podemos deverá constStn' em eliminar os negociantes de arte.
pensar que a arte compensa como os trabalhos manuais. Arnold No micio destas reflexões, dizia eu que os nossos metodos varia­
Wesker reclama uma tradição «que não seja obrigada a passar pelo riam conforme os factos empíricos com que fôssemos deparando aqui
êxito financeiro para poder continuam. E assim se viu levado a pro­ e ali, algures e mais tarde. Aludia assim à tentativa. de natureza
curar o patrocínio dos sindicatos, e assim começou a organizar uma essencialmente láctica, de cada um.a das nossas actividades em rela­
série de festivais culturais sob os auspícios dos sindicatos. Embora eu ção com a conjuntura dada, e também a composição internacional
nada tenha contra esses festivais, a urgência do diagnóstico original daquilo a que podemos chamar a nova base cultural Obviamente,
do Sr. Wesker pusera-me na expectativa de propostns de acção de um todas as nossas operações devem estar adaptadas à sociedade onde
nível mais fundamental. Um tal programa não irá por certo levar-nos ocorrem. Os métodos utiliz.áveis em Londres podem ser um suicidio
muito longe no respeitante à conquista daquilo a que ele se refere tão ou apenas pouco práticos em Moscovo ou Pequim. As lácticas des­

154 1ss
tinam-se sempre a um tempo e a um lugar determinados; nunca são · Alem disso durante os últimos dez anos, já levámos a cabo
JO:W- • •
políticas. em sentido restrito. Além disso, estas rctlexre. devem elas
C:\ pen
.ências bastantes em sentido preparatóno; estamos prontos para
mesmas ser vistas como um acto da no\a base, um documento a acção. [...]
programático que, ao ocupar-se na sua ma.10r parte do que ainda está
por vir, aguarda o baptismo do fogo. ALEXANDER IROCClll
Como começar? Num momento escolhido, numa ·casa de campo /. s n• &, Janctro de 1963
(um moinho, uma abadia, uma igreja ou um castelo), não muito longe
da cidade de Londres. fomentaremos !llDª espécie de jam session
cultural; a partir daí se desenvolverá o protótipo da nossa univL>rsi·
dade espontânea.
O cdificio de base fie.ará a coberto. a boa distância no interior das
suas próprias terras. de preferência à beira dum rio. Deverá ser bas­
tante vasto para que um grupo-piloto (astronautas do espaço interior) Serviço de anti-relações públicas
possa ele própno s1111ar-se oeste edificio - orgasmo e génio, e os da Internacional Situacionista
seus instrumentos e máquinas do sonho, e aparelhos delirantes e seus
acessórios -. com dependências para os ateliês, bastante grandes
para a implantação duma indústria Jígerra, deYendo todo o lugar con­ '\OCÉ ESTÁ Dl. ACORDO COM ~ I.~.'
vir à arquitectura liberta e a um eventual desenvolvimento urbano. VOCÉ QUER ADDllR A l.S. l
Sublinho esta palavra porque nunca será demais insistir oo facto de
«a arte integral, de que tanto se falou. só poder realizar-se ao nível Se assim é, pedimos-lhe um pequeno trabalho prévio, para verifi·
do urbanismo» (Debord, Re/aJóno sobre a constn1çào das situações). car objectivamente (em seu próprio interesse e no nosso) a sua abor­
Por volta de 1920, Diaghilev, Picasso, Stravinski e Nijinski agiam em dagem real dos nossos problemas. bem como a sua ca~acidade ~e
comum para criarem um bailado. Certamente não excederá a credi­ participação integral no nosso empreendimento (a l.S. nao quer d1s­
bilidade imaginarmos um grupo mais amplo dos nossos contempon1­ cipulos):
oeos agindo em conjllllto para criarem uma cidade. Encaramos tudo
isso como um laboratório do vivido para a criação (e a valorização) 1. Escolha você mesmo, nas teses publicadas pela l.S., uma ques­
de .situações conscientes. Naturalmente, não é apenas o meio tão que considere importante, desenvolvendo alguns argumentos e
ambiente que está em questão - plástico, submetido à mudança -. resultados passiveis. (O nurumo é uma página dactilografada; quanto
são iambém os homens. a limites, não se impõe nenhum.) o
Convém desde já dizer que este rápido esboço dn nossa action 2 _Escolha você mesmo, nos textos publicados pela l.S.. um pont
university (universidade da práxis) não resulta de vagas meditações. criticável, e destrua essa posição. (Mesmas condições.)
Antes de mais, abundam os paralelos históricos de passadas situa·
ções, fortuitas ou controladas, em que certas características são mani­ N.B. - Isto não é um jogo arbitrário. A l.S. procede assim c.orren~
festamenle adaptáveis àquilo que precisamente constitui o nosso pro­ temente. para ree.'aminar e superar as suas próprias bases. Voce pod
157
156
~bordar um ponto já criticado. Mas pode
ltica duma posição que nós lenhamo. também iniciar a justa cri­ possível no nosso tempo. Que se trata de pôr em situação? A dife­
lfi . s pos
tCJente. Se for bem foita, a sua critica. sei.o em causa
.._ft . de modo insu­
rentes níveis, pode ser este planeta. a época (uma civilização, no
·..,ç tome uma útil novidade! a sempre Justa: e talvez até sentido de Burckhardl, por exemplo) ou um momento da vida indi­
vidual. Toca a entoar a música! O valores da cultura passada e as
IS n! 8. lillleim de 1963 esperanças de realizar a razão na História não têm outra sequ~ncia
possível. O resto decompõe-se. O termo situacionista. no sentido da
l.S., é eJCactamente o contrário daquilo a que se chama actualmente
em ponuguês um «situacionista». quer dizer, um partidário da situa­
ção existente, um salazarista, neste caso.

2 É a /11Jemacio110/ Sit11ac1011ista um movimento político?


Q questionário A expressão c<IDovimento político» ignifica hoje em dia a activi­
dade especializada dos chefes de grupos e partidos, que da passivida­
de organiJ.ada dos militantes extraem a força opressora do seu futuro
1 Qu . ;r. poder. A I.S. não quer ter nada em comum com o poder hierarqui­
. e s1gn!J1ca a palavra frSituacionisla»
- Este t~nno define uma actividade qu/ zado, seja de que forma for. A 1S por conseguinte. não é um mo\~­
ÇO\!s, e nao reconhecê-las como valor • pretende fa:.er as situa­ mento político nem urna sociologia da mistificação política. A I.S.
le E · exp1, . .
· · isto a todos os niveis da práti·ca . tcativo ou de outra lndo- propõe-se ser o mais elevado grau da consciência revolucionária
Sub · • soc1a
stJt~mos a passividade existencial pela'l e da história individual. internacional. Epor isso que procura clarificar e coordenar os gestos
tos da vida, a dúvida pela nfumaça'o 1' d· l construção dos momen­ de recusa e os sinais de criatividade que definem os novos contornos
tas r . u tca
lIIUtaram-sc até hoje a interpreiar as .1a. Os filósofos e os artis­ do proletariado, a vontade irredutivel de emancipação. Centrada na
as •ran~formar. Visto o homem ser 0 pro:~~uações; trata-se agora de espontaneidade das massas, uma tal actividade é incontestavelmente
P'.15;a, importa criar situações humanas Vi 110 das situações por que política, a menos que se negue essa qualidade aos próprios agitado­
mdu 1 • • is . .
pe a sua slluaçào, ele quer ler 0 pod sto o indivíduo ser defi­ res. Conforme vão surgindo novas correntes radicais. quer seja no
do s d . er r d .
~u eseJo. Nesta perspectiva, devem ~ e cnar situações dignas Japão (a ala extremista do movimento Zcngakuren1), no Congo ou na
Pº~1.ª (a comunicação como resultado fundir-se e realizar-se a clandestinidade espanhola. a l.S. concede-lhes um apoio critico, tra­
emstu') po ..
• J açao • a apropriação da nature os1hvo duma linguagem tando por isso de as ajudllf na prática. Porém, contra todos os «pro­
sociqJ za e u
· O nosso tempo vai substituir a fi 1uma completa libertação
e.~lrc- d ron . 1
AZcngakurcn (Confedmçiio Nac1011al dasAMociaçõc:s Estudantts do Japão), criada
d -ma as que a fenomenologia complacentem fixa das situações
escrever, pela criação prática das situ _ entemente se limitou a cm 1948, pi.s.sou nrpidamcnte da coodiçiio de sindaro estudantil i acção políllcl. 111111Udc:
deslcic fro . aço _ . . . v1ulerua, por üúluênci:i do P.C. Japones. No 11/l()j 60, com 11 radicnlização d3s lutu, a
. ar esta ntetra graças 30 movime t oes, vai contmuamente Zcngaklll'Cll passa a ficar 5ob a tníluência da cxtrcma-csqumfa, que descnc:ldda VÍ!J)m­
realila çao. - Nos , queremos uma fenóme n eto da história da nossa
sas batalhas de rua numa ~tntégia de afront3111cnto com o Estado. A l.S. chep a ter
de que isto será a banalidade primeira d:o-;lrá~s. Não duvidamos contJcias pcssoets com umn facção da ãngakurcn (cm 1963, an Paris), mas ~ter
tsis novunento de libertação avaliado mal a sua rndicnlidadc polirica

159
gramas de transição» da política especializ.ada, a l.S. tem como refe­ pôr o equipamento material à disposição da criath idade de tudos.
rencia uma revolução permanente da vida quotidiana. como por toda. a parte 1S massas se esforçam por fnzer no momento
da revolução. E um problema de coordenação, ou de tnctica, como e
3. iu IS. um mo~·ime11/o artístico? queira. Tudo aquilo de que tratamos é realizável, tanto imediatamente
Uma grande parte da critica situacioo1s1a sobre a sociedade de como a curto prazo, bastando para isso que se comecem a põr em
consumo consiste em mostrar a que ponto os .artistas contemporâ­ prática os nossos métodos de investigação e de actividade.
neo:s, ao abandonarem a riqueza de superação contida, e até pesqui­
sada. no período de 191 Oa 1925, se condenaram, na sua maioria, a 6. Acham 11eccs'iário chamarem-se assim, «.rihtacionistas»?
f~r arte como quem faz negócios. Os movimentos artísticos, depois Na ordem existente, em que a coisa toma o lugar do homem,
disso, são apenas as consequenciãs imaginárias duma e.\plosào que qualquer rótulo é comprometedor. Este que escolhemos. toda' ia,
nunca chegou a dar-se, que ameaçava e continua a ameaçar as estru­ contém a sua própria critica. mesmo sumária, visto opor-se ao de
turas da sociedade. A consciência de semelhante abandono e das suas «situacionismo», que os outros fazem por nos atribuir. Um tal rótulo.
implicações contraditórias (o vazio e a vootade dum regresso à vio­ de resto, de,·erá desaparecer quando cada um de nós for situacionista
lên:ia inicial) faz da I.S. o único movimento capaz de responder ao por inteiro, e já não proletário em luta pelo fim do proletariado. De
proJecto do artista autêntico. englobando a sobre\ivência da arte na imediato, por mais irrisório que um rótulo se apresente. este por que
arte de viver. Nós somos artistas simplesmente por já não sennos optámos tem o mérito de estabelecer o contraste entre a antiga inco­
artistas; o que nós pretendemos é realizar a arte. erência e urna exigência nova. Aquilo que desde há algumas décadas
mais tem faltado à inteligência, é precisamente este gume definidor
4. É a l.S. uma manifestação niilista? do contraste.
A I.S. rejeita o papel que Já querem atribuir-lhe no espectáculo da
decomposição. O que está para além do niilismo passa pela decom­ 7. Qual é a originalidade dos sihlacionistas, como gr11po delimitado?
posição do cspect.iculo, e é a isto que a l.S. entende dedicar-se. Tudo Parece-nos que três pontos notáveis justificam a importância que
o que se elabora e constrói fora desta perspectiva não precisa da I.S. a nós mesmos atribuímos como grupo organizado de teóricos e expe­
para cair por si mesmo; mas também é verdade que na sociedade de rimentadores. Primeiro, empreendemos, pela primeira vez, dum
consumo, por toda a parte, os baldios do desabamento espontâneo ponto de vista revolucionário, uma nova critica coerente desta socie­
oferecem aos novos valores um campo de experiências de que a r.s dade que se está a desenvolver actualmt:nte; esta critica encontra-se
n_ão pode prescindir. Só queremo) constnur sobre as ruínas do espec­ inserida em profundidade na cultura e na arte deste tempo e detém as
taculo. Por outro lado, a previsão, perfeitamente fundamentada, duma suas chaves (trabalho este, evidentemente, muito longe de ser con­
destruição total, obriga a construir apenas à luz da totalidade. cluído) Em segundo lugar, praticamos a ruptura c-0mpleta e definitiva
com todos os que nos obrigam a romper com eles, e fazêmo-lo cm
5. São as posições sit11acio11istas utópicas? cadeia. Trata-se de algo precioS-O numa época em que as diversas
, ~ realidad~ ultrapassa a utopia. Entre a riqueza das possibilidades espécies de resignação subtilmente se imbricam e se tomam solidá­
tecrucas acturus e a pobreza da sua utilização pelos dirigentes de toda rias. Em tercerro lugar, inauguramos um novo estilo de relações com
a espécie, já não é preciso lançar uma ponte imaginária. Queremos os nossos {<partidários»: recusamos totalmente ter discípulos. Só nos

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interessa a particif pação de cada qual ao mais alto nive~ e largar no mas de o constituir: de o definir e., inseparavelmente, de o pôr à
mundo pessoas acutónomas. prova. Dizer que não há movimento revolucionário é o primeiro
gesto, indtspensáveL a favor desse movimento. O resto não passa
8. Por que razão , não se fala dti J.S.? dum remendo irrisório do passado.
Fala-se dela mtuito amiúde, entre os detentores especializados do
pensamento mode:mo em liquefacção; mas é verdade que a seu res­ 10. HJcês são marxistas?
peito pouco se e§creve. No sentido mais geral, é por rejeitarmos a Tanto quanto Marx, quando dizia: «Eu não sou marxista».
noção de <(Sjtuaciconismo». que seria a única categoria susceptivel de
nos introduzir no> espectáculo reinante, integrando-nos nele contra 11. Há 011 não uma relação entre as vouas 1eorias e o \'OSSO modo
nós mesmos, sob a forma duma doutrina congelada. sob a fonna de dt! vida real?
ideologia na ace~o de Marx. É natural que o espectáculo, que nós As nossas teorias não são outra coisa senão a teoria da nossa \'ida
rejeitamos, nos nejeite. Fala-se mais facilmente dos situacionistas real, bem como das possibilidades nela experimentadas ou aprccndi­
enquanto i.ndividu1os, para tentar separá-los da contestação global. das. Por mais parcelares que sejam, até ver, os campos de actividade
sem a qual, de re:sto, eles não seriam sequer indivíduos «interessan­ disponíveis, comportamo-nos neles o melhor possível. Tratamos o
tes». Fala-se dos s;1t:uacionistas logo que deixam <k o ser (as varieda­ inimigo como inimigo, é um primeiro passo que recomendamos a
des rivais de c<Jllll.Shismo», em vários países, possuem como única toda a gente como aprendizagem acelerada do pensamento. Por outro
ce]ebridade comwm o facto de pretenderem, mentindo, ter uma qual­ lado, é óbvio que apoiamos incondicionalmente todas as formas da
quer relação com a I.S.). Os cães de guarda do espectácuJo retomam, liberdade de costumes, tudo aquilo a que a canalha burguesa ou
sem o dizer, fragnnentos da teoria situacionista, para a virarem contra burocrática chama deboche. Naturalmente, está fora de questão pre­
nós. lnspiram-se 111ela, como é natural, na sua luta em prol da sobre­ pararmos a revolução da vida quotidiana com base no ascetismo.
vivéncia do espec:táculo. Precisam portanto de esconder a fonte. ou
seja, a coerência de tais "ideias». Não é apenas por vaidade de 12. fa1ão os si111acionistas na vanguarda da sociedade dos l~eres?
plagiadores. AléJ]11 disso, muitos intelectuais hesitantes não ousam A sociedade dos lazeres é uma aparência que encobre completa­
falar abertamente da I.S., porque fazê-lo implica minimamente tomar mente um certo tipo de produção-consumo do espaço-tempo social.
partido: dizer corfl clareza aquilo que se rejeita, em contraponto do Reduzindo-se o trabalho produuvo propnamente dito, o exercito de
que se aceita. Crtem mwtos, mas nisso se enganam, que fingir por reserva da vida industrial vai trabalhar para o consumo. Toda a gente
enquanto ignorãnóa os há-de mais tarde livrar de responsabilidades. é sucessivamente operário e matéria-prima na indústria das férias,
dos lazeres, do espectáculo. O trabalho emtente é o alfa e o ómega
9. Que apoio pl'f!J)·/am ao movimenlo revolucionário? da vida existente. A organização do consumo, mais a organização dos
Desgraçadamente, é coisa que não existe. É certo que a sociedade lazeres, tem de equilibrar exactamente a organização do trabalho.
tem contradições, e que vai mudando. E que além disso, de maneira O «tempo livre» é uma medida rrónica no decorrer dum tempo prc­
aliás sempre nov:i, ela torna passivei e necessária uma acuvidade -fabricado. Rigorosamente, deste trabalho só pode resultar este lazer,
revolucionária agl ra inexistente ou ainda não existente como movi­ tanto para a elite ociosa - na realidade., cada vez ruais semi-ociosa
mento organizado Não se trata pois de «apoian) um tal movimento, - como para as massas que acedem aos ócios momentâneo· Não há

162 163
barreira de 1humbo que possa isolar uma fracção de tempo. ou o
tempo compcto duma fracção da sociedade, da radioacthidade que grosseiro de «participação», de actividn~e fingida). Mas. q~to a
o trabalho aienado disse~ quanto mais não seja no sentido cm nós, podemo- perfeitamente sustentar posições exactas a partir dwna
que é e!>te <ue modela a totalidade dos produtos e da \'ida social, interrogação incoerente, re1ficada. Na realidade, estas posições não
desta maneire e de nenhuma outra. «respondem>1, no sentido em que não remetem para as questões mas
ns recambiam. São respostas dadas de tnJ maneira que deveriam
13. Quem é que l'O.I' financia? 1ransfonnar as questões. O \ erdadeiro diálogo poderia assim come­
Só podenos ser financiados, de forma extremamente precária, çar depois destas respostas. No presente questionário._todas as q~es­
pelo nosso J:róprio emprego na ecoti"omia cultural da época. Este tõcs são falsar: e no entanto as nossas respostas sao verdadeiras.
emprego eneontra-se submetido à seguinte contradição: possuímos
f S. n.• 9, Agosto de 1964
tais capacida(es criati\'as que podemos seguramente ccter êxito» em
tudo; mastra!jos uma exigência tão rigorosa de independência e de
perfeita coer~ncia entre o nosso projecto e cada uma das nossas
actuais rcaJi:zações (e( a nossa definição duma produção artfstica
anti-situacioa sta) que somos quase totalmente inaceitáveis para a
organiz.açào dominante da cultura, mesmo cm questões muito secun­
Resposta a um inquérito do Centro
dárias. O estado do!> nossos recursos decorre desta componente. Ver, de Arte Socioexperimental
a propósito, o que escrevemos no n.º 8 desta revista sobre «os capitais
que nunca hão-de faltar às empresas n.ash.istas» e, im crsamente, as
11ossas condi~õc.s. /. Por que razão não se sente o povo motivado pela arte?
Por que razão continua a arte a .ser privilégio de certas camadas
14. Qua111os ~ão voeis? cultas da classe b111g11esa?
Um pouco mais do que o núcleo inciaJ de guerrilha na Sterra
Maestra, mas com menos armas. Um pouco menos que os delegados A importância do tema do presente inquérito do Centro de Arte
que estiveram em Londres em 1864, para fundar a Associação Inter· Socioe.,perimentaJ e o limitado espaço atribuído às respostas obrigam
nacional dos f rabalhadares, mas com um programa mais coerente. a um certo esquematismo. A postção dos situacionistas sobre estes
Tão finnes como os gregos das Termópilas («Viandante, vai dizer a assuntos foi exposta com maior exactidào nas revistas da l.S.
Lacedemónia..•»), mas com melhor futuro. (Intemationa/1; Situationniste, Der Deutsche Gedanke, Situatíonistík
Rl?l'Ofu/ion) e no catálogo publicado por ocasião da manifestação
15. Que valor podem voeis atribuir a um questionário? A este, por uDestruição do R.S.G. 6», ocomcla em Junho p~do na Dinamarca'.
exemplo?
Trata-se mbnifestamente duma forma artificial de diálogo, que 1
Em Junho de 1963, 1 l.S. organiza na Dinamara, sob• dm:cçio de J.V. M2rtin e
boje se toma \>bsessiva com todas as psicotécnicas da integração no eom bue nos processos do desvio, uma cxpo.sição-mnnifcstaçào intitulada «Dcstruíçio do
espectáculo (~ passividade alegremente assumida com o disfarce R.S.G 6•, difundindo o panfittD inglês clmvlcstíoo (11Dangcrl Olfü:w Scatl R.S.G 6io)
que diwlpll 1 localização e os plan<~ do lbrigo antianímico regional n! 6 do gD\'C'TIO
164
165
O povo, ou seja, as classes não dominantes, não pode legitima­ nal) mas também um consumo canino de peças e pedaços de anligas
mente sentir-se sensibilizado seja pelo que for que ocorra na cultura culturas, exteriores a todo o significado dessas culturas (de que
ou na organização da .,;da social, visto estas serem constituídas fora Malraux. em «teoria». foi o vendedor mais cómico, e cuja ostenta­
da sua participação e do seu controle; pode até, de modo deliberado, ção o mesmo vendedor agora concretiza nas suas «Casas da Cul­
manifestar-se contra essa participação ou esse controle. O povo s6 tura»'). Este «sector terciârioi> encontra-se estreitamente ligado ao
ilusoriamente pode sentir-se implicado nos subprodutos especial­ do espectácu/o social: uma tal camada intelectual (cujas necessida­
mente destinados ao seu consumo, isto é, em todas as formas de des de formação e emprego simultaneamente explicam o incre­
publicidade e propaganda espectaculars a favor de modelos de com­ mento quanlitativo e a degradação do ensino) é ao mesmo tempo a
portamento e produtos disponíveis. mais directa produtora do espectáculo e a consumidora da sua parte
Disto não se deve todavia deduzir que a arte subsiste meramente propriamente cultural.
como «pnvilégio» da classe bwguesa. No passado, todas as classes Duas correntes representam, a nosso ver, o actuaJ consumo cultu­
dominantes tiveram a sua arte - pelas mesmas razões que uma ral proposto a este publico de trabalhadores intelectuais alienados.
sociedade sem classes a não há-de ter, superada como nela se verá a Por um lado, as tentativas como as do <<Grupo de Pesquisa da Arte
prática artística. Mas são de tal ordem as condições históricas do Visual» orientam-se claramente no sentido da integração da popula­
nosso tempo, condições estas justamente ligadas a superação dum ção no sistema socioeconómico reinante, conforme a organizam,
limiar no processo de apropriação da natureza pelo homem e, nessa neste momento, o urbanismo policial e os pensadores do controle
medida, ao proJecto concreto duma sociedade sem classes, que a cibernético; com efeito, é através duma verdadeira imitação burlesca
grande arte nele foi, forçosamente, revolucionana. Aquilo a que se das teses revolucionárias sobre o fim da passividade do espectador
chamou arte moderna, das suas origens no século XIX ao seu separado e a construção das situações que essa 1<Arte Visual» pre­
florescimento no primeiro quartel do século xx. foi uma arte contra tende pôr o espectador a participar na sua própria miséria; levando
a burguesia. A crise actual da arte está associada à crise do movi­ aliás a falta de dialécllca ao cúmulo de o «emancipam, prescrevendo­
mento operário a partir da falência da Revolução Russa e da moder­ -lhe que é «proibido não participam (como rezava um panfleto dis­
nização do capitalismo. tribuído na lli Bienal de Paris).
Aquilo que hoje constitui o discutl\'el «privilégio» da nova Por outro lado, o «novo realismm>. ao retomar grande parte da
camada de trabalhadores mtelectuais, que prolifera com o desenvol­ forma (mas não do espírito) dadaista, constitui uma ane apologética
vimento do «sector tcrtiário» da economia, é não só uma continua­ do caixote do lixo. Deste jeito, é ele que se inscreve na margem de
ção artificial da arte moderna (formais repetições fastidiosas pseudoliberdade que uma civilização do acessório e do desperdicio
enfarpeladas de forma publicitária, exteriores a contestação origi­ pode oferecer a si mesma.

brítãnico; na Inglaterra, C$lll denúncia fora o ponto ci: partida duma «invasãon das Csta· 1
O nooic de André Malnwx (1901-1976), dmuntc da ano:; ministro (de De G3ulle)
dos-maiores secn:t~ oohldos em 1.0l1llS rurais e da s:ibotagon tütõnica dos centro~ de 00. Asmntos Culturais, ficou uwciado i rcnO\"IÇio dos «CcntroS da JU\cutudc e da
~ militar britânicos. O ccnãrio de Desrrwr;ão do R.S.G. 6 mcluía a ra:onst11u1ção CuJtwu, estrutura 001pQciona/ local, ou:rior ao C111ino, criada no pós-gui:m. lW promo­
dwn nt.igo wnilllómico e wna aposição de 11canogntfi:is 1mnonuc~11 da J.• guerra \'Cr neles ~i\.ilcs de arte. As IClividadcs ncstc1 ccnlJ'OS «progrc:S~~. OOJIJ o seu
mundiJll, de .,fanin e Michde Bcrmtcm cortejo de mJStilicaçõcs correntes, cslll\'am obviãmrntc sob controle oficilll.

166 167
Mas o importância destes artistas continua ra ser muito secuncl.ária, aplicação dos princlpios da ~cnda moderna do mesmo produto atra­
até em comparação com a publicidade comerciaal. Deste modo, parado­ ' ~s de marcas rivais.
xalmente, o 1<realismo socialista» de Leste, quue em nada é uma arte.
exerce apesar efuso uma função social ma.is ddecisiva. Isto porque no 2 Como pode a arte ser realmente «social»?
Leste o poder mantém-se vendendo sobretudo ideologia (ou seja. jus­ O tempo da arte já passou. Trata-se agora de n!allZlIT a arte, de
tificações mistificadoras) e no Ocidente \'cndetndo .bOOs de consumo. construir efectivamente, a todos os níveis da vida, aquilo que antes só
O facto di.: a burocracia não ter podido constilituir a sua própria arte, pôde ser ilusão ou memória artística, sonhadas e conservadas unila­
adoptando formalmentc, pelo contr.irio, e apessar da falta de eficácia teralmente. Só suprimindo-a se pode realizar a arte. lmpõe-<>e todavia
que prejudica Clita receita, a visão pseüdo-anlistica do:. conformistas objectar ao estado presente da sociedade, que suprime a arte substi­
pequeno-burgueses do século passado, confinma assim a impossibili­ tuindo-a pelo automatismo dum espectáculo ainda mais hierárquico e
dade ac1ual de uma arte como <1privilégioll dai classe dominante. passivo. que só realizando-a se poderá realmente suprimir a arte.
Toda a arte. porém, é ocial pelo facto de Sbe encontrar implantada
numa sociedade. sendo por assim dizer a contrragosto que se aparenta A sociedade política onde viie favorece ou desfavorece a sua f11nçào
às condições dominantes, por um lado, e à sma negação, por outro. social de artista?
Momentos da cootestação de outrora sobre"ivi:em de modo fragme11­ Esta sociedade suprimiu aquilo a que vocês chamam função social
tário, perdendo assim o seu valor artístico (ou Jp6s-artístico) na exacta do artista.
medida cm que perdem o centro da conlesta~o. E ao perderem-no, Caso se trate da fimção do empregado no espectáculo reinante, é
perdem a referência à globalidade de actos pc);s-artisticos (de revolta óbvio que os bons empregos se multiplicam com o próprio espectá­
e livre reconstrução da vida) que já existem mo mundo e tendem a culo. Mas os situacionistas não estão de modo algum dispostos a
substituir a arte. É então que esta cont~1açào ffragmentária, ao recuar, integrarem-se nele.
se vira para a estética. congelando-se numa testética imediatameme Caso, pelo contrário, se considere que se trata de herdar a antiga
envelhecida e inoperante, num mundo onde é; tarde demal~ para a a11e por meio de no1;os tipos de actividade - a começar pela con­
estética, como aconteceu com o surrealismo. c.Dutras correntes repre­ testação da totalidade social - . é natural que a sociedade em questão
sentam tip1crunente o misticismo burguês demradado (a arte como contrarie uma tal prática.
substituto da religião). Tais correntes reprodUZLem - mas apenas na
quimera solitária e na pretensàõ idealista - 3iS forças que oficial e 3. Pensa que a sua estética seria outra se se situasse noutras reali­
praticamente dominam a·presentc vida social: ,a não comunicação, o dades sociais, políticas e economicas?
simulado, o gosto frenético pela renovação enn sL pela substituição Com cer1ez.a. Realizando-se as nos.ses perspectivas, a estética (tal
rápida dos acessórios arb1trãnos e sem interess;e; como o letnsmo, a como a sua negação) seria ultrapassada.
propósito do qual pudemos escrever que <ÚSOIC, produto duma época Se actualmente csttvéssemos num pais subdesenvolvido ou subme­
de arte inconsumível, suprimiu a própria ideia tdo seu consumo» pro­ tido a condições arcaicas de dominação (colonização, dítadura de tipo
pondo <ia primeira arte do solipsismo» (LS. n 'º 4). franquista), reconheceríamos a necessidade duma certa participação
Concluindo, a própria multiplicação de pretamsas correntes artísti­ posslvel dos artistas, enquanto tais, nas lutas populares, e portanto :i
cas que nada distingue umas das outras, constitui a bem dizer uma necessidade duma comunicação, não inteiramente artificial mas feita
169
numa base mais antiga. ou seja. assente na velha função social do qualquer ocasião se proclamam «de conjlllltO» ~ião na moda, e até
artista, ainda efectiva durante certo tempo, tendo em conta o atraso fazem figura de vedeta nas deploráveis bienais de Paris, para desvi­
geral (social e cultural) do ambiente em questão. arem a atenção dos problemas efectivos da superação da arte. Enca­
Se a nossa tendência se constituísse num país governado pela ramos todas estas uruões com igual desprezo, não aceitamos ter
burocracia dita socialista, onde é sistematicamente organizada a falta nenhum contacto com este meio.
de informação sobre as experiências, culturais ou de.õutra índole, que Quanto a uma associação coerente e disciplinada. com vista à
nos últimos cinquenta anos ocorreram nos países industriais avança­ realização dum programa comum, pensamos que ela é possível a
dos, adeririamos com certeza à exigência mínima de difusão da ver­ partir das bases da Internacional Situacionista, com a condição de os
dade. incluindo a verdade sobre a presente arte ocidental. Apesar da participantes serem severamente seleccionados, para todos terem
inevitável ambigwdade desta reivindicação, visto a história da arte génio, e de deixarem, por assim dizer, de ser artistas, de se conside­
moderna ser bvre e até fnmosa no Ocidente. mas profundamente rarem como artJstas segundo a antiga acepção da palavra,
falsificada. e a sua importação para o Leste favorecer, antes de mais, Podemos aliás perguntar-nos se os situacionistas serão artistas,
os Jevtchuchenkos1 de serviço, ou seja, uma modernização da arte mesmo de vanguarda. Não só porque este reconhecimento e quase
oficial.
inteiramente contestado no mundo cultural, pelo menos a partir do
momento em que o conjunto do programa situacionista está em
4. Participa ou não na política? Porquê? jogo, mas também porque os seus interesses certamente excedem o
Participamos, mas só numa: agindo, com diversas outras forças no velho campo da arte. Mas no plano soc1oecon6mico esta nossa
mundo. em prol da ligação e da organização teórica e prática dum qualidade de artistas é ainda mais discutível. Muitos situacionistas
novo movimento revolucionário. vivem quase só de expedientes, que vão da investigação histórica
Todas as considerações que aqui fazemos constituem as nossas ao póquer. são empregados de bar ou apresentadores de marionetas.
inseparáveis razões de avançar para além dos reveses da antiga poli­ Eaté um facto assinalâvel, entre os 28 membros da Internacional
tica especializada.
Situacionista que até agora tivemos de excluir, saber que 23 figu·
ravam entre os situacionistas que tinham uma actividade artística
5. Parece-lhe necessária uma união dos artistas? Que ob1ectivos notória e com crescente êxüo económJco nesta actividade, sendo
seriam os dessa união" reconbeddos como artistas apesar da sua adesão à I.S.; mas nessa
As uniões de artistas são abundantes, desprovidas de princípios ou altura hnham tendência para dar cauções aos nossos irunugos ­
arbitrariamente fundada.s a partir dum qualquer extravagante delírio, que desejam inventar um c<situ.acionismo» para se livrarem de nós,
na qualidade de sindicato de apoio mútuo, de circuito fechado de integrando-nos no espectáculo como uma qualquer estética do fim
garantias elogiosas ou de arrivismo colectivo. Os trabalhos que em do mundo; agindo assim, ainda queriam ficar na l.S., e isto era
inadmissível. O valor estatístico destes números parece incontes­
E\gucni l~tchuchcnlco (n. cm 1933), pocu russo da época do chamado !<degelo•
1 tável.
pós-Stálm, começou a publicar poemas polltic~ cm 1957. Foi wn dos ~ aur.on::s É evidente que outros «objectivos» duma eventual união dos arfu..
russos lll110rizado • tiu.cr digrcssõc:s no cstrant?Ciro, inclUiivc cm Ponugal, e nessa medida tas nos são indiferentes. pelo facto de os considerarmos inteiramente
põdc ser visto cano c•crnb.1iudon. itinerante do regime.
caducos.
170
171
ria do brinquedo, e tomando-os significantes tão gr~ssei~cnte
ª.
quanto possível. Esta '".eric reto~a assim, de certa ~~ ~rntura
de batalhas. corrigindo, no senlldo que nos e-0nvem. a histona das
revoltas, que ainda não acabou. Cremo~ que é pela . a~~ência dum
no\'O irrealismo que deverá encetar-se sempre um re1mc10 da trans­

fonnaçào do mundo. Esperamo:. que tanto as nossas manifestações de


mbaria como as de seriedade contribuam para esclarecer a nossa
w
posição sobre as relações actuajs entre a arte e a soei"edd
a e.
6 de OC'1,,embm de 1963
Pela Internacional Situacionista,
J. V. MARTIN, J. STRIJDOSCll, R. VANEIGEM, R. VJéNET

/ .S: n! 9, Agosto de 1964

Vitóna do Bando de Bonnot

6. Que. re/Qfões estabc/cc-e entn? a obra que aqui apõe e as suas


declarações?
A obra anexa não pode ob"iamente representar uma «arte situacio­
o declínioe a queda da economia
nista». Nas presentes condições culturais, muito claramente anti­ espectacular-mercantil
-situacionistas, recorremos a «uma comlllllcação que contém a sua
própria critica», experimentada em todos os suportes acessfveis, do
cinema à escóta, e que teorizámos com o nome de desvio. Pelo facto Entre os dias 13 e 16 de Agosto de 1965, a população negra de Los
de o Centro de Arte Sóc1oexperimental ter limitado o seu inquérito às Angeles sublevou-se. Um incidente que opôs a policia de viação e
artes plásticas, escolhemos, entre as muitas possibilidades que o des­ alguns transeuntes acabou por se transformar em duas jornadas de
vio oferece à agitação, 0° antiquadro de Michele Bernstein. Jlitória do tumultos espontâneos. Os crescentes reforços das . for~ da ordem
Bando de Bo111101. Faz parte duma série, que inclui nomeadamente a não conseguiram voltar a dominar a rua. Ao terc~~ dia, os pr_etos
«Vitória da Comuna de Paris», a <<Vitória da Grande Insurreição armaram-se. pilhando as lojas de armeiros acess1.ve15, consegumdo
Camponesa de 1358», a «Vitória dos Republicanos Espanhóis», a disparar c-0ntra os helicópteros da J>?~cia. ~. de sol.dados e
«Vitória dos Conselhos Operários em Budapeste», e muitas outras po1'fc1as
. - o peso mili"tar duma diVJsao de infanlana, . apoiadacacem
por
vitórias. Estas pinturas propõem-se negar a pop an {caracterizada tanques - tiveram de ser atirados para a luta, com VlSta a cer •
materiaJ e «ideologicamente» pela indiferença e pela satisfação taci­ a revolta no bairro de Watts e a reconquistarem-no. depois, atmes de
muitos combates de rua durante VélnOS
J..:. d·tas. os insurrectos proci!de­
turna), integrando exclusivamente objectos seJeccionados na catego­
172 173
raro a uma pilhagem generalizada dos armazéns e puseram-lhes fogo. na refrega; deixemos os sociólogos lamentarem-se sobre o absurdo e
Segundo números oficiais, tera havido 32 mortos, dos quais 27 pre­ a ebriedade desta revolta. Compete a uma publicação revolucionária,
tos, mais de 800 feridos e 3000 pessoas presas. não só dar razão aos revoltosos de Los Angeles, mas também contri­
As reacções, vindas de todos os lados, tiveram a clareza que o buir para lhes fornecer as suas razões, expondo teoricamente a ver­
acontecimento revolucionário, por ser ele próprio uma clarificação dade cuja indagação se exprime na acção prática desta revolta.
em netos dos problemas existentes, tem sempre o condão de conferir Na Mensagem publicada em Argel em Julho de 1965, após o golpe
aos diversos matizes de pensamento dos seus adversários. O chefe da de Estado de Boumedienne, os situacionistas, que expunham aos
polícia. \\rill.iam Parker, recusou quaJquer mediação proposta pelas argelinos e aos revolucionários do mlllldo inteiro, como um todo, as
grandes organizações negras, afumand~ justamente que «estes revol­ condições na Argélia e no resto do mundo, assmalavam entre os seus
tosos não têm chefes>>. E como os negros já não tinham chefes, deu­ exemplos o movimento dos negros norte-amencanos, o qual, «se
-se em cada um dos campos o momento da verdade. Que esperava puder afirmar-se de modo consequente», há-de desvendar as contra­
um destes chefes agora no desemprego, Roy Willins, secretário-geral dições do capitalismo mais avançado. Cinco semanas depois, esta
da National Association for lhe Advancement of Colored People? consequência manifestou-se na rua. Tanto a critica teórica da socie­
Declarava que os motins 1<deviam ser reprimidos, empn:gando toda a dade moderna, no que esta tem de mais novo, como a sua critica em
força necessária•>. Quanto ao cardeal de Los Angeles, Mclntyre. que actos existem jâ; aínda separadas mas semelhantemente dirigidas para
protestava tão energicamente, não protestava contra a violência da as mesmas realidades, falando da mesma coisa. Ambas estas critJcas
repressão, como poderia parecer astuto que o fizesse em época de se explicam de modo complementar; sendo cada uma delas inexpli­
aggiomamento da influência da Igreja católica romana; protestava, cável sem a outra. A teoria da sobrevivcncta e do espectáculo \ê-se
na urgência, contra ~<uma revolta premeditada para destruir os direitos clarificada e registada nestes actos qu~ são incompreensíveis para a
do vizinho, o respeito pela lei e a manutenção da ordem», apelava os falsa consciência norte-americana. E um dia destes, por seu turno, há­
católicos a oporem-se à pilhagem, a «estas violências sem justifica­ -de clarificar tais actos.
ção aparente>>. E todos quantos eram capazes de enxergar as «justi­ Até agora. as manife!ltações dos negros pelos «direitos clvicos»
ficações aparentes» da raiva dos negros de Los Angeles, mas não tinham sido mantidas pelos seus chefes numa legalidade que tolerava
conseguiam ver a justificação real, todos esses pensadores e «respon­ as piores violências das forças da ordem e dos racistas, como acon­
sáveis» da esquerda mundial e do nada que esta é, lamentaram a teceu em Março passado [ 1965] no AJabama, quando da marcha
irresponsabilidade, a desordem, a pilhagem e, sobretudo, o facto de sobre Montgomery; e mesmo depois deste escândalo, uma discreta
logo de início ter occrrido a pilhagem dos armazéns que continham colaboração entre o governo federal, o governador Wallace e o pastor
o álcool e as annas; bêm como os 2000 foccs de incêndio enume­ Luther King levara a marcha de Selma, a 1O de Março, a recuar
rados, graças aos quais os petroleiros de Watts iluminaram a batalha perante a primeira intimação, com digmdade e rezas. O afrontamento
e aquela sua festa. Quem lera então assumido a defesa dos insurrectos que a multidão dos manifestantes esperava nessa ocasião não passou
de Los Angeles, nos lermos que estes mereciam? - Vamos nós fazê­ do espectãculo dum afrontamento possível. Ao mesmo tempo. a vio­
-lo. Deixemos os economistas carpir sobre os 27 milhões de dólares lência atingira o limite ridículo da coragem demonstrada pela multi­
perdidos, os urbanistas sobre um dos seus mais belos supermarkcts dão: e.'\por-se aos golpes do inimigo levando depois a grandeza moral
que se desfez em fumo e Mclntyre sobre o seu xerife adjunto abatido a poupar-lhe a necessidade de empregar de novo a força. Mas a
174 175
questão de base é que o movimento dos ~ireítos cívicos só estava a
põr, com meios legais, problemas legais. E lógico apelar legalmente
para a lei. O que é irracional é pedinchar legalmente perante uma
ilegalidade óbvia, como se esta fosse uma coisa sem sentido que se
dissolveria ao ser apontada a dedo. É evidente que a ilegalidade de
superficie, afrontosamente vish·el, ainda aplicada aos negros em
muitos estados norte-americanos. tem as suas raízes numa contradi­
ção económico-social que estã fora da alçada das leis existentes e que
nenhuma futura lei jurídica pode desfazcr, contra as leis mais funda­
mentais da sociedade onde os negros americanos ousam por fim pedir
para viver. O que acontece é que estes aspiram à sub\·ersão total des1a
sociedade; a is.so ou a nada. E o problema da subversão necessária
põe-se por si mesmo mal os negros deitam mão aos meio subversi­
CRfnCA DO URBANISMO
vos; ora a passagem a estes meios surge na sua vida quotidiana como
(Supermercado em Los Angeles. Agosto de 1965)
a coisa simultaneamente mais acidental e mais objectivamente justi­
ficada. Jâ não se trnta da crise do estatuto dos negros nos Estados
•AAmérica debruçou-se logo sobre esta nova chaga Desde há meses, socró· Unidos; trata-se da cnse do estatuto dos Estados Unidos, crise esta
logos, polllloos, psicólogos, economistas e pentos de toda a espécie sondaram
que começou por irromper entre a população negra. Em Los Angeles
a profundidade desta fenda ... Não se trata exactamente dum 'bairro·, mas
duma planura desesperadamente extensa e monótona -· "AAmênca de um só não ocorreu nenhum conílito racial: os negros não atacaram os bran­
andar", lodo ele em extensão; aquilo que uma paisagem americana pode ter de cos que lhes apareciam à frente. atacavam apenas os policias brancos;
mais tacirumo, com as suas casas de telhado hso, as lojas que vendem a da mesma maneira. a comunidade negra em luta não incluiu os pro­
mesma oosa, os vendedores de "hamburgers·. as bombas de gasolina, tudo prietário~ negros de annazéns, nem sequer os automobilistas negros.
isto degradado pela pobreza e a imundície -· A circulação automóvel é ah O próprio Luther Kmg leve de admitir que os limites da sua especia­
menos densa que nas outras ãreas, mas a dos peões pouco mais densa é, de
lidade haviam stdo ultrapassados, ao declarar em Paris, em Outubro
tal modo as casas parecem dispersas e as dístãncas desanimadoras ... Ail
passarem brancos por ali, lodos os olhares se pregam neles, olhares em que [de 1965]. que aqueles 1mão eram motins de raça. mas de classe)1.
se lê, senão ódio, pelo menos sarcasmo iCã remos mais uns inquiridores e A revolta de Los Angeles é uma revolta contra a mercadoria, con­
sociólogos à cata de explfcações, em vez de wem proporem-nos trabalho·, é tra o mundo da mercadoria e do trabalhador-consumidor hierarquica­
o que se ouve dtZer com frequência...). Quanto à habitação, materialmente mente submetido às medidas impostas pela mercadoria. Os negros de
poderá sem dúvida ser melhorada, mas ~o vemos cano se poderão tmpedlr La; Angeles, tal como os bandos de jovens delinquentes de todos os
os brancos de fugir em massa dum bairro, mal alguns negros se mudam para
lá Estes últimos hao-de continuar a sentir-se entregues a si mesmos, sobre­
tudo nesta desmedida cidade que é los Angeles, sem centro, oode não existe negros a 'darem-se as mãos', alguém na multidão gritou: 'Para arder!" Acerta
sequer a multidão onde uma pessoa pode Incorporar-se, onde os brancos só distància de Watts, é reconfortante ver, em bairros ditos de "classe méd1a',
entrevêem os seus semelhantes pelo pára-brisas dos carros_. Quando o pastor negros da nova burguesia aparando a relva, em redor de residências de grande
Martin Luther Kmg, dias depois, discursou em Walls, apelando os seus irmãos oontorto.• - M1chel Tatu, Le Malde, 3·11 ·65
176 177
p;íses avançados, mas mais radicalmente poc se tratar duma classe mercadoria enquanto tal, mostra também a ultima ratio da mercado­
gl balmente sem futuro, duma parte do proletariado que não pode ria: a força. a policia e os demais desracamentos especializados que
8 G-cditar em grandes oportunidades de promoção e integração, têm no Estado o monopólico da violência armada. O que é um poli­
to~am à leira a propaganda do capitalismo moderno, a sua publici­ cia? É o servidor activo da mercadona, é o homem totalmente sub­
daje da abundância. Querem já todos os objectos mostrados e abs­ metido à mercadoria. graças à acção do qual um certo produto do
ln\:tamente disponiveis, porque querem utilí:á-1-0sç·Recusam assim o trabalho humano permanece uma mercadoria cuja vontade mágica
va\_,r de troca, a realidadt! mercantil que conSlitui o seu molde. a sua consiste em ser paga, e não simples frigoríficos ou espingardas, coi­
IDf.1ivação e o seu fun principal. e que tudo seleccionou previamente. sas cegas. passivas, insensíveis, entregues ao primeiro que as queira
Gr,ças ao roubo e ao facto de poderem oferecer presentes, ,·oltam a utilizar. Por detrás d.a indignidade visível no facto de dependerem d.a
dei.arar com uma utilização que de imediato desmente a racionali­ policia, os negros rejeitam a indignidade VlSÍvel no facto de depen­
dade opressora da mercadoria, evidenciando o carácler arbitrãrio, não derem das mercadoriíl.). A juventude sem futuro mercantil de Watts
neees.sário, das relações que esta illSlaura e do seu próprio fabrico. optou por uma outra qualídade do presente, e a verdade deste pre­
A Pilhagem do bairro de Watts tornou manif~-m a mais sumária rea­ sente mostrou-se irrefutável, ao ponto de arrastar toda a população, as
lização do princípio bastardo que diz «A cada qual segundo as suas mulheres, as crianças e até os sociólogos ali presentes. Uma jo-.cm
fal.%s necessidadesn. ou seja, egundo as nece:.sidades dclenninadas socióloga negra deste bairro. Bobbi Hollon, declarava em Outubro
e P~oduzidas pelo sistema económico que a pilhagem precisamente [de 1965] ao Hera/d Tribtme: «As pessoas, antes disto, tinham ver­
rejeita. Mas porque esta abundância é levada à letra, encontrada de gonha de dizer que vinham de Watts. Diziam-no entre dentes. Agora
imeqiato. e jã não indefinidamente procurada na corrida do trabalho declaram-no com orgulho. Rapazes que andavam sempre de camisa
aliei1ado e do aumcnto das necessidades sociais diferidas, os verda­ aberta até à cintura e que tenn.m dado cabo duma pessoa num abrir
deir11s desejos exprimem-se logo na festa. na afirmação lúdica, no e fechar de olhos. estavam aqui mobilizados. todos os dias, a panir
poll<,tch da destruição. O homem que destrói as mercadorias demons­ das sete da manhã. Organiz.avam a distribuição da comida É evidente
tra. a s11a superioridade humana sobre as mercadorias. 'llão fica prisio­ que a tinham pilhado [...] Já cheira mal toda essa conversa fiada cristã
nem\ das formas arbitrárias re\'estidas pela imagem da sua necessi­ utilizada contra os negros. Mesmo que estas pessoas pilhassem os
dade. A passagem do consumo à consumação concretizou-se nas armazéns durante dez anos. não conseguiriam reaver nem metade do
charr\as de Watts. Os grandes frigorificos roubados por pessoas que dinheiro que esses armazéns lhes roubaram nas compras [...] Eu cã
não \inbam electricidade em casa ou estavam com ela cortada é a não passo duma miúda negra.» Bobbi Hollon, depois de decidir
melhor imagem da mentira da abundância, feita verdade em jogo. mmca mais lavar o sangue que duranle os motins lhe sujou as sapa­
A PH.>dução mercantil, mal deixa de ser comprada, toma-se criticável lil.has, diz que «agora o mundo inteiro tem os olhos postos no bairro
e mO\ijficável em todas as suas formas particulares Só quando é paga re Watts».
pelo \:linheiro, como signo de um grau hierãrqmco na sobrevivência, Como fazem os homens a História, a partir das condições prees­
se vê respeitada como um. feitiço admirável. tabelecidas para disso os dissuadirem? Os negros de Los Angeles
A ~ociedade da abundância tem na pilhagem uma resposta natural; auferem me:.hores salãrios que no resto dos Estados Unidos. mas
mas a sua abundàocia não é natural nem humana, é uma abundância estão ainda mais separados que nos outros lugares da riqueza
de m~cadorias. E a pilhagem. ao fazer instantaneamente desabar a mãxima prec:t.samente alardeada na Calif6mia Hollywood. o pólo do
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espectfü:ulo mundial, situa-se na sua vizinhança imediata. Prometem­ mesmo tempo toda a organização da sociedade norte-americana. sin­
-lhes que hão-de aceder. com paciência, à prosperidade americana. tetizada no papel passivo que nela lhes está destinado. E logo são
mas eles bem vêem que esta prosperidade não é uma esfera estável descobertas na juvenrude estudantil as orgias da bebida ou da droga
é uma escada sem fim. Quanto mais sobem, mais se afastam do cimo, e a dissolução da moral sexual que antes se denunciavam nos negros.
por partirem com desvantagem e se verem com infmores qualifica­ Esta geração de estudantes inventou desde então uma primeira fonna
ções, sendo por isso mais numerosos entre os desempregados: e, em de luta contra o ~-pectáculo dominante.. o teach in, e esta fonna foi
suma, pelo facto de a hierarquia que os esmaga não ser apenas a do retomada a 20 de Outubro [de 1965] na Grã-Bretanha na universi­
poder de compra enquanto pura maténa económica: trata-se duma dade de Edtmbwgo, a propósito da cnse da Rodésia . Esta fonna,
inferioridade essencial que lhes é imposta na vida quotidiana pelos C\identemente primiti\a e impura, é o momento da discussão dos
costumes e os preconceitos duma sociedade onde todo o poder problemas que recusa ltmitar-se no tempo (academicamente); que
humano está alinhado pelo poder de compra. Da mesma maneira que procura ir até ao fim, sendo este fim. naturalmente, a activ1dade prá­
a riqueza humana dos negros americanos é odiável e considerada tica. Em Outubro [de 1965], dezenas de nulhares de manifestantes
criminosa, a riqueza em dinheiro não os pode tomar inteiramente irrompem pelas ruas, em Nova Jorque e em Berkeley, contra a guerra
aceitá\'eis na alienação norte-americana: dum negro, a riqueza indi­ m Vietname, associando-se aos protestos dos amotinados de Watts:
vidual fará apenas um negro rico. porque os negros no seu conjunto «Saiam do nosso bairro e do Vietname!>) Os brancos que se
devem representar a pobrem duma sociedade de riquez.a hlcrarqw­ radicalizam passam para além da famosa !Tonteira da legalidade: são
i.ada_ Todos os observadores, em Watts, OU\'Íram o grito apelando ao dadas «aulas» para aprender a cometer fraudes nos exames de apu­
reconhecimento universal do sentido que o motim adquiriu: «Isto é a ramento militar (Lc Monde, 19-10-65), incendeiam-se cadernetas
revolução dos negros e queremos que o mundo o saibah1 FREEDO.\f NOW militares perante as câmaras da televisão. Na sociedade da abundân­
é o santo e a senha de todas as revoluções da História; pela primeira cia exprime-se o nojo por esta abundância e pelo preço que ela custa.
vez, porém, não é a miséria que se Lrata de dominar segundo novas O espectácuJo vê-se conspurcado pela acbvidade autónoma duma
leis, é a abundância material. Dominar a abundância não consiste
apenas, por conseguinte, em modificar a sua distribuição, mas em 1No contexto da dcscotonilaçüo cm África. iniciada cm Ílll3Ís dos illlOS SO, a l.imbta

redefinir todas as orientações, tanto as superficiais como as profun­ e o Mal.iw, ~. com a Rodési3, numa fedmção de colónias britinicas, opõem·
-se mm êxito aos ob)Cci1vos dos colonos bra!lab, que pretenduun perpetuar a )tta dom1­
das. É o primeiro passo duma luta imensa, de um alcance infiníto.
naç;io. e tomnm-sc independmtcs, no mesmo 1empo que o A.N.C. (Conges~o Naciorutl
Os negros não estão ·isoladas na sua luta porque uma nova co11S­ Amamo) intc.'llSifica na Rodésia 1 mem11 l111a.. Mu o gmcmo coloni.al de Lan Smith, cm
ciéncia proleiária (a consciência de em nada a pessoa dominar a sua fins de Outubro de 1965, decrc:lll o •estado de cm~a... com \.'lSIA a sah-.igu:udar ah
actividade e a sua vida) começa a surgir nos Estados Unídos entre a .supmnw:ia branc:i. e após wn refcrc:ndo que é um mero plebiscito, proclama unibtc:­
camadas sociais que recusam o capitalismo moderno e, por isso, se ralmc:ntc 1 indcpc:ndéncía. a 11 de No\'Cl'llbro, contro todls ns 11dv"Cl'lênci.ts do gD\cmC>
lhes assemelham. A primeira fase da luta dos negros foi justamente o traba!him inglês, promotor duma transícrencia gnulu;il do poder pm 1 m31oria ~
Conbll o novo regime racista ~cni olic:111lmen1e lançado um buicoce pela O N U., que a
sinal dwna contestação que se alarga. Em Dezembro de 1964, os
Âfrn:a do Sul e POltllgal não aceium e 1 que as potências ocidc:nllli~. na pratica, se
estudantes de Berkeley, reprimidos pela sua participação no movi­ funam NJquda altura havia na Rodésia 250 mil bnmcm e 4 milhões de llt'gl'OS; este pais
mento dos direitos cívicos, acabaram por entrar em greve, pondo em só cm J980 retolll!l1Í o nome <lo anil!)) reino afnamo que cx1.\11J muuo nntt:.i de ali
causa o funcionamento desta «multiversidade» da Califórnia e ao chegim:m europeus: Zimbabué

180 181
camada social avnnçada que nega os seus \alares. O proletariado desde já participar na abundância. que é o valor oficial de todo o
clâs.sico, exactamente na medida em que pudera ser provisoriamente americano. reclamam a realização igualitária do espectáculo da \'ida
integrado no sistema capitalista. não integrara os negros (vários sin­ quotidiana na América. pedem que se ponham à prova os valores
dicatos de Los Angeles não admitiram os negros ate 1959}; mas agora semicelestes-semiterrestres deste cspectáculo. Está porém na essência
os negros são o pólo de unificação para todos os que re}eitam a lógica do espectáculo não ser realizável de imediato nem igualilariamente,
desta integração no capitalismo, são o nec p/us ultra de qualquer mesmo entre os brancos (os negros. justamente. e~ercem a perfeita
integração prometida. E o conforto nunca será bastante confortável função de caução espectacular desta desigualdade estimulante na
para satisfazer os que procuram aquilo que não se encontra no mer­ corrida à abundância) Quando os negros exigem tomar à letra
cado, aquilo que o mercado precisamente elimina. O nhel atingido o espectáculo capita.lista, estão já a rejeitar o próprio espectáculo.
pela tecnologia dos mais privilegiados torna-se uma ofensa, mais O espectaculo é urna droga para escra\'OS. Não quer ser tomado à
fácil de exprimir do que a ofensa essencial da re1ficaçào. A revolta de letra. quer ser seguido com um ínfimo grou de atraso (deixando de
Lm Angeles é a primeira da História a poder justificar-se acusando haver atraso. surge a mtStificação). De facto, nos Estados Unidos, os
a falta de ar condicionado durante wna vaga de calor. brancos são hoje os escravos da mercadoria e os negros os seus
Os negros têm nos Estados Unidos o seu próprio espectáculo, a negadores. Os negros querem mais do que os brancos: é este o nó
sua imprensa. as suas miS1as e as suas vedetas, e assim o reconhe­ górdio dum problema insolúvel, ou apenas solúvel com a dissolução
cem e o vomitam como espectáculo falacioso, como expressão da sua desta sociedade bronca. Por isso. e desde logo, os brancos que dese­
indignidade, por o verem minoritário, simples apêndice dum espec­ jam sair da sua própria escmidào têm de se associar à revolta dos
táculo geral. Reconhecem que este espectacuJo do seu consumo dese­ negros. não como afirmação de cor, obviamente, mas como recusa
jável é uma colónia do dos brancos. vendo mais depressa a mentira universal da mercadoria e, em suma, do Estado. A diferenciação
de todo o espectáculo económico-<:ultural. Querendo efectivamente e ecooómJca e psicológica dos negros relath'amente aos brancos per­
míte-lhes ver o que é o consumidor branco. tornand~se o justo des­
prezo que sentem pelo branco um desprezo por todo o consumidor
passivo. Os brancos que também rejeitam este papel só terão ê~to
unindo cada vez mais a sua Juta à dos negros, descobrindo eles pró­
prios estas lutas e apoiando até ao fim as suas razões coerentes. Se
a sua confluência se separasse perante a radicaliz.açào da luta, desen­
voh·er-se-ía um nacionalismo negro, condenando cada uma das par­
tes ao afrontamento segundo os mais velhos modelos da sociedade
dominante. Uma série de extenninios recíprocos é o outro termo da
presente alternativa, quando a resignação não puder durar mais
tempo.
Os lentames dum nncionalismo negro, separatista ou pró-africano,
são sonhos que não podem dar resposta à opressão real. Os negros
A lntegf8Çio em quê? norte-americanos não têm pátria. Estão nos Estados Unidos em casa

183
e afienadns. como os outros americanos, com a diferença de terem defesa, leva-nos a ver, logo que começa a prática negativa, o carác­
consciência dessa alienação. Não con tituem o sector atrasado da ter absurdo de Ioda a hierarquia.
sociedade estadunidense, são, pelo contrário, o se~u sector mais a\an­ O mundo racional produzido pela Revolução Industrial libertou
çado São o negativo em acção, «o lado perigoso lquc produz o movi­ racionalmente os indivíduos dos seus hmites locais e nacionais,
mento propulsor da História ao constitmr a luta» ((Miséria da Filoso­ Uganda-os mundialmente; mas o seu contra-senso reside em separá­
fia). Não há para isso África que valha. . -los de novo, segundo uma lógica invislvel que se exprime em
Os negros norte-americanos são produto da ifodústria moderna, ideias dementes, em valorizações absurdas A estranheza cerca por
tal como a electrónica, a publicidade e o ciclo~o. Têm as contra­ todo o lado o homem que se tomou estranho ao seu mundo.
dições respectivas. São os homens que o pairaíso espectacular O bãrbaro jâ não se encontra nos confins da Terra, está aqui. feito
simultaneamente deve integrar e expufw, de mO>do que a seu pro­ bárbaro precisamente por causa da sua participação forçada no
pósito se evidencia por completo o antagorusmo tentre o espectáculo mesmo consumo hierarquizado O humarusmo que cobre tudo isto
e a acllvidade dos homens. O espectáculo é u11ivtersaf como a mer­ é o contráno do homem, a nega.çào da sua acllvidade e do seu
cadoria. Mas estando o mundo da mercadoria alicerçado numa desejo; é o humanismo da mercadoria. a benevolência da mercado­
oposição de classes, a própria mercadona é hienárquica. A obriga­ ria para com o homem que ela parasita. Para quem reduz os homens
ção que a mercadoria tem (e por isso o espettáC\ulo que informa o a objectos, os objectos parecem ter todas as quahdades humanas,
mundo da mercadoria) de ser ao mesmo tempo 1universal e hterár­ transformando-se as manifestações humanas reais em inconsciên­
quica, resulta numa hierarquização universal. Ennretanto, pelo facto cia (cComeçaram a comportar-se como um bando de macacos num
de esta hierarquização ter de manter-se mconfessiaáa, ela traduz-se jardim zoológico», pôde assim declarar William Parker, chefe do
em valorizações hierárquicas inconfessáveis. porqiue i"acionais, no humanismo em Los Angeles.
mundo da racionalização desprovida de ra:ào. r: esta hierarquiza­ Quando o «estado de insurreiçàm> foi proclamado pelas autorida­
ção que cria racismos por todo o lado: a lnglatemt trabalhista acaba des da Califórnia. as companhias de seguros lembraram que não
por restringir a unigração das pessoas ~<de com, t>s países industri­ cobrem tais riscos; ou seja, os riscos que ultrapassem este sjstema da
almente avançados da Europa voltam a ser racistas importando da sobrevivência. Os negros norte-americanos não estão, como um todo,
zona mediterrânica o seu subproletariado ou explorando cá dentro ameaçados na sua sobrevivência - pelo menos se ficarem quieto!i ­
os seus colonizados. Quanto à Rússia, <:ontmua ~ti-semita porque e o capitalismo tomou-se suficientemente concentrado e imbricado na
nunca deL~ou de ser uma sociedade hierárquica, onde o trabalho organização estatal para poder, como pode, distnl>uir «ajudas» aos
tem de ser vendido como mercadoria. Com a mercadona, a luerar­ mais pobres. Mas pelo simples facto de estarem atrás na melhoria da
qu1a re~ompõe-se semprt, adquirindo novas formas e ampliando-se, sobrevivência socialmente organizada, os negros põem o problema da
quer SCJa entre o dirigente do movimento operá.riu e os trabalhado­ vida. e é a vida aquilo que eles reivindicam. Os negros não têm nada
res ou entre os posswdores de dois modelos de automóvel artificial­ para segurar que lhes pertença; têm é de destruir todas as fonnas de
mente distintos. É a tara original da racionalidade mercanttl, a segurança e de seguros privados até hoje conhecidas. Eles surgem,
doença da razão burguesa. doença hereditãna na hurocracia. Mas o com efeito, tal como são: mimigos irreconciliáveis, não da grande
revoltante absurdo de certas hierarquias e o fach> de toda a força maioria dos americanos. mas do modo de vida alienado de toda n
do mMdo da mercadoria saltar cega e automat camente em sua sociedade moderna - o país industrialmente mais avançado apenas
184 1 s
nos mostra o caminho que por todo o lado há-de ser seguido, caso o As lutas de classes na Argélia
sistema não seja derrubado.
Alguns dos extremistas do nacionalismo negro, para demonstrar
que não podem aceitar menos do que um Estado separado, adianta­ Poder-se-ia pensar que o novo regune argelino estabeleceu como
ram o argumento segundo o qual a sociedade norte-americana. sua única tarefa confirmar a análise sumária que a 1.S. dele fez. logo
mesmo se um dia lhes reconhecer toda a 1gualdaéle "cívica e econó­ a segwr ao seu putsch maugmal, na Mensagem aos Revolucionários
mica, nunca poderá, no plano individual chegar a admitir o casa­ que então publicâmos em Argel. 1 Todo o conteúdo do boumedienismo
mento mter-racial. Impõe-se, por isso m_?Çmo, que seja e.sta sociedade consiste em liquidar a autogestão, sendo esta a sua actividade real; a
americana a desaparecer. nos Estados Umdos e no mundo inteiro. qual começa logo quando o Estado, graças ao aparato da força militar
O fim de todo o preconceito racial, tal como o fim de tantos outros que constituía a sua única cristalização, concluída com Ben Bella e
preconceitos ligados às inibições em matéria de liberdade sexual, o seu único o~o sólido, proclama a sua independência ante a
estará eVJdentemente para além do próprio «casamento». para além sociedade argelina.
da familia burguesa, muito abalada entre os negros americanos, que Os outros projectos do Estado, a reorganização tecnocrática da
tanto reina na Rússia como nos Estados Unidos enquanto modelo de economia, a extensão social e jurídica da base do seu poder, ultrapas­
relação ltierárqu1ca e de estabilidade dum poder herdado (dinhe1r0 ou sam as capacidades da classe dirigente actual nas condições reais do
posição sócio-estatal). Diz-se correntemente, desde há tempo desta pais. A multidão dos indeciso . que não tinltam sido tmm1gos de Ben
juventude norte-amencana que após trinta anos de silêncio irrompe Bella mas acabaram por ser todos quantos ele decepcionou, ou seja,
como força de contestação. que ela encontrou a sua guerra de Espa­ os que ficaram na expectativa para avaliar o novo regime a partir dos
nha na revolta dos negros. É preciso que desta vez os seus «batalhões seus actos, podem ver que finalmente este regime nada realiza
Lincoln» compreendam todo o sentido da luta em que se empenham excepto o acto com que constitui a ditadura autónoma do Estado, que
e a apoiem completamente no que ela tem de universal. Os «exces­ é ao mesmo tempo a sua declaração de guerra à autogestão. Até
sos» de Los Angeles não são nenhum erro político dos negros, exac­ mesmo acusações exactas a Ben Bella, ou abatê-lo publicamente, são
tamente como a resistência armada do POUM em Barcelona, em coisas que parecem estar acima das suas forças. A úruca coisa que
Maio de 1937, não foi nenhuma traição à guerra antifranquista Uma resta do «sociahsmo» professado na Argélia é Justamente este núcleo
revolta contra o espectaculo situa-se no plano da totalidade ­ do .meia/ismo m\.mido, este produto da reacção geral ocorrida no
mesmo que eclodisse apenas no distrito de Watts - porque é o pro­ própno movimento operário que a derrota da Revolução Russa legou
testo do homem contra uma existência desumana; porque é encetada como modelo positivo ao resto do mundo, mclwndo a Argélia de Ben
no plano do único indii1duo rcoI e porque a comunidade, de que o Bella. a contraverdade policial do poder. Deste modo, o inimigo
indivíduo revoltado se encontra separado, é a verídica natureza social político não é condenado devido às suas posições reais, mas com base
do homem, a natureza humana: a superação positiva do espectnculo. no contráno do que ele foi; ou então dissolvem-no de súbito num
silêncio organizado, a partir do qual nunca existiu, nem para o tribu­
[GUY DEDORD) nal nem para o historiador. É por isso que Boumedtenne, desde sem­
Brochura cm mglês, cdílnda cm Nova lorqu.c, sem nome de autor, em Dezembro de
1965. TCÃtO publicado dcpo15 na /. S n • 10, Mnrço de 1966, não assmado 1 Em Julho de 1965, cm árabe e franc:Cs.

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pre um dos principais responsáveis pelo facto de a autogestão arge­ dominantes que Boumedienne exprime, e além disso esta evolução
lina nõo passar duma caricatura do que deveria ser, lhe c.hama oficial­ adaprn-se melhor à região do mercado mundial cap1tahsta a que a
mente «caricatUTID> com vis1a a reorganizá-la autoritarinmente. Em Argéba se enco11tra ligada. Ademais, as camadas burocráticas domi­
nome duma es. ência da autogestão ideologicamente garantida pelo nantes com Ben Bella eram menos capazes duma luta aberta contra
Estado, Boumedienne rejeita as esboçadas manifestações reais de as exigências <4is massas. Ben Bella e o eqwlíbno social instável,
autogestão. · resultado provisório da Juta contra a França e os colonos, somem-se
A mesma inversão da realidade determina a cntica boumedienista ambos. No momento em que se viram suplantadas, as camadas buro­
do passado. Aquilo que se condena em Ben Bella, ou seja, o que este cráttcas antes ptedominantes (dirigentes da Federação da F.L.N. da
fez e levou ao extremo, é precisamente-o que ele não fez, o que mal <Jrande Argel, l nião Geral dos Trabalhadores Argelmos) hesitaram.
fingira querer empreender. a libertação das mulheres ou o apoio efec­ mas logo depois juntaram-se, porque a sua solidariedade com o con­
tivo às lutas de emancipação em África, por exemplo. A base das junlo da burOClllcia estatal prevalecia, como é óbvio, relativamente
mentiras do regime actual a respeito do passado constitui a sua uni­ ao elos que tmliam com a massa dos trabalhadores. O sindicato dos
dade profunda com o passado. Na Argélia, a classe dominante não trabalhadores da terra, cujo congresso, setS meses antes, adoptara as
mudou, reforça-se. CCDSW'a Ben Bella por ter feito mal aquilo que teses mais radi~ sobre a autogestão, foi o primeiro a Juntar-se-lhes
apenas simulou, um revolucionansmo que ela agora quer deixar de Entre as forças bw-ocraticas coladas ao poder com Ben Bella. duas
simular. A classe dominante argelina, antes e depois do 19 de Junho', camadas, simult;aneamente inimigas e aparentadas, tinham um esta­
é uma burocracia em fonnação. Prossegue a sua constitwçào mudan­ tuto panicular: o Partido Comunista Argelino e os esquerdistas
do parcialmerue o modo de repartição política do poder. Certas cama­ estrangeiros que se tinham posto ao serviço do Estado argelino, os
das desta burocracia (militar e tecnocrática) ganham ascendente sobre chamados «pés \l ·ermelhos». Eram mais a!tllirantes ao poder que outra
outras (politica e sindical). As condições fundamentais continuam a cob>a. Parente pt0bre do poder mas de olho na her3Dça, a e~trema­
ser, por um lado, a fraqueza da burguesia nacional, por outro a pres­ -esquerda da bunocracia tinha junto de Ben Bel/a um útulo de repre­
são de massas camponesas e operárias na miséria, dentre as quais sentação das !Illllssas; o seu mandato não provinha das massas mas
uma parte, quando da fuga da antiga classe dommante (europeia), sim de Ben Bellm. Sonhava substituir um dia. em regime de monopó­
conquistou o sector autogerido. A fusão da burguesia argelina e da lio, e também c01ntra as massas, este poder que Ben Bella partilhava
burocracia na posse do Estado é mais fácil com as novas camadas ainda com todas as fracções. Como a pessoa de Ben Bella era o seu
único ac~o ao poder actual e a sua principal promes.sn de futuro,
1
Em 19 de Junho de 1965,"inn 1'>lpe de Esudo do ..conselho Revolucionário. bem como a suai única garantia de toleruncia (o seu Sockamo)'. a
dirigido pelo corooel Huan Boumediennc, depõe Ahmc:d Bcn Bclla, um dos chefes b~ extrema-esquerdai burocrática manifestou-se em sua defesa, mas de
tóricos do movimento mdcpendcnusta argelino, elciio Pn:sidente da Repúblicn ao pro­ modo vago. Da 1mesma maneira que ela assediava respeitosamente o
cesso subsequente à proclam:ição da mdcpcndencia da Argelia cm Julho de 1962. Amos­ Estado, colocou-sse no terreno do Estado para se opor à modificação
tra eloquente das rntcstinas mulidadb que se: mstalam deMfe 0 micro 00 regime,
desfavorâ\:el da rrelaçào de forças no aparelho de Estado. Ainda aqui,
Boumcdu:nnc cr.i o fftkllim» de Bcu Bclla. rendo-o este nomeado vice-prcsidcnre do
Conselho Preso cm lugar sccmo, Bcn Bell.i nu11C:1 sera Julg:ido, e só acabou por ~
hbatntlo cm Ollllllro de 1980, após múltiplas diligCocias ferras por apoiantes seus Junlo 1
Alusão a Mmcd 1Sul;amo (1901-1970), fundador do moderno Esmdo indonésio, cà
da O.NU.
sua rM:çào politicn amhbtvalentc.
188 19
a critica boumedienista destes elementos, globalmente qualificados ponto mais alto do pensamento molucionário argelino, a ideia da
como estrangeiros. em nome duma especificidade argelina do socia­ autogestào, mas de maneira nenhuma a sua pratica consequente.
lismo, é inteiramente falsa Longe de 1<fazerem teoria pela teoria» Compreendeu bem a noção, mas não chegou a entender o ser. Para­
(E/ Moudjahid de 22-9-65), os pés vermelhos representavam uma doxalmente, Harbi era o teórico governamental da autogestão, ou
mistura gasta de completa nultdade tcorica e de ten~ências contra­ antes, o seu poeta da corte; superior à prática, mais do que pensar a
-revolucionárias inconscientes ou cientemente dissimuladas. Longe autogestào, cantava-a. O Estado da autogestão, um monstro lógico,
de pretenderem c<experimcntarn aventurosamente na Argélia utopias tinha assim em Harbi a sua má consciência e o seu luxo. Os tanques
extraordinárias, tudo quanto possuíam de seu eram erros ou impostu­ de Boumedienne nas ruas significaram uma racionalização do Estado,
ras que já tinham mil vezes dado prol'aJ como tais. As melhore que doravante quer livrar-se dos irrisórios paradoxos do equilíbrio
ideias revolucionárias dos pés vermelhos não eram inadaptadas por benbelista e de qualquer má consciência, para pura e simplesmente
virem de muito longe, eram-no por serem repetidas tarde demais. Não ser um Estado. Foi então que se viu que l-larbi, desarmado profeta da
é uma questão de geografia, é uma questão de História. autogestào, não encarara a defesa da autogestão por si mesma. no seu
Ainda mais à parte, e mais radical, na extrema-esquerda do poder próprio terreno, mas apenas pela mediação de Ben Bella. Mas se
benbelista, Mohamed Harbi era o pensador da autogestào, mas só o Harbi só comava com Ben Bella para defender a autogestão, com
era graças ao Príncipe, nas secretarias do poder. Harbi atingira o quem contaria ele para defender Ben Bella? O pensador da
autogestão era protegido por Ben Bella, mas quem protegeria o seu
protector? lmaglll3va que Ben Bella, encarnação do Estado, sena
universalmente aceite na Argeha, quando ele próprio, Harbi, só acei­
tava o seu «lado positivo» (o reconhecimento formal da autogestào}.
O processo real evoluiu portanto pelo lado ruim; porque as forças que
sustentavam o raciocinio imerso acerca de Ben Bella tinham maior
capacidade de intervenção. Ben Bella não constituía a resolução das
contradições argelinas, era a sua cobertura provisória. A História
mostrou o equívoco de Harbi e de todos os que pensavam como ele.
Precisam agora de radicalizar as suas concepções, caso queiram com­
bater eficazmente a ditadura boumed.terusta, realizando a autogestào.
A queda de Ben Bella é uma data na derrocada das ilusões mundiais
acerca da versão <csubdese:nvolvida» do pseudosocialismo. Fidel Castro
•lnnãos, 63 comitês de gestão íncubiram-me de diz.er apenas isto: é a sua últnna vedeta, mas também ele, que legitimamente fundamen­
1.º - 63 quintas não recebem pagamentos desde há d0ts meses. Há operários tava a inutilidade das eleições no facto de o povo estar armado, exige
que dormem ao relento. Há quadros que possuem dez casas.
que todas as armas sejam entregues, recuperando-as a sua pohc1a
2.º- 63 comitês de gestão 1ncubíram-me de dizer que ainda somos coloniza­
dos pelos burgueses.• - Intervenção de Ben Dahud Mohamed, delegado de (Agência Reuter. 14-8-65). E jâ se vai embora o seu Jugar-tenente 1, sem
Sahída no Congresso dos Trabalhadores da Terra (Ben Aknum, Dezembro de
1964.) 1 Alusão à saída de: Cuba de ~to Chc Gucwra.

190 191
que se dê wna Unica explicação às massas a quem estes homens tinham e confüsa. IIlílDtendo-se tudo à superficie da 'ida política do pais, nas
pedido wna cega confiança pessoal. Ao mesmo tempo. os argelinos que nuvens em que se move o Estado. A partir do 19 de Junho [de 1965)
na sun tc!rra fazem a experiência da frag1hdade do socialismo começa um outro período, o do afrontamento entre a classe domi­
benbebsta, descobrem. ao mesmo tempo. o que vaha a solicitude pela nante e os trabalhadores, sendo isto o movimento real que suscita as
sua causa do pretenso (<campo socialista»: os Estados chmês, russo. condições e a necessidade duma teoria. Depois de 9 de JuUio, uma
cubano. e Nasser como brinde, cumulam naturalmente com amabilida­ reumão de delegados de 2500 empresas autogeridas. reaJizada em
des o regime de Boumedienne.. As revoluções nos países subdesenvol­ Argel sob a presidência do ministro da Indústria, Bumaza. expunha
,;dos hão-de sempre abortar lastimosamente enquanto adnutrrem, exal­ claramente a este ministro que a autogestào é um principio intocável.
tando-o em prol de si mesmas, um ~odeio existente de poder socialista, articulando um conjunto de críticas todas elas respeitantes ao papel
visto estes modelos e:ustentes serem todos manifestas imposturas. do Estado como limitador do princípio autogestionârio. Os delegados
A fragmentada ver.;ào oficial russo-chinesa e a versão «subdesenvohi­ <<puseram em causa a multiplicidade das tutelas (governos civis,
da» deste socialismo admiram-se reciprocamente, atribuindo umas às ministérios, partido) e denunciaram o não pagamento das dívidas do
outras certificados de garantia, umas as outras garantindo o mesmo fim. Estado e o peso da fiscalidade; alguns delegados evocaram também
O subde.se11volvímento da teona revolucionária, no mundo inteiro, é o o problema dos despedimentos, as exigências ..draconianas" dos for­
primeiro subdesenvolvimento de que agora se impõe sair. necedores estrangeiros e também o papel parahsador da alfãndega.»
As lutas internas da burocracia argelina. durante a guerra e no (Le Monde, 10-7-65).
período de 1962-1965, tornaram-se lutas de clãs, nvalidades pessoais, Estes delegados sabiam do que falavam Com efeito, na declaraÇão
inexplicáveis divergências entre lideres, obscuras alterações de alian­ inaugural de 19 de Junho, onde a palavra «autogestão» não figurava.
ças. Ora isto era a filiação direcla das condições que reinavam, antes o poder preparava jâ o ~<Saneamento» da situação económica através
ainda da insurreição, em tomo de Messalt Hadj.1 Não só toda e qual­ do reforço do controle estatal e da formação acelerada dos «qua­
quer teoria primava pela ausência como até a ideologia era sumária dros». Para isso tomara vánas medidas: obrigar ao rápido pagamento,
em regime de venda a prestações, de todos os alojamentos indevida­
1
Mi:s.sali Hndj (189 -1974). opcnirio e estudante na Sorbonnc, foi wn dos primeiros mente ocupados (mais de cem mil), recuperar o dinheiro «roubado ao
e maí~ céld1rcs cornootcntcs pcb cnusa da mdcpcmléncia da Argélia, desde 1925, datJ Estado» nas empresas autogendas, opor-se ao desgaste do material
cm que criou, cm Paris, wna organização proldâria, 11 E.NA (Estrela Nonc-Afiiama).
mal conservado, regulanzar todos os sequestros de bens ilegais feitos
de inspiração oomunista. MultlS vC2CS preso, na A~lia e em França (chegou a ser
condenado, pela rqimc de V"ichy, a 16 anos de trabalhos fo~). olitarájomais por pelas massas após a saída dos francesel.. E desde então, apesar de a
vezes de gmndc tiragem, orpmmndo suce;s1\'0S pwtidos poluic:o:>. Quando da criação da autogestão ser justamente a melhor forma de ultrapassar o paralisador
F.LN., cm Novembro de 1954, cujo:. membros, cm sua ma1ona, b4viam õldqumdo cxpc· respeito pela propriedade (pessoal ou estatal) que tanto prejudicou o
riêm:ia polnica com ele, 1 sua mfluêncfa começa 1 baixar, em parte devido oo movimento operário, os trabaJhadores do sector autogerido (que
auwm:msmo de que C$IC pn:cursor dava pro\ilS (os .i.CllS ScCgUidCl"C$ cham:mun-lhe aguardam há meses os seus salários em atraso) são constantemente
«E! l.aún11, o Único) e que o levava a tcnur infiltrar as outras organizações, criando wn
censurados por roubarem uma grande parte da sua própria produção.
clima de desconfianço e de 5311gwnáriin n\'lhdadcs (caso das atrocidades entre o F.LN.
e o M.N.A., Movuncnto Nacional Argelino, o úlomo partido que Messa li criou, em fmais
O objectivo mais urgente do Estado argelino, que já tem um número
de 1954, publicando um órpo clandestino, A Jaz do Povo. que~ lllllil!Cve atê 1962). suficiente de soldados e policias, consiste agora em fonnar 20 mil
A partir desta data, HadJ retirou-se na região pansicnse, oode faleceu. contabilistas por ano.

192 193
A luta central, surda e aberta, desencadeou-se de imediato entre os pulosas» {Bumaza). O r.ípido aumento dos preços dos produtos ali­
representantes da classe dominante e o traballiadorcs a respeito, mentares Ycm juntar-se a todas estas provocações. Os trabalhadores
precisamente. do problema da autogestão. As declarações mranquili­ conscientes deste prOCC!SSO, resistem onde quer que se encontrem· as
zadoras» de Bumaz.a ou de Boumedienne não enganavam ninguém. rcpdidas greves nas fábricas RenauJt, as greves das Messageries1. dos
O umaJ-eslar sindical», que o jornal Le }donde e\I ocava a 3 de Outu­ telefones, dos empregados de seguros ou as manifestações dos ope­
bro, é um eufemismo que designa a resistência do wiico bastião da rários com salários em atraso das distantes campinas de M1l!dja,
revolução socialista na Argélia - o sector autogendo - contra as constituem, no seu conjunto. o esboço dum movimento de protesto
últimas operações da hegemonia burocrático-burguesa. Os próprios que, caso venha a mostrar-se decidido. poderá varrer o regime actual.
dirigentes sindicais não podiam manter õ s1lênc10; esta\131D em causa Incapazes de dominar um só dos seus problemas, os dirigentes
o seu estatuto oficial, como representantes dos trabalhadores junto do reagem com pennanentes colóquios motivados pelo temor, com a
Estado, e o seu estatuto social, como esquerda da classe dirigente. Os tortura todos os dias praticada nas suas prisões, com denúncias do
artigos de Révolution et Trtl\w/ do mês de Setembro, onde se mistu­ 1cabandalhamento dos costumes». E/ Jfoudjahid (7-12-65) ataca «o
ravam as reivindicações reais dos trabalhadores («Através da nossa sentunentalismo erótico duma jo\em geração sem empenho político»
miséria é a autogestào que vemos huIDJlhada») e a crescente inquie­ e o justo pon1o de vista de todos quantos «tentam rejeitar wna reli­
tação dos dirigentes sindicais (<1acordo quanto às análises feitas na gião vista como frefo ao prazer e uma emancipação encarada unica­
declaração do 19 de Junh0>), mas denúncia dos tecnocratas e econo­ mente como gozo. considerando o contnouto da CÍ\'ilii.ação árabe
mistas), rcílectem exactamente esta situação em que uma série de como um retrocesso». É o mesmo tom que o poder emprega, em
lutas. verticais ou horizontais. se sobrepõem. A cada vez mais pesada Washington e em Moscovo, para lamentar que dei,ou de ter con­
insistência sobre «a anarquia económica». que deverá sempre tradu­ fiança na juventude. Meses depois. o novo regime rival12a com Ben
zir-se por autogestào, as medidas jurídicas, de que os jornais falam Bella na mais ridicuJa manifestação do seu islamismo: a proibição do
menos, contra o sector autogerido (obrigar as empresas autogeridas a álcool.
pagar o imposto em atraso) e a restiruição da fábrica Norcolor ao seu A presente oposição à ditadura boumedienista é dupla: por um
antigo proprietário. mostram a estes dirigentes «trabalhistas» que cm lado, os trabalhadores defendem-se na~ empresa (autogeridas ou
breve já não terão lugar no aparelho dominante. Os novos pretenden­ não). sendo eles a contestação real implicada nos factos. Por outro
tes estão à porta: a «conida dos elementos duvidosos para o podem, lado, os esquerdistas das instâncias directivas da F.L.N. tentam refor­
com que Révolurio11 et Travail se indigna, traduz um resvalar para a mar um aparelho politico revolucionário. A primeira tentativa da
direita. Os tecnoburocratas e os militares não podem ter apenas como Organização de Resistência Popular. dirigida por Zahuane e apoiada
aliados os representantes da velha burguesia tradicional. No momento pelos stalinistas franceses. ó se manifestou, passadas seis semanas.
em que os oficiais. à maneira dos exércitos sul-americanos. acedem com uma declaração oca que não analisava o poder actual nem os
ao estatuto burguês (toda a gente sabe dos seus BM\\ comprados e meios de se lhe opor. O seu segundo apelo foi dtrigido à policia
desalfandegados com 30% de desconto), uma muJtidào de burgueses argelina, com cujo apoio revolucionário contava. Mas o cálculo saiu
argelinos, seguindo a pista do patrão da Norcolor, voltam para casa
aguardando que lhes sejam entregues as propriedades de que se apo­ 1 Empresas de transporto d.: produto e pessoas. bem como de dtstrlbui~o de pubh·
deraram, «em condições perfeitamente ilegais, pessoas pouco escru­ ~

194 195
íurado, porque antes de finais de Selembro esta policia já tinha pren­ que este manifesta Burocratas .nostálgico~ ou burocratas em pleno
dido Zahuane e desmantelado a sua primeira rede clandestina (o pró­ sonho, pretendem opor «o povo» a Boumedienne, quando Boume­
prio Harbi fora detido logo em Agosto). A O.R.P. prossegue a sua dienne já mostrou às massas a oposição real que existe entre o buro­
actividade, começando a obter quotizações dos operários argelinos crata de Estado e o trabalhador. Mas a pior miséria do seu bolche­
em França, «a favor de Ben Bela», e congre~dl! a mwona dos vismo reside numa clamorosa diferença: o partido bolchevique não
dirigentes estudantis. O objectivo deste aparelho pol!tico reside na sabia que poder burocrãtico ia instituir, ao passo que eles já puderam
ulterior Ligação do aparelho clandestino ou emigrado com a luta do ver, no mundo e no seu próprio pafs. o poder burocrático por cuja
trabalhadore argelinos, contando com uma próxima crise econó­ restauração, mais ou menos aperfeiçoada, agora se batem. As massas,
mico-política na Argélia. Nesta perspectiva leninista, irá apresentar­ se tiverem a palavra, não hão-de optar por esta burocracia comgida,
-se, C-Om ou sem a bandeira de Ben Bella, como solução para subs­ cujos aspectos essenciais já tiveram oportwndade de verificar. Os
tituir o poder boumed1enista. intelectuais argelinos que não aderem ao poder podem ainda optar
Que coisa irá. todavia, impedir a constituição dum aparelho de tipo pela participação neste aparelho ou pela descoberta duma ligação
bolcbe\ique por que anseiam tantos militantes? O tempo passado direcla com o movimento autónomo das massas. Mas todo o peso da
desde Lênin - o falhanço de Lénin -. a contínua e visível degra­ pequena-burguesia argelina (comerciantes, pequenos funcionários,
dação do leninismo. que se traduz, de imediato, no facto de estes etc.) preferirá lançar-se em socorro da nova burocracia tecnocrático­
esquerdistas se misturarem e se oporem em cambiantes de toda a -militar do que a favor dos esquerdistas burocráticos.
espécie: krucbtcbevo-brcjnevistas, pró-chineses. subtoghattistas, sta­ A única via do socialismo, na Algélia e em toda a parte, passa por
linistas puros e semipuros, todos os matizes trotskistas, ele. Todos «um pacto ofensivo e defensivo com a verdade», segundo as palavras
evitarão - e serão forçados a evitar - responder sem rodeios sobre dum mteJectual hlingaro em 1956. A Mensagem da 1.S. foi entendida
o problema essencial da natureza do «socialismo)) (ou seja, do poder m Algelia onde quer que tenha sido lida. Porque onde existam con­
de classe) na Rússia e na China, e por consequência também na dições praticas revolucionãrias nenhuma teoria é muito dificil. Obser­
Algélia Aquilo que conslitui a sua principal fraqueza durante a luta vava uma testemunha da Comuna de Paris. Villiers de l'Isle-Adam:
pelo poder é também a principal garantia do papel contra-revolucio­ 1<Pela primeira vez. ouvimos os operários permutar as suas aprecia­
nãrio que hão-de exercer no caso de chegarem ao poder. Estes esquer­ ções sobre problemas que até então só os filósofos tinham abordado.»
distas apresentam-se como a sequência da personalizada confusão A realização da filosofia, a critica e a livre reconstrução de todos os
política do periodo anterior, mas a verdade é que a efectiva luta de valores e comportamentos impostos pela vida social alienada. e-0ns­
classes na Argélia já encerrou esse pCJiodo. As dúvidas que tinham a tituem precisamente o programa maximaJisla da a11togestão genera­
respeito de Ben Bella estavam enredadas nas dúvidas que tinham a lizada. Em contrapartida, dizem-nos certos militantes esquerdistas do
respeito do mundo (e do socialismo), e mantêm-se depois de Ben aparelho que estas teses são justas, mas que amda não se pode dizer
Bella. Não dizem tudo o que sabem, e não sabem tudo o que dizem. tudo às massas. Os que razoam com esta perspectiva nunca vêem
A sua base social e a sua perspecti'lfa social reside no sector burocrá­ chegar o tempo em que se pode «dizer tudo às nwsas)), agindo, na
tico desfavorecido pela mudança de prato do poder, que quer realidade, para que ele nunca chegue. impõe-se dizer às massas o que
reapoderar-se do lugar que tinha. Vendo que Já não podem esperar elas fazem. Os pensadores especializados da revolução são os espe­
controlar o poder, viram-se para o porn. para controlar a oposição cialistas d.a sua falsa consciência, os que depois se apercebem que

196 197
fizeram o contrário do que julgavam fazer. Esle problema é aqui disponfrâ . são as férias da propriedade e da oprl!ssão, o domingo
agravJdo pelas dificuldades próprias ao pruses subdesenvolvidos e da \ida alienada.
pela fraqueza permanente da teoriil no moi.imento argelino. Todavia. Esta autogestão, pelo simples facto de existir, ameaça toda a orgn­
a camadil propriamente burocrática é ínfima na oposição aclual. nizaçào hierárquica da sociedade. Devera destruir todo o domínio
embora constitua, pela sua própria existência como .«direcção prof15­ exterior porque todas as forças exteriores de domínio nunca hão.-de
sional». wna fonna cujo peso se impõe, determinando o conteúdo. assinar a paz com ela enquanto realidade viva, mas na melhor das
A alienação pollllca está sempre associada ao Estado. A autogestâo hipóteses com o seu nome, com o seu cadá\ier embalsamado. Onde
não tem nada a esperar dos bolche\·iq11e!i ressuscitados. houver autogestào não pode haver exército. nem policia, nem Estado.
A autogestão tem de ser simultaneamente o meio e o fim da luta A autogestào generalizada, «alargada a toda a produção e a todo
actuaL Ela não é apenas o que está em jogo na luta. é também a sua os aspectos da vida social», significa o fim do desemprego que atinge
fonna adequada. Ela própria é o seu instrumento. É para si mesma a dois milhões de argelinos, mas significa também o fim da vdha
maténa sobre a qual opera, é a sua própria pressuposição, tendo por sociedade em todos os seus aspectos, a abolição de todas as suas
isso de reconhecer totalmente a sua própria verdade. O poder de escra\idôes espirituais e materi3.1S, a abolição dos seus senhores e
Estado formula o projecto, contraditório e ridículo, de «reorganizar a donos. A autogestão, no seu esboço actual, só pode ser controlada por
autogestào»: mas é a autogeslâo, pelo contrário, que tem de organi­ cima porque aceita excluir, abai.~o dela, as camadas maioritárias dos
:ar-se como poder ou então desaparecer. trabalhadores que nisso não participam, ou os sem trabalho; e porque
A autogestào é a tendência mais moderna e mais importante tolera, nas suas próprias empresas, a formação de camadas dominan­
surgida na luta do movimento argelino, sendo também o que nele tes de «directores>> ou profissionais da gestão, oriundos da base ou
há d"' menos acanhadamente argelino. O seu sentido é universal. Ao destacados pelo poder estatal. Os direclores são o vúus estatal no
contrário da caricaJura jugoslava que Boumedienne quer pôr em interior daquilo que tende a negar o Estado, são um compromisso;
prática, e que não passa dum instrumento semidescentralizado do mas o tempo do compromisso já passou, tanto para o poder do Estado
controle estatal («Precisamos de de centralizam, confessa Literal­ como para o poder real dos trabalhadores argelinos.
mente Boumcdienne no Le Monde de 10-11-65, <1para melhor con­ A autogestâo radical, a úruca que pode durar e vencer, rejeíta toda
trolarmos as empresas autogeridas»), dum nível inferior da admi­ a hierarquio em si mesma e no exterior; rejeita igualmente, pela sua
nistração central. ao contrârio do mutualismo proudhoniano de prática, qualquer separação hierárquica das mulheres (separação
1848 que tentava organizar-se à margem da propriedade privada. a escravista declaradamente admitida pela teoria de Proudhon e pela
autogestào real, revolucionária, só pode ser c-0nquistada abolindo realidade obsoleta da Argélia islâmica). Os comités de gestão, bem
pelas annas os litulos de propriedade existentes. O seu revés em como todo e qualquer delegado das federações de empresas autoge­
Turim, em 1920, foi o prelúdio à dommaçào armada exercida pelo ridas, devem ser re\'ogáveis a todo o momento pela base, incluindo
fascismo. As bases duma produção autogerida na Argélia forma­ esta base, como é óbvio, a totalidade dos trabalhadores, sem distinção
ram-se espontaneamente, como na Espanha de 1936 ou como em entre permanentes e sazonais.
Paris. em 1871, nas oficinas abandonadas pelos versalheses, de O único programa dos elementos socialistas argelinos consiste na
onde os proprietários foram obrigados a desaparecer na sequência defesa do sector autogcrido, não só como ele é mas como de\crâ \ir
da sua derrota política; essas bases formaram-se sempre no bens a ser. Esta defesa, por conseguinte, de\erá opor ao saneamento

198 199
levado a cabo pelo poder um outro saneamento da autogest.ào: o oe algumas questões teóricas
exercido pela sua base, contra aquilo que a nega no interior. Só da sem questiúncula~ nem equfvocos
autogestão mantida e radicalizada pode partir o assalto rernlucionãrio
ao regime existente. Ao avançar o programa da autogestão dos traba­
lhadores, ampliada quantitativa e qualitativamente, pede-se a todos os É preciso impedir que seja tratado p«;la especulação o que pode sê­
trabalhadores que assumam directamente a causa"Cta· autogestão como -lo pela teoria radical. Conforme a análise situacionista da realidade
a sua própria causa Ao extgirem não apenas a defesa mas a extensão vai estimulando a realização prática do nosso projecto, o alcance
da autogestào, a dissolução dt. qualquer actividade especializada que duma tal eXJgência tende a aumentar.
não decomi da autogestão, os rev-olucionános argelmos podem
O conhecimento é inseparável do uso que dele se faz. A agitação
mostrar que esta defesa não é só da responsabilidade dos trabalhado­
que as nossas evidências teóricas começam a fomentar, em diversos
res do sector provisoriame11te autogerido, mas sim de todos os traba­
graus. em todos os sectores do velho mundo, Víll encarregar-se de
lhadores, enquanto único modo de libertação definitiva. Mostram
aperfeiçoar e comgir o apropnado emprego que façamos das ideias
assim que lutam por uma libertação geral e não pela sua própria
e das col.53.S; é por lSSO que nós somos, na sociedade da abundâncm
dominação futura como especialistas da revolução; que a vitória do
previsível, os úrucos que a abundância não atemoriza.
«seu partido» deverá igualmente ser o seu fim enquanto partido.
O primeiro passo a dar de\'erá incidir na Ligação dos delegados da O modo de usar nunca é problemático. Os especialistas da
autogestào, entre eles e entre os comitês de empresa que hão-de pre­ questiímcula - de Socíalisme ou Barbarie à Plant!Je - tratam ape­
parar a autogestào nos sectores privado e estatal; na transmissão e nas de dissimular a quem aproveita a sua ideologia da confusão. Os
publicação de todas as informações sobre as lutas dos trabalhadores situacionistas agem na perspectiva mversa. Só levantam as questões
e as formas de orgamzação autónoma que nelas surgem; na extensão a que pode responder a vontade de subversão do maior número de
e generalização destas formas como única via de contestação pro­ gente. Trata-se de dar a esta vontade a sua máxima eficácia.
.fimda. Ao mesmo tempo, com base nas mesmas relações e em publi­
Os ponto:> a considerar, enumerados a seguir numa lista sumária e
cações clandestinas, é preciso desenvolver a teoria da autogestão e as
a título de exemplo, terão o interesse de esclarecer o valor revolucio­
suas exigências, no próprio sector autogendo e perante as massas da
náno de quem deles tratar e, por conseguinte, a importância que deve
Argélia e do mundo A autogestão deverá tomar-se a solução única
ser-lhes atribuída nas lutas actuats.
para os mistérios do poder na Argélia, sabendo que ela é esta solução.
Critica da economia politica - Critica das ciências humanas ­
l S n.• 10, M~ de 1966 Critica da psicanálise (em especial Freud, Reich. Marcuse) ­
Dialéctica da decomposição e da superação na realização da arte e da
filosofia - A semiologia, contribuição para o estudo dum sistema
ideológico - A natureza e as suas ideologias - O papel do lúdico
na História - História das teorias e teorias da Htstóna - Nietzsche
e o fim da filosofia - Kierkegaard e o fim da teologia - Marx e
Sade - Os estruturalistas.
201
A cri e romântica - O prccio.sismo - O barroco - As lingua­ O ponto de explosão da ideologia na China
gens artísticas - A arte e a crinti\'idade quotidiana - Critica do
dadaísmo - Critica do surrealismo - Perspectiva pictural e socie­
dade - A arte autoparódica - Mallarmé, Joyce e Malé\itcb ­ A dissolução da associação internacional das burocracias totalitá­
Laul:réamont - As artes primitivas - Da poesia. . rias é hoje um facto consumado. Retomando os tennos da Mensagem
publicada pelos situacionistas em Argel em Julho de 1965. ficou
A revolução mexicana (Villa e Zapata) - A revolução espanhola patente o irreve~ivel <1desmoronamento da imagem revolucionária»
- Astúrias 1934 A insurreição de Viena - A guerra dos campo­ que a «impostura burocrática» opunha ao conjunto da sociedade capi­
neses (1525) -A revolução spartakistã - A revolução congolesa talista como pseudonegai;ão e efectivo sustentáculo; patente, antes de
As revoltas camponesas em França em 1358 e depois - As revolu­ mais, no terreno em que o capitalismo oficial tinha o IIllllOr interesse
ções desconhecidas - A revolução inglesa - Os movimentos em apoiar a mentt.ra do seu adversário: no afrontamento global entre
comunalistas - Os Enragés - A Fronda - A canção revolucionária a burguesia e o pretenso «campo socialista». Apesar de todas as ten­
(estudo e antologia) - Cronstadt - Bolchevismo e Trotslósmo ­ tativas cosméticas. aquilo que já não era socíalisw deixou ate d.. ser
A Igreja e as heresias - Os socialismos - SOC1alismo e subdesen­ um campo. O esboroamento do monolitismo stalinista manifesta-se
vohimento - A cibernética e o poder - O Estado - As origens do desde já na coexistência dumas vinte «linhas» independentes, da
Islão - Teses sobre a anarquia - Teses para uma solução final do Roménia a Cuba, da Itália ao bloco dos partidos vietnamita-coreano­
problema cristão - O mundo dos especialistas - Da democracia ­ ·japonês. A Russia, que foi incapaz d-.: mganizar e te ano uma con­
As lntemacionai - Da insurreição - Problemas e teoria da fen.~cia comwn de todos os partidos europeus. prefere esquecer a
autogestào - Partidos e sindicatos - Da organização dos mo..-imen­ época em que Moscovo reinava sobre a Komintern.1 Deste modo. o
tos revolucionários - Critica do Direito Civil e do Direito Penal ­ L~tia. em Setembro de 1966, estigmatizava os dirigentes chineses
As sociedades não industrialii.adas - Teses sobre a utopia - Louvor por estes atirarem para um descrédito «sem precedentes» as ideias
de Charles Fourier - Os conselhos operarios - O fascismo e o «marx1stas-leninistas», deplorando virtuosamente este género de con­
pensamento mágico. fronto «em que uma troca de opiniões e experiências re\olucionãrias
Do repetitivo na vida quotidiana - Os sonhos e o onirismo ­ é substituída por injúrias. Os que optam por esta via conferem à sun
Tratado das paixões - Os momentos e a c-0nstrução das situações ­ própria experiência um valor absoluto, dando provas, na interpreta­
O urbanismo e a construção popular - Manual do desvio subversivo ção da teoria marxista-lenmista, dum espirita dogmático e sectário.
- Aventura individual e aventura colect.i\a - lntersubjectividade e Uma tal atitude está necessariamente ligada à ingerência nos assuntos
coerência nos grupos revolucionários - Jogo e vida quotidiana ­ internos dos partidos irmãos.-» A polémica russo-chinesa, na qual
Os devaneios individuais - Sobre a liberdade de amar - Estudos cada uma das potências é levada a imputar ao adversário todos o
prelumnares à construção duma base - A loucura e os estados crimes antiproletários, terá o seu desfecho. tanto dum lado como do
mcomuns.
1 Sigla.cm l'US50, de Kommwn'ltnch lui lnu:nuus1cml (lotCillllcioMI ComunlSta),
RAOUL VA 'ElfiEM ª"
nome atnbuído pcloi. dirigentes rusSO!\' à Ili lntcmac11ml. A WMI" foi dilsolvida cm
l S n.• IO, M1Irto d.:- 1966 1943 e substituída em 1947 pelo K™NmRM

202 203
outro, no facto de ser obrigada a nunca mencionar o defeito roo} que burocrática atinge neste momento o seu estádio supremo no pais
o poder de classe da burocracia representa, nwna visão bastante pro­ onde. devido ao atraso geral da economia. a subsistente pretensão
saica: aquilo que não passou duma inexplicável miragem revolucio­ ideológica revolucionária tinha também de ser levada ao máximo. ou
nária, voltou. por falta de outra realidade, ao seu velho ponto de seja. no país onde esta ideologia era mais necessária - a China.
partida. A simplicidade deste regresso às fontes foi· perfeitamente A crise que na China foi evoluindo de modo cada vez mais amplo,
eJCposta em Fevereiro [de 1966] em Nova Deli, q~do a embaixnda desde a Primavera de 1966. constitui um fenómeno sem precedentes
da China qualificou Brejnev e Kossiguine como <<novos tsares do na sociedade burocrática. É certo que a classe dominante do capita­
Kremlirui, ao mesmo tempo que o govemo indiano, aliado anbchinés lismo burocráuco de Estado. ao exercer nonnalmenle o terror sobre
desta Moscovia, revelava que «Os actuais senhores da China enverga­ a maioria explorada, se tem visto amiúde dilacerada, na Rússia ou na
ram o manto imperial dos manchus». Um mês depois, este argumento Europa de Leste, em afrontamentos e ajustes de contas decorrentes
contra a nova dinastia chinesa tornou-se ainda mais refinado, em das dificuldades objectivas com que depara, bem como do estilo
Moscovo. pela voz de Voznessenski, o poeta modernista de Estado, subjectlvamente deh.rante que o poder totalmente impostor é levado
que «pressente K.utchunm e as suas hordas e só pode contar com <<a a envergar. Mas a burocracia sempre se saneou a partir de cima, pelo
Rússia eterna» para opor uma muralha aos mongóis que ameaçam facto de o seu modo de apropriação da econonua a obrigar a ser
montar as suas tendes entre «as pedras preciosas do Loum~.>1. A ace­ centralizada. devendo extrair de si mesma a garantia hierárquica de
lerada decomposição da ideologia burocratu:a, tão evidente nos paí­ qualquer participação na sua apropriação colecti\ a do excedente pro­
ses onde o stalinismo se apoderou do poder como nos outros - onde duto social. O topo da burocracia tem de manter-se fixo. visto nele se
perdeu qualquer oportunidade de dele se apoderar -, tinha natural­ basear toda a legitimidade do sistema. Tem de manter entre si as suas
mente de começar pelo capítulo do internacionalismo, mas isto não dissensões (foi essa a prática constante desde o tempo de Lénin e
passa do início duma dis~lução geral sem remédio. O internaciona­ Trotski), e podendo embora os homens ser liquidados ou substituídos
lismo só podia ser pertença da burocracia como proclamação ilusória no seio da burocracia, a função, quanto a ela, tem de ser mantida na
ao seniço dos seus interesses reais, como mais uma justificação ideo­ mesma invariável majestade. A repressão sem explicações e sem
lógica, visto a sociedade burocrática ser justamente o mundo im•er­ réplica pode depois descer nonnalmente a cada andar do aparelho
lido da comunidade proletária. A burocracia é essencialmente um vertical. como simples complemento do que foi instantaneamente
poder estabelecido com base na posse estatal da nação, devendo decidido no topo. Béria,1 primeiro tem de ser morto; só depois será
obedecer à lógica da sua própria reajjdade segundo os interesses julgado; nessa altura já se pode perseguir a sua facção, ou qualquer
particulares impostos pelo nfret de desenvolvimento do país que ela pessoa, porque o poder que liquida, ao liquidar define a seu bd­
possui. A sua idade heróica sumiu-se com os abençoados tempos -prazer a facção, definindo-se ele próprio, no mesmo gesto, como
ideológicos do «socialismo num só pais», que Stãlin, prudentemente,
mantivera ao destruir as revoluções na China ou em Espanha, de 1
Lavn:nn Pa~lov1tch Baia ( 1899-1953), todo-poderoso chefe da policia sulínista. f01
1927 a 1937. A autónoma revolução burocrática na China - como durante muitos anos braço dircno de Stilin. Como min~tro do Interior, cnttc 1943-45,
di~tingu1u-se peb brutilicbdc, vmdo depo1 asubu os escalões da fine bi0'11J'qUÍlJ 1®~1é-
acontecera pouco antes na Jugoslávia - introduzia na unidade do
1Jcai; oté chegar a 'ice-presidente d:i Delesa cm 1944 e a marechal da U.R.S.S. cm 1945.
mundo burocrát.Jco um gérmen de dissolução que a desconjuntou em Béria nca.bou por $t:I' cxccul:ldo, após e mone de St!lm cm 1953. na sequênc11 dwn
menos de vinte anO!>. O processo geral de decomposição da ideologia pn:>cõ>O obs1..11W llpico das que ele própno 1.D.Stnlll'llJL

204 :!05

poder. Nada disto e.\istiu na China, onde a permanência dos adversá­
rios proclamados, apesar do fantástico aumento dos lanços na luta
pela totalidade do poder. mostra com evidencia que a classe domi­
11allfe se partiu em duas.
Um acidente social de tamanha envergadura não poáe obviamente
ser explicado, à maneira anedótica dos observadores burgueses, pelas
dis.sensões relatiras a uma estrategia exterior; é aliás notório que a
burocracia chinesa suporta pacificamente a afronta que constitui. à
sua porta. o esmagamento do \ 1etname. Tão-pouco querelas pessoais
sucessórias teriam suscitado tais manobras. Quando certos dirigentes
são censurados por terem «afastado Mao Tsé-tung do podern desde o
fim dos anos 50, tudo leva a crer que se trata dum destes crimes
retrospectivos correntemente fabricados pelos saneamentos burocrá­
ticos - Trotski que dirige a guerra civil por ordem do imperador do
Japão, Zino,;c,· 'L'Cundaodo Lénin para satisfazer o Império Brità­ Retrato da alienação
nico, etc. Quem ti\'esse afastado do poder um personagem tão pode­ Esta multidão chinesa, disposta de tal maneira que compõe um retrato em
trama de Mao Tsé·tung, pode ser considerada um caso extremo de especta·
roso como Mao. nunca poderia dormir enquanto Mao pudesse voltar.
cular concentrado do poder estatal (cf. LS n.0 10), aquele que •na zona
Por conseguinte, Mao teria sido morto nesse dia sem que nada impe­ subdesenvolvida •.• congrega na ideologia e, em casos.flm1te. num único
disse os seus sucl!SSorcs de atribuírem essa morte, por exemplo, a homem, tudo o que hã de admirável ••. e se deve aplaudir e consumir pas·
Krutchev. Se é \etdade que os governantes e polemistas dos Estados sivamente•. Aqui, a fusao do espectador e da imagem a contemplar parece
burocráticos pcn:ebern muito melhor a crise chinesa, nem por isso as ter atingido a sua perfeição policial Foi ao julgar útil, tempos depois, ir ainda
suas declarações são mais sérias, \Ísto eles temerem. ao falarem da para além deste grau de concentração. que a burocracia chinesa fez estoirar
a mãqulna
China re\elar coisas demais a respê1to de si mesmos. São afinal os
restos esquerdistas dos países ocidentais, sempre voluntários a lorpas
de todas as propagandas com bafio subleninista. os únicos aptos a em dois campos hostis, ficando toda a investigação a este respeito
enganarem-se mais grosseiramente, avaliando com cómica seriedade vedada aos que não admitem que a burocracia é uma classe domi­
o papel na sociedade chinesa dos vestígios do juro atribuído aos nante ou que ignoram a especificidade desta classe, reduzindo-a às
capitalistas que aderiram ao regime, ou procurando saber. nesta condições clássicas do poder burguês.
enorme pendência. que llder representará o esquerdismo ou a autono­ Sobre o porquê da ruptura no interior da burocracia, apenas pode­
mia operária. Os mais estúpidos acreditaram haver algo de «cultural» mos asseverar tratar-se duma questão de tal modo importante que pôs
neste negócio, pelo menos até Janeiro [de 1966], quando a imprensa em jogo a própria dominação da classe reinante. visto que, para lhe
maoista lhes pregou a partida de confessar que se tratava. «desde o darem resposta, ambas as partes, inabalavelmente obstinadas. nem
inicio, duma luta pelo poden>. O único debate sério consiste em exa­ sequer recearam arriscar aquilo que constitui o poder comum da sua
minarmos por que razão e como pôde a classe dominante cfr., idir-sc classe. pondo em perigo todas as condições respei1antes à sua ndmi­
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nistração da ooedade. A classe dominante, por conseguinte. já devia de ambas as partes se justifique pelo facto de não ha\'er ,oJuçào
saber que não podia go\emar como antes. É evidente que este con­ correcta para os insuperáveis problemas da burocracia chmesa; de as
flito diz respeito à gestão da economia. É evidente que o descalabro duas opções em confronto serem por igual maplicáveis; e de se
das sucessivas políticas económicas da burocracia constitui a causa impor, por isso mesmo, uma opção.
da extrema acuidade do conflito. O falhanço ~ ~olítica intitulada Para sabenno como pôde uma divisão no topo da burocracia
1<0 Grande Salto em Frente» - resultante sobretudo da resIStênc1a do ir-se propagando, de degrau em degrau, ao!> níveis hierárquicos infe­
carnpcsinato não só encerrou a perspectiva duma descolagem riores, repetindo-se em todos os andares afrontamentos oriundos do
ultravoluntarista da produção industrial como provocou, forçosa­ aparelho parlldário e do Estado, até essa divisão se espalhar entre as
mente, uma desorganização desastrosa e durável. O próprio incre­ massas, será sem dúvida necessário termos em conta que sub ·istia na
mento da produção agrícola, desde 1958, parece ser muito baixo, China o velho modelo de admimstraçâo baseado em províncias ten­
mantendo-se a taxa de crescimento da população superior à das sub­ dentes a uma semiautonomia. A dernínc1a dos <cremos mdependen­
sistências. Já é menos fácil dizer sobre que opções económicas pre­ tes», feita em Janeiro [de 1967] pelos maoistas de Pequim, evoca
cisas se dividiu a classe dirigente. É provável que uma tendência nitidamente este facto, confirmado pela evolução dos tumultos nos
(incluindo a maioria do aparelho partidário, dos responsáveis dos últimos meses. É muito possivel que o fenómeno da autonomia regio­
sindicatos e dos economistas) quisesse prosseguir ou incrementar, de nal do poder burocrático, que durante a contra-revolução russa só se
modo mais ou menos assinalável. a produção dos bens de consumo manifestou ligeirnmente e apenas de modo episódico, em tomo da
e apoiar com estímulos económicos o esforço dos trabalhadores, organização de Léninegrado, tenha deparado nn China burocrática
implicando esta política certas concessões aos camponeses e sobre­ com bases múltiplas e sólidas, traduzindo-se na possibilidade duma
tudo aos operários, mas provocando também, ao mesmo tempo, o coexistência. no governo centraJ. de clientelas e clãs detentores, em
aumento dum consumo hierarquicamente diferenciado numa ampla propriedade directa, de regiões inteiras do poder burocrático,
base da burocracia. A outra tendência (incluindo Mao e uma grande podendo assim estabelecer compromissos entre si. O poder burocrá­
parte dos quadros superiores do exército) pretendia sem dú\ida uma tico na Oüna não teve origem num movimento operário, mas sim no
aceleração, fosse a que preço fosse, do esforço com vista a industria­ enquadramento militar dos camponeses, ao longo duma guerra que
lizar o país, um recurso ainda mais extremo à energia ideológica e ao durou vmte e dois anos. O exército manteve-se estreitamente ligado
terror, a supercxploração ilimitada dos trabalhadores e talvez o sacri­ ao parudo. CUJOS duigentes foram todos eles chefes militares, conti·
6cio «igualitário», no consumo, duma camada importante da burocra­ nuando a ser, para o partido, a principal escola de selecção das mas­
cia inferior. As duas posições são de igual modo orientadas para a sas camponesas que educa. Além disso, segundo parece, a adminis­
manutenção da dominação absoluta da burocracia, sendo ambas cal­ tração local instalada em 1949 ficou grandemente tributâria das zonas
culadas em função da necessidade de impedir as lutas de classes que de passagem dos diferentes destacamentos militares. que se desloca­
ameçam esta dominação. Em todo o caso, tanto a urgência como o vam do Norte para o Sul deixando sempre no seu sulco homens a eles
carãcler vital desta opção eram para todos tão evidentes que os dois ligados pela origem regional (ou até familiar; factor d~ consolida~o
campos se viram imediatamente na necessidade de correr o risco dum das cliques burocráticas que a propaganda contra Ltu Chao-_ch1 .e
agravamento das condições em que se encontravam colocados deVJdo outros clarificou plenamente). Tais b~es locais dum poder sem1auto­
à desordem da sua própria divisão. É muito possível que a obstinação nomo criado na administração burocratica. teriam. por conseguinte.
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podido fonnar-se na China graças 1 combinação das estruturas orga­ as grandes cidades, começando a atacw em toda a parte, com jor­
nizativas <lo e:icército conquistador e das forças produtivas que este nais murais e a acção directa. os responsá\'eis que lhe iam apon­
era levado a controlar na região conquistada. tando - não excluindo isto os erros e os excessos de zelo. Mas
Quando a tendência de Mao começou a ofensiva pública contra estes responsáveis organizaram a resistência em todo o lado onde
as sólidas posições dos seus adversários. pondo em·màrcha os estu­ lhes foi possível fazê-lo. Os primeiros confrontos entre operários e
dantes e as crianças recrutadas nas escolas, ela não visava. de ime­ «guardas vermelhos» de\'em ter sido conduzidos pelos actii istas do
diato, nenhuma espécie de transformação ((Culturnb> ou «civiliza­ partido nas fábricas, à disposição dos barões locais do aparelho
doran das massas trabalhadoras, já extremamente apertadas pela partidário. E a breve trecho, os operários, exasperados pelos exces­
coleira ideológfra do regime. As tolices contra Beethoven ou a arte sos dos guardas vermelhos. começaram a intervir por s1 mesmos.
Ming. tal como as invectivas contra as posições dtnda ocupadas ou Em todos os casos onde os maoistas falaram de <<alargar a revolu­
já conquistadas por uma burguesia chinesa manifestamente aniqui­ ção cultural>> às fábricas e depois às zonas rurais. aparentaram
lada enquanto tal, só eram apresentadas para entreter a malta com optar por uma evolução que, durante todo o Outono de 1966, lhes
diversões - não sem calcular que este esquerdismo sumário podia escapara, e na realidade ocorrera apesar dos seus planos. A queda
ter um certo eco entre os oprimidos, com razões de sobra para da produção industrial, a desorgaruzação dos transportes, da irriga­
pensarem que na China ainda existem diversos obstáculos ao ção, da administração estatal até ao nivel dos ministérios (apesar
advento duma sociedade sem classes. O objectivo principal da ope­ dos esforços de Chu En-lai), as ameaças que pesaram obre as
ração consistia em alardear na rua, ao serviço desta tendência. a colheitas do Outono e da Primavera, a interrupção completa do
ideologia do n.'gime, por definição maoista. Não podendo os pró­ ensino durante mais de um ano - particularmente grave num pais
prios adversários ser outra coisa senão maoistas, com o desencadear subdesen\'olvido -, tudo isso foi o resultado inevitável duma luta
desta ruim querela viam-se de chofre em incómoda posição. Por cuja e:ictensão umcarnente se deveu à resistência da parte da buro­
isso as suas insuficientes «autocríticas» devem na realidade expri­ cracia no poder que os maoistas tratavam de submeter.
mir a determinação de manterem os postos que controlam. Podemos Os maoistas, cuja experiência política não se encontra ligada às
pois qualificar a primeira fase da luta como um afrontamento dos lutas no meio urbano, tiveram ocasião de verificar o preceito de
proprietários oficiais da ideologia contra a maioria dos proprietá­ Maquiavel: ccLlvremo-nos de pro\'ocar qualquer sedição numa cidade
rios do aparelho da economia e do Estado. No entanto, a burocra­ gabando-nos de poder suspendê-la ou dirigi-la à vontade» (Histórias
cta, para manter a sua apropriação colectiva da sociedade, tem tanta Florentinas). Após alguns meses de pseudo-revolução pseudoculturaJ,
necessidade da ideologia como do aparelho administrativo e repres­ foi a luta de classes real que irrompeu na Ch.uta, começando os ope­
SlVo; de modo que a aventura duma tal separação era eJttremamente rários e os camponeses a agir por s1 mesmo~. Os operários não podem
arriscada se não desse resultados a curto prazo. É sabido que a ignorar o que para eles significa a perspectiva maoista; os campone­
maioria do aparelho resistiu obstinadamente. e Llu Cbao-cbi em ses. que vêem ameaçadas as suas !eiras individuais, começaram em
pessoa, apesar da sua posição critica em Pequim. Depois da sua várias províncias a repartir entre si as terras e o material das
primeira tentativa para bloquear a agitação maoista nas universida­ «comunas populares)>(não passando estas da no\'a vestimenta ideo­
des, onde os «grupos de trabalho» tinham adaptado uma posição lógica das unidades adnumstrativas preexistentes. em geral corres­
diametralmente oposta, esta agitação estendeu-se às ruas de todas pondentes ao · antigos cantões). As greves dos caminhos de ferro, a

210 211
greve geral de Xangai - designada, como em Budapeste.• anna <el Odos os elementos que se apoderaram de annas ou as roubaram,
privilegiada dos capitalistas -. as greves da grande aglomeração de' em ser presos.»
industrial de Vu-Han, de Cantão, de Hu-Pei, dos metallirg1cos e ope­ Na altura em que a resolução deste conflito - que evidentemente
rários do têxtil em Tchongking, os ataques dos camponeses de provocou dezenas de milhares de mortos, opondo entre si grandes
Sechuan e de Fu-J<jen, acabaram em Janeiro [de 1967] por por a unidades militares com todo o seu equipamento, e até navios de
China à beira do caos. Ao mesmo tempo, na esteiia dos operário guerra - fica entregue ao exércíto chinês, este encontra-se também
organizados em «guardas púrpuras», em Kuang-Si, a partir de Setem­ dividido. Tem de assegurar a continuidade e a intensificação da pro­
bro de 1966, para combaterem os gul!_rdas vermelhos, e depois dos dução, quando nem sequer já pode assegurar a unidade do poder na
motins antimaoistas de Nanquim. constituíram-se «exércitos» em China - além disso, a sua rntervenção directa contra o campesinato,
diversas províncias, como o «Exército do 1. de Agosto» em Kuang­ tendo em conta o seu recrutamento essencialmente camponês, teria
-Tong. O exército nacional viu-se obrigado a intervir em toda a parte, imensos nscos. A trégua que os maoistas tentaram obter em Março­
em FeverelfO e Março [de 1967], para dominar os trabalhadores, -Abril, declarando que todo o pessoal do partido é recuperável com
dirigir a produção através do <<controle militam das fábricas. e até, excepção dum «punhado» de traidores e que a principal ameaça é
apoiado então pela milicia, para controlar o trabalho nos campo . As doravante «o anarqu1sm0>>, significa, mais do que a inquietação
lutas dos operários para manterem ou aumentarem os salários na 1
perante a dificuldade de pôr um freio a exaltação ocorrida no seio da
famosa tendência para um «econom1cismo» amaldiçoado pelos juventude na sequência da experiência dos guardas vermelhos,
senhores de Pequim, chegaram a ser aceites e até encora1adas por a inquietação essencial de a própria classe dirigeme rer chegado à
certos quadros locais do aparelho, na sua resistência aos rivais beira da di.l.soluçâJJ. O partido, bem como a administração central
maoistas. Mas é óbvio que a luta era conduzida por uma corrente e provincial, encontram-se neste momento em decomposição. Trata­
irresistível da base operária: a dissolução autoritária. em Março [de -se pois de «restabelecer a disciplina no trabalho11. 110 principio da
1967], das «associações profissionais», fonnadas após a primeira exclusão e da destlluição de todos os quadros tem de ser condenado
dissolução dos sindicatos do regime cuja burocracia escapava à linha sem reservas)>. declara em Março o Bandeira Vennellra. Já em Feve­
maoista, mostra-o muito bem. Em Xangai, o Jiefang Ribao conde­ reiro o notava o Now1 China: «\úcês esmagam todos os responsáveis
nava, em Março, <<a tendência feudal destas associações formadas (...] mas quando se apoderam dum organismo, que vos fica entre as
1 '

não numa base de classe (leia-se: a qualidade que define esta base mãos além de uma sala vazia e W1S carimbos?» As reabilitações e os
de classe é puro monopólio do poder maoista), mas por oficios, e novos compromissos sucedem-se portanto num ver se te avias
cujos objectivos de luta são os interesses parciais e imediatos dos A causa suprema t a própria sobrevivência da burocracia e esta tem
operários que exercem estes oficias». Uma tal defesa dos verdadeiros de pôr em segundo plano, como simples meios. as diversas opções
possuidores dos interesses gerais e permanentes da colectividade fora polfticas das facções rivais.
também nitidamente exprimida, a 11 de Fevereiro, nwna directiva do A partrr da Prima\"era de 1967, pode dizer-se que o movimento da
Conselho de Estado e da Comissão Militar do Comité Central: •<revolução cultural» atingiu um falhanço desastroso, sendo este
falhanço por ceno o mais impressionante na longa série de reveses do
1
DWllll1e a rtVO!uçào prolctáru de 1956, o primeiro mais v:isto movimalto de ailica
poder burocrático na China. Apesar do custo extraordinário da ope­
armada da bwocrac13 ~t:ahnist3, lrCs anos depolS da ia:;urreição openirui de Berlim. ração, nenhum dos seus objectivos foi atingido. A burocracia encon­

212 213
tra-se mais dividida que nunca. Qualquer novo poder instalado nas m;ioiStaS» em Junho. A região de Ho-Pei fica cm Julho

regiões controladJs pelos maoistas se cinde por sua vez. «a tripla general Oten Tsai-tao. comandante do distrito de \'u-f ~~ mãos do

aliança re\olucionâria» entre o exérci10, os guardas vermelhos e 0 mais antigo~ cen1ros industriais ~ ~a No ~ elho Cslil:n, um. d~i.

panido continua a decompor-se, quer devido aos antagonismos entre dente de S1ao.~. manda prender ah dois dos pnncipaii. d' . do «met­

estas três forças (o partido. sobretudo. mantém-se de fora, ou só entra P~uim vmdos negociar com ele; o primeiro-ministro te ingentes de

para sabotar a dita aliança). quer devido aos antagonlsmos cada vez caHe lá, sendo depois anunciado como uma «vitórin>> 0 ~ de deslo­

mais fortes DO interior de cada uma destas forças. Parece tão dificil obtido a restituição do seus emissários. Ao mesmo acto de ter
1
colar de novo o aparelho como constrwr um outro. E. sobretudo. pelo fábricas e minas parecem estar paralisadas nesta cmpo, 2400
Provi ·
menos duas terças partes da China não são controladas. em qualquer sequência do le\antamento armado de 50 mil ºPcrârios neta, na
instância, pelo poder de Pequim. ses De resto, verifica-se no inicio do Verão que 0 conn· e campone­
110
Ao lado dos comités governamentais dos partidários de Liu Chao­ por todo o bdo: em Junho, «operários conservadorc Prossegue
-chl e dos movimentos de luta operária que continuam a afirmar-se atacaram uma fábrica têxtil com bombas incendiárias~» de Hu-nan
são Jâ os Senlton:s da Guerrn que reaparecem com o uniforme de' bacia mineira de Fu-Shwi e os trabalhadores do petrót~ em Julho, a
generais «comunistas» mdependentes. tratando dircctamente com 0 estão em greve, os mineiros de Kiang-S1 perseguem em Tahsing
poder central e levando a cabo a sua própria politica, espec1almcntc apela-se à luta contra o «exército industrial de Chek· os maoistas,
nas regiões periféricas. O general Chang Kuo-bua, senhor do Tibete como uma «orgaruzaçao · - terronsta· ant1marx1sla>>
· · •ang» descrito
• 0i. e
cm Fevereiro [de 1967]. depois de combates de rua em Lassa ameaçam avançar sobre Nanquim e Xangai, há lutas de arnponeses
emprega os blindados contra os maoistas Três divisões maoistas são tão e Chongking, os estudantes de Kueiang atacam 0 e ~ª. em Can­
enviadas para <<esmagar os revisionistaS>> Segundo parece, só o con­ deram-sc de dirigentes maoistas. E o go\cmo, que dcci~:rcuo ~ ~po­
seguem moderadamente, porque Chang Kuo-hua continua a controlar riolências «nas regiões controladas pelas autoridad .'u proibi~ as
a região em Abril. Este, no 1.0 de Maio, é recebido em Pequim, mesmo ali parece ter muito trabalho. Na impossibilidades centra1S>>,
• •
derem a agaaçao, d .•r. • e de SUSpen­
levando as conversações a um compromisso, visto ficar encarregado suspen em as 111.Jonnaçoes, ~Pulsand .
0
de organizar um comité revolucionário para governar o Sechuan, parte dos raros residentes estrangeiros. a mmor
onde, a partir de Abril, uma «aliança re\'Olucionária», mfluenciada Mas em principias de Agosto a divisão no exército
.
pengosa • ofi eia.is
que ate. as publicaçoes . . de pequirn revtornou-se tão
por um tal general Hung, tomara o poder e prendera os maofstas;
1
desde então. em Junho, os membros duma comuna popular tinham­ partidários de L1u pretendem «pôr de pé, no seio do e am que os
-se apoderado de armas, atacando os militares. Na Mongólia Interior reino independente reaccionário burgues» e (Diario do :xército, um
rO\'() d • d
o exército pronunciou-se contra Mao logo em Fevereiro, sob a direc­ Agosto) que uos ataques contra a ditadura do prolctanad e ). e
~ c:11tru1
0
ção de Liu Cbiang, comissário político adjunto. O mesmo aconteceu vieram não só dos escalões superiores mas também dos
em Ho-Pei, em Hunan. na Manchúria Em Kan-Su, em Maio, o gene­ rion.:s». Pequim acaba por confessar que pelo menos u:aloes mfe­
ral Chao Jung-chi realizou com êxito um golpe antimaoista. O Sin­ do exército se pronwiciou contra o governo central e lerça. parte
. . • que ale uma
quião, onde se encontram as instalações atómicas, foi neutralizado de grande parte da velha China das dezoito provfncus lhe CSc3"
comum acordo em Março, sob a autoridade do general Uang En-mao; sequências imediatas do incidente de VuJlail parcctm ter
. _..1:~
• dos para-qui:uotas
, de pcquim
sif°u. ~s
o mwto
o mesmo, todavia, tem fama de ali ter atacado os «revolucionários graves; uma intervençao
apaiada por
214
2 15
seis na\Íos de iguerra ao longo do langtsé, desde Xangai, foi derro­ cias antiburocráticas, evoca o trotskismo..•» Houw aliás muitos
taiJa após uma encarniçada batalha: por outro lado, armas dos arse­ trotskistas que se reconheceram nessa «revolução cultural». a si
nais de Vuhan terão sido emiadas aos antimaoistas de Chonglcing. mesmos fazendo assim justiça! Le Monde. o jornal mais declarada­
Além disso. cornvém notar que as tropas de Vuhan pertenciam ao mente maoista publicado fora da China, anunciou dia após dia o êxito
grupo de exércitos sob a autoridade clirecta de l;.!n.f iao, o único iminente do Sr. Mao Tsé-tung. devendo este por fim tomar o poder
considerado seg'Uro. Por volta de meados de Agosto, as lutas armadas que desde h.í dezoito anos se lhe atribuía. Os sinólogos, quase todos
generalizam-se ill tal ponto que o governo maolsta acaba por reprovar :.1alino-cristàos, - uma mescla espalhada por todo o lado, mas nisto
oficialmente es1ta. espécie de continuação da política com meios que principalmente - envergaram de novo a alma chinesa para testemu­
se voltam contra ele; e assegura preferir ganhar limitando-se a uma nharem a legitimidade do novo Confucio. O que sempre hou\'e de
1duta pela penru>. Simultaneamente, anuncia a distribuição de armas burlesco na aúrude dos intelectuais burgueses da esquerda moderada­
às massas nas «zonns segura.5)>. Mas onde haverá t81S zonas? Em mente stalinoftla deparou agora com a mais bela ocasião de se expan­
Xangai, apresemtada desde há meses como uma das raras cidadelas dir ante as máximas realizações chinesas, do género: esta revolução
maoistas, ocorrem novos combates. Militares de Shantung incitam os «cultural» irá durar talvez uns 1000 ou 10 000 anos. O Pequeno Livro
camponeses à rf!volta. A direcção da força aerea é denunciada como Jénnelho conseguiu por fim «sinisar o marxismoi>. <•Ü ruído dos
inimiga do regime. E como no tempo de Sun lat-Sen, Cantão, ao homens recitando as citações com voz forte e clara estende-se a todas
mesmo tempo que o 47 .ª exército se movimenta para ali restabelecer as unidades do exército». 1<A seca nada tem de assustador. o pensa­
a ordem, destaca-se como pólo da revolta., sendo a ponta de lança os mento de Mao Tsé-tung é a nossa chU\'3 fecundante». 110 chefe do
operários dos c::aminhos de ferro e dos transportes urbanos: os prisi­ Estado foi considerado responsâ-.el [-.] por não ter previsto a
oneiros politicOls são libertados, armas destinadas ao Vietname são mudança repentina de atitude do marechal Chang Kai-chek. quando
interceptadas eml navios ancorados no porto, são enforcadas nas ruas este dirigiu o seu exército contra as tropas comunistas» (le Jfonde de
pessoas em nÚlmero indeterminado. A China enterra-se assim lenta­ ~-67; trata-se do golpe de 1927, que toda a gente, na China, tinha
mente numa gwerra ciVJI confusa, que con_qitw, em simultâneo, o podido prever, mas que foi preciso aguardar passivamente para obe­
afrontamento entre diversas regiões do poder burocrático-estatal decer às ordens de Stáhn). Um coral vem cantar o hino intitulado:
esboroado e o confronto das reivindicações operárias e camponesas Cem milhões de pessoas pegam em armas para criticar o sinistro
com as concliçâtes de exploração que em toda a parte as dilaceradas livro do 1bl10-aperfeiçoanwnto (obrinha outrora oficial de Liu Chao­
direcções buroc:ráticas têm de manter. -ch.i). A lista é infindável, podemos interrompê-la aqui com este enge­
Por se terem mostrado, com o êxito que podemos ver, os campeões nhoso conceito do Diário do Poi·o de 31 de Julho [de J967):
da ideologia ablsoluta, os maoistas têm recolhido até agora estima e <<A situação da rernlução cultural proletária na China é e:i:celente,
aprovação, conu a mais fantâstica intensidade, entre a intelectualidade mas a luta de cl~ torna-se mais dificil».
ocidental que ruunca deixa de salivar ante tais estímulos. K.S. Karol, Após tanto barulho, as conclusões históricas a extrair deste
m Noui-el Ob~ervateur de 15 de Fevereiro [de 1967], lembrava período são simples. Avance agora a China para onde a\'ançar, a
doutamente aos maoistas o seu esquecimento de que <<os verdadeiros imagem do últuno poder burocrático-revolucionário desfez-se em
stalinistas não Sião aliados potcnc1íllS da Chim, são os seus mais irre· estilhas. O desabar interno acrescenta-se aos incessantes desmorona­
dutíveis inimigos: para ch:s, a revolução cultural, com as suas tendên· mentos da sua política ~xtema: aniquilação do stalinismo indonêsio,

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ruptura com o stalinismo japonês, destruição do \~etname pelos Esta­ desencadeou em todo o pais. Por mais dilicil que sejam a apreensão
dos Unidos e, para acabar, proclamação em Pequim. em Julho, de que e a aplicação dos seus objectivos autónomo:., algo acabou na total
a ((insurreição» de Naxalbari, dias antes da sua dispersão pela pri­ dominação que os trabalhadores chineses suportavam. O Mandato do
meira operação de policia, era o inicio da revolução camponesa Céu proletário extinguiu-se.'
maoísta em tode a Índia: ao sustentar esta extr.wagância. Pequim
(GUY OEBORD)
rompeu com a maioria dos seus próprios partidárioS indianos, ou seja.
com o último grande partido burocrático que lhe era !iel. O que está Tc~to publicado cm opú!>eulo em 1967, depois incluído na /.S. n.• 10, Ou1uhro de

inscrito agora na cnse mterna da China é o seu falhanço na mdustria­ 1967, não 8S3mado.
lização do pais e na sua apresentação como modelo aos países sub­
desenvolvidos. A ideologia levada ao seu grau absoluto acaba por
estoirar. A sua uuluação absoluta é também o seu zero absoluto: é a
noite em que todas as vacas ideológicas são negras. No momento em
que, na mais total confusão, os burocratas combatem entre si em
nome do mesmo dogma e denunciam por toda a parte «OS burgueses
abrigados atrás da bandeira vermelha.i>. o próprio duplo pe11Sar se Duas guerras locais
desdobrou. É o alegre fim das mentiras ideológicas, a sua condenação
à morte no ridículo. Não foi a Chma que produziu este ridlculo, foi
o no o mWJdo. Dissemos no n da J.S. publicado em Agosto de 1961 A guerra israelo-árabe foi uma farsa representada pela história
[n.º 6] que este mWJdo se iria tornar «a todos os nheis cada vez mais moderna perante a presunção de esquerda, que comunga\'a no grande
penosamente ridículo. até ao momento da sua completa reconstrução espectáculo do seu protesto contra a guerra do Vietname. A má cons­
revolucionária». Está agora à vista o que este mWJdo é. A nova época ciência, que via na FXL o campeão da «revolução socialista» contra
da critica proletária saberá que não tem mais nada a poupar que seja o imperialismo americano, não pôde senão enredar-se e afundar-se
seu. e que todo o conforto ideológico existente lhe terá sido arrancado nas suas insuperáveis contradições quando se tratou de optar por
na vergonha e no pavor. Ao descobrir que está desapo~da dos falsos Israel ou Nasser; através das suas polémicas burlescas, nem por isso
bens do seu mundo embusteiro, tem de compreender que é ela a
decidida negação da sociedade mundial como totalidade: e também 1 Alusão

na China o sabera. E o desmembramento mundial da internacional
à fónnula cl11nt!ll rianming. 11m11ndJlto ceiote•. Segundo a moral
confucnma, esl! fórmula c:xprime n ideia de que os unpoudcrcs obtinham Jo Céu o
burocrática que neste momento se reproduz à escala chinesa, na frag­ dll'C1to de govanar; mas significa também que o próprio Céu lhes pode mirar esse
mentação do poder em províncias independentes. A Cluna reencontra desígnio, caso os seus acux não correspondam i rccudão e i gc:ncrosidJdc.
2 Gancl Alxlel Nas.ser (1918-1970), o muis influente político de Estado do Egipto
assim o seu passado, que volta a atribwr-lhe as reais tarefas revolu·
c1onárias do movimento outrora vencido. O momento em que, moderno, assente num populismo pragmálico enutoc:nihco, no pan-arabismo e 113 coopt.'­
raçio com a U.R.S.S. A darolll militar na guern& com o Estado de tmcl, cm Junho de
segundo parece, «Mao recomeça em 1967 o que fazia em 1927»
1967, a que aqw se nlude, ln1Uldo à cx:upaçào de uma qumta pane do 1cmt6rio cgrpcio,
(I.e Monde de 17-2-67) é também o momento em que, pela primeira foi uma rude !IO''Uçào na cnm:ira de Nasscr. que possará a apowr a orJ;llllr1.llç;io de
vez desde 1927, a intervenção das massas operárias e camponesas se ll:51Stência palestmlana AI Fatah.

218 :? 19
deixou de proclamar que um ou outro tinha toda a razão e até que em f nmça.. desfizeram-se durante a «Guerra dos Seis Dias», e nos
esta ou aquela d.as suas perspectivas era revolucionária. Estados Unidos uma parte dos grupos de resistencía à guerra contra
Isto porque, ao emigrar para as zonas subdesenvolvidas, a luta 0
Vietname passaram também pela sua hora da rerdade. «Não
revolucionária era objecto duma dupla aliennção: por um lado, a podemos ser ao mesmo tempo pelos vietnamitas e ~ontra os judeus
duma esquerda impotente perante um capitalismo -sobredesenvol­ ameaçados de extermínio», exclamam uns. 1<Quem e que pode lutar
vido que ela de modo algum pode combater, e: p.or outro, a das contra os americanos no Vietname, apoiando os seus aliados sionis­
massas laboriosas dos países colonizados, que herdaram uns restos tas agressores?», retorquem os outros, lançando-se todos nestas
duma revolução desfigurada e tiveram.de suportar os seus defeitos. bizantinas discussões... Sartre não se safo dessa. Na realidade,
A ausência de mo\'imento revolucionário na Europa reduziu a aquilo que toda esta gente condena são coisas que ela não combate
esquerda à sua mais simples expressão: uma massa de espectadores efectivamente; e o que ela aprova, são coisas que não conhece.
que se extasian1 sempre que os explorados da colónias empunham A sua oposição a guerra do Vietname confunde-se quase sempre
as annas contra os seus donos e senhores, não podendo impedir-se com o apoio incondicional ao v!ETCONO. mas é sempre para todos de
de ver nisso o 11ec p/11s ultra da Revolução. Da mesma maneira que carácter espectacular. Os que se opunham de facto ao fascismo
a ausência da vida politica do proletariado enquanto classe por si espanhol iam combatê-lo. Ainda não se viu nenhum destes
(e a nosso ver o proletariado é revolucionário ou não é nada) per­ opositores de agora ir lutar contra o 1<imperialismo ianque». Todo
mitiu a esta es11uerda tornar-se o cavaleiro da virtude num mundo um mostruário de tapetes voadores se apresenta à escolha dos con­
sem 'u1ude. Mas quando ela se lamenta, queixando-se da «ordem sumidores da participação ilusória: o nacionalismo stalino-gau­
do mundo» corno coisa em conflito com as 'illas boas intenções e listn contra o Americano (a visita de 1lumphrey foi a única ocasião
mantém as sua pobres aspirações ante esta ordem, na realidade em que o P.C.F. manifestou com os fiéis que lhe restam); a
mostra-se afeiçoada a ele como à sua própria essência; e caso esta venda do Correio do J!ietname ou das brochuras publicitárias do
ordem lhe se1a arrebatada e ela própria dela se exclua, com isso Estado de Ho Chi Minh; e finalmente as manifestações pacifistas.
perde 111do. A egquerda europeia mostra-se tão pobre que, tal como Nem os Provos (antes da sua dissolução) nem os estudantes de
o viajante no deserto aspira a uma simples gota de água, ela parece Berlim souberam ultrapassar o quadro estreito da «acção» anti­
aspirar ao mero reconforto duma objecção ahstracta. Pela facilidade -imperialista.
com que se satisfaz. pode avaliar-se a amplidão da sua indigência. A oposição à guerra nos Estados Unidos é desde o mício mais
É estranha à História, tanto como o proletariado é estranho a este séria, por ter defronte o inimigo real No entanto, para uma .P~~ da
mundo; a má c~insciência é o seu estado natural, o espectáculo é o juventude ela significa a sua identificação mecânica com os UlllJllgos
seu elemento, _endo o afrontamento aparente dos ststemas a sua aparentes dos seus inimigos reais; situação que acentua ª. confusão
referência univt;:rsal: sempre e onde houver conflito, é o bem a duma classe operária já submetida aos piores embrutecimentos e
combater o mal, a «Revolução Absoluta» contra a «Reacção Abso­ mistificações, contribuindo ainda para a manter neste estado de espi­
luta». rito ((reaccionárim1 que serve de argumento contra ela.
A adesão da conscu!ncia espectadora às causas estranhas conti­ Mais llllportantc. a nosso ver, é a critica de Gue~. por esl~
nua a ser irracional, atolando-se os seus protestos virtuosos nos cnraiz.ada em lutas autênticas, embora peque por defeito. O Chc e
meandros da culpabilidade. A maior parte do Comitês \'1etname. seguramente um dos últimos lerunistas consequentes da nossa época.

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Porém, qual Epiménidas, 1 parece ter liomúdo durante este último
mdo século rara acreditar que ainda existe um «campo progressista»
'

equilíbrio tO terror desfez-se em Cuba em 1962 com a debandada


rll5Sa. Deste então. o imperialismo americano é senhor incontc..tado
e que este se mostra estranhamente «enfraquecido». Este burocrático do mundo. E só o pode ser pela agressão. porque não tem possibili­
e simpãtico revolucionário ó vê assim no imperiaysmo o estádio dade nenhuna de seduzir os deserdados, mais facilmente virados para
supremo do capitalismo, em luta contra uma sociedade que é socia­ 0 modelo nsso-chinês. O capitalismo de Estado é a tendência natural
lista apesar de ter alguns defeitos. das sociedales colonizadas, onde o Estado se constitui cm geral antes
A deficiência da U.R.S.S.., vergonhosamente reconhecida, parece das classes - no sentido histórico do termo. A eliminação total dos
cada ...-ez mais <<natural». Quanto à Cliina, segundo uma declaração seus capitas e das suas mercadorias no mercado mundial é justa­
oficial mantém-se «pronta a aceitar todos os sacrificios nacionais mente a a;leaça mortal que pesa sobre a classe possidente norte­
para apoiar o Vietname do Norte contra os Estados Umdos Uá que -americana e sobre a sua econonua de hvre empresa; e é também a
nào apoia os operárioJ de Hong-Kong) e constitui a mais sólida e e.~plicação Ja sua fúria agressiva.
segura rctaguania do povo vietnamita em l~ta contra o impcralismO>). Desde agrande crise de 1929, a intervenção do Estado é cada ...-ez
Ninguém duVJdn. com efeito, que ao ser morto o úlúmo \ ietnarrnla, mais ootón3 nos mecanismo do mercado; a 1.'Conomia já não pode
a China burocrática de M:io 1.'SIMá intacta (Segundo o Izvc.stia, a funcionar regularmente sem as despesas maciças do Estado, princrpal
China e os E.U.A. teriam estabelecido um '-cordo de não inten ençào «consumidt•rn de tolia a produção não comercial (sobretudo da indús­
recipocra.) uia de an))l11lcnlo). Coisa que o não impede de se manter em crise
Nem a c-0asciência maniqueísta da esquerda virtuosa nem a buro­ e de ter sen1pre necessidade da expansão do seu sector público à custa
cracia são capazes de ver a unidade pro funda do mundo actual. do seu sectJr privado. Uma lógica implacável arrasta o sistema para
A clialéctica é o seu inimigo comum. A critiica revolucionária, quanto um capítnliIDio cada vez mais controlado pelo Estado, engendrando
a ela, começa para além do bem e do mal: a:;senta raízes na Hístórin graves canllitos sociais.
e tem como terreno a totalidade do munQJo existente. De maneira A profw1da crise do sistema norte-americano reside na sua incapa­
alguma pode aplaudir um Estaclo beligerantte ou apoiar a burocracia cidade de produzir lucros à escala social e de modo suficiente Tem
dum Estado explorador em formação. AnteS; de mais nada. impõe-se­ por isso de obter, 110 exterior. o que não pode fazer em casa. ou SCJa
-lhe desvendar n venkuk dos conílitos actutais, ligando-os à sua his­ aumentar a massa dos lucros proporcionalmente à massa dos capitais
tória, e desmascarar os inco1úcssados objC\Ctivos das forças oficial­ i:xistentes. A classe possidi:nte, que também possui mais ou menos o
mente em luta. A arma da critica serve co1mo prelúdio à criticn das Estado, emita com as suas empresas imperialistas para realizar este
armas. sonho demente. Para esta classe, o capitalismo de Estado significa a
A coexistência pacífica das imposlur3S) burguesa e burocrática morte, tanto como o comunismo; razão pela qual ela é por essência
acabou por prevalecer sobre a mentira dcns seus afrontamentos; o incapaz de ver qualquer diferença entre ambas estas coisas.
O funcionamento artificial dn economia monopolista como
1 '<economia de guerra» assegura à política da classe dirigente, por
Aflbào a Epunénichs de Cnossos (5êculo \17), 11hQ'.imem divino,. da Grécia arcaica.
perito cm ntuais aaugos, xamã que legou oráculos, poeesias rcligiosas e épicas. Aalus3o enquanto, o apoio benevolente dos operários, graças ao pleno
n:fcrMC i lenda q::r lhe atrihu mais de cinqucnlll anos~ de domulion numa cavcmn J.1S emprego e a um.a abundância espcctacular: «Aclualmeute, a propor­
mont.11Út1$ consa~ no Zclb Ji: Cmta ção da mãzy-de-obra destinada a tarefas respeitantes à defesa nacional
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represt!tlta 5.2% da mão-de-obra americana total, contra 3,9% há dois ~ovemo,. é uma necessidade para as relações de classes do capita­
anos [•..]. O número dos empregos civis no domínio da defesa nacio­ lismo pnvado, o qual, caso um movimento revolucionário lhe não
nal passou, em dois anos, de 3 000 000 a cerca de 4 100 000» ponha fim, ~volui inexoravelmente para um capitalismo tecnocrático
(Le Mande de 17-9-67). Entretanto, o capitalismo de mercado sente de Estado E neste contexto geral da economia mundial, que se man­
obscuramente que ao estender o seu controle territorlaJ atingirá uma tém não do:mmada, que devemos inserir a história das lutas alienadas
expansão acelerada capaz de contrabalançar as exigências sempre da nossa época.
crescentes da produção não lucrativa. A defesa encarniçada das _A d~1çào das velhas estruturas «asiáticas» através da penetra­
regiões do mundo «li\·Te» onde os seÜs interesses são amiúde míni­ çao colonial levou, por um lado, ao surgimento duma nova camada
mos (em 1959, os in\'estimentos americanos no Vietname do Sul não urbana, e, por outro, à pauperização crescente de largas fracções do
ultrapassavam os 50 milhões de dólares), corresponde a uma estraté­ campesínato sobreexplorado. Foi a junção destas duas forças sociais
gia que a longo prazo pensa poder transformar as despesas militares que ctmstituiu o motor principal de todo o movimento vietnamita.
em simples gastos de funcionamento, assegurando aos Estados Uni­ Entre as camadas urbanas - pequeno-burguesas e até burguesas ­
dos não só um mercado mas também o controle monopoUstico dos formaram-se, com efeito, os primeiros núcleos nacionalistas, bem
meios de produção da maior parte do globo. como o contexto do que seria, a partir de 1930, o Partido Comunista
Tudo, porém, contraria este projecto. Por um lado, as contradições Indochinês. A adesão à ideologia bolchevique (na sua versão
internas do capítafümo privado: há interesses particulares que se stalinista) acrescentou ao programa puramente nacionalista um pro­
opõem a este interesse geral da classe possidente no seu conjunto, tais grama essencialmente agrário, pennitindo que o P.C.J. se tomasse o
como os dos grupos que enriquecem a ctrto prazo com encomendas principal dirigente da luta anticolonial e enquadrasse a grande massa
do Estado (à cabeça dos quais se encontram os fabricantes de armas), dos camponeses espontaneamente insurgidos. Os «sovietes campone­
ou as empresas monopolistas que a despeito da aversão investem em ses>> de 1931 foram a primeua manifestação deste movimento. Mas
países subdesenvolvidos, onde a produtl\idade é muito baixa apesar ao ligar o seu destino ao da III Internacional, o P.C.I. submeteu-se a
da mão-d1:-obra barata, em vez de o fazerem na parte avançada do todas as vicissitudes da diplomacia stalínista e às flutuações dos inte­
mundo - e sobretudo na Europa, sempre mais rendivel que a resses nacionais e estatais da burocracia russa. A partir do 7.0 um­
saturada América do Norte. Este projecto. por outro lado, opõe-se aos gresso do Komintem (Agosto de 1935} «a luta contra o imperialismo
interesses imediatos das massas deserdadas, cujo primeiro impulso francês» desapareceu do programa e foi a breve trecho substituída
consiste forçosamente na eliminação das suas camadas exploradoras pela luta contra o poderoso partido trotskista. «No respeitante aos
- as únicas que podem assegurar aos E.U.A. uma qualquer infil­ trotskistas, nenhuma aliança nem concessões; têm de ser desmasca­
tração. rados, para se ver o que de facto são: agentes do fasclSIIlo». (Rela­
Segundo Rostow, especialista do <1crescimento» no Departamento tório de Ho Chi Minh ao Komintem, Julho de 1939.} O Lratado
de Estado, o Vietname, por ora, é apenas o campo experimental desta &ermano-soviético e a proibição dos P.C. de França e do Ultramar
vasta es1ratégia - a multiplicar-se - que, para assegurar a sua paz permituam ao P.C.I. mudar de direcção: «0 nosso partido considera
exploradora, tem de começar por uma guerra de destrwção - guerra que é uma questão de vida ou de mone [...] lutar contra a guerra
esta pouco destinada a ver-se concluída. A agressividade do imperi­ imperialista e a política de pirataria e de massacre do imperia­
alismo americano não corresponde portanto à aberração dum mau lismo francês (leia-se: contra a Alemanha 11azj) [ •••] mas lutaremo:;,

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ao mesmo tempo, contra os objectivos aigressivos do imperialismo Mas os mesmos acordos de Genebra permitiram aos Diem 1 instalar
japonês». a suJ do 17.º paralelo um Estado burocrático, feudal e teocrático ao
Pelo final da segunda guerra mundial, com a ajuda efecti\'a dos 54."'fviÇO dos grandes proprietários de terras e da burguesia ligada aos
norte-americanos, a Vietmin 1 controlava :a maior parte do território interesses estrangeiros. Este Estado, em poucos anos. irá liquidar
e era reconhecida pela França como úoiica representante da lnd~ todas as conquistas do campesinato, graças a aJgumas (ffefonnas
chma. Foi nesta aJtura que Ho Chi Mtinh preferiu «cheirar um agrârias» apropriadas, ficando os camponeses do Sul, entre os quais
pouco a côdea francesa de preferência ai comer toda a vida a dos uma parte nunca tinha deposto as armas, de novo submetidos à opres­
chinesesn, assinando, para facilitar a tw:refa dos seus camaradas­ são e a uma intensa exploração. F01 a segunda guerra do Vietname.
-senhores, o monstruoso compromisso de Março de 1946. que Também nesta ocasião a massa dos camponeses insurrectos, pegando
recomeceu o Vietname simultaneamente como «Estado livre» e de novo em armas contra os mesmos inimigos, encontram os mesmos
como «parte constitutiva da Federação Imdochinesa da União Fran­ chefes. A Frente Nac1onaJ de Libenação sucede à Vietmin, herdando
cesa . Este compromisso permitiu à França reconquistar uma parte ns suas qualidades e os seus grandes defeitos. Ao assumir-se como
do pais e encetar, ao mesmo tempo que os stalirustas perdiam a sua campeão da luta nacional e da guerra camponesa, a F.Nl.., desde o
parte do poder burguês em França, uma iguerra de oito anos ao fim inicio. conquistou os campos, neles estabelecendo a base principal da
da qual a Vietmin entregava o SuJ às C3l1Iladas mais retrógradas da resistência armada. São as suas vitórias sucessivas contra o exército
sociedade vietnamita e aos seus protectoires, os norte-americanos, e oficial que provocam a intervenção cada vez mais maciça dos ame­
conquistava definitivamente o Norte. Após ter procedido à elimi· ricanos, até reduzirem o conflito a uma declarada guerra colorual em
nação sistemática dos elementos revoilucionârios que restayam que os vietnJmitas se vêem em oposição a um exército invasor. A sua
(o úbimo líder trotskista, Ta Tu Thau. fora assassinado em 1946), resolução na luta, o seu programa nitidamente antifeudal e as suas
a burocracia vietmin instalou o seu poder totalitário sobre o perspectivas unitárias são as principais qualidades do movimento.
campesinato, iniciando a industriahzaçãio do pais no quadro dum A luta da F.N.L. não sai. de modo nenhum. do quadro clássico das
cap1t1lismo de Estado. O melhoramento da condição dos campone­ lutas de libertação nacional, mantendo-se o seu programa baseado
ses, decorrente das suas conquistas duramte a longa luta de liberta·
çào, tinha, na lógica burocratica. de ser posto ao serviço do novel
Alusão a Ngli Dmh Dicru (1901-1963), chefe do gD\t!lllO no Victruune do Sul
Estado, no sentido duma maior produtividade de que este lica\-a
(capital Sai~o) de 1955 a 1963, ano cm que foi e.~ccutado durante um golpe de Estado.
senhor mcontestado. A aplicação autoritiria da reforma agrária sus· Na -.c:quência d~ dcordo. de Genebra de 1954, est3bclecídos entre a França e a Repú·
citou, em L956, violentas insurreições e uma sangrenta repre:.são blica Democnitica do Vietname do Nane (capital fúnoi), Dicm, l!dcr dei- nac1onaful3S
(solretudo na própria província de Ho Chi Min). Os camponeses de direita e apoiado pelo governo dos Estndos Unidos, impõe condições dnbtxas: nenhu·
que tinham posto a burocracia no poder tomavam-se assim as suas m:is convc:mçõcs com ••os comunistas,., esúlbelccõnento no Sul dum b.1stião capaz de

primeiras vitimas. Uma «orgia de autocríticas>> tentou, durante anos bloquear qWllqucr novo D\'l!DÇO dos partidários de Ho Chi Mm. Es1n orientnç:ão consolida·
-se em 1956, preparando o terreno para 1 intervenção ~udunidense, cna:tlda cm Feve­
seguidos, fazer esquecer este «erro grave».
reiro de 1965 c<n1 bomhnrdc:unentos intensiVO'. do Vletnôl:me do Norte pela l\.'i:lção
americana.Aguerra do Vietname só tamirwú em Abril de 1975. com 1 \·1tóri.1 do Norte,
1
Frartepa1 lndepcndênda do V'1tlll3me, org;311iz.ad:I an 1941 ~à união do cbndo-sc a reunifação cm 1976, com o nome de RepUblica Socialistl do V'ietname.
Partilo Comwtisnt lndoclúnes com elementos naciooalisw. A gucnu anucolomal durara tnnta anm.

226 227
num compromisso duma vasta coligação de classes, dominada pelo
único objectivo de liquidar a agressão norte-americana (nã') é por do Siado de lsraeL é um mero avatar do trillllfo da contra-revolução
acaso que ela rejeita a denomlliação de Jlietcnng - ou seja comu. mundial Ao <(S()Cinlismo num só pais» correspondia a «justiça para um
nistas vietnamitas - , insistindo no seu carácter nacional). As suas só povo» e a «igualdade num só looutz>>. ~ coloniza~ ~ Pal~ foi
estruturas são as dum Estado em formação, visto nas zonas que aganizada com os capitais de Rothschild, e os pnmeJIOS kibutzes
domina recolher impostos e instituir o sen·iço miliiar obrigatório. foram lançados graças à mais-valia europeia. Os judeus recriavam
8S.5im paro si mesmos tudo de quanto haviam sjdo vítimas: o fanatismo
e a segregação. Os que sofriam por serem tolerados na sua sociedade,
*
iam lutar para se tornarem, noutro espaço, proprietários podendo dispor
Estas qualidades mínimas na luta.. os objectivos e os interesses do direito de rolerar os outros. O laoutz não era uma superação revo­
sociais que exprimem, estão totalmente ausentes no afrontamento que lucionária da «feudalidade» palestiniana, era uma fórmula mutualista
opõe Israel aos Árabes. As contradições específicas do sionismo, bem de autodefe.53 dos trabalhadores-colonos judeus contra as tendências de
como as da sociedade árabe retalhada. acrescentam-se a uma confu. exploração capitalista da Agência Judaica Porque era o principal pro­
são geral. prietário judeu da Palestina, a Organi:roçào Sionista de:tnia-se _como o
Desde as suas origens, o movimento sionista representava o oposto ünico representante dos interes.ses supenores da «Naçao JudaiCID>. Se
duma o;oluçào revolucionária daquilo a que se chamava a questão acabou por reconhecer o direito a uma certa autogestão, foi por ter a
judaica. Produto directo dum capitalismo europeu. o que ele visava não certeza que esta estaria assente na expulsão sistemática do camponês
era a subversão duma sociedade que tinha necessidade de perseguir os árabe.
Judais, era a criação dwna entidade nacicmal judaica qui ficasse pro­ Quanto à Histadrut 1, esta, desde a sua criação em 1920. ficou
tegida das abenações anti-semitas do capitalismo decadente; não era a submetida à autoridade do sionismo mundial, ou seja, o exacto oposto
abolição da injustiça, era a sua transferência. O que constitui o pecado da emancipação dos trabalhadores. Os trabalhadores árabes esta~
original do sionismo é ter raciocinado sempre como se a Palestina fosse estatutariamente dela excluídos, consistindo com frequência a
uma ilha deserta. O movimento operário revolucionário via a solução actividade desta organização em proibir as empresas judaicas de os
da questão judaica na comunidade proletária, ou seja, na destruição do empregar.
capitalismo e da «sua religião, o judaísmo», não podendo a emancipa­
ção do Judeu fazer-se fora da emancipação do homem. O SJonismo n:irio. Apartir do seu livro de: 1899, Socialismo Teórico I! Sncial-Donocrocia Pr~ica
partia da hipótese inversa. É certo que o desenvolvimento contra-revo­ Bernstein irá articular umn nova estratégia reformista: o socialismo não se baseia na
lucionário deste meio século lhe deu razão, mas fü.lo da mesma cqiropri11ção das cnpitalistss, o prolcunado tem de saber gerir as empresas. A csqucnla
maneira que o desenvolvimento do capitaJjsmo deu razão às teses refor­ do mo\1mento socialista alemão, mxncadamcntc Rosa Luxcmburg. opor-se-í com vee­
mência a CSlll •tconzaçãoi. das 11:ndências oolabcncill'listts.
mistas de Bernstein'. O âito do sionismo, e corolariamente a criação
1 Central sindical israclua. A sua originalirbde consiste cm ter cxc:rtulo um quase

monopólio de: todo o movimento sindical (ainda nos 111101 80, mais dt mí d3 populaçio
1 laboriosa estava nela filiada) e de, ao mesmo lanpo, scro llllllOC empregador~ i-rs, ao
Referência a Eduard 8Cl11)1em ( 1850-1932), socialista alemão de origem Judaica
Sccmârio dc: Engels e seu cxccutor tcstmncnúrio, Bernstein será o criarlor d3 corrcme ter organÍlJldo, cm fCSSClllJ anos, o maior cancl de cmJRSU, e controlando_. dírec~ ou
chamada rmsioni.smo, pondo cm c:nusa a teoria m:irxista oo que esta tem de l"C\'Olucio­ indirccwnenie, uns 50% eh ct00omia. O seu papel polioco dc:corria da SU11 IDlJXllWlC1a
econ6mica integradora.
ns
229
O desenvolvimen10 da luta triangular entre árabes, sionistas e riados do que aqueles que tem o próprio Estado. A Histadru1 constitui
ingleses irá evoluir com vantagem para os segundos; graças à pater­ actualmente a \anguarda da expansão imperialista do jovem capita­
nidade activa dos norte-americanos {a jllrtir da segwxia guerra mun­ lismo israelita (Solei Boneh, uma importante sucursal da Hustldrut
dial) e à bênção de Stãlin (que via em Israel a corutituição do pri­ no ramo da construção civil, inv~--tiu em 1960-66 180 milhões de
meiro bastião «soc1ahst1m no Médio Oriente, mas ao mesmo tempo dólares em África e na Ásia e emprega 12 mil operários africanos).
queria livrar-se de certo- judeus incómooos), o sonhó henliano 1 rapi­ E como o Estado mmca poderia ter nascido sem a intervenção
damente se concretizou, sendo o Estado judaico arbitrariamente pro­ directa do imperialismo anglo-americano e a ajuda maciça do capita­
clamado. A recuperação de todas as fonnas «progressistas>, de orga­ lismo financeiro judaico, só pode agora equilibrar a sua economia
nização social e a sua integração no ideal sionista tomou desde logo artificial com a ajuda das mesmas forças que o criaram {o défice da
possível que os mais <trevolucionãrios» trabalhassem, de consciência balança de pagamentos é igual a 600 milhões de dólares, ou seja,
tranquila, para a edificação do Estado burguês, militansta e rabínico mais do que o rendimento médio dum trabalhador árabe para cada
em que se tomou o Israel moderno. O sono prolong:ido do interna­ habitante israelita). A partir da instalação das primeiras colónias de
cionalismo proletário voltou a engendrar um monstro. A injustiça imigrados, os judeus constituíram, paralelamente à sociedade árabe
fundamental cometida contra os árabes da Palestma vrrou-se de ime­ económica e socialmente atrasada, uma sociedade moderna de tipo
diato contra os próprios judeus: o Estado do povo eleito não passava europe~ a proclamação do Estado permitiu concluir este processo
duma vulgar sociedade de classes onde se tinham reconstituído todas com a expulsão pura e simples dos elementos do atraso. A parttcula­
as anomalias das velhas sociedades (di\.isões hierárquicas, oposições ridade de Israel reside em ser o bastião da Europa no âmago dum
étnicas entre asquenazes e sefarditas, pcrsegwções racistas contra a mundo afro-asiático. E deste modo se tomou duplamente estrangeiro:
minoria árabe, etc.). A central sindical voltou a deparar ali com a sua à população árabe. reduzida ao estado permanente de refugiados ou
função normal de integrar os operários ruma economia capitalista, de de minoria colonizada, e à população judaica que por wn momento
que aliás se tomou o principal proprielário, empregando mais assala­ nele viu a realização terrena de todas as ideologias igualitárias.
Isto, porém, não se deve apenas às contradições da sociedade
1
Apesar de judeu ••mimilado,., ThtlOdor llerzl (l 8tí0-l904), ad\oplo e: JOnuhsUI, israelita: desde o principio, a situação agravou-se constantemente,
naKido cm Budapeste e: CTIJJo cm Viena, foi o vcnbdeiro conap1or do Esudo de Israel alimentada como foi pelo ambiente árabe, incapaz. até agora, de pôr
O seu livro, O Estado Jridoico Paro. uma Sol~ào Moderna da Questão Judaica
nisto um começo de solução real.
publicado cm alonão cm 1896, oo apn:scnJar llll11 utopia racionalt>ta que c::taJtava 0
êitodo cnpmiz.ndo dos Judeus de todos os p.1lSc.S COO! vista a edificarem, cm terra \il},'CJI,
Desde o llllcio do mandato britânico, a resistência árabe na Pales­
wn modelo de soc1c:d:idc sodalislll, expunha pcl11 Jrimc:ira H:Z Wll3 50luçiio p11tíá\cl tina foi inteiramente dominada pela classe possidente, ou seja. pelas
A panir do 1 COllgrc:s.so Judaico lntc.'l'Tl:lciorutl, canuaido por Hem e realu:ado an classes dirigentes árabes e seus protectores britânicos. O acordo
Basileia, cm 1897, o Orpnimção Si~ta Mundál passou a c:orutJtwr-sc como um Sykes-Picot pôs fim a todas as esperanças do nascente nacionalismo
gll\emo cm potc?ncia. Hcrzl, porãn, não propunha ainda a Palestina como pátri:i ana:s­ ârabe, submetendo a região, sabiamente retalhada, a uma dominação
lnll, nem sequer o belx-c:u como llngua colecti\11; Israel esteve pua ser implomUJo no
estrangeira que está longe de ter acabado. As mesmas camadas que
Ug:inda. c:ntiio colónia brilôÍniat, ou noulras R:giÕOi, parque Hc:r.d se opunha a wi1~
ocupação ilegal. Foi 1 mais fone tcndêncm do sionisnu, a russa, prnmNmt da infiluaçio
asseguravam a servidão das massas ao lmpério Otomano puseram-se
118 Palestma iniciada desde há déaulas pelos «AmanttS de SiàM e difusora do hebrab--mo. ao serviço da ocupação britânica, tornando-se cúmplices da coloni­
que acabou por levar a melhor. zação sionista (pela venda. a preços muito elevados, das suas terras).

230 231
O atraso da sociedade árabe ainda não permitia a emergência de O que inaugurou a decadência da pequl!na-burguesia árabe e do
novas direcções mais avançadas, acabando os levantamentos popu­ seu poder burocrático foram antes de mais nada as .suas próprias
lares espontâneos por deparar com os mesmos recuperadores: contradições internas, bem como a superficialidade das suas opçõe5
os caciquismos «feudais-burgueses>• e a sua mercadoria, a união (Nasser, o Baas, 1 Kassem e os partidos ditos comunistas nunca dei­
nacional. · xaram de lutar uns contra os outros, através de compromissos e alian­
A insurreição armada de 1936-39 e a greve geral de seis meses (a ças com as forças mais duvidosas)
mais longa da História) foram decididas e executadas apesar da opo­ Vmte anos após a primeira guerra da Palestina, esta nova camada
sição de todas as direcções dos partiêlos «nacionalistas•> árabes. acaba de provar a sua total incapacidade para resolver o problema
Espontaaeamenle organizadas, tiveram uma vasta amplidão, obri­ palesuniano. Sobreviveu graças às suas promessas dementes, porque
gando a classe dirigente a aderir ao movimento e, desse jeito, a tomar só a alimentação permanente do pretexto israelita lhe permitia sobre­
a sua direcção. Mas esta, se o fazia, era para o refrear, levando-o viver, impotente como se via para dar uma qualquer solução radical
à mesa das negociações e aos compromissos reaccionãrios. Só a vitó­ aos inúmeros problemas interiores: a questão palestina continua a ser
ria deste levantamento, nas suas derradeiras consequências, teria a chave das grandes transformações árabes. É à \'Olta dela que os
ao mesmo tempo podido liquidar o mandato britânico e o pro;ecto conflitos rodam e nela que toda a gente comunga. É ela a base da
sionista de constituir um Estado judaico. O seu revés anunciava, solidanedade objectiva de todos os regimes árabes. É ela que cancre­
a contrario. as futuras catástrofes e, de modo terminante, a derrota tiz.a a 1ruruào sagradru1 entre Nasser e Hussein, Faiçal e Boumedienne,
de 1948. o Baas e Aref.
Esta representou o toque de finados da «burguesia feudal» como A última guerra veio dissipar todas as ilusões. A absoluta rigidez
classe dirigente do movimento árabe Foi também a oportunidade de da «ideologia árabe» viu-se pulverizada em contaco com a realidade
a pequena-burguesia chegar ao poder e constituir, com os quadros do efecliva igualmente dura, mas permanente. Os que falavam de fazer
exército desfeito, o motor do movimento actual. O seu programa era a guerra não a queriam nem a preparavam: e os que só falavam de
simlpes: a wúdade, uma certa ideologia socialista e a libertação da se defenderem, estavam de facto a preparar a ofensiva. Cada um
Palesuna (o Regresso). A tripla agressão de 1956 proporcionou-lhe a destes campos egwa a sua própria inclinação: a burocracia árabe, a
melhor ocasião de se consolidar como classe dominante e de des­ da mentira e da demagogia, os senhores de [sarel. a da expansão
cobrir um lider-programa na pessoa de Nasser, exposto à admiração impenalista. Foi como elemento negativo que a Guerra dos Seis Dias
colecliva das massas árabes desapossadas de tudo. Era agora ele a sua teve uma importància capital, visto ter revelado todas as fraquezas e
religião e o seu ópio. Mas a nova classe exploradora tinha os seus as taras secretas daquilo que se pretendeu apresentar como <ea revo­
próprios interesses e os seus objectivos autónomos. As palavras de lução árabe>l. A «poderosa» burocracia militar egípcia desfez-se em
ordem que tomaram popular o regime burocrático militar do Egipto dois dias. desvendando de chofre a verdade das suas realizações: o
eram em si mesmas deficientes, sendo este regime incapaz de as pólo em redor do qual se operaram todas as transformações socioe­
realizar. A unidade árabe e a destruição de Israel (umas vezes
invocada como liquidação do Estado usurpador e outras como expul­ 1Bw («RcssurrciçioJ1), ou Pmtido Socialista do Rcnascimcuto Arabc, °'PÍlllÇão
são pura e simples até ao mar) estavam no centro desta ideologia­ síria e U'IQui:ma de c:squc:nb, apoiante e nval de N:issa no contclto da coosutuiçio, em
-propaganda. 195!, da República Árabe Unida (Egipto e Síria).

232 233
conómicas, o exército, fundamentalrncnh! não mudara. Por um lado,
pretendia transformar tudo no Egipto (e até em t\xta a zona árabe), e Do outro lado, Israel tomou-se o que os árabes, antes da guerra.
por outro fazia quanto podia para nada mudar nb seu seio, nos SCUs lhe censuravam: um Estado imperialista. componando-se como as
valores e hábitos. O Egipto de Nasser é ainda duminado pelas forças mais clássicas forças de ocupação (terror policial, dinamitagem das
pré-nasseriana.s, a sua «<burocracia>> é um magma sem coerência nem asas lei marcial permanente, etc.). E no interior desenvolve-se um
consciência de classe, apenas cimentado pela CXN.orãção e a partilha ~eliri~ colectivo dirigido pelos rabinos em prol do 1<direito imprescri­
da mais-valia social. tível de Israel às fronteiras biblicas». A guerra veio suspei_ider todo .º
Quanto ao aparelho político-militar que govClna a Siria baasista movimento de contestação que as contradições desta sociedade ~­
este encerra-se cada vez mais no cmtremismo. da sua ideologia.' ficial engendrava (em 1966, houve várias dezenas de motins e ~o
A diferença é que a sua fraseologia já não cnitma ninguém (excepto menos de 277 greves só em J965), provocando também uma a~esao
Pablo!)'; toda a gente sabe que ele não fez a guC!rra, que entregou a unânime em tomo dos objectivos da classe dominante e da sua ideo­
frente de combate ~m resistência, visto ter preferido ficar com as logia mais extrermsta. Por outro lado, serviu para reforçar todos os
melhores tropas cm Damas para a sua própria defesa. Os que consu­ regimes árabes não implicados no afrontamento armado. Boume­
miam 65% do orçamento sírio para defender o terntório desvendaram dienne pôde assim, a 5000 km, participar sossegadam~t~ no re~o­
definitivamente o seu cinico embuste. brar de promessas e pôr a aplaudir-lhe o nome a mu1udão arge~
Em suma. ela mo~trou mais uma vez, aos qWe ainda pn.'CiSSV'cUIJ diante da qual não se atrevia a apresentar-se na véspera. E ~~u
disso, que a União Sagrada com os Hussein só fxxiia levar à catás­ ainda, finalmente, para obter o apoio duma Organização de Res~t~­
trofe. A Legião Árabe retirou-se logo no primeiro dia, e a população cia Palestiniana completamente stalinizJda (<1dc\ido à sua pohtica
palestiniana, que teve de suportar durante \'inte artos o terror policia] anti-imperialista»). faiçal, em troca de alguns milh~ d~ dólares,
dos seus verdugos, viu-se desarmada e desorganii,.ada perante as for­ obtém o abandono do Iémene Republicano e a cansolidaçao do seu
ças de ocupação. O trono bachcmita partilhara, <\esde 1948, a c-0)0­ trono - e por ai fora.
nização dos palestinianos com o Estado sionista. Ao abandonar a
Cisjordânia. entregava a este último os proccsscJS instaurados pela Como sempre, a guerra, quando não é civil, só pode congelar o
polícia sobre lodos os elementos revolucionários palestinianos. Mas processo da revolução social, no Vietname do Norte, provoca a ade­
os palestinianos sempre souberam que havia pout:é\ diferença entre as são nunca obtida, das massas camponesas à burocracia que a explo­
duas colonizações. sentindo-se boje mais à vonta.tte na resistência à ra.Em Israel, Liquida durante um longo período qualquer opo~çào ao
nova ocupação. sionismo· dando-se nos países árabes o reforço - momentaneo ­
das cam~das mais reaccionárias. As correntes revolucionãrias não
1
Alusão a Michel Raptis, c:mhccido com o Jl'Clld6nimo de Pablo. Oirigmtc da I\' podem de modo algum identificar-se com tais coisas. Asua tarefa es~á
lntcmacional, Pablo foi um dos rc:spoosá\'eis pela chamada ráctu:a do «entrismo11, elabo­ na outra ponta do movimento actuaL porque tem de ser a sua negaçao
rada an 1951, que m:cmcndava a tntrada dos rnihtmtcs trotskistas nas organiiaçõcs absoluta.
opcr.íria.s, stalinisw ou reformistas, na C'\'tlltu:tlidadc duma D0\ 11 gucm mimdial. Esta
concepção, rcjc:nada pela maioria da sccçio francesa da IV llllcrn:idonal, levava com
É evidentemente impossivel, agora, obter uma solução m·olucio­
frcquàlcia os seus ~i;u1dora a uma grande faha de lucidez. com0 no caso aqui rcícmJtc
ao panido Baas. nária para a guerra do Vietname. Trata-se antes de mais nada de pôr
fim à agressão norte-americana para deixar desemolver-se, de fonna
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nada a respeitar nos poderes constituídos que dominam o mundo
natural.a verdadeira luta social do Vietname, ou seja, permitir aos actual. É em si mesmas e nas experiências recalcadas da história
trabalhadores \.ietnamitas dar de novo de caras com os seus inimigos revolucionária que hão-de encontrar o seu modelo. A questão
internos: a burocracia do Norte e todas as camadas possidentes e palestiniana é séria demais para ser cntregu:_ aos Estados, o~ seja. aos
dirigentes do Sul. A retirada do americanos significa de imediato o coronéis. Toca de muito perto as duas questoes fundament315 da revo­
domínio de todo o país pela direcção talinista; é ª·so)uçào inelutável. lução moderna, a saber. o i11temacionalismo e o Estado, para que
Porque os invasores não podem prolongar indefinidamente a sua alguma força existente lhe possa dar a soluçào adequada. Só um
agressão; sabe-se desde Talleyrand que se pode fazer tudo com as movimento revolucionâno árabe decididamente mtemac1anahsta e
baionetas, excepto uma coisa: usá-las como as.sento. Não se trata pois anti-estatal pode simultaneamente dissolver o Estado de lsarel e ter
de apoiar incondicionalmente (ou de modo critico) o Vietcong, mas por si a massa dos seus explorados. No mesmo processo ~ocial, s~ ele
de lutar consequentemente e sem concessões contra o imperialismo proerá dissolver todos os Estados ãrabes existentes e cnar a umfica­
norte-americano. O papel mais eficaz é agora o dos revolucionários ção árabe atra\·és do poder dos Conselhos de Trabalhadores.
americanos que promo\·em e praticam a deserção em larga escala
(perante a qual a resistência à guerra da Argélia. em França, foi uma IS n! 11, Outubro de 1967
brincadeira de crianças). Porque a raiz da guerra do Vietname encon­
tra-se nos Estados Unidos, e é ali que se impõe e>.úrpá-la
Ao contrário da guerra norte-americana, a questão palestina não
tem de imediato uma solução perceptível. Não é praticável nenhuma
solução a curto prazo. Os regimes árabes só podem desabar sob o
peso das suas contradições, e Israel ficará cada vez m:lls prisioneiro
da sua lógica colonial. Todos os compromissos que as grandes potên­ Os nossos objectivos e os nossos métodos
cias e os seus aliados respectivos procuram arranjar, só podem ser
no escândalo de Estrasburgo
contra-revolucionários. O status quo bastardo - nem paz, nem
guerra - vai provavelmente predominar durante um longo período,
durante o qual os regimes árabes terão o destino dos seus antecesso­ As diversas marufestações de assombro e indignação a que deu
res de 19.t8 (e provavelmente, num primeiro tempo, em proveito das azo a brochura situacionista Da Miséría no Meio Estudantil,
forças declaradamente reaccionárias). A sociedade árabe que segre· publicada à custa da secção de Estrasburgo da U.N.E.F..' embora
gou Ioda a espécie de classes dominantes, cancaturns de todas as tenham tido o efeito oportuno de difundir amplamente as teses con­
classes historicamente conhecidas, tem agora de segregar as forças
que hão-de exprimir a sua subversão total. A burguesia dita nacional
e a burocracia árabe herdaram todas as taras destas duas classes, sem 1 União Nacional das Estudantes de França, cnada cm 1946, com base na 11Cann de

nunca terem conhecido as suas realizações históricas nas outras Grenoble», que sublinhava «a IOl!lada de consciência política da colccmidade estudantil>•
e 1 SUll •solidariedade com o cooJunto dos trabalhadorcs•i, definindo o estudante como
sociedades. As futuras forças revolucionárias árabes, que deverão
um Jovem trab31hador. A A.F.G.E.S. (Associação Fcderamia Geral ~ Estud:inlcs de
nascer dos escombros da derrota de Junho de 1967, saberão que nada fu~) era 1 !lll secção loal
têm em comum com qualquer dos regunes árabes existentes, nem
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tidas nesse texto, não podfam deixar de ncumullar contra-~sos na qualquer justificação humorística, podia sah"nr os seus membros do
enunciação e no comemãrio do que foi a actividade da I.S. nessa ar comprometido que de imediato comporta um tão pobre papel diri­
ocorrência Perante as ilusões de toda a espécie alimentadas por jor­ gente. Para rematar a complexidade do problema, os estudantes que
nais, autoridades universitánas e bom número de estudantes irreílec­ se nos dirigiam conheciam as posições da I.S. e declaravam aprova­
tido. , impõe-se que precisemos quais foram e11;actamente as condi­ -las em geral, ao passo que os membros do secretariado pareciam
ções da nossa intmenção. lembrando que objcctivos tínhamos em ignorá-las, contando com os nossos interlocutores para melhor defi­
vista e que meios nos pareceram apropriados JJ'II'll os realizar. nirem a actividade capaz de corresponder à sua boa vontade sub­
Mais errada amda que os exageros da imprensa ou de certos ad­ versiva.
vogados hostis, a propósito das finanças que a l.S. teria aproveitado Neste estádio, limitámo-nos a aconselhar a redacçào e a publica­
para pilhar nos cofres do infeliz sindicato de estudantes, há uma ção, por todos eles, dum texto de critica geral do movimento estu­
informação aberrante, amiúde referida nas narrações jornalísticas, dantil e da sociedade, tendo esse trabalho, pelo menos para eles, a
segundo a qual a 1S teria podido rebaixar-se fazendo campanha utilidade de os fazer clanficar em comum o que ainda viam confu­
junto dos estudantes de Estrasburgo para os persuadir da validade das samente. Sublinhámos, além disso, que o facto de disporem de
suas perspectivas e para eleger um secretariado com base num tal dinheiro e de crédito era o ponto essencial a utilizar na irrisória
programa. Tão-pouco empreendemos uma qualquer infiltração na autoridade que tão imprudentemente lhes fora concedida; e que uma
U.N .E.F.. fazendo secretamente entrar para fiá partidários nossos. utilização não confomusta destes recursos teria com certei.a a vanta­
Basta alguém ler-nos para perceber que os nossos interesses não resi­ gem de chocar muita gente, mostrando melhor, deste jeito, o que eles
dem cm coisas dessas e que os nossos métodors não se lhes aplicam. poderiam pôr de não confonnista no conteúdo. Estes camaradas apro­
O que de facto se passou foi que alguns estudantes de Estrasburgo varam então as nossas opiniões, ficando em contacto com a I.S., em
vieram ter connosco, no Verão de 1966, infonoando-nos que seis dos especial por intermédio de Mustapha Khayati, para o desenvolvi­
seus amigos - e não eles próprios - haviam sido há pouco eleitos mento deste projecto.
para a direcção da associação de estudantes local (a A.F.G E.S.). sem A discussão e os primeiros esboços de redacção, feitos colccriva­
programa nenhum e apesar de serem notoriamente conhecidos na mente pelos que nos tinham encontrado e pelos membros do secre­
UN.E.F. como extremistas em total desacordo com todas as variantes tariado da A.F.G.E.S., - todos eles decididos a levar a cabo esta
da sua decomposição - e além disso disposros a partir a loiça toda. iniciativa - introdumam no plano uma importante modificação.
A sua eleição, de resto perfeitamente regular, manifestava portanto, Todos estavam de acordo quanto ao fundo da critica a formular, e
óbvia e simultaneamente, o desinteresse absoluto da base e a oonfis­ precisamente segundo as grandes linhas evocadas por Khayati, veri­
sào de definitira impotência dos burocratas ainda existentes nesta ficando porém que se viam incapazes de chegar a uma formulação
organização. Estes, sem dúvida. calculavam que o secretariado saúsfatória, sobretudo no curto prazo que lhes impunha a data de
11extremista» seria incapaz de dar uma qualoquer expressão às suas reabertura da universidade. Esta incapacidade não deverá ser enca­
intenções negativas. Inversamente, era também este o receio dos estu­ rada como resultante duma grave falta de talento ou da inexperiência.
dantes que vieram falar connosco; tendo sido sobretudo por este mas sim, muito stmplesmente, da extrema heterogeneidade deste
motivo que eles próprios acharam não dever participar pessoalmente grupo, no próprio secre~o e fora dele. A sua prévia congregação
nesta «direcção». Porque só um golpe de certa amplitude. e não UIJ1J com base num acordo bastante vago tomava-os muito pouco aptos a

238 239
redigir em conjunto a expressão duma teoria que \.erdadeiramente entre os estudantes, onde a única mola que desde há muito o
não tinham reconhecido em conjunto. Confonne o projecto e ia activismo possuis era a mais sórdida devoção às ideologias murchas
ampliando, surgiam entre eles oposições e desconfianças pessoais; a e à menos realista das ambições. O último batalhão de profissionais
sua única e efectiva vontade comum residia na adesão à variante mais que elegeu os nossos heróis nem sequer tinha a desculpa duma mis­
ampla e ma.is séria que podia conceber-se para este· golpe. Em tais tificação. Depositaram as suas esperanças duma renovação num
condições. Mustapha Khayati viu-se na obrigação de asswnir quase l?f\lpô que não escondia as intenções que o animavam de sem tar­
sozinho o essencial da redacçào do texto, que foi sendo discutido e dança pôr a pique todo este militantismo arcaico1>.
aprovado em Estrasburgo por este grupo de estudantes e também A brochura foi distribuída, à queima-roupa. às personalidades ofi­
pelos situacionistas em Paris - tendo-se estes limitado a fazer acres­ ciais, na abertura solene da Uruversídade. Simultaneamente, o secre­
centamentos de pouca importância, de resto em número limitado. tariado da A.F.G.E.S. tomava público que o seu único programa
Diversas iniciati\'as preliminares anunciaram a publicação da bro­ «estudantilil consistia na dissolução imediata desta associação, con­
drura. A 26 de Outubro [de 1966], o cibernético Moles (cf. /.S. 9, vocando para o efeito uma assembleia geral extraordinária Como se
p. 44), 1 por fim empoleirado numa cátedra de psico-sociologia para sabe. a perspectiva horrorizou de imediato muita gente. t<Seria a pri­
nela se entregar à programação dos Jovens quadros, foi dali meira manifestação concreta duma revolta que pura e simplesmente
escorraçado, logo nos primeiros minutos da sua aula inaugural, pelos visa destruir a sociedade». avisava um jornal locaJ (Dernieres
tomates que uma dúzia de estudantes lhe lançaram (em Paris, Moles Nouvc/les. 4-12-66). podendo ler-se em Paris, no l'Aurorr de 26-11:
teve o mesmo tratamento, em Março, no Museu das Artes Decorati­ <<A Internacional Situacionista. organização que tem alguns aderentes
vas, onde este aplicado robô deveria discorrer sobre o controle das nas principais capitais da Europa Estes anarquistas afirmam-se
populações graças aos métodos urbanísticos; esta última refutação re\'olucionários e pretendem "tomar o poder". Tomá-lo, não para o
foi-lhe administrada por uma trintena de jovens anarquistas, membr~ conservarem, mas paro semearem a desordem e destruírem até a sua
de grupos que querem pôr a critica revolucionária em todas as ques­ própria autoridade». Mesmo em Turim a Gazctta dei Popo/o desse
tões modernas). Pouco depois desta aula inaugural. por certo tiio
insólita como o próprio Moles nos anais da Universidade, a
...
,
A.F.G.E.S levou a cabo a colagem, à laia de publicidade da brochura,
duma banda desenhada fo1ta por André Bertnmd, O Regresso da DE LA USlRE

-__
Coluna Dunuri, documento este que teve o mérito de expor da mais F.l UUEU
ETUDIAJITJ"
clara forma aquilo que os seus camaradas pensavam fazer das suas
funções (((lirectivas»: 1<.A.. crise geral dos velhos aparelhos sindicais e
das burocracias esquerdistas sentia-se por todo o lado, mas sobretudo
........
.........
~­ ·­
~
- ......
1
Alnham Moles, sociólo~ n. on 1920. A sua correspondência com a JS. aqui
referida é lllSIJUli~"ll: defmin~ na sua longa car1n como "cibernético t1X11ocrâtieo»,
propõe aos situac1omms um reformismo da vida quotidi:ina._ Dcbord rcsp<WKlal·lhc
chl!mando-lhe 1trústico robôt>. Edições em Inglaterra, Suécia, Estados Unidos, Espanha e França (1967)

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dia manifestava desmesuradas inquietaçõc~: <10ever-se-á no entanto tes que os escândalos não de\ cm ser feitos por metade e que num
\"er se e\'entuais represálias [•..] não irão prorocar desordens [...] Em acto desta natureza.. após ter optado pelo empenhamento. ninguém
Paris e noutras cidadt!s uni\ers1tárias de França, a internacional pode esperar ver-se menos comprometido não levando longe demais
Snuacionista, electrizada pelo triunfo dos seus adepto~ em Estras­ a ressonància do golpe - tanto mais que o êxito dum escândalo
burgo, prepara-se para desencadear uma ofensiva de grande estilo constitui, pelo contrário, a única relativa salvaguarda dos que cientc­
para obter o controle dos organismos estudantis». Impunha-se-nos, mente o desencadeiam. Ainda mais inaceitâ\el que a tardia hesitação
nesta altura. um novo factor decisivo: os sítuacionistas tinham de a respeito duma tão sumária questão láctica era para nós a e\entua­
defender-se dwna recuperatào no noticiáfio jomaHstico ou na moda lidade de algumas destas pessoas tão pouco .seguras umas das outras
intelectual. A brochura acabara por transformar-se num texto da l.S.; virem a fazer declarações em nosso nome. Mustapha Khayati foi
não tínhamos negado ajuda àqueles camaradas com vontade de asses­ então encarregado pela l.S. de informar os membros do secretariado
tarem um golpe no sistema. e esta ajuda, infelizmente, não pudera ser mA.F.G.E.S. que devenam tornar público o facto de nenhum deles
menor. O empenhamento da l.S. atribuira-nos, durante o tempo da ser situacionista. Coisa que eles fizeram no seu comunicado de 29 de
operação, a direcção de jàcto, que de modo algum queriamas prolon­ Novembro [de 1966]: e1Nenhum dos membros do nosso secretariado
gar para além desta limitada acção comum; pouco nos interessa. faz parte da Internacional Situacionista, movimento que publica
como toda a gente pode perceber, o lastimável meio estudantil. desde há algum tempo a revtsta com o mesmo nome: mas declaramo­
Tínhamos simplesmente de agir, neste caso e como sempre, com vista nos inteiramente solidários das suas análises e pmpecthias.» Com
a fazer reaparecer. no supone exclusivo que e uma prática sem con­ base nesta autonomia afinnada. a l.S. enviou então uma carti a André
cessões, a nova critica .social agora em constmuçào. Foi o caracter Scbneider, presidente da A.F.G.E.S.., e a Vayr-Piova, vice-presidente,
inorganizado do grupo de estudantes de Estrasburgo que ao mesmo para afirmar a sua totfil solidanedade com o que tinham feito. Esta
tempo criou a necessidade da inter\'ençào situacionista directa e im­ solidariedade da J.S. manteve-se sempre depois, quer pela nossa
pediu um diálogo ordenado, o ünico que teria podido garantir um recusa imediata de estabelecermos um diálogo com os que tentaram
mínimo de igualdade na decisão O debate que nonnalmentc define abordar-nos mostrando uma certa hostilidade invejosa pelos respoo­
a acção comum entre grupos independentes não tinha realidade sãveis do secretariado (ou tendo até a tolice de denunciar a sua acção
nenhuma no caso dum agrupamento de indl\'íduos que cada vez ma.is junto da I.S. como sendo de natureza «espectaculam!), quer pela
revelavam estar as.saciados na aprovação da l.S. e separados a res-­ ajuda financeira e o apoio público na subsequente repressão {cf. uma
peito do resto. declaração assinada por 79 estudantes de Estrasburgo, no inicio de
É evidente que uma tal carência não constituía para nós uma Abril [de 1967], solidarizand<>-se com Vayr-Piova, excluído da Uni­
recomendação no tocante a todo este grupo de estudantes, na medida versidade, sanção esta revogada meses depois). Schneider e Vayr­
em que ele parecia, mais ou menos, desejar integrar-se na J S., de -Piova mantiveram perante as sanções e as ameaças uma atitude
certo modo para economizar a sua própria afmnaçào. A sua falta de muito firme· mas esta firmeza foi menos e\oidente na sua atitude para
'
homogeneidade surgira também, num grau que não podiamos prever, com a LS.
a respeito duma questão inesperada: vários dentre eles tinham de A repressão judiciária logo encetada em Estrasburgo - prosse­
súbito hesitado perante a distribuição ferina do texto na cerimónia de guida depois com uma série. ainda inacabada, de processos que con­
abertura da Universidade. Khayati tivera de mostrar a estes estudan­ firmam este começo - concentrou-se na pretensa ilegalidade do

242 243
do tribunal de primeira instância. datada de 13 de Dezembro. que
mandava pôr sob sequestro as instalações e a gestão da Associação e
proibia a assembleia geral convocada pelo secretariado para o dia 16,
promovida com o objectivo de nela fazer votar a dissolução da
A.F.G.E.S. Este julgamento, que implicitamente reconhecia (errada­
mente) que a mataria dos estudantes assim impedida de votar podia
aprovar a posição do secretanado, ao suspender a evolução dos acon­
tecimentos obrigou os nossos camaradas - cuja úruca perspectiva
consistia em liquidar desde já a sua própria posição dingente - a
prolongarem a resistência até ao fim de Janeiro. A melhor prática do
secretariado, até então, fora o tratamento reservado a muitos jornalis­
tas que haviam acorrido para solicitar entre\istas, negando-se a falar
com a maioria deles e boicotando de modo insultuoso os que repre­
Banda desenlhada O Regresso da Coluna Durruti sentavam as piores mstitwçôes [fele\isão Francesa. revista Planeie);
•Tais movimeffltOS revolucionários distinguem-se dos outros pelo carácter ilimi­ uma pane da imprensa foi assim levada a transmitir uma versão mais
tado dos seus>objecllvos e das suas promessas ... Seta qual for a sua hlS!óôa exacta do escândalo e a reproduzir menos infielmente os comunica­
individual, eles) representavam colectivamente uma camada social disbnta, uma dos da A.F.G.E.S. Visto que a Universidade optara pelas medidas
intelectlJahda(!,ie frustrada ede segunda ordem •.• Nesta altura constiluiu·se um administrativas, e visto o secretariado m partirus Ôl A.F.G.E.S ter
grupo duma ~e partlc::Ular ". lfTllledOSO eem a>nstante lennentação, obce­
conservado o controle da secção local da Mutualidade Nacional dos
cado por quinfleras apocalípticas e oonvencido da sua própria lnfalibilldade;
este grupo seniba·se muito acima do resto da homanidade, rejeitando qualquer Estudantes, este ripostou. decichndo a 11 de Janeiro (decisão aplicada
outra pretensãlO que não lasse a inerente à sua pretensa missão •.. Aongem logo no dia seguinte) o encerramento do «Serviço de Apoio Psicoló­
deste lanatismfO subterrâneo, segundo parece, reside em promessas milenares gico Univemtário>1 que dela dependia. <<considerando que os
e ilimitadas, ~mídas com uma convicção llímitada e profellea perante um S.A.P.U. são a concretização, no meio estudantil. do controle para­
certo número (Cle homens desenraizados e desesperados, no contexto duma -policial exercido por uma psiquiatria repressiva, cuja clara função
sociedade cuja'S normas e elos tradicionais estão em vias de desintegração
- Norman Co!M, Les Fanatyques de l'Apocalypse
consiste em manter [...] a passividade de todas as categorias de explo­
rados [...], considerando que a existência de um S.A.P.U. em Estrns­
bwgo é uma vergonha e uma ameaça para todos os estudantes desta
secretariado ã.a A.F.G.E.S.. subitamente considerado, desde a publica­ universidade decididos a pensar livremente». No plano nacional, a
ção da brocbt:.Jra situacionista, como um «comité de facto» que teria U.N.E.F., obrigada pela revolta da sua secção esrrasburguesa - tida
usurpado a re'J>resentlçào sindical dos estudantes. Esta repressão era até então como exemplar - a reconhecer a sua falência geral, e
tanto mais ne;cessária quanto a união sagrada dos burgueses. stal~ obviamente sem ir ao cúmulo de deíender as velhas ilusões de liber­
tas e padres, feita contra a A.F.G.E.S. visivelmente dispunha, entre os dade sindical que tão declaradamente as nutoridadcs recusavam, não
18 000 estudànfes da cidade, duma 1<força>> ainda menos imponante podia apesar de tudo dar um aval à exclusão judiciária do secretari­
que a do ~tariado. A repres.são tomou-se declarada com a ordem ado de Estrasburgo. Uma delegação estrasburguesa deslocou·se, por

244 :?45
conseguinte, â assembleia geral da União Nacional, realizada em Três pro\'ocadorcs). Aexclusão daqueles três membros não tinha rela­
Paris a 14 de Janeiro, exigindo logo na sessão de abertura a votação ção nenhuma com o escândalo de Estrasburgo - nisto, como em
prévia da sua moção de dissol11çào de toda a U.N.E.F.. «considerando tudo. tinham eles ostensi\·amente aprovado as conclusões dos debates
que a afirmação da U.N.E.F. como sindicato que congrega a van­ da I.S. -, mas dois deles eram alsacianos. Por outro lado, como
guarda da juventude (Constituição de Grenoble, 1946) comede com dissemos atrás. alguns dos estudantes de Estrasburgo tinham come­
um período em que o sindicalismo operário está desde b.ã muito çado a achar desagradái,el que a LS. não recompensasse as suas
vencido e se tomou um aparelho de auto-regitlaÇão do capitalismo insuficiências recrutando-o:>. Os embusteiros excluídos procuraram
moderno, agindo em prol da integração da classe operária no sistema junto deles um público pouco exigente, julgando poderem tapar com
mercantil (...] considerando que a pretensão vanguardista da U.N.E.F. uma nova inflação de imposturas, neste círculo, as suas mentiras
é constantemente desmentida pelas suas palavras de ordem e a sua antenores, bem como as suas confissões. Deste modo. todos os repe­
prática sub-reformistas [...) considerando que o sindicalismo estudan­ lidos se tmiram na pretensão mística de ultrapassarem a prática que
til é uma impostura pW'll e simples, impõe-se como tarefa urgente os condenava. Começaram a acreditar nos jornais: e até a aumentnr
pôr-lhe fin»>. Esta moção termina..·a apelando «todos os estudantes o que estes dmam. lmagmaram-se massas que tinham mesmo
revolucionários do mundo [...] a prepararem com os ~piorados dos 1<tomado o podem muna espécie de Comuna de Estrasb~ A si
seus países uma luta impiedosa contra todos os aspectos do velho mesmos disseram que não tmham sido tratados como um proletariado
mundo, com vista a contribulrem para o advento do poder internacio­ revolucionário merece. Convenceram-se de que a sua acção histórica
nal dos Conselhos Operários». Como só duas outras associações. a de superara toda a teoria anterior; e esquecendo que a única «<acção»
Nantes e a dos <'Estudantes em Casas de Repouso», votaram com a discernível num incidente deste género era. no máximo, a redacção
de Estrasburgo para que este ponto préVJo fosse apresentado antes da dum texto, compensaram colectivamente com uma inflação de
leitura do relatório de gestão da direcção nacional (convém porém ilusiorusmo a sua deficiência a tal respeito. Não se tratava de nada
notar que nas semanas anteriores os jovens burocratas da U.N.E.F. mrus ambicioso do que sonhar juntos durante umas semanas. aumen­
tinham conseguido derrubar dois outros secretariados espontanea­ tando sempre a droga dos ardis. reiterados com precipitação. A dúzia
mente favoráveis à posição da A.F.G.E.S., em Bordéus e Clermont­ de estudantes de Estrasburgo que efectivamente tinha apoiado o
·Ferrand), a delegação de Estrasburgo abandonou imediatamente um escândalo, dividiu-se em duas partes iguais. O problema suplementar
debate onde nada mais tinha a dizer. agiu portanto como revelador. Aos que se mantiveram 1<partidários da
A saída final do secretariado da A.F.G.E.S. não irá porém mostrar­ l.S.>1, obviamente nada tínhamos a prometer para o futuro, e clara­
-se tão digna. Nesta altura foram excluídos da I.S. três dos seus mente dissemos que o não fazíamos; bastava-lhes ser, incondicional­
membrosª, por terem c"ometido em equipa - e por se terem visto mente, partidários da verdade. Vayr-Piova e outros tornaram-se par­
obrigados a confessá-las perante a l.S. - várias mentiras caluniosas tidários da mentira com os excluídos <<gamautianos» (embora, por
contra Khayati, contando, graças a esta manobra, pô-lo a ele de fora certo, sem terem conhecimento de várias excessivas inépcías nas
(cf. o panfleto da l.S., com data de 3 de Janeiro de 1967, Atenção! invenções recentes de Frey e Gamault, mas a par de muitas delas}.
André Schne1der. cujo apoio os impostores desejavam obter pelo
1
Rcfaincia a !Mo Frcy, Jean G:unault e Hc:rbcrt Hon (todos da secção franccs:i), facto de ser ele o detentor do título de presidente da A.F.G.E.S.,
ttcluldos an 15 de Janeiro de t967 após uma confrontnção com MUSlllpba K.haya.ti ensopado por todos eles com falsas informaçõcs. teve a fraqueza de

246 247
acreditar sem mais exame, assinando unua das suas declarações. Mns como nas manoblls anteriores. viram-se além disso vencidos por tão
poucos dias depois, ao dar-se conta sozinlho de algumas das indiscutí­ tolos como eles. ~talinistas e cristão:, naturalmente mais gulosos de
veis mentiras que estas pessoas achavanu natural e\'ocar entre inicia­ clcitoralismo - e que até se deram ao luxo de denunciar os seus
dos, com vista ao salvamento da sua ifrnca causa, Schneider não deploráveis rivais como «falsos situacionistas». No panfleto A l.S.
duvidou que precisava de afinnar publi<camente o erro do seu pri­ Bem Jós Ttnha Avisado, publicado no dia seguinte, Andre Schneider
meiro impulso. denunciando, com o panlfleto intitÜlado Recordações e os seus camaradas moSlraram facilmente a que ponto esta falhada
da Casa dos Morros, os que o tinham illudido fazendo-o partilhar a tentativa de e:<plotação publicitária dos restas do escândalo ocorrido
responsabilidade dum falso testemunho o:ontra a I.S. A mudança de cinco meses antes se escancarou como a completa renegação do espi·
Schneider, cujo carácter os impostores haviam subestimado e que rito e das perspectivas então afirmadas. Vayr-Piova, nlllll comunicado
fora assim testemunha privilegiada da últ!ima fase duma manipulação difundido a 20 de Abril, declarava, a concluir: <\Acho diverudo ver­
colecLiva dos factos incómodos, atingiu 1definítivamente, em Estras­ -me por fim denlJJlciado como "não situacionista" - coisa que sem·
burgo, os excluídos e seus cúmplices, jiá desacreditados em tod.i a pre proclamei aoortamenle desde que a I.S se mstituiu como força
parte. No seu despeito, os infelizes que tamto haviam dispendido, uma oficial>>. Temos nisto a amostra suficiente duma vasta literatura já
semana antes, para obterem a caução cile Schneider, proclamaram esquecida. Que a LS. se tenha tornado uma força oficial. é uma das
então que a fama dele era a de pobre de e!Spírito e apenas se prostrava teses t.ipicas de Vayr-P10-.a ou Frey, que qualquer pessoa interes.'>ada
ante o <qirestlgio da 1.S.» (cW'Íoso fcnómteno, que se reproduz desde pode examinar, S4•gundo as conclusões que adapte, saberá também o
há tempos com maior frequência. este da! nos mais diversos debates que pensar da inteligência de semelhantes teóricos. Ao lado disto,
o «prestigio da I SJ> ser inabilmcnte idlentificado, por impostores, porém, o facto d~ Vayr-Piova proclamar - «abertamente», ou se
com o simples facto da dizer a verdode:; amálgama esta que sem calhar «secretamente>>, numa 1<proclamaçào» reservada, por exemplo,
dú\ida nos honra). De resto, mal tinham passado três meses, a as.so­ aos mais discreto cumpUces das suas mentiras? - que desde então
ciaçào de Frey e consones com Vayr-Piowa mais todos quantos acei­ não faz parte da l.S., seja qual for a data que ponha nisto, o dia da
tavam apoiá-los, após uma adesão avidamtente requerida (chegaram a nossa transformaç-ào em «força oficial» é exactamente uma me11rira
8 ou 9), leve também de exibir a sua trriste realidade; baseada em manifesta. Todos os que o conhecem sabem que Va}T·Piova nu11ca
mentiras infantis d~ individuas que rcciiprocamente se consideram teve oportunidadl" de se declarar outra coisa exceplo l!não situacio­
inábeis aldrabões. foi a demonstração exacta, involuntanamente nista>) (cf. o que atrâs notámos sobre o comunicado da A.F.G.E.S.
paródica. dum género de «acção colectiw:m que em caso algum se com data de 29-U-66).
deve cometer: e com pes.'ioas que nem po1r sombras convém frcquen· Bem entendid40, os mais propicias resultados deste conjunto de
tar! Vnno-los levarem a cabo, todos juntms, uma irrisória campanha incidentes estão ~ara além deste novo exemplo, oportunamente muito
eleitoral junto dos estudantes de Estrasmurgo. Uns pedantes restos sublinhado. da nossa recusa de recrutarmos tudo o que o
dumas pseudolembranças de ideias e f!Tases sitWlcionistas foram neomilitantismo em busca de subordinação gloriosa pode pôr no
assim utilizados, em dez.enas de pãginas e numa total inconsciência nosso carrunho. 'SobeJa importância terá o resultado que assinalou a
do ridicu!o, com o único fun de mantctrem o «poder» na tecção decomposição imemediâvel da U N E.F., ainda mais desfeita do que
eslrasburguesa da M.N.E.F.. coutada IIllicro-burocrática de Vayr· a sua lastimosa fllpan!ncia induzi~ o golpe de misericórdia resso:iva
-Piava, reelegível a 13 di.: Abril [de 196i7]. Tão ditosos neste caso ainda t:m Julho, em Lião, no ~eu 56.º Congresso, quando o tris1e
248 2·19
presidente \ánd b ·
en une te\'e de confes<;ar: «A unidade da U.N.E.F. descurann.o:. por completo a utilidadl! que a difusão de certas \..:tda­
acabou há muito Cada , · • .
· assoc1açao \'tve (nora da l.S.: este tenno des sumãrias pô<k ter para acelerar muito Ligeiramente o movimento
mantém-se prctensios.,... 1 - d .
. uuaen e ma cquado) de fonna autonoma, sem se que conduz a juventude retardatária francesa à tomada de consciência
refenr de maneira enh à •
. n uma s palavras de ordem do secretariado duma próllÍ.ma crise social mais ampla. cremos ser atribuível uma
nacional O de
. • · . . seqw'líb ·
t no crescente entre a base e os organismos da importância muito mais clara à difusão deste texto. como factor de
~ça? atmgiu um estado de degradação importanté. A história das clarificação, nalguns outros paises onde o processo já se encontra
1115tancias• da U·N·E·F· na·o passa duma sequencia
• · de cnses· [- .] bastante mais manifesto. Escreveram os situacionistas ingleses na
A reo~çào e o relançamento da acção não foram possfveis>1. apresentação da sua edição do texto de Khayati: <<A mais elevada
I~al COlll.lctdade possuem os turbilhões registados entre os universi­ critica da vida moderna surgiu num dos menos desenvolvido · dentre
tários que se viram no de d • . ul . .
. ver e por a erre ar mais uns abatXo­ os países modernos, num pais que não atingiu ainda o ponto em que
-ass~dos sobre este fenómeno da actualidade; é fácil perceber que a desintegração completa de lodos os valores se torna patente e óbvia,
considerámos · ló · .
. mais gica e socialmente mais racional (como aliás os engendrando as correspondent~ forças de rejeição social. No con­
considerandos da t d . . .
. . sen ença o JUJZ Llabador) 1 a posição dada a texto francês, a teoria situacionista constituiu uma antecipação das
pubbco pelos oprofessores e assistentes da Faculdade de Letras de
4
Estrasburgo denun · d fi . . forças sociais que deverão levar a cabo essa desintegração.» As teses
• .• . c1an o os a1sos estudantes na ongem desta 'cagi­ da Miséria no Meio Estudantil foram muito mais efectivamente en­
taçao em crr~utto fechado», em torno de falsos problemas «sem som­
bra de soluçao» do q dul d . _ . tendidas nos Estados Unidos ou na Inglaterra (em Março [de 1967]),
• ue a a a ora tema1tva de aprovaçao mcompe­ a greve da London Scbool of Economics causou uma certa impres­
tent e que em Fev · li .
. . ere1ro 1zeram cucular uns quantos restos são, descobrindo o comenta.dor do Times, com tnstei.a, um regresso
modenustas-msf · ·
• llUcionaJ1stas agrupados à volta duma magra côdea a da luta de classes, que ele julgava já não existir). O mesmo acontece,
roer nas catedra.s d C" ·
. e '' 1enc1as Humanas» de Nanterre (o destemido em menor grau, na Holanda - onde a critica da l.S., coincidindo
Tourame, ~ leal Lefebvre, o pró-<:hinês Baudrillard. o subtil Lourau}.
Na realidade 0 u d • . com uma critica mais cruel exercida pelos próprios acontecimentos,
. • • q e pre1en emos é que as 1de1as voltem a ser teve algum efeito na recente dissolução do movimento «Provo» - e
pengosa.~. Nao pod • ,,__
erao U4I·SC ao 1uxo de nos suportarem entre a nos países escandinavos. As lulas dos estudantes de Berlim Ocidt:~tal
massa mole do fi ·d · •. '
ng1 o tnteresse eclettco, como uns Sartre, uns ocorridas este ano também retiveram alguma coisa desta críllca,
AJ~usser, ~ Aragon, uns Godard qua1squer. Registemos a frase embora ainda com um sentido muito confuso.
~eia de sentJdo dum professor universitário chamado Lhuillier, noti­ Mas, obviamente, a juventude revolucionária não dispõe de ou~a
cada pelo Nouvef Ob.servateur de 21-12-66: «Eu sou pela liberdade
de pensamento Mas se há ·1 • . via que não seja a fusão com a massa dos trabalhadores, que, a parUr
· st uac1orustas nesta sala, que saiam.» Sem da experiência das novas condições de exploração, vão retomar a luta
pelo domínio do seu próprio mundo, pela supressão do trnb~l~o.
'A sentença do til:'"'"-'- 'bli •-·' aos cinco
- . - pu co, l'Cwu\'I . responsáveis do sccmnriado da Quando a juventude começa a conhecer a presente forma teonca
A.F.G.E.S., era bastante lúcida·""'""'-- . deste movimento real, que espontaneamente ressurge, por todo o
,,_,. · '"VUUQYVHS por 1emn ulil11J1do ~ fundos da wociaçio
CSIUu.&ml1 para lllllndan:m • · · ·
. 11 djfi • imprurur milhares de brochuras de inspiração si~ionista, lado do solo da sociedade moderna, isso não passa de um momento
aJJa «amp
e bem .
Usao [...] rq>rcsenta uma ameaça à mora.li.1• .1..
nM-;_
-·-'-· à
........., IOS QWUU>,
­
rcputnçao no ~minho através do qual esta critica teórica unificada. que se
assun ao ,.....,,. iu futuro dos estudantes da Univa-sidadc de Estrasburgo,.
identifica com uma unificação prática adequada, trata de romper o
250
251
silêncio e a organização geral da separação. É unicamente neste sen­
produção mercantil, nada no mundo escapa ao desenvolvimento
tido que achamos o resultado satisfatório. Excluímos desta juventude,
implacável deste neo-fatum 1 que é a invislvel racionalidade econó­
como e e\'Ídente, a fracção alienada aos semiprivilégios da fonnação
1D1ca: a lógica da m~rcadoria. Totalitária e imperialista por essência,
univers1tána. onde se encontra a base natural pronta a um consumo
estl reclama como terreno de acção o planeta inteiro e como seni­
admirativo duma suposta teoria situacionista sinónimo de última
dores os homens na sua totalidade. Onde houver mercadoria. só pode
moda espectacuJar. Ainda não deixámos de decepciônar e desmentir
haver escravos.
este género de aprovação. Há-de ver-se, e bem, que a I.S. não deve
ser julgada pelos aspectos superficialmente escandalosos de certas
2
marufestações em que surge, mas pela ~ verdade central, essencial­
mente escandalosa. À coerência opressiva duma classe particular com vista a manter
a humamdade na pré-hi<ttona, o movimento revolucionário - pro­
1S.a • 11,0urubrodc 1967 duto directo e involuntáno da dominação capitalista burguesa - opôs
desde há mais de um século o projecto duma coerência libertadora,
obra de todos e de cada qual, a intervenção livre e consciente na
criação da HisJária: a abolição real de toda a divisão em classes e a
supressão da Economia.

3
Contribuições para rectificar a opinião

Onde quer que tenha penetrado - ou seja, quase em todo o lado


do público a respeito da revolução
no mundo inteiro - o vírus da mercadoria altera sem cessar as
nos países subdesenvolvidos
fonnações socioecon6micas mais esclerosadas, levando milhões de
seres humanos a descobrir na miséria e na violência o tempo his­
tórico da economia. Onde quer que penetre, propaga o seu princlp10
destruidor, dissolve os vestígios do passado e leva ao extremo todos
O papel eminentemente revolucionário da burguesia consistiu cm os antagonismos. Apressa. em suma. a revolução sOCJal. Todas as
ter introduzido a economia na História, de modo decisivo e irrever­ muralhas da China desabam à sua passagem, e mal se instala na
sível. Detentora fiel desta economia, ela é, desde que surgiu, a deten­ Índia tudo em seu redor se dissolve, eclodindo revoluções agrárias
tora efectiva - embora por vezes inconsciente - da «História Uni­ em Bombaim, no Bengala e em Madrasta: as zonas pre-capitalistas
versal». Pela primeira vez, esta deixou de ser um fantasma metafisico do mundo acedem à modcrrudade burguesa, mas sem a base mate­
ou um acto do T~/1gcis1 1 para se tomar um facto maJerial, tão con­ rial desta última. Tal como no caso do proletariado, também aqui as
creto como a existência trivial de cada indivíduo. Desde o advento da forças que a burguesia contribuiu para libertar, ou até para criar,
vão agora virar-se contra ela e contra os seus servidores autóctones:
' Espirilll do mundo.
1
Nova fa1.11Jidade.
252
253
a re\'olução dos subdesenvolvidos torna-se um do principais capj. 6
tulos da história moderna. Sejam quais forem as forças que neles tenham participado. e seja
qual for o radicalismo das suas direcções pohticas, os movimentos de
4
libertação nacional 1iveram sempre como resultado o acesso das
Se o problema da revolução nos países subdesenvolvidos se põe sociedades ex-colonizadas a fonnas modm1as do Estado e a preten­
de modo particular, isto deve-se ao próprio de~envolvimento da sões à modernidade na economia. Na China, imago pater dos revo­
História. Foi porque nestes países o atraso económico geral _ lucionários subdesenvolvidos. a luta dos camponeses contra o impe­
mantido pela dominação colonial e pelas camadas que a susten­ rialismo norte-americano, europeu e japonês, lendo em conta a
tam -, bem como o subdesenvolvimento das forças produtivas, derrota do moVlillento operário chines nos anos de 1925-1927, aca­
impediram o desenvolvimento de formações socioeconómicas que bou por instalar no poder uma burocracia talhada segundo o modelo
deveriam tomar imediatamente exequível a teoria re\0Juc1onária, ela­ russo. O dogmatismo stalino-lerumsta com que doira a sua ideologia
borada. desde há mais de um século, a partir das sociedades capita­ - recentemente reduzida ao catecismo vermelho de Mao - não
listas avançadas. A totalidade destes países, na altura em que entram passa da mentira e, no melhor dos casos, da falsa consciência que
em luta, ignoram a grande indústria, estando o proletanado longe de acompanham a sua prática contra-revolucionária.
ser ai a classe maioritária. É o carnpesinato pobre que assume esta
função.
7
O fanonismo 1 e o castro-guevarismo são a falsa consciência atra­
\ és da qual o campesinato realiza a imensa tarefa de livrar a socie­
5
dade pfé...capitalista das suas sequelas semifeudais e coloniais e de
Os diversos movimentos de libertação nacional surgiram muito aceder à dignidade nacional espezinhada pelos colonos e classes
depois da derrota do movimento operário, consecutiva à derrota da dominantes retrógradas. O ben-belJismo, o nasserismo, o titismo ou o
revolução russa, transformada logo no seu inicio em contra-revolução maoísmo são as ideologias que anunciam o fim destes movimentos e
ao serviço duma burocracia pretensamente comunista. Esses movi­ a sua apropriação privada pelas camadas urbanas pequeno-burguesas
mentos ficaram pois sujeitos, quer conscientemente, quer por via ou militares; que anunciam a recomposição da sociedade de e.1;plora­
duma falsa consciência, a todos os defeitos e fraquezas desta contra­ ção, mas desta vez com novos donos e senhores e assentes em novas
-revolução generaliz.ada, não podendo ultrapassar, por força do atraso estruturas socioeconórrucas Em toda a parte onde o campesinato
geral, nenhum do limites impostos ao movimento revolucionário
vencido E foi justamente por causa da derrota deste último que os 1
Refcrénciu1 Frantz Fanon (1925-1961), psicanalista n:iscido na M:utuuca Faoon
países colonizados ou semicolonizados tiveram de combater sozinhos põe cm prática 03 Argélia técnicus de terapia soci:il, cscm'Crldo a partir de5Sa) im'CSti­
o imperialismo. Mas combatendo-o só a ele, apenas numa parte do gaçócs um grande niimcro de artigos e ensiios, na sequencia de Ptfe Krsra Mfucarm
terreno revolucionário total, só o desalojaram parcialmente. Os regi­ Brancm. de 1952, livro cm que analisn o compawncnto nenótico do coloniz.ado. Par­
mes opressivos que se instalaram em todo o lado onde a revolução de llcipa nctivamentc nas luw pela indc:pendeneia da Argélia (é um dos nn~ do
E/ Moru/jtvwl cbndcsuno), sendo dcpots embaixador cm Áliica do Governo Provisório
libertação nacional julgou triunfar, constituem simplesmente uma das
mgclino O seu IÍ\.io mais cêldm:, Os CondtnadoJ da Tmu. cxc:n:cu grande mfluCnc:ra
formas em que se opera o regresso do recalcado. na 101elcc1ualidad do Terceiro Mundo.
254
255
lutou vitoriosamente, pondo no poder as camadas que enquadraram e 9
dirigiram a sua luta, foi ele o primeiro a suportar as suas violências Nas revoluções burocrático-camponesas, só a burocracia visa
e a pagar os enormes custos da sua dominação. A burocracia consciente e lucidamente o poder. A tomada do poder corresponde ao
moderna. tal como a mais antiga (na China, por exemplo). edifica o momento histórico em que a burocracia se apodera do Estado e
seu poder e prosperidade com base na sobreexploração dos campone­ declara a sua independência perante as massas revolucionárias, antes
ses: a ideologia nada altera nisto. Na China ou em Cuba, no Egipto mesmo da eliminação das sequelas coloruais e antes de ser efectiva­
ou na Argélia. a burocracia exerce o mesmo papel e assume as mes­ menre independente do estrangeiro. Ao entrar no Estado, a nova
mas funções. classe refugia-se na beteronimia mi11tante, opondo-se a toda a auto­
nomia das massas. Proprietária exclusiva da sociedade, declara-se
8 única representante dos seus interesses superiores. O Estado burocrá­
No processo de acwnulaçào do capital, a burocracia é a realiza­ tico é nisto o Estado hegeliano realizado. A sua separação da socie­
ção daquilo de q11t. a burguesia era ape11as o conceito. O que a dade consagra ao mesmo tempo a separação em classes antagórucas:
burguesia fez durante séculos l!DO sangue e na lama». a burocracia a união momentânea da burocracia e do campesinato é apenas a
quer realizá-lo consciente e «racionalmente» em algumas décadas. fantástica ilusão com base na qual ambas realizam as imensas tarefas
Mas a burocracia não pode acumuJar o capítal sem acumular as históricas da burguesia decaída. O poder burocrático edificado sobre
imposturas: o que constituía o pecado original da riqueza capitalista as rufnas da sociedade colonial pre-capitaltsta não constitui a aboli­
é sinistramente baptizado «acumulação primitiva socialista>>. Tudo o ção dos antagorusmos de classes; às antigas classes apenas substitui
que as bW"OCracias subdescmolvidas dizem. concebem e imaginam novas classes, novas condições de opressão e novas formas de luta.
que é o socialismo, não passa, na realidade. do neomercantilismo
acabado. 110 Estado burguês cm burguesia» (Lénin) não pode ultra­ 10
passar as tarefas histórica5 da burguesia; e o pais industrial mais Só é subdesenvolvido aquele que reconhece o valor positivo do
desenvolvido mostra ao pais menos desenvol\ido a imagem do seu poder dos seus senhores. A corrida para se chegar à reificação capi­
próprio desenvolvimento futuro. A burocracia bolchevique no poder talista continua a ser a melhor via para o subdesenvolvimento refor­
não tinha nada de melhor a propor ao proletariado revolucionário çado. A questão do desenvolvimento económico é inseparável da
russo do que «seguir a escola do capitalismo de Estado alemão». questão do propnetáno verídico da economia, do real dono e senhor
Todos estes poderes pretensamente socialistas são, no máximo. uma da força de trabalho; o resto não passa de palavreado de especialistas.
imitação subdesenvoh1da da burocracia que dominou e venceu o
movimento revolucionáno na Europa. O que a burocracia pode ou é 11
obrigada a fazer não emancipará a massa dos trabalhadores, nem Até aqui, de diversas maneiras, as revoluções dos países subdesen­
melhorará substancialmente a sua condição social. porque isto não volvidos apenas tentaram imitar o bolchevismo; trata-se doravante de
depende apenas das forças produtivas, depende da sua apropriação o dissolver no Poder dos Sovietes.
pelos produtores. O que ela todavia não deixará de f~ é criar as
condições materiais para realizar ambas as coisas. Ora terá a burgue-­ MUSTAPHA KHAYATI
sia feito menos? I S. n • 11, Outubro de 1967

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O começo duma época questão de vida ou de morte. Enumeremos porém, desde já. as ind<>­
les do movimento das ocupações no seu lugar central, onde se mos­
trou mais livre para traduzir, em palavras e actos, o seu conteúdo.
«Viveremos nó:s bastante para ver uma rerolução po!ítica? nós, os Nesse lugar proclamou os seus objectivos muito mais explicitamente
contemporâneo~ destes alemães? Meu amigo, vocé·aeredita naquilo que qualquer outro espontâneo movimento revolucionário da Histó­
que deseja» - escrevia Arnold Ruge a Marx, em Março de 1844; e ria: objectivos esses muito mais radicais e presentes do que os enun­
quatro anos depois a revolução lá estava Como exemplo divertido ciados, nos seus programas, pelas organizações revolucionárias do
duma inconsciência histórica que produúntemporalmente os mesmos passado. mesmo nos seus melhores momentos.
efeitos, sustentada com maior substância por causas similares, a infe­
liz frase de Ruge foi citada em epígrafe n'A Sociedade do Espectá­ O movimento das ocupações foi o súbito retomo do proletanado
culo. livro publicado em Dezembro de 1967: seis meses depois acon­ como classe histórica, alargado a uma maiona dos assalariados da
teceu o movimento das ocupações, o maior moHmento sociedade moderna e tendendo sempre à abolição efectiva das classes
revoluc1on.ário que houve em França desde a Comuna de Paris. e do salariato. Este movimento representou a redescoberta da bistóna,
ao mesmo tempo colectiva e individual, tomou patente o senbdo da
A maior greve geral que paralisou a economia dum país industrial intervenção possível sobre a lustona e do acontecimento irre\ersivcl.
avançado, a primeira greve geral e sefragem da História; as ocupa­ com a percepção de que ((nada eria como dantesn: as pessoas enca­
ções revolucionárias e os esboços de democracia directa. o apaga­ ravam, divertidas, a existência ~tranlra que levavam oito dias antes.
mento cada vez mais completo do poder estatal durante quase duas aquela sua sobrevivência ultrapassada. Era a critica gcnerali::ada de
semanas; a verificação de toda a teoria revolucionária do nosso todas as alienações, de todas as ideologias e do conjunto da antiga
tempo, e até, aqui e ali, o começo da sua realização parcial; a mais organização da ..;da real a paixão da generalização e da unificação.
importante experiência do movimento proletário moderno em vias de Num tal processo, a propriedade foi negada. vendo-se cada pessoa
se constituir em todos os países na sua forma acabada bem como 0 em casa fosse onde fosse O desejo desconhecido do diálogo, da
modelo que este doravante tem de superar - eis o que essencial­ palavra integralmente livre. o apreço pela comunidade verdadeira,
mente foi o movimento francês de Maio de 1968, sendo esta desde tinham encontrado o seu terreno nos ediílc1os abertos aos encontros
já a sua VJtóna. e na luta comum: os telefones, que figuraram entre os raro~ meios
técmcos ainda cm funcionamento, e as andanças erráticas de tantos
Maís adiante abordaremos as fraquez.as e as falhas do movimento, emissârios e viajantes, cm Paris e pelo pais fora, entre as instalações
naturais consequências da ignorância e da improvisação, bem como ocupadas. as fábricas e as assembleias, mostravam o emprego real da
do peso morto do passado, mesmo onde o movimento pôde afirmar­ comunicação. O movimento das ocupações foi evidentemente a rejei­
-se da melhor mane~ consequências, sobretudo, das separações que ção do trabalho alienado: e foi por isso a festa, o jogo. a presença real
conseguiram defender, à justa, todas as forças congregadas para a dos homens e do tempo. Foi igualmente a rejeição de qualquer auto­
manutenção da ordem capitalista. tendo-se os enquadramentos buro­ ridade e espec1alizaçào, de qualquer desapossamento hierárquico: foi
cráticos político-sindicais dedicado a essa tarefa melhor do que a a rejeição do Estado e, por isso mesmo, dos partidos e sindicatos,
polícia na altura em que o conflito se tomou, para o sistema, uma bem como do sociólogos e do) professores, da moral repressi\a e da
259
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medicina. Todos quantos o mo\imento, num encadeamento fulmi­ do ultramodernismo servil da sociedade espectacuJar: porque nin­
nante 1(Depressa>1, dizia apenas tal\'cz um dos mais belos lemas guém, entre os que vfreram este movimento, poderá dizer que ele não
escritos nas paredes -, tinha despertado, desprezavam radicalmente continha tudo o que aqui registamos.
as suas antigas condições de existência, desprezando po~ isso os mdi­
viduos que tinham trabalhado para nisso os manterem; desde as ve­ Escrevíamos nós, em Março de 1966, no n.• 10 da lntemationale
detas da televisão aos urbanistas. Conforme as ilusõc stalinistas de Situationniste: <(Aquilo que em várias das nossas asserções parece
muitos deles se iam dilacerando, nas suas formas diversamente ousado, são coisas que enunciamos com a certeza de as vermos con­
adoçadas, de Castro a Sartre. iam também caindo em ruínas as rivais firmadas por uma demonstração histórica de inegãvel peso » Não
e solidárias imposturas de toda uma época. A solidariedade interna­ podlamos ter sido mais eloquenres.
cional ressurgiu espontaneamente. lançando-se para a luta em grande
número os trabalhadores estrangeiros e acorrendo a França muitos Naturalmente, nada únhamos profetizado. Disséramos o que
revoluCJonários da Europa. A imponância da participação das mulhe­ estava preseme: as condições materiais duma nova sociedade tinham
res em todas as formas de luta foi um sinal decisivo da profundidade desde há muito sido produzidas, a \elha sociedade mantivera-se em
revolucionária do moVllllento das ocupações. A libertação dos costu­ toda a parte modernizando consideravelmente a sua opressão, e.. ao
mes deu um grande pac;so O movimento foi também a critica, ainda desenvolver as suas contradições com uma abundância cada vez
parcialmente ilusória, da mercadoria (no seu mcpto disfarce socioló­ maior o moVIJilento proletário vencido voltava para um segundo
gico de c<SOCiedade do consumo»), e foi jâ uma n:jeíção da arte, a.ssall~, mais consciente e total Bem entendido, tudo isto que a His­
rejeição esta que ainda não se afirmara como negação histórica tória e o presente mostravam com evidência, muitos o pensavam e
(embora na pobre fórmula abstracta de tümaginaçào ao podem, sem alguns ate o diziam. mas abstractamente. e por isso no v~o, _sem
meios para pôr em pratica este poder de tudo reinventar, e que, por eco, sem possibilidade de intervenção. O mérito dos s1tuac1onistas
falta de poder, mostrou falta de imaginação). O ódio afirmado em consistiu simplesmente em reconhecer e designar os novos pontos de
toda a parte pelos recuperadorr:s amda não possuía o saber teórico­ aplicação da revolta na sociedade moderna (pontos estes qu~ não
-prático de como eliminar os neo-artistas e neodirectores políticos, os excluem os antigos, mas, pelo contrário, os repõem): urbamsmo,
neo-espectadores do próprio movimento que os desmentia Se a cri­ espectáculo, ideologia. etc. Na medida em que esta tarefa foi reali­
tica em actos do espectâculo da não-vida não pode chegar à sua zada radicalmente, pôde por vezes suscitar, e em todo o caso reforçou
superação revolucionária, foi porque a tendência «espontaneamente grandemente, certas circunstâncias de revolta prática. Esta não per­
canselhista>> do levantamento de Maio se mostrou desfasada em rela­ deu eco, porque a crítica sem concessõe.s tivera muito poucos por­
ção a todos os meios concretos, entre os quais a consciência teórica tadores nos esquerdismos da época precedente. Se muitas pessoas
e organizativa que hão-de permitir-lhe traduzir-se em poder, sendo fizeram aquilo que nós escrevemos, foi por lermos registado essencial­
ela o único poder. mente 0 negativo vivido por tantos outros antes de nós e também por
nós mesmos. O que assim alcançou a consciencia. na Primavera ~e
Escarremos de passagem nos comentários redutores e aviltantes e 1968, foi simplesmente o que estava adormecido na noite da «socie­
nos falsos testemunhos dos sociólogos. dos reformado · do marxismo dade espectacularn, cujas Feiras e Circos alardeavam apenas um
e de todos os doutrinários do velho ultra-esquerdismo em conserva ou eterno cenário positivo Quanto a n6s, «coabitáramos com o nega­

260 261
des do velho nundo que pareceram ilusões fantasmáticas sumindo-se
à luz do dia. Muito simplesmente, após trinta anos de miséria. que na
história das rtVoluções não contaram mais do que um mês, chegou
este Maio que em si resume trinta ano .

TransfonnZ' os nossos desejos em reahdade é um trabalho histó­


rico preciso. ruictamente oposto ao da prostituição intelectual que
enxerta, em o.ialquer realidade existente, as suas ilusões de penna­
nência. É o mo. por exemplo. do Lefebvre já citado no número
anterior desta revista (Outubro de 1967), aventurando-se no c:eu livro
Posu;ões Con:ra os Tec11ocratru (Gonthier) para chegar a uma con­
clusão categórica cuja pretensão científica não durou seis meses: «Os
A Sort>onne ocupada situacionistas [...] não propõem uma utopia concreta. propõem uma
•Assembleias populares absolutamente livres no Interior das universidades, ao utopia abstrac:a. Imaginam ele· que um belo dia as pessoas vão pôr­
me:""° tempo que na rua prossegue o reino ilimitado de Trêpov: eis um dos -se a olhar wnas paro as outras e dizer ~Basta! Já chega de labor e
l1laiS espantosos paradoxos da evolu<;a.o política erevolucionana no Outono de tédio! Acabemo com isto!", entrando assim na Festa Imortal, na
1905. ..• -O povo· enchia os corredores, os anfiteatros e as salas. Os operános criação das situações? O que aconteceu uma vez. na madrugada de
acomam d1rectamente da fábrica à universidade.As autondades tinham perdido
18 de Março Je 1871, foi uma conjuntura que não voltará a ocorren•
a ~· ... Não era porém Qualquer doutnna que esta multidão 1nsp1rada
absoMa. '.arfamos gostado de ver discursar cllante dela esses espertalhões Deste jeito, Lefebvre via ser-lhe atribuída uma certa influência inte­
reacdonános que afirmam não haver a mínima solídanedade entre os partidos lectual quando apenas copiava sub-repticiamente algumas teses radi­
extremi.stas e as massas. Mas não se atreveram. Ficaram melldos nas suas cais da T.S. (ver a reedição do nosso panfleto de 1963, Para o caixote
tocas, a espera duma trégua para caluniarem o passado.• - Trotsky, 1905 do li:co da História{) 1, relegando paro o passado a verdade duma

tivo», segundo o programa que em 1962 havíamos formulado


1 Em 1963, no último número da ~ísta hgumrnts, que trignor.l\'!I» a l.S. ao ponto
(cf. «Geopolillca da hibernação», p. 85) E se referimos estes nossos
de nunca a citar, apesar de se scrvir dela, Henri Lefebvrc pubhcou um texto sobre a
«méritos», não é para nos. aplaudirem. é tão-só para esclarecer. tanto Comuna de Pans retomando os 1CJllaS dcsc:nvolvidO'l pelos silllaciomsru num ensaio
quanto possJvel, outros que irdo agir do mesmo modo. imítubdo teTeses sm a CunUDall, cm que estes expunham a pcrspcctivn da revolução
Todos os que fechavam os olhos a esta «critica em pleno combate» como uma festa, resultante da espontaneidade popular. Em rcspostl ao plágio, • l.S
só podiam contemplar, na força inabalável da dominação moderna a difundiu nessa atllll'll o citndo p:mflcto, dcnuncmndo o crcspc1tá\'CI ~ Lcfcbm
# • • • 1
e 1 cumplícid:lde acU\'I da Argumcnb. Em 1969, no n.• 12 da /.S. como comcnláno i
sua propna rcnunCJa. O seu «realismo» anti-utópico não era sinónimo
famJ de pcmador angina) de que Lcfcbvn: passara a gDZllf na impn:nSll na 5equéncia de
de realidade, da mesma maneira que wna esquadra da policia ou a Maio 68, a l.S. rt:produziu emfac-s1mUt cs'lt panfleto. Com efeito, um li\10 de Lcfebvrc
Sorbonne não são mais reais que este mesmos edific1os mcendiados editado cm 1965. la Prodama11on dt (a Commrme, passara a ser apn:scntado como a
ou ocupados. Quando os fantasmas subterráneos da revolução total se obra que mais teria inlluc:ncindo os cstud.:mtes em revolta, a partir, juswncnu:, da noção
ergueram. estendendo a sua força por todo o país, foram as autorida­ da ra-oluçào corno lê:sta_ !louve entre Lcfcbm: e os s1IU3Ciooistas tnílu~nci:ls mutu.u,

262 2b3
r.

critica que na realidade provinha mais do presente do que da reflexão


historicista do nosso autor. Alertava os seus leitores para a ilusão de
uma luta presente poder voltar a deparar com lals resultados. Não se
julgue que Henri Lefebm: é o único pensador que os actos ridicula­
'

escrevendo, a respeito da meia dúzia de doidos situacionistas, autores


do escândalo de Estrasburgo. que estes depositavam «uma confiança
messiânica na capacidade revolucionária das massas e na sua aptidão
à liberdade». Hoje. bem entendido, a aptidão à liberdade de Frédéric
rizaram definitivamente; os que evitavam ter expressõei tão cómicas Gaussen não progrediu um milímetro, mas cá o temos de novo, no
como as suas pensavam da mesma maneira Sob aquela sua emoção mesmo jornal, a 29 de Janeiro de 1969, penurbadlssimo ao deparar
sentida em Maio, todos os investigadores do nada historico admiti­ por todo o lado com «o sentimento de que o sopro revolucionário é
ram mnguém ter previsto o que acontecera. Convém todavia registar­ universal». «Alunos do ensino secWldáriO em Roma, estudantes uni­
mos à parte todas as seitas de «bolcheviques ressuscitados», a res­ versitários em Berlim. «revoltosos" em Madrid, "órfãos" de Lénin em
peito das quais é justo dizer-se que durante os últimos cnnta anos Praga, contestatários em Belgrado, todos se lançam ao ataque do
Jamais tinham cessado de prever a iminência da revolução de J917. mesmo mtmdo, o \'t":lho Mundo...» E Gaussen, empregando quase as
Mas também estes se enganaram, e muito: aquilo não era 1917 e eles mesmas palavras de antes, atribui agora a todas estas multidões rever
nem sequer eram precisamente Lénin. Quanto aos restos do velho lucionárias a mesma <1crença quase mística na espontaneidade cria­
ultra-esquerdismo não trotskista, estes precisavam, pelo menos, duma dora das massa5)>.
crise económica de grande envergadura. Subordinavam todo e qual­ Não queremos estender-nos triunfalmente sobre os destroços de
quer momento revolucionário ao regresso desta crise; e não lhes todos os nossos advrnários intelectuais; não é porque este «triunfo»,
cheirava a nada. Agora que reconheceram a existência duma crise na realidade simplesmente o triunfo do movimento revolucionário
revolucionária em Maio, precisam de provar que nela esta\'3 presente, moderno, não tenha um significado importante, é por causa da mono­
durante a Primavera de 68, a tal crise económica invisível. A isso se tonia do assunto e da estrepitosa evidência da sentença pronunciada
aplicam sem medo do ridículo, produzindo esquemas sobre o sobre todo o periodo que culminou em Maio: o reaparecimento da
aumento do desemprego e dos preços. Deste modo, para eles a crise luta de classes directa, o reconhectmento de objectivos revolucioná­
económica dehou de ser a realidade objectiva, terrivelmente visível, nos act11ais. o ressurgimento da História (antes, era a subversão da
tão descrita e vJvida até 1929, transfonnandcrse numa espécie de sociedade existente que parecia inverosímil; agora é a sua manuten­
presença eucartst:Jca que lhes vai sustentando a religião. ção). Em vez de sublinharmos o que jã foi verificado, o mais impor­
tante, a partrr daqui, reside em enunciar os novos problemas; criticar
Da mesma maneira que seria necessário reeditar toda a colecção o molimento de Maio e inaugurar a prática da nova época.
da I.S. para mostrar a que ponto estas pessoas se enganaram antes,
seria também necessário escrever um grosso volume para percorrer as Em todos os outros países, a busca recente, de resto até agora
parvoíces e as meias confissões que desde Maio produziram. confusa. duma critica radical do capitalismo moderno (privado ou
Limitemcrnos a citar o pitoresco jornalista Gaussen, que julgava burocrático) não tinha ainda saído da base estreita que ela adquirira
poder sossegar os leitores do Le Monde, a 9 de Dezembro de 1966, num sector do meio estudantil. Bem pelo contrário, e apesar do que
simulam crer o governo e os jornais, bem como os ideólogos da
mas este exemplo é rcvcJadorcb CICllSUl1 esptdali:;:ada c:xcn:id3 ~ a l.S pelos comcn· sociologia modernista, o mo~'imenlo de Maio 11ão foi um movimento
tmUm:s profisslOllAIS. de estudantes. Foi um movimento revolucionário proletário, ressur­

264 265
gido de mi.:io 56..lllo ele esmagamento. e. normalmente, de.sapos:iadu mente a actividadi.: dos primeiros). tt.'f dado ocmiào de de.,envolver
de tudo; o eu desgraçado paradoxo consistiu em so poder falar e formas de luta dírecta pelas quais o descontentamento dos operários,
ganhar figura. de modo concreto. no terreno eminentemente desfa\o­ obretudo o dos jovens, já tinha optado nos primeiros meses de 1968
rãvel duma revoha de estudantes: nas ruas de que _se. apoderaram os (em Caen e Redon, por exemplo). não foi uma circunstância nada
amotinados do Bairro Latino em Paris e nos cdíficios ocupados nesta fundamental; esta, aliás. em nada podia prejudicar o movimento.
zona, em geral dependentes da Educação Nacional. Em vez de per­ Nocivo foi que a greve, lançada como greve ~e/mgem, contra todas
dennos tempo com a paródia histórica, efecfüamente ridícula, dos as vontades e manobras dos smdicatos, tenha depois sido controlada
estudantes leninistas ou stalinistas pró-chineses que se disfarçavam pelos smdLcatos. Estes aceitaram a greve que não tinham co11seguido
de proletános e se viam, do mesmo passo. como vanguarda dirigente evitar, segundo a prática habitual de qualquer sindicato perante uma
do proletanado, o que convém retermos. pelo contrário. é que a frac­ greve selvagem. com a diferença de a terem agora de aceitar em todo
ção mais avançada dos traballuldores, inorganizados e separados por o pais. E ao aceitarem esta greve geral «nào oficial~>. viram-se aceite
toda a espécie de repressões, foi disfarçada de estudantes pelo ima­ por ela. Ficaram por isso de posse das entradas das fábricas, isola11do
ginário tranquilizador dos sindicatos e da informação espectacular. do movimento real, ao mesmo tempo. a imensa maioria dos operários
O movimento de Maio não foi uma qualquer teoria política em busca como um todo e cada uma das empresas relativamente às restantes.
dos seus executores operários: foi o proletariado activo em busca da De modo que a acção mais unitária e mais radical na sua critica,
sua cansc1ênc1a teórica. e até então nunca VISla. foi em simultâneo uma soma de i"olamen­
tos e um festival de banalidades nas rehindicações oficialmente
O facto de a sabotagem da Universidade, por aJguns grupos de mantidas.
jo\·ens revolucionários que na realidade eram notórios a11ti-estudan­ Da mesma maneira que se viram obrigados a deixar a greve geral
tes, tanto em Nantes como em Nanterre (referimo-nos aos «Enragés», afumar...se em fragmentos cujo desenlace foi uma quase unanimidade,
e não. obviamente, à maioria do «22 de Março», 1 que revezou tardia­ os sindicatos trataram de liquidar a greve fragmentariamcnti.:, fazendo
ace1tar em cada ramo, pelo terrorismo da chantagem e as ligações
1
monopolizadas, as migalhas que a 27 de Maio tinham justam~te sido
Os Etvagts foi o grupo que começou a agitaçfio na Univmidade de NDDtcl'l'l' e qw: rejeitadas por todos. A greve revolucionária foi assim redUZJda a wn
depois aderiu à 1.S. O Movimento do 22 de Mnrço, com bast' no seu mais mediático
membro, o então anarquist4 D:lltiel Cohn-Bcndit, virá a ser o agrupamento oficialmente
equilíbrio de guerra fria entre as burocracias sindicais e o~ 1:3balha­
protagomsta de Maio 68, que figma nos mnnwüs.. O siruac1orusta Rcné Vit.íict, no seu dores. Os swdicatos reconh~ceram a greve com a condiçao de a
livro Enragá et situatiolllllJto dans /e mou1"men1 dl!l occupa1ío11J (redigido cm Bruxe­ greve reconhecer tacitamente, pela sua passividade na prática, q11_c
las, onde os Situacionistas mais comprometidos jC tinham txilado, e pubhcaJo cm Outu­ não serviria para nada. Os sindicatos não <q>erderam uma oponuni­
bro de 1968 na Gallimanf), define.o assim: • Todos eles comidcra\'llJII '!Cl"-lhcs impossivtl dade» de ser revolucionános, pela simples razão de em nada o serem,
parem-se de ai..'Ol'do com base num qualquer elemento ICÔnco, contando com a "acção dos stalirustas aos reformistas emburguesados. E não perderam uma
colectí\11ft para ultrap:!SSafCD es.sa deficiencia. [.-) Tudo o al:mdo sociológico e
jomalísrico sobre a "originalidade" do Movimento do 21 de M~ c:scoodc o iÜnplcs oportunidade de ser rcfonnistas com grandes res11/tados
. porque a
fiu:tD de que o 5CU amalgama csqucnlisl3, embora novo cm frnnçn, em uma cópia dín:c1a situação era revolucionariamente perigosa demais para ~orrer~ o
do S.D.S. [Studcnts for Di.'1110Cliltic Society) nnru:-mu:ncano, tambêm ele ccldico e risco de brincar com ela - para se dedicarem. até. a tirar partido
democrático e amnidc infiltrado pelas divcn:is e omigai sc1w csqucrdisw .111 dela. O que eles muito visivelmente queriam, era que aquilo acabasse
266 267
e~~ toda. a. urgência, fosse a que preço fosse. Neste capnulo, a hip<>­ sagem e da vida quotidiana do capitalismo a\ançado, cntica esta que
cnsta stalinista, a que os sociólogos semi-esquerdistas se juntaram d se propagou logo a partir do pnmciro rasgão no i.éu unhersitário.
fo~a ~dmirâvel (cf. Coudray, 1 La Breche, Seuil, 1968). fingiu, par:
uuhzaçao e~ ~omentos tão excepcionais, um extrn_or~nário respeito Os operários, ao fazerem a gre\'e selvagem. desmentiram os
~la compe.ten.c1_a dos operános, pela sua experiente «decisão», par­ impostores que falavam em seu nome. Na generalidade das empresas.
tmdo do pnnc1p10, com o mais fantástico cinismo, que esta fora cla­ não souberam tomar a pala'vTa verid1camente par sua própria conta,
ramente debatida, adoptada com conheGimento de causa e identifi­ duendo o que queriam Mas para dizerem o que querem, é antes de
cada ~e maneira absolutamente univoca - porque, finalmente, os mais nada necessário que os 1rabalhadores criem, pela sua acção
operários sabiam na ponta da unha o que queriam, visto «não quere­ autônoma, as condições concretas. em toda a parte int!"Cistente.s. que
r:m a revoluçà0>>! Mas os obstâcuJos e as mordaças que os burocratas lhes permitam falar e agir. A falta, quase em toda a parte, deste
ll~eram de acumu~. suando angústia e mentira, perante a prelensa diálogo e desta ligação, bem como do conhecimento teórico dos
nao wmtade revoluc1onâria dos operários, constituem a melhor prova objec1ivos autónomos da luta de classe proletária (duas categorias de
da sua vontade real, desarmada e temivel. Só esquecendo a totalidade factores que só podem desenvolver-se em conjunto}, impediu os tra­
lnstórica do movimento da sociedade moderna alguém se pode delei­ balhadores de expropriarem os expropnadores da sua \·ida real. Deste
tar com o positivismo circulnr que julga ver a ordem existente como modo, o núcleo avançado dos trabalhadores, em tomo do qual se há­
coisa racional, por elevar a sua «ciência» ao ponto de considerar esta -de formar a próxima organização revolucionária proletária. aparec"'U
ordem sucessivamente do lado da pergunta e da resposta. É 8SS1Dl que no Bairro Latino na qualidade de parente pobre do ccreformismo estu­
o mesmo Coudray assinala o segwnte: «se temos estes sindicatos, só dantil», ele próprio, em grande medida, produto artificial da pseudo­
P_Od~mo · obter 5%, e se são 5C\'o que queremos obter, para isto estes -informação ou do ilusionismo grupuscular. Eram jovens operários;
smd1c_atos b~»- Pondo de parte a questão de saber o que serão as empregados; trabalhadores de t:Scritórios ocupadoi.; blusões negros e
suas mtençoes na vida real e nos interesses pessoais, 0 que pelo desempregados: alunos revoltados do ensino secundário, muitos deles
menos falta a todos estes cavalheiros é a dtaléctica. filhos de operãrios que o capitalismo moderno recruta para um ensino
Os operários, que naturalmente tinham - como empre e em toda à pressão destinado a preparar o funcionamento da indústria desen­
a parte - excelentes motivos de descontentamento, encetaram a volvida (trStalinistas. os vossos filhos estão co1moscol1>), «intelec­
greve selvagem porque sentiram a situação re~'Olucionária criada tuais perdidos» e «catangueses» 1•
pelas novas fonnas de sabotagem na Universidade e pelos sucessivos t um facto evidente que uma proporção não negligenciável dos
erros do governo nas suas reacções. Os operános eram obviamente estudantes franceses, e sobretudo parisienses, participou no movi­
tão ~~ferentes ~orno nós às formas ou reformas da insntu1ção uni­ mento; mas isto não pode servir para o caracterizar fundamental­
versitária; mas nao o eram, com certez.a. à critica da cultura, da pai­ mente, nem sequer ser aceite como um dos seus elementos princtprus.
Em 150 000 esh1dantes pansJenses, 10 a 20 000, no máximo, estive­
1 ram presentes nas horas menos duras das manifestações, e só algwis
u'.11 dos pseudónimos de Comchus Oastorindis (1922-1997), que leve vários outmo
(Chaul1cu, Cardan, Oclvaux), na qxa da ~ista Sociallsme ou Barbarie (1949-1965).
14<Üilanguescs11 foi o oome d3do 1
As rei~ desta revista com a l.S., embora coníluuosas e qunse sempre indircctaS. a-merccnári~ e owms llduros de roer» que
foram miportantcs. partmpanun "°' eoo1batc:s de Maio 68

268 269
milhares no violentos confrontos de rua. O único momento da crise geral, como ingénua clientela dos pequenos partido:. esquerdistas, na
que dependeu apenas dos estudantes - aliás um dos momentos de­ qualidade de espectadores dos velhos esquemas leninistas ou até do
cishos da sua extensão - foi o motim espontâneo do Bairro Latino. exotismo extremo-oriental do stalinismo maoísta. Estes grupúsculos,
a 3 de Maio. após a detenção pela polícia dos responsáveis esquer­ com efeito, tinham a sua base quase exclusiva no meio estudantil; e
distas da Sorbonne. No dia seguinte à ocupação da Somonne. cerca a miséria que neste se tinha conservado era claramente legivel na
de metade dos participantes nas assembleias gerais, quando estas já quase totalidade dos paníleto oriundos deste meio: o nada dos
tinham adquirido uma função insurreccional, eram ainda estudnntes Kravetz. a parvoíce dos Péninou. As melhores intervenções dos ope­
preocupados com as modalidades dos eiuunes e desejosos duma qual­ rários que ali tinham acorrido. nas primeiras jornadas da Sorbonne,
quer reforma da Universidade que lhes fosse favorável. Sem dúvida, foram amiúde acolhidas pela pedante e orgulhosa tolice destes estu­
um número um pouco superior dos participantes estudantes admitia dantes que se imaginavam doutores especialistas das revoluções,
que a questão do poder estava na ordem do dia; mas admitiam-no, em embora se mosrrassem sempre prontos a salivar, aplaudindo o esti­
mulo do mais desajeitado marupulador que se saísse com qualquer
inépcia ciLando (<a classe operária». No entanto, o próprio facto de
estes grupos recrutarem uma certa quantidade de estudantes é já um
indicio do mal-estar que vigora na sociedade actual: os grupúsculos
são a expressão teatrnl duma revolta real e vaga que busca as suas
razões nos saldos das ideias. Por fim, o facto de uma pequena fracção
do., estudantes ter aderido autenticamente a todas as exigências radi­
cais de Maio constitui mais um testemunho da profundidade deste
movimento; e honra-os. naturalmente.
Embora vários milhares de estudantes tenham podido. como indi­
viduos, através da sua experiência de 1968, sair mais ou menos com­
pletamente do lugar que lhes está destinado na sociedade. a massa
dos estudantes não foi transfonnada por essa experiência Esta con­
clusão não decorre duma qualquer banalidade pseudomamsta que
O fim da tranquilidade
..- Por que razão estavam ITUSturados com os estudantes?•, pergunta o pre­
considera detemnnanle a origem social dos estudantes, em grande
sidente. ·Havia também movimentos operános que OaJpavam a faculdade maioria burguesa ou pequeno-burguesa. mas sim do destino social
Estãvamos lã a esse titulo... Mas essa nao é a opinião do presidente, que que define o esrudante; porque o de.ir do estudante é já a realidade
pensa tratar-se de ao;;ões de malfeitores de direito comum, aproveitando os da sua natureza. sendo como é maciçamente fabricado e condicio­
aconlecimentos para cometerem rwbos.• - Le Monde. 14-9.SS nado para o alto, médio e pequeno enquadramento da produção
industria! moderna. O estudante, aliás, é desonesto quando se escan­
· Ogeneral De Gaulle tomou o panido de transformar as estruturas, no mlnimo
daliza ao «descobrir» esta lógica da sua fonnaçâo - visto esta ter
cansadas, do nosso país •.• É a via das reformas. É tarefa para uma geração,
e é a única que pode evitar as revoluções de que Maio de 1968 constitui as sido sempre francamente declarada. É evidente que as incertezas
primícias.• - Alain Gnotteray, declaração catada no Le ~ de 12-4·69 económicas quanto ao seu emprego ideal, e sobretudo a conte tnçào

270 271
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do carácter "erdadeiramente descjãvel dos «pm ílegios>l que a pre­ a consumir o espectículo, a passividade, a impostura ideológica e
sente sociedade pode oferecer-lhe, tiveram um papel na sua perturba­ mercantil. Mas têm menos ilusões que o demais sobre as condições
ção e na sua revolta. Mas é nisto justamente que o estudante fornece concretas que lhes impõe e sobre o que lhes custa, em todos os
o gado ávido de encontrar a sua marca de qualidade na 1.deologia dwn momentos da vida, a produçoo de tudo isto.
qualquer grupúsculo burocrático. O estudante que sonha ser um Por todas estas razões. os estudantes, como camada social também
bolchevique ou um stalinista conquistador (ou seja. maoista), joga ela em cnse, foram slIDplesmente, em Maio de l96&, a retaguarda de
duas cartadas: espera vir a gerir um qual.911er fragmento da sociedade todo o movimento.
na qualidade de quadro do capitalismo, graças ao simples resultado
dos seus estudos escolares, caso a transformação do poder não A deficiência quase geral da fracção dos estudantes que afirmava
corresponda às suas aspirações. E no caso de o seu sonho se realizar, intenções revolucionãrias foi sem dúvida lamentável, relativamente
imagina-se gerindo-a mais gloriosamente, com mais bela patente, na ao tempo livre que estes teriam podido dedicar à elucidação dos
qualidade de quadro político «cientificamente» garantido. Os sonhos problemas da revolução: mas foi muito secundána. Pelo contrário, a
de dominação dos gruplisculos traduzem-se amiúde de modo desajei­ deficiência da grande massa dos trabalhadores, dominada e
tado na eJtpressão de desprezo que os seus fanáticos julgam poden:m amordaçada, embora muno desculpável, foi decisiva. A definição e a
permitir-se em relação a alguns aspectos das reivindicações operárias, análise dos situacionistas quanto aos momentos principais da crise
que frequentemente classificaram como c<alimen~;>, Jâ nisto se vê foram expostas no füTo de René Viénet, Enragés et situationnistes
despontar, na impotência que faria melhor calar-se, o desdém que Jans /e mouvement des occupalions. limitamo-nos aqui a r~\lIIlÍr os
estes esquerdistas gostariam de poder opor ao descontentamento pontos as.sinalados neste livro, redigido em Bruxelas, nas três últimas
futuro destes mesmos trabalhadores no dia em que eles, especialistas semanas de Julho [de 1969), com os documentos então disponíveis
autopatentados dos interesses gerais do proletariado, pudessem segu­ mas sem que uma única conclusão nos pareça dever ser modificada.
rar <mas suas frágeis màoSl>, oportunamente reforçadas, o poder es­ De Janeiro a Março, o grupo dos Enragés de Nanterre (revezado
tatal e a policia, como em Cronstadt ou em Pequim. Uma vez posta tardiamente em Abril pelo Movimento do 22 de M~o) levou a cabo
de lado esta perspectiva do que são os portadores de gérmens de com êxito a sabotagem das aulas e das instalações na faculdade [de
burocracias soberanas, não se pode reconhecer nada de serio nas Letras] de Nanterre. A repressão pelo Conselho da Universidade,
oposições sociológico-jornalisticas entre os estudantes rebeldes, que muito tardia e bastante desajeitada, completada com dois encerra­
recusariam «a sociedade de consumo», e os operários, que estariam mentos suces.sívos da FacuJdade de Nanterre. levou ao motim espon­
ávidos por a ela acederem. O consumo cm questão é apenas o de tâneo dos estudantes, ocorrido no dia 3 de Maio no Baim> Latino.
mercadorias. É um consumo hierárquico, que aumenta para todos, A Universidade ficou paralisada pela policia e pela greve. Uma
mas hierarquizando-se mais. A redução e a falsificação do valor de semana de luta nas ruas deu ensejo aos jovens operãrios de se junta­
uso existem para todos. embora desigualmente, na mercadoria rem aos motins; aos stalinistas de se desacreditarem todos os dias
moderna. Toda a gente vive este consumo das mercadorias especta­ graças às suas incríveis calúnias; aos dirigentes esquerdist~ do
rulares e reais numa pobreza fundamental, <<porque o consumo não S.N.E. Sup.1 e dos grupúsculos de evidenciarem a sua falta de uru­
está para além da privação, constitui a prh ação enriquecida))
(A Sociedade do Espectáculo). Os operários também passam a vida •Sindicato Nacional do Ensino Superior.

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ginaçào e de rigor: ao go\erno, de empregar a força sempre fora de trabalho imediatamente. Mas no dia 27 a base rejeitou por toda a
tempo. fazendo des3!>iradas concessões. parte os «acordos de Grenelle».1
Na noite de 10 para 11 de Maio, a sublevação que durante mais de O regime. que um mês de devoção stalinista não pudera salvar,
oito horas se apoderou de toda a zona cm redor da Rua Gay Lussac, \'Íu-se perdido. Os próprios stalinistas encararam, no dia 29. o desmcr
resistindo ao longo de sessenta barricadas, despertou .ô país inteiro e ronamento do gaullismo. preparandcrse, a contragosto, para herdar
levou o governo a uma capitulação de monta, retirando do Bairro com a restante esquerda o que ele lhes dei."tilva: uma revolução social
Latino as forças de manutenção da ordem e reabrindo a Sorbonne, a desannar ou a esmagar. Se perante o pânico da burguesia e o rápido
que ele já não podia pôr a funcionar. O-período de 13 a 17 de Maio desgaste do freio stalinista De GauHe se tivesse retirado, o no\ o
foi o da ascensão irresistível do movimento, tomandcrse uma crise poder não teria passado da precedente aliança enfraquecida, mas ofi·
revolucionária geral: o dia 16 foi sem dúvida a jornada decisiva, cializada: os stalinistas teriam defendido wn governo, por exemplo.
quando as fábricas começaram a declarar-se pela greve selvagem. MendCs-France-Waldeck Rocbet.2 com milícias burguesas. activis­
A 13, a simples jornada de greve geral, decretada pelas grandes orga­ tas do partido e fragmentos do exército. Teriam tentado fazer, não
nizações burocráticas para acabar em três tempos com o movimento uma coisa à Kerenski, mas à Noske. De Gaulle, mais firme que os
(obtendo com ele. se passivei, algumas vantagens laborais), na rea­ quadros da sua administração, aliviou os stalmistas, anunciando, no
lidade não passou de wn começo; foi quando os operários e os estu­ dia 30, que tentaria manter-se por todos os meios, ou seja. chamando
dantes de Nantes atacaram o Governo Civil e quando os que voltaram o exército para iniciar a guerra civil, para conter ou reconquistar
a entrar na Sorbonne como ocupantes a abriram aos trabalhadores. Paris. «ÜS stalinistas. encantados. abstiveram-se cuidados:imente de
A Sorbonne tomou-se de imedia!o um «clube populan>; em compa­ apelar à continuação da greve atê à queda do regime, apressandcrse
ração com este, a linguagem e as reivindicações dos clubes de 1848 a aderir às eleições gaullistas, fosse qual fosse o preço a pagar. Em
já parecem cais.is tímidas. A 14, os operários de Nantes da Sud­ tais condições, a alternativa punha-se de imediato entre a afümação
-Aviation ocuparam a fábrica. sequestrando os gestores. A 15. o seu autónoma do proletariado ou a derrota completa do movimento; entre
exemplo foi seguido por duas ou bis outras, mas a partrr do dia I6, a revolução dos Conselhos e os acordos de GreneUc. O movimento
altura em que a base impôs a greve nas fábricas Renault de Billan­ revolucionário não podia acabar com o P.C.F. sem primeiro ter ape·
1 •• h .
court, 1a ouve mais empresas a tomar a mesma iruc1ativa. ado De Gaulle. Vendcrse simultaneamente bloqueada pelo velho
A quase totalidade das empresas irá seguir este exemplo e nos dias Estado reafrrmado e pelo P.C.F.. a lorma do poder dos trabalhadores
seguintes a contestação atingirá a quase totalidade das instituições,
das ideias e dos hâbitos. O governo e os stalirustas trataram febril­ ' As aceleradas nc~iaçõc:s entre o governo e os sindicatos foram realíz:idas na Rua
mente de travar a crise. apostando na dissolução da força principal de GmicUe, cm Paris, cm 25-27 de Maio; dai o nome.
que a activava, concedendo salários susceptfvcis de fazer retomar o ? Pierre Mcndês-fnmcc, polttico soci:llista candidato is fW>çõcs de primcuo-minisao

num gmido go\'tlDO da .esquerda 1D1id3JI cm Maio 68; Waldcck Rochct, ~o-geral
do PC.F. nessa alllllll. - O governo provisório do .oci:llbtl Alcxandc:r Ki:rcn k1 (Julho­
1A aglommção de Boulognc-Billancoun, na pcnfcna 1mcdia1a de Paris. a udocstc,
-Outubro de 1917), DO mic10 da Rc\'olução Russa, foi tl'B~ pel~coruraJiçõcs sociais
integJ'lda no circunscrição odministrallva de Nanterrc, constituía na altura wn lmtião da antes mesmo de ser derrubado pelos bolchcvtqucs. Pelo conmlrio, N~kc, duigcntc soc111­
classe opcnírilJ (indústrias uutomó\'cl, aeronáutica, cléctrica), C<ltl mn nolá\cl passado de list3 alemão, foi o chefe m1luar, cm Berlim. do sanguinãrio i:-;magmncnto d3 R~'Oluçào
lu~. adquirindo de irned1a10 a eclosão d3 ~'C naquela Z.OIJJI uma dimensão pohtica. Alemã, an 1919.

174 275
que leria podido desenvolver-se na fase pós-gaullista da crise jã não fim de alguns dos meios técnicos das telecomunicações - os traba­
conseguiu ultrapassar a sua derrota em marcha.» (Viénet. op. t:it.). lhadores do mundo inteiro a apoiarem esta revolução. Dirão alguns
O reílw:o começou, embora os trabalhadores tenham prosseguido que esta hipótese é utópica. Por nós, respondemos: foi porque o
obstinadamente, durante uma ou \'árias semanas, a greve que todos os movimento das ocupações esteve objectivamente, em vários momen­
sindicatos, com insistência, queriam que eles acnb~ Natural­ ~ a uma hora de 5'-"'lllelhante resuJtado, que ele transmitiu um tal
mente, a burguesia não tinha desaparecido cm França; apenas se via pavor, visível por toda a gente, naquela altura, na impotência do
muda de terror. E a 30 de Maio reapareceu, aliada à pequena-burgue­ Estado e na inquietação do partido dito comunista, e ainda visível.
sia conformista, para apoiar o Estado. Mas este Estado, já tão bem desde então, na conspiração do silênC10 instituída acerca da sua gra­
defendido pela esquerda burocrática, só pocha cair se quisesse ­ vidade. Ao ponto de milhões de testemunhas, de novo presas à Mrga­
enquanto os trabalhadores não eliminassem a base do poder destes nização social da aparência» que lhes apresenta esta época como uma
burocratas, impondo a forma do seu próprio poder autónomo. O loucura passageira da juventude quiçá até unicamente univers11á­
trabalhadores deixaram-lhe esta liberdade, sofrendo as nonnais con­ ria -, a si mesmas perguntarem se não será louca uma sociedade que
sequências disso. Na sua maioria. não tinham identificado o sentido pôde deixar passar tão assombrosa aberração.
lota! do seu próprio movimento; e ninguém o podia fazer em seu
lugar. Naturalmente, nesta perspectiva a guerra ciVJJ era inevitável. Se o
afrontamento armado só ti~esse dept.--ndido daquilo que o governo
Se numa só grande fábnca. entre 16 e 30 de Maio, uma assembleia temia ou fingia temer nas eventuais más intenções do partido dito
geral se tivesse constituldo em Conselho detentor de todos os poderes comunista, temor este que muito objectivamente residia na consolida­
de decisão e execução, expulsando os burocratas, organizando a au­ ção dum poder proletário directo, 3S!iellte na sua base industrial (um
todefesa e apelando os grevistas de todas as empresas a estabelecer poder obviamente total, e não um qualquer «poder operário» limitado
ligação com ela, este último passo qualitativo lena podido conduzir a um pseudocontrole da produção da sua própria alienação), a contra­
de imediato o movimento para a luta final de que traçou historica­ -revolução armada, sem dúvida nenhuma, teria sido desencadeada
mente todas as directivas. Um grande número de empresas teria num ápice. Mas esta não tinha a certeza de ganhar. Uma parte das
seguido a via assim descoberta. Imediatamente, esta fábrica teria tropas ter-se-ia evtdentemente amotinado; os operários teriam sabido
podido substi1uir-se à incerta e, de todos os pontos de vista, excên­ encontrar armas, deixando naturalmente de construir barricadas ­
trica Sorbonne dos primeiros dias, para se tomar o centro efectivo do boas, é claro, como forma de expressão política no iníeto do movi­
movimento das ocupações; e teriam aderido a esta base comum ver­ mento, mas irrisórias estrategicamente (todos os ~lalraux clamando
dadeiros delegados dos numerosos conselhos já virtualmente existen­ a posteriori que os tanques se teriam apoderado da Rua Gay Lussac
~es em certos edificios ocupados, bem como dos outros que podiam muito mais depressa que a polícia de intervenção, têm por certo razão
impor-se em todos os ramos da indústria Uma tal assembleia poderia neste pormenor; mas estanam eles então em condições de cobrir
então proclamar a e~propriaçào de lodo o capital, incluindo o estatal; politicame11te os dispêndios de semelhante vitóna? Seja como for, a
anunciar que todos os meios de produção do país eram doravante isso não se arriscaram, preferindo ficar quedos e mudos; e não foi
propriedade colectiva do proletariado, organizado em democracia seguramente por humanismo que digeriram esta humilhação). Uma
directa; e desafiar directamente - por exemplo, apoderando-se por invasão estrangeira tena sido o resultado ine\itável dessa decisão,
276 277
pensem o que pensarem certos ideólogos (pode-se muíto bem ter lido Maio 6 pelos pensadores do gaullismo. é o mesmo que permite à
Hegel e Clausewitz e não se passar dum Glucksmann) 1• sem dúvida informação do dia a dia qualificar como revolução qualquer putsch
a partir das forças da N.A.T.0. mas com o apoio indirecto ou directo militar que durante o ano tenha mudado o regime do Brasil. do Gana.
do «Pacto de Varsóvia». Nesse caso. porém, ter-se-ia de imediato do Iraque, e por ai fora . Mas a revolução de 1905 não abateu o poder
arriscado tudo nesta nova jogada ante o proletariado·da Europa. tsarista. que apenas fez algumas concessões provisórias. A revolução
Desde a derrota do movimento das ocupações, os que nele pani­ espanhola de 1936 oào suprimiu formalmente o poder politico exis­
ciparam, e lambém os que tiveram de o suportar, puseram com fre­ tente, surgiu aliás dum levantamento proletário iniciado para manter
quência esta questão: «Terá sido uma revolução?)) A espalhada utili­ a República contra franco. E a revolução húngara de 1956 não aboliu
zação, nn imprensa e na vida quotidiana, duma expressão vilmentc o governo burocrático-liberal de Nagy. Tendo em conta, além disso,
neutra - «OS acontecimentos» - , assinala prec:samenle o recuo outras limitações lamentáveis, o movimento húngaro revestiu muítos
perante a resposta; e perante até a formulação da pergunta É neces­ aspectos duma insurreição nacional contra a dominação estrangeira;
sário situarmos esta questão à luz da sua verdade histórica. O «êxito>• e e.ste carácter de resistência nacional, embora menos importante na
ou o <<reves» duma revolução, referência trivial de Jornalistas e Comuna de Paris, teve apesar de tudo um certo papel nas suas ori­
governos. não significam neste caso coisíssima nenhuma. porque gens. Esta só suplantou o poder de Thiers no território de Paris. Em
desde as revoluções burguesas nenhuma rei·olução teve êxito: 1905. o soviete de São Petersburgo nunca chegou a dominar a capítal.
nenhuma aboliu as classes. A revolução proletária, até hoje, não ven­ Todas as crise.5 aqui citadas como e:tempto~. embora incompletas nas
ceu em parte alguma; mas o processo prático atra\'és do quaJ o seu suas realizações práticas e até nos seus conteúdos, contribuíram ape­
projecto se manifesta já criou uma dezena. pelo menos, de momentos sar disso com bastantes novidades radicais e puseram bastante grave­
revolucionários de extrema importància histórica. a que se conven­ mente em xeque as sociedades que afectavam, podendo por isso ser
cionou dar o nome de revolução. Nunca o conrerido total da mo­ legitimamente qualificadas como revoluções. Quanto a pretender-se
lução proletária neles se manifestou; mas tratou-se sempre duma avaliar as revoluções pela amplitude das carnificinas que provocam.
intcnupção essencial da ordem socioeconómica dominante e do apa­ esta é uma visão romântica que não merece ser discutida Revoluções
recimento de novas formas e concepções da vida real, fenómenos rncontestâveís afirmaram-se em confrontos muito pouco sangrentos,
variados que só podem ser compreendidos e avaliados na sua signi­ foi esse até o caso da Comuna de Pans, que acabou num massacre;
ficação global, ela própna não separável do futuro histónco que pode e muitos afrontamentos civis acumularam mortos aos milhares sem
conter. De todos os critérios parciais usados para atnbuir ou não o em nada serem revoluções. Em geral. não são as revoluções que são
título de revolução a determinado periodo de alterações no poder sangrentas, são-no a reacção e a repressão que numa segunda fase se
estatal, o pior é com certez.a aquele que atribui importância ao facto lhes opõem. É sabido que a questão do número de manos no movi­
de o específico regime governamental até então vigente ter mudado mento de Maio suscitou uma polémica a que os defensores da ordem.
ou sobrevivido. Este critério, abundantemente invocado depois de provisoriamente sossegados, voltam sem cessar. A verdade oficial
reza que só houve crnco mortos. abatidos logo, entre os quais um
1
Alusão a André GhrlsmaM, cntlo dirigicnte maolm, anos depoís reciclado numa
único polícia. Todos os que o afirmam acrescentam ter sido uma sorte
outn cmpl'CS3 confusionista, a corrente c:hanmda «Nova Filosofiu, lançada nm anos 80, incrível. Mas o que muito sublinha a improbabilidade cientifica. é 0
publíc1tarimnc:nte, no quaJro de mais uma rcnepção social-<lcmocrati do manwno. facto de nunca ter sido admitido que algum dos mwtos feridos gra\es

278 279
ten.ba morrido nos dias a seguir; e no entanto elita sorte singular não gurado a vitória do movimento, enquanto outro:> manobravam nessa
fic(JU a dever-se a uma rápida assislência médico-cirúrgica, sobretudo altura para evitarem um 4<excesso» que não entrava na sua própria
na noite da Rua Gay Lussac. Por outro lado, se uma vulgar falsifica­ planificação da vitória. Outros ainda. aguardando a concretização do
çàd para subestimar o número de mortos foi, na altura, muito úlil a sonho mais modesto de conservarem a gestão «responsãvel» e limpa
um governo encurralado, depois. por mouvos diferente~ essa subcs­ da Umvcrs1dade para nesta organizarem uma «Umverstdade de
tim.'.lçào continuou a ser muito útil Mas em geral as provas retrospec­ Verão», imaginaram que as faculdades se tomariam bases da guerri­
tivas do carácter revolucionário do mo\:1mento das ocupações são tão lha urbana (todas caíram, após a greve operária, sem se defenderem,
evitJentes como as que ele lançou à face do mundo por eristir; a e até a Sorbonne, quando ainda era o centro momentâneo do movi­
pr~a de que esboçara uma legitimidade- nova reside no facto de o mento em expansão, de portas abertas e quase despovoada ao fim da
regime restabelecido em Junho nunca ter considerado que podia per­ noite crítica de 16 a 17 de Maio, teria podido ser reconquistada em
segµir, para alcançar a mesma segurança int'!IIla do Estado, os res­ menos duma hora por um raide dos C.R.S. 1) . Incapazes de ver que o
ponsáveis por acções manifestamente ilegais que parcialmente o movimento jã ultrapassara a questão duma simples mudança política
tinham despojado da sua autoridade ou até dos seus edifícios. Mas no Estado, e em que termos se punha o desafio real (uma conscien­
o lllaÍS evidente, para quem conheça a história do nosso século, é o cializ.açào coereme. total, nas empresas). os grupúsculos agiram sem
seguinte: tudo o que os stalinistas fizeram sem descanso, em todas as dúvida nenhuma contra esta perspectiva, espalhando com profusão as
fases. para combater o movimento, prova que a revolução estava ilusõe carcomidas e dando por todo o lado o mau exemplo do com­
presente. portamento burocrático detestado por todos os trabalhadores revolu­
cionários; arremedando, cm suma. da maneira mais desastrada. todas
AO passo que os stalinistas representaram, como sempre, por as fonnas das revoluções do passado, tanto o parlamentarismo como
assitn dizer o ideal da burocracia anti-operária na sua fonna pura, os a guerrilha de estilo zapatistn, sem que esta pobre comédia correspon­
embriões burocráticos dos esquerdismos encontravam-se numa situa­ desse à mínima realidade. Os ideólogos atrasados dos pequenos par­
ção Je desequillbrio. Todos poupavam ostensivamente as burocracias tidos esquerdistas. adoradores dos erro:> dum passado revolucionário
de ftlcto. tanto por cálculo como por ideologia (com e~cepçào do desaparecido, encontravam-se naturalmente muito desarmados para
«22 Je Março», que poupava as infiltrações da J C R., 1 dos maoistas, compreenderem um movimento moderno . Numa combinação da
etc.). De modo que só lhes restava «empurrar para a esquerda» ­ súmula eclética destes gJUpos, enriquecida com uma atamancada
mas apenas em função dos seus próprio cálculos deficientes ­ mcoerência modernista, o Movimento do 22 de Março sintetizava
simultaneamente um movimento espontâneo muito mais extremista quase todos os defeitos do confusionismo mgénuo. Os recuperadores
do que eles e aparelhos pollticos que não podiam. de maneira estavam instalados nos órgãos dirigentes dos que receavam a
nenhitma, fazer concessões ao esquerdismo numa situação tão mani­ «recuperação», de resto encarada vagamente como um perigo de
fesuunente revolucioaâria. Por isso floresceram com abundância as naturei.a algo mfstica, devido ao desconhecimento das verdades ele­
ilusô!s pseudo-estratégicas: julgando certos esquerdistas que a mentares sobre a recuperação e a organização; sobre o que é um
ocup~ção dum qualquer ministério na noite <le 24 de Maio teria asse­
1 Companluas Rcpubhc:anas de Segurança. Polícia de intervenção mó,-cl cspcci:diillda
1 )l\'Clltude Comunista Revolucionãria, o:pruL:IÇ:ào trotskista. ua rqiress.io urixina
2~1
280
delegado e sobre o que é um «porta-\ OZ» irresponsável, detentor, por utentes universitários (por exemplo. a Sorbonne dos primeiros dias,
isso mesmo, da direcção, visto o principal poder efectivo do <122 de os edificios abertos aos trabalhadores e aos vndios pelos 11estudantes»
Março» ter consistido em falar aos jornalistas. As suas irrisórias vede­ de Nantes, o I.N.S.A. onde se instalaram openírio~ molucionários de
tas iam declarar ã imprensa. sob todos os projectores, que tinham 0 Lião. o Instituto Pedagógico Nacional), constituíam um dos smalS
cuidado de não se tomarem vedetas. · mais fones do movimento. A lógica própria a estas ocupações podia
condUZJ.r aos melhores aperfeiçoamentos; convirá notar. aliás, a que
Os «C-0mítés de Acçào11, que se tinham formado espontaneamente ponto este movimento, que se manteve paradoxalmente tímido ante a
um pouco por todo o lado, situaram-se-na fronteira amblgua entre a perspectiva da requisição das mercadorias, não mostrou a mais leve
democracia directa e a incoerência infiltrada e recuperada. Esta con­ inquietação pelo facto de já se ter apropriado duma parte do capital
tradição div1dia por dentro quase todos os comités. Mas a divisão era imobiluírio do Estado.
ainda mais clara entre os dois tipos principais de organização que o
mesmo rótulo designava. Por um lado, houve comités constituídos Se é verdade que a adopção deste exemplo acabou por ser impe­
numa base local (C-Omités de Acção de bairro ou de empresa, de dida nas fábricas, convém dizer também que o estilo criado por
ocupação de certos edificios de que o mo\'imento revolucionário se muitas destas ocupações deixava muito a desejar. Quase em todo o
apoderou), ou formados para desempenharem certas tarefas especia­ lado. as rotinas conservadas impediram que se visse o alcance da
lizadas cuja nece_sidade prática era ób\ia, nomeadamente a extensão situação, os instrumentos que ela facultava à acção em curso. Por
internacionalista do movimento (Comités de Acção italiano, magre­ exemplo. o n.º 77 de Informations Corresponda11ce Ouvrieres
bino, etc.). Por outro lado, multiplicaram-se os comités profissionais, (Janeiro de 1969) objecta ao livro de Viênet - que referia a sua
tentativa de restauração do velho sindicalismo as mais das \ ezes para presença em Censier - o facto de os trabalhadores desde há muito
uso de semiprivilegiados e por isso de carácter nitidamente em contacto através deste boletim <mão "terem assento", na Sor­
corporativo, tribuna dos especialistas separados que pretendiam, bonne, em Censier ou fosse lá onde fosse; que todos se encontravam
como tais, aderir ao movimento, sobreviver nele e obter certas van­ empenhados na greve nos seus locais de trabalho» bem como <mas
tagens graças à notoriedade adquirida («Estados Gerais do Cinema>>, assembleias e na rua>l. «Nunca pensaram ter, fosse de que género
União dos Escritores, C.A. do Instituto de lnglês, e por ai fora}. fosse, uma "permanência" nas faculdades, e ainda menos pensaram
A oposição dos métodos de uns e outros comités era ainda mais organizar-se como "ligação operária" ou "conselho'', mesmo com
notória que a dos seus ohjectivos. Nos primeiros comités, as decisões vista à "manutenção das ocupações"». Tudo coisas que declaram
eram executórias; nos segundos, não passavam de intenções abstrac­ considerar como cruma participação em organismos paralelos cuja
tas. Nos primeiros, prefiguravam o poder revolucionário dos Conse­ finahdade consistiria em substituírem-se ao trabalhador». Mais à
lhos; nos segundos, arremedavam os grupos de pressão do poder frente, LC.0 acrescenta que mesmo assim o seu grupo tinha feito em
estatal. Censier «duas reuniões por semana», porque «as faculdades, e
Censier, nomeadamente, por ser mais calma, dispunham de salas
Os edificios ocupados, quando não ficaram sob a autoridade dos gratuitas». Deste modo, os escrúpulos dos trabalhadores do boletim
<cleais gerentes» sindicalistas e na medida em que não se viram iso­ LC.0. (que temos de imaginar como trabalhadores tão eficazes corno
lados como possessão pseudofeudaJ da assembleia dos seus habituais modestos nos sities onde se empenham na greve, nos seus locais
282 283
precisos de trabalho e nas ruas cin..1mvizinhas) levaram-nos a ver que o conteúdo linha em vista, no mínima que fosse, substituir-se às
num dos aspectos mais originais da crise tão-só a possibilidade de decisões de qualquer trabalhador. A participação nas ligações assegu­
substituirem o seu café habítual por salas gratuitas numa faculdade radas pelo C.M.D.O., em Paris e na província, nunca foi contraditória
calma Admitem também, mas de modo igualmente satisfeito, que com a presença de grevistas nas seus locais de trabalho (nem. bem
muitos dos seus camaradas c<deixaram rapidamente d_e '!SSistir às reu­ entendida, nas ruas). Além disso, alguns tipógrafos grevistas do
niões do l.C.O. por nelas não encontrarem resposta ao desejo de C.M.D.0. acharam óptimo trabalhar nas máquinas disponíveis, fosse
"fazerem qualquer coisa"». Por conseguinte, «fazer qualquer coisa» lá onde fosse, de preferência a manterem-se passivamente na 11sua>>
tomou-se automaticamente, para estes !Jabalhadores, a vergonhosa empresa.
tendência de uma pessoa se substituir 1<ao trabalhadom, por assim
dizer ao ser do trabalhador em si, que só eitistiria, por definição, na Os puristas da inacçào operária perderam assim, em tais oportuni­
fábrica onde trabalha, onde por exemplo os stalimstas o hão-de obri­ dades, a ocasião de tomar a palavra, em resposta a todas as vezes em
gar a calar-se e onde o grupo l C.O. deveria, como é natural, esperar que foram obrigados a um silêncio transformado entre eles numa
que todos os trabalhadores se libertassem puramente in loco (de con­ espécie de hábito orgulhoso; mas a presença d~ma ~ultidão ~e
trário, não correremos nós o risco de nos substituirmos a este verda­ infiltrados neobolcheviqucs mostrou-se multo lll31S nociva. O pior
deiro trabalhador ainda mudo?). Uma tal opção ideológica pela dis­ ainda foi a enorme falta áe homogeneidade da assembleia que, nos
persão representa um desafio à necessidade cuja urgência vital tantos primeiros dias da Sorbonne. se tornou. sem o ter desejado ~em sequer
trabalhadores sentiram em Maio: a coordenação e a comunicação das clarameute compreendido. o centro exemplar dum mo:unento q~e
lutas e das ideias a partir de bases de encontro livres, exteriormente arrastou as fábricas. Esta falta de homogeneidade social decorria,
às suas fâbricas submetidas à policia sindical. O grupo LC.O.. no antes de mais, do esmagador peso numénco dos estudantes, apesar da
entanto, nem antes nem depois de Maio levou até ao fim o seu racicr boa vontade de muitos deles, peso esse agravado ainda por uma
cinio mctaltsico. 1C O eitiste corno publicação policopiada graças à bastante forte proporção de visitantes cujas motivações .e.ram m~­
qual algumas dezenas de trabalhadores se resignam a <<SUbstiluin) as mente turísticas; foi uma tal base ob1ectiva que penruttu as matS
suas análises as que podem fazer espontaneamente algumas centenas grosseiras manobras dos Péninou ou dos Knvme._A ambiguidade dos
de outros trabalhadores que não o redigiram. O n.º 78, de Fevereiro parttcipantcs juntava-se à ambiguidade esse~c1al d?s .actos duma
[de 1969), informa-nos até que <cnum ano, a tiragem de l.C.O. passou assembleia improvisada que, por força das crrCW1Stinc1as, acabava
de 600 a 1000 exemplares>i.. Mas o Conselho para a Manutenção das por representar (em todos os sentidos da palavra e por isso també~
Ocupações. por exemplo, que parece chocar a virtude do colectivo no pior) a perspectiva conselhista para todo o pais. Esta assembleia
/.C.O., só ao ocupar o Instituto Pedagógico Nacional, e sem contar as tomava simultaneamente decisões para a Sorbonne - mal. de resto,
suas outras actnidades ou publicações do momento, põde fazer im­ de maneira mistificada: nwica consegwu sequer dominar o seu pr~
primir gratuitamente, numa tiragem de 100 000 exemplares, graças a prio funcionamento - e para a sociedade em cnse: quena e procla­
um acordo estabelecido de imediato com os grevistas da tipografia do mava, em termos desa1e1tados mas sinceros, a união com os trab~­
l.P.N de Montrouge [periferia sul de Paris], textos cuja tiragem foi dores, a negação do velho mundo. Ao lembrarmos os seus erros, nao
distnbufda. aa sua grande maiona, entre outros trabalhadores em devemos esquecer quanto foi 011~-iáa. O mesmo n.º 77 de I.C.0. ~en­
greve e a respeito dos quais ninguém ate à data se lembrou de dizer sura os situacionistas por terem então procurado nesta assembleui o
2.SS
284
acto e'emplar capaz de «entrar na lenda)); de nela terem colocado Cohn-Bendit 1, que chega ao cúmulo de não dizer uma pala\lil sobre
algumas cabt.'Ças ((JIO pódio da História». Quanto a nós, cremos não a e:mtêncta do grupo dos e<Enragés)> em ~anterre). O segundo
ter atribuído a ninguém o papel de vedeta numa tribuna histórica, mas modelo. mentira desta feita posítiva e já não por omissão, afirma
pensamos também que vem muito a despropósitp '9. afectaçào de contra todas as evidências que os situacionistas aceitaram estabelecer
superior ironia destas «belas almas» operárias. Porque aquilo foi um contacto qualquer com o Movimento do 22 de Março; e muitos
mesmo uma tribuna histórica. até nos metem por completo neste grupo. O terceiro e último modelo
apresenta-nos como um grupo autónomo de irresponsãveis e fwiosos,
VISto a revolução haver perdido, os mecanismos sociotécnicos da surgindo de surpresa, ou até à mão armnda, na Sorbonne ou noutros
falsa consciência tinham naturalmente de se restabelecer, no essencial sítios, para semear uma desordem monstruosa; e proferindo as mais
intactos; ao confrontar-se o espectáculo com a sua pura negação, extravagantes exigências.
nenhum reformismo pode vir depois avaliar acima do seu valor, nem É no entanto difkil negar uma certa continuidade na acção dos
que seja com 7%, as concessões que faz à realidade. Aos menos situacionistas em 1967-1968. Tudo indica até que esta continuidade
infonnados, bastaria mostrar uma análise dos cerca de tre::c;nlos ffrros tenha precisamente sido vista como coisa desagradável pelos que
publicados. só em França. no ano a seguir ao movimento das ocupa­ pretendem, estribados cm grandes entrevistas ou no recrutamento de
ções. Não é o número de livros que deve ridicularizar-se ou conde­ adeptos. que lhes atribuam um papel de líder do movimento. papel
nar-se, como acharam necessário certos obcecados pelo perigo da que a I.S.. quanto a ela, sempre rejeitou: a estupida ambição desta
recuperação; estes, de resto, não precisam de se inquietar, visto em gente leva alguns a esconder o que j~tamente sabem um pouco
geral não lerem grande coisa capaz de provocar a cupidez dos melhor do que outros. A teoria situacionista. para muitos. este\e na
recuperadores. O facto de tantos livros terem sido publicados signi­ origem desta critica generalizada que produziu os primeiros inciden­
fica sobretudo que a importància histórica do movimento foi profun­ tes da crise de Maio e prodigamente se manifestou com esta crise.
damente sentida, apesar das incompreensões e das denegações inte­ Isto não decorria apenas da nossa intervenção contra a Universidade
resseiras. O que é criticável, muito mais simplesmente, é o facto de de Estrasburgo. Os livros de Vcmeigcm e Debord, por exemplo, nos
em trezentos livros não haver mais de dez que mereçam ser lidos, meses anteriores a Maio, já tinham sido divulgados a 2 ou 3000
quer se trate de. narrativas ou análises exteriores a ideologias risíveis exemplares cada um. sobretudo em Pari , lt.'Jldo uma proporção invuJ.
ou de colectâneas de documentos não falsificados. A subinformaçào gar dessas tiragens sido lida por lTabalhadorcs revolucionários
ou a falsificação, que nestas obras dominam em absoluto, tiveram (segundo certos indícios, estes dois livros terão sido, pelo menos
uma aplicação específica no modo como quase todos os seus autores relativamente à sua tiragem. os mais roubados nas livrarias no ano de
escreveram sobre a actividade dos situacionistas. Sem falar dos livros 1968). Através do grupo dos Enragés. a l.S. pode gabar-se de ter tido
que se limitam a Silenciar este ponto e sem refenr as imputações influência na origem exacta da agitação cm Nanterre. que tão longe
absurdas, seleccionámos três estilos de inverdade, em conformidade levou. E cremos não ter ficado muito aquém do grande movimento
com os mesmos três tipos de obras. O primeiro modelo consiste espontàneo das massas que dominou o pais em Maio de 1968, tanto
em limitar a acção da 1.S. a Estrasburgo, dezoito meses antes,
como primeiro desencadeamento longínquo duma crise de que ela 1 Rcferênc13 80 hvro do'l inniins Cohn·Bcnd11, D:ioicl e Gamei. Le GITUChtrmi.
depois teria desaparecido (é esta também a posição do livro dos T'f!T11Me à ta ma/adie !tntle du communumc, 1k 196li.

186 287
de todo estranha a um qualquer papel direclivo. que a J.S veio a
pelo que fizemos na Sorbonne como pelas diversas fonnas de acção e:\ercer. Todas as tendências esquerdistas - incluindo o «22 de
que depois o Conselho para a Manutenção das Ocupações pôde levar Março», que na sua misturada continha leninismo. stalinismo à chi­
a cabo. Alem da I.S. propriamente dita. ou dum grande número de nesa, anarquismo e até umas pitadas de «situacionismm• não perce­
pessoas que perfilhavam as suas teses e agiram em consequência, bido - se baseavam muito explicitamente num longo passado de
muitas outras defenderam perspectivas situacionistas. quer por lutas. doutrinas e exemplos publicados e discutidos vezes sem conta.
influência directa, quer inconscientemente, pelo facto de tais perspec­ Essas lutas e publicações tinham sem dúvida. sido amordaçadas pela
tivas serem em grande medida as que-e:,1a época de crise revolucio­ reacção stalinista e descuradas pelos intelectuais burgueses. Mas
nária contmha de modo objectivo. Os que duvidarem podem ler as eram, apesar disso, infinitamente mais acessíveis que as posiç~es
paredes (citemos, no enlanto, para quem não tenha tido esta experiên­ ínéditns da l.S.• que só tinham sido divulgadas pelas nossas própn~
cia chrecta, a colectãnea de fotografias publicada por W.Uter Lewino. publicaçfü.:s e; actividades recentes Se os raros documentos conhro­
L'imagmation au pouvoir; Losfeld, 1968). dos da I.S. depararam com uma tal audiênci~ foi obviamente porque
Podemos pois afirmar que a minimii.ação sistemática da LS. é uma parte da critica prática mais avançada se reconhecia nesta lin­
apenas um pormenor semelhante à minimização actual, e normal na guagem. Por isso nos vemos agora em boa posição para expor a
óptica dominante, de todo o movimento das ocupações. A espécje de essência do que Maio 68 foi, mesmo na. sua feição apenas latenle;
inveja sentida por certos esquerdistas, e que muito contribui para esta para tomar conscientes as tendências inconscientes do movimento
depreciação, é aliás absurda. Os grupúsculos mais esquerdistas não das ocupações. Outros, que mentem, dizem na.da haver a entender
têm motivo nenhum para se apresentarem como rivais da 1.S.• porque neste desencadeamento absurdo; ou só dt!Screvem como um todo, no
a l.S. não é um grupo como eles; não lhes faz concorrência no terreno ecrã da ideologia. os seus aspectos reais mais antigos e menos impor­
do m1litantismo nem pretende, como eles, dirigir o movimento re'>o­ tantes; ou então prosseguem o «argumentismo»1, agora atra~és de
lucionário em nome duma interpretação pretensamente «correcta>> novos temas do «questionamento», auto-alimentado por este «ques­
desta ou daquela verdade petrificada e.~traida do marxismo ou do tionamClllo». Têm a seu favor os grandes jornais e as pequenas
anarquismo. ~ a questão como uma concorrência é esquecer algo de amizades, a sociologia e as grandes tiragens. Nós nada disso possuí­
essencial: contrariamente a estas repetições n.bstractas em que antigas mos, e 0 nosso direito à palavra só de n6s provém. No entanto, que .º
conclusões sempre actuais nas lutas de cless~ são inextricavelmcnte eles dizem de Maio sumú-se-á na indiferença e será esquecido; e
misturadas num monte de erros ou imposturas que entre si se dilace­ aquilo que nós dizemos irá pennanecer, acabando por ser entendido
ram, a 1.S. trOIL'(e sobretudo um espírito novo aos debates teóricos e retomado.
sobre a sociedade, a cultura e a vida Este espírito era sem dú\~da A influência da teoria situacionista lê-se, tanto como nas paredes,
rernlucionário e pôde ligar-se, em certa medida. ao efectivo movi­ nas acções dos revolucionários de Nantes e nas dos Enragés em
mClllo revolucionário que recomeçava. E foi porque este movimento
também pos.sufa wn carácter novo que ele teve semelhanças com a
.
Nanterre diversamente exemplares. Na imprensa do inicio de 1968,
- .
é visível a indignação que respondeu às novas formas de acçao mau­
I.S. e parcialmente adaptou, por sua própria canta, as teses situacio­ gurndas ou sistematizadas pelos Enragés. Nantcrre-na-Lama transfor­
nistas; essa relnçâo não ocorreu segundo o tradicional processo polí­
tico da adesão ou do seguidismo. O carácter em grande medida iné­ 1 Alusão à m<Ísta Argwrrems e â tcndencia que ahmcntnu Va tlOla d:i p. 263.
dito deste movimClllo prático é precisamente \ÍSfvel nesta injlui 11cia.
289
288
mava-se, nessa imprensa, em 1<Nanterre-da-Loucura>1, porque um de eswdantl!.S; essa opção livrava-os também dos aderentes frouxos.
belo dia uns quantos ~<vadios da univemdade>1 concluíram que c1tudo de todos os que espreitavam um situacionismo sem situacionistas
o que é dtScutlvel é para er discutido» e quiseram «que isso se onde pudessem instalar as suas obsessões e misérias. Nestas condi­
soubesse». ções, o grupo, que chegou às vezes a ler quinze membros, foi as
mrus das vezes constituído por meia dúzia ae agitadores. Era quanto
Na realidade, os que então se encontraram e formaram o Grupo bastava.
dos Enragés não tinham uma ideia precot}cebtda de agitação. Estes
«estudnntes» só frequentavam a universidade para salvar as aparên­ Os métodos que o:. Enragés utilizaram, cm especial a sabotagem
cias e para sacar as bolsas. O que aconteceu foi que as rotinas e os das aulas, hoje banais nas faculdades e nos liceus. escandalizaram
bairros da lata lhes pareceram coisas menos odiosas que o:. edificio profundamente, tanto os esquerdistas como os bons esludantes, che­
em cimento armado, a palóvia presunção estudantil e o fingimento gando os primeiros a organizar serviços de ordem para protegerem os
dos profe.ssores modernistas. Tmham imaginado naquilo um resto de profeswres duma chuva de injúrias e de laranjas podres. A generali­
humanidade, e ~ viram miséria, chatice ou impostura no caldo de zação do insulto merecido e do grafita, a promoção do boicote incon­
cultura onde de parceria patinhavam Lefebvre e a sua honestidade, dicional dos e.'ames, a distribuição de panfletos nas instalações uni­
Touraine e o fim da luta de classes, Bourricaud e os seus duros de verntárias e, em suma, o escândalo diário da sua existência, lançaram
roer, Lourau e o seu futuro. Estes, ainda por cima. conheciam as teses contra os Enragés a primeira tentativa de repressão. A 25 de Janeiro
situacionistas, sabiam que as cabeças pensantes do gueto as conheci­ [de 1968], Riesel e Bigorgne são convocado:, à rcitona; no tnicio de
am, pensavam nisso muitas vezes e dai extraíam o seu modernismo. Fevereiro, Cheval é expulso da residência universitária; no final de
Os Eruagês. por conseguinte, decidiram que toda a gente o havia de Fevereiro, Bigorgne é proibido de frequentar a faculdade (sendo
ficar a saber e trataram de desmascarar a fraude, reservando para depois e~pulso da Universidade francesa.. por cinco anos, ao início dt:
mais tarde a busca de outros terrenos de jogo: bem sabiam que pondo Abril). Alimentada pelos grupúsculos, uma agitação mais estreita­
a desandar os impostores e os estudantes e destruindo a Faculdade a mente polltica começara a desenvol\'CT-se paralelamente.
sorte lhes reservaria outros encontros, a outra escala. e que então
«ventura e desgraça fonna ganhariam». Entretanto, os velhos macacos da Reserva Universitária, perdidos
O seu passado, que não escondiam (origem maioritariamente anar­ no imbróglio da encenação do seu <<pensamento)>, só tardiamente se
quista, mas também surrealista e, num caso, trotskista). inquietou inquietaram. Foi por isso necessário forçá-los a fazer caretas, como
logo aqueles com quem de inicio tropeçaram: os ,·elhos grupúsculos Morin exclamando. verde de despeito, sob os aplausos dos estudan­
esquerdistas, trotskistas do C.L.E.R. 1 ou estudantes anarquistas, tes: «No outro dia mandaram-me para o caixote do lixo da Histó­
incluindo Daniel Cohn-Bendit, todos em disputa sobre a falia de ria.. J) - Interrupção: «Como terás tu conseguido sair de lá?» ­
futuro da U.N.E.F. e da função de psicólogo. A opção que os Enrages •<Prefiro estar do lado dos caixotes do lixo do que do lado dos que os
tomaram, levando-os a muitas exclusões sem indulgências inúteis, manuseiam, e seja como for prefiro estar do lado dos caixotes do lixo
garantiu-os contra o êxito que depressa tiveram jWlto duma ,intena do que do lado dos crematórios!» Ou como Touraine, babado de raiva
e aos berros: «Estou farto dos anarquistas. e ainda mais dos situacio­
1Comné de Lig:içiio do~ Esiudantcs Revoluc1on3rios. nistas! Por enquanto sou eu quem manda aqui, e se um dia ÍO!.sem

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vocês, punha-me a andar daqui pra fora e ia para onde reconhecem É picante. sem dúvidn, verificarmos que nas ~ri~cns do mo\i­
o meu trabalho.>1 Só um ano mais tarde as descobenas de tes precur­ mento de Maio se dá um ajusle de contas com os duplices pensadores
sores tiveram aplicação, nos artigos de Raymond Aron e Eliemble do bando argumentista. Mas ao atacarem a disfonne coorte dos pen­
protestando contra a impossibilidade de trabalharem e contra a ascen­ sadores subversivos a soldo do Estado, os Enragés faziam mais do
são do 101.alitarismo esquerdi ta e do fascismo \ennelho. A partir de que despejar uma querela antiga: agiam já como movimento das
26 de Janeiro, e até 22 de Março, as interrupções vi~)~ das aulas ocupações em luta pela ocupação real, por to~os os homens, de t~os
foram quase diárias, alimentando uma agitação permanente com vis1a 05 sectores da vida social regido' pela mentt.ra. Da mesma maneira.
â realização de vários projectos que abortaram: previu-o;e, para o ao escreverem nas paredes de betão «tomem os vossos desejos pela
inicio de Maio, a publicação duma brochura e para o início de Março realidade)), deslruiam a ideologia recuperadora da «ima~ação ao
a invasão e pilhagem do edificio administrativo da faculdade com a podeo>, pretensiosamente lançada pelo «~2 d~ M_a.rço». E que eles
ajuda do!> revolucionários de Nantes. Mas antes mesmo de ver tais tinham desejos, e os outros não tinham unagmaçao.
coisas, o reitor Grappm denw1ciou na sua conferência de imprensa de
28 de Março «Um grupo de estudantes irresponsáveis que desde há Os Emagés quase não voltaram a Nantcrre em ~ As veleida­
meses perturbam as aulas e os exames e praticam na faculdade mêto­ des de democracia directa alardeadas pelo Mov1mento do 22 de
dos de guerrilha [.-] Estes estudantes não fazem parte de nenhuma Março eram obviamente irrealizáveis em tio mã companhia e ~les
organização política conhecida. Constituem um elemento explosivo recusavam de antemão o lugarzinho que de boa vontade lhes destma­ _• .
num meio muito sensível.» Quanto à brochura, a tipografia dos vam na qualídade de jocosos extremistas, à csquer~ da unso~a
Enragés andou menos depressa que a revolução: e depois da crise «Comissão de Cultura e Criatividade». Em contraparll~ a ~dopça~
renunciaram a publiw um texto que Leria parecido mostrar-se profé­ pelos estudantes de Nanterre. emb~ra com ~ c~nfuso obJectivo :uit~­
tico após o acontecimento. -imperialista. de algumas das técmcas de agitaçao dos Enragés, .sigru­
ficava que 0 debate começava a ser posto no terreno que .~tes ~
Tudo isto explica o interL'5se que os Enragés mostraram pela ses.são querido definir. Os estudantes de Paris que atacaram.ª. poh:13 no. dia~
noctuma de 22 de Março. apesar da desconfiança que o conjunto do" · n>ennctll à última das inépcias da adnurustraçao umvers1­
de M810, em •""r--"- - · d
outros protC!l1.atãrios lhes inspirava Enquanto Cohn-Bendit, jã uma star tária, provaram-no também: o violento panfleto de adve_rtenc.1a • os
no firmamento de Nanterre. parlamentava com os menos decididos, da Emagés., A Raiva nas Entranhas. distribuído a 6 de MaJo, so ~e
Enragés instalaram-se sozinhos no sala do Conselho da faculdade, indignar os lerunistas que o texto denunciava. de tal modo correspondia
jwitando-se-lhes apenas 22 minutos depois... o futuro «MoV!Illento do cxactamente ao movt.mento real: em dois dias de combates de rua. os
22 de Marçon. É sabido (cf. o livro de Vténet) como e por que razão amotinados tinham encontrado o seu modo de usar. A actividade a~tó­
os Enragés se retiraram desta farsa. Além disso, viam que a policia não d Enragés terminou de maneira tão consequente como tinha
noma os · · d
aparecia e que não poderiam, com aquela gente. concretizar o único começado. Visto os recuperadores esquerdistas se terem msprra o
objectivo que se tinham fixado para a noite: destruir por completo os neles, trataram-nos de situacionistas antes até de estarem na l.S.,
ficheiros dos exames. Às primeiras horas do dia 23, decidiam excluir julgando poderem ocultá-los graças ao alarde com que se mostravam
cmco de entre eles que tinham recusado abandonar a sala com receio aos jornalistas que os Enragés unham cvidentem~nte rechaçado.
de «se separarem das massas» estudantis! O próprio termo de «Enragés», com que R.tesel de1Xou uma marca
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inesquecivel no movimento das ocupações, adquiriu tardiamente e França: «a ocupação das fábricas11 (soubera-se da ocupação da Sud­
durante certo lempo um significado publicitário «cohn-bendista».' -Aviation, ocorrida na véspera à noite): «oonstituição de Conselhos
A rápida sucessão das lulas de rua, nos primeiros dez dias de Operános; encerramento definitivo da Universidade, crítica completa
Maio. congregara de tmediato os membros da LS.... os Enragé!) e de todas as alienações». Convém notar que era a primeira vez. desde
alguns outros camaradas. Este acordo foi fonnalizado logo a seguir que a l.S. existia, que pooiamos a alguém. incluindo aos mnis próxi­
à ocupação da Sorbonne, a 14 de Maio. quando se federaram num mos das nossas posições, que fizesse alguma ooisa. Por isso a nossa
«CoIDJté Enragés-I.S.11, que nesse dia-começou a publicar alguns circular teve eco, e nomeadamente nalgumas das cidades onde o
documentos com esta assinatura. Disso resultou uma mais ampla movimento de Maio se impôs com mais vigor. No dia 16 à noite, a
expressão autónoma das teses situacionistas no interior do movi­ l.S. lançou uma segunda circular. expondo a evolução do dia e pre­
men10, mas não se tratava de estabelecer princípios particulares a vendo «um confronto de grande amplitude». A greve geral interrom­
partir dos quais pretendêssemos moddar o movimento real; ao cfü:er peu esta série de circulares, retomada. com outra forma. após o 20 de
o que pensávamos, dizíamos quem éramos, quando tantos se disfar­ Maio, pelos emissários que o C.M.D.O enviava à província e ao
çavam para explicar que se impunha seguir a política correcta do seu estrangeiro.
comité central. Nessa noile de 14 de Maio. a assembleia geral da
Sorborme, cfectivamenle aberta aos lrabalbadores, decidiu organizar O livro de Viénel descreveu em pormenor a maneira como o
ali o seu poder, e René Riesel, que nela tinha sustentado as posições Comité de Ocupação da Sorboone, reeleilo em bloco pela assembleia
mais radicais a respeito da própria organização da Sorbonnc e da geral do dia 15 à noite. viu desaparecer na ponta dos pés a maioria
ex1ensão lotaJ da luta encetada. foi eleito para o primeiro Comité de dos seus membros, que cediam perante as manobras e tentath: as de
Ocupação. No dia 15. os situacionistas presentes em Paris en'\iiaram intimidação duma burocracia infonnal que tratava de se assenhorear
para a província e para o estrangeiro uma circular, intitulada Aos de novo da Sorbonne (U.N.E.F., M.A.U., J.C.R., etc.). Os Enragés e
membros do /.S., aos camaradas que se declararam de acordo com os situaciomstas viram-se assim na necessidade de assumir a respon­
as nossas teses. Este texto analisava sucintamente o processo em sabilidade do Comité de Ocupação nos dias 16 e 17 de Maio. Não
curso e a sua evolução possíveL por ordem decrescente de probabi­ lendo depois a assembleia geral aprovado os actos com que este
lidades - esgotamento do movimento caso ficasse limitado «aos Comité e.~ercera o seu mandato. e não os tendo tão-pouco desapro­
estudantes antes de a agitação antiburocrática ter penetrado mais no vado {os manipuladores impediram qualquer votação da assembleia),
meio operário»; repressão; «revolução social?l1. Continha ainda um decláramos imediatamente que safamos desta Sorbonne debilitada.
relatório da nossa actividade até então e lançava um apelo com \.'ÍSta saindo então connosco todos quantos se tinham reunido em tomo
à mais ampla acção imediata «para dar a conhecer, apoiar e alar­ deste Comilé, deste modo se constituiu o Conselho para a Manuten­
gar a agilaçàon. Propunhamos os seguintes temas imediatos em ção das Ocupações. É necessário sublinhar que o segundo Comité de
Ocupação, eleito depois da nossa saída, se manteve em funções, igual
1
a s1 mesmo da gloriosa manerra que se sabe, até ao regresso da
O tmno Enragó (à letra·Andiat:!dos, EnmivcciJos) tem cm fumcês wn:1 ~\illdn·
eia política precisa. Os Ennigés for:im lllll:I d.u úucçõcs mai~ radicais da RC\'Oluçio
polfcia em Junho. Nunca mais tratou de fazer reeleger rodos os dias
FranCCSJ de 1789; rei\'indicando o dcmocrw:u1 d1recu, eram reprcscnunto 11 u1~n11cos e pela assembleia os seus delegados revogáreis. Este Comité de profis­
\'CClllcntcs das aspirações poflultru, deles fazendo Jllllc muitos Jovens e mu!hcn:s sionais acabou até muito depressa, depois dis ·o. por suprimir as

294 295
assembleias gerais, que a seu ver s6 davam azo a perturbações e eram tar como podiam indivíduos sem titulo pretender gerir 3 Sorbonnc
uma perda de tempo. Os situacionistas, pelo contrário. podem resumir não sendo partidário do equestro pelos trabalhadores de todas as
a sua acção na Sorbonne nesta linica fórmula: «todo o poder à assem­ propriedades do país. A nosso ver, ao pronunciar-se daquela maneira,
bleia geral>>. Tem por isso muita piada ou\·ir falar agora do poder a Sorbonne fomeceu uma última resposta ainda em sintonia com o
situacionista na Sorbonne., quando a realidade deste «podem consis­ movimento a que as tàbricas em boa hora da\am seguimento. ou seja.
tiu em lembrar consWI!temcnte o principio da democracia directa ali em sintonia com a resposta que as fábricas davam às primeiras e
e em toda a parte, em dL"Tlunciar inccss:l!!lemente recuperadores e limitadas lutas do Bairro Latino. Este apelo não ia certamente contra
burocratas, em exigir da assembleia geral que assumissse as suas as intenções da maioria das pessoas que então se encontravam na
responsabilidades tomando decisões e tomando executórias todas as Sorbonne e que tanto fizeram para o propagar. De resto, ao alastrarem
suas decisões. as ocupações de fábricas, até os burocratas esquerdistas se tomaram
partidános de um facto a respeito do qual não tinham ousado com­
O nosso Comité de Ocupação. devido à sua atitude consequente, prometer-se na véspero, continuando embora a hostilizarem os Con­
provocara a indignação geral dos manipuladores e burocratas esquer­ selhos. O mo'timento das ocupações não linha. é claro, necessidade
distas. Se defendemos na Sorbonne os princípios e os métodos da duma aprovação da Sorbonne para se estender a outras empresas.
democraeta directa, nem por asso alimentávamos ilusões sobre a com­ Mas, além de que nesse momento cada hora contava para pôr todas
posição social e o nível geral de consciência desta assembleia; tinha­ as fabncas em ligação com a acção encetada por algumas, ao mesmo
mos presente o paradollo duma delegação mais firme que os seus tempo que os sindicatos tentavam por todo o lado ganhar tempo para
mandantes nesta vontade de democracia directa e víamos que isto não impedirem a paralisação do trabalho, e de que um taJ apelo, a partir
podia durar muito. Mas únhamos sobretudo tratado de pôr ao serviço da Sorbonne, obteve logo grande difusão, incluindo radiofónica, com
da greve selvagem, que então começava, os meios, nada desprezíveis, a luta que começava parecia-nos muito importante apontar para o
que a posse da Sorbonne nos facultava. Foi assim que o Comité de má.rimo a que ela devia tender imediatamente. As fábricas, porém,
Ocupação tomou pública a 16 de Maio, pelas 15 horas, uma breve não chegaram a fonnar Conselhos. e os grevistas que começaram a
declaração apelando «à ocupação imediata de todas as fábricas de ocorrer à Sorbonne não puderam descobra ali o seu modelo.
França e à formação de Conselhos Operários» O resto do que nos foi
censurado era quase nada em comparação com o escândalo que cau­ Podemos muito bem pensar que este apelo contribuiu para abrir,
sou em todo o lado - excepto no seio dos ccocupantes de base» ­ aqui e ali, algumas perspectivas de Juta radical. Em todo o caso,
este «temerário» empenhamento da Sorbonnc. No entanto, nesse figura certamente entre os factos desse dia que mais temores inspira­
momento, duas ou três fábricas estavam ocupadas, uma parte dos ram. É sabido que o primeiro-ministro. às 19 horas, fez difundir um
transportadores das N.M.P.P.' tentava bloquear a dístribwçào dos jor­ comunicado afirmando que o governo, «perante diversas tentativas
nais e várias oficinas da Renault, como se soube duas horas depois, anunciadas ou estimuladas por grupos extremistas com vista a provo­
começavam com êxito a paralisação do trabalho. É caso para pergun­ carem uma agitação generalizada>>, faria tudo para manter c<a paz
civil» e a ordem republicana <<caso a reforma universitária não fosse
1
No11\cUcs Mcssagcrics de la Prme Parisicnnc, diStribuidon ll!ICÍOnaf de lwros e
mais que um pretexto para lançar o país na desordem>>. Ao mesmo
publicações. tempo, foram chamados lO000 reservistas da policia de segurança

296 297
pUblica. De facto a «ref"""'ft .
' v•uua UWvers1lária11 •
texro. mesmo para 0 governo . nao passava dum pre­ massas. em toda a sua profundidade, bem como as notãvets iniciati­
.dad . que escondia deb .
nccess1 e, por ele tão brus aixo desta honrosa vas de dezenas de milhares de pessoas. Aprovámos o comportamento
· b. cameate desco"-ft
Vila o ngado ante a sublevar:; B . ~ '4> o recuo a que se de alguns grupos revolucionários que tivemos oportunidade de
yuO no élUTo latino.
conhecer, em Nantes e Liào, bem como os actos de todos os que
O Conselho para a Manutea • da · : estiveram em contacto com o C.MD.O. Os docwnentos citados por
ramente o Instituto Pedagógic~N ~ Ocupações, ocupando primei­ Viénet mostram com toda a evidência que além disso aprovámos
melbor que pôde durante a crise acroaaJ, na Rua d'Ulm. agiu o parria/menre muitas declarações emanadas de Cornit~s de Acção.
lJ1'p • para a qual de

.:.-..ve se tornou geral e se imobil' • resto, logo que a E com certe:za teríamos também concordado com muitos grupos ou
• • IZOU na def,...,..:
revo 1UCJonário organizado então . "'"'11va, nenhum grupo cornités que não pudemos conhecer durante a crise, caso tivéssemos
· existente Pod' .
notave1. Congregando os situa . . ta contnbuu de modo tido ocasião de ser infonnados a seu respeito - sendo ainda mais
> . CIOmstas, os E ' .
sessenta outros revolucioaan·· . nmges e uns tnnta a patente que, ignorando-os, não pudemos de maneira nenbwna criticá­
os conselhistas (
- estudantes)• o CM.o.o. assegurou um rnenos de um décimo
eram -los. Dito isto, porém, quando se trata dos pequenos partidos esquer­
çoes em França e no aterior, tratando ~de número de liga­ distas e do <<22 de Março1>, de Barjonet ou de Lapassade, 1 muito
do
. movimento • de dar 3 conh CSJ>ecialmente
ecer o seu 51· · • J'á para o fim surpreendente seria esperarem de nós uma aprovação polida, conhe­
nos de outros países que Podiam . . &ruficado aos revolucioná­ cendo as nossas posições prévias e sabendo qual foi neste pcrlodo a

numero de cartazes e doeum lDSpuar-se neJe. Publicou um certo
b entos, sendo os . . . actividade das pessoas em questão.
so re a Ocupação da Sorhonne. de d in:mc1pais o Relatório Também nunca pretendemos que certas formas de acção ocorridas
19
Conselhos Operários, de 22· e a •, e Maio; Pelo poder dos no mo"imento das ocupações - com excepção talvez das bandas
• .ue11Sagem Ti
~ de 30 de Maio; os mais im rtan ~ odos os Traballzado­ desenhadas criticas - tiveram origem, directamente, nos situacionis­
200 000 exemplares. O C.M D 0 po
tad0 . •
1
:5 tiveram tiragens de uns
.. ., que nao fora düi 'd tas. Pelo contrário, a origem de todas essas formas encontra-se nas
por mnguem com vista 11 um qual gi o nem recru­ /11/as operárias «selvagens»: desde há anos, têmo-las citado em
·se no d.ia 15 de Junho f...Jo e MD Oqucr futuro, ((d.ecid.iu dissolver­ vários mimeros da nossa revista, especificando a sua proveniência.
si,. nem procedeu a um quaJm,· · não pr""'·­
---wou obter nada para Foram os operários os primeuos a atacar a sede dum jornal, protes­
. ,-er recrutamento d
VJ.Sta a uma existência pennanente
ram b. . 0 seus Parti e. Participantes com tando contra a falsificação das informações publicadas a seu respeito
os o ~ectwos pessoais dos objecti . cipantes não separa­ (em Liege, em 1961); que incendiaram automóveis (em Mcrlebach
ind.ividuos independentes âssoc· d vos gerais d.o movimento. Eram
· 'ª
os para uma
eretas. num momento preciso; e voltaram a s 1~ em bases con­
[Leste da frança}. em 1962); que começaram a escrever nas paredes
as fórmulas da nova revolução (1<Aqui acaba a liberdade», numa
essa lu:3.>> (Viénet, op. cil.) O Conselh er llldependentes após
parede da fábrica Rhodiaccta, em 1967). Podemos em can~artida
0
OcupaÇOes fora assim «um elo não Para a Manutenção das
assinalar como evidente prelúdio à actividade dos Enrages em
• um Poden>.
Nanterre.' que em Estrasburgo. a 26 de Outubro de 1966. pela pri­
Honve quem nos N>n~,,
••
...
·~·... ..,~.
em M .
rr-
éllO e descf meira vez, um professor da Universidade foi atacado e posto fora da
cnttcado toda a gente, apresentando a acti • e então, por termos
como a única aceitável É inexacto A VJd.ade dos situacionistas 1 André Barjonct, dtrigcnic d3 C.G.T., central smdtcal na 6rb11J do P.C f., Georgrs
· · · provám 0 5 .
298 o moVlmento dns L.:iJxtSSBdc. sociólogo. colaborad« da f'l:\'ÍSl:i .41g11mrnts.
299
sua cátedra; foi o destino a que os situacionistas expuseram o Parece-nos e apresentmoos e:.ta conclusão antes de mais aos n~ ­
cibernético Abraham Moles quando da sua lição inaugural. camaradas' de outros paises que venham a enfrentar uma cnse
desta natureza. que estes exemplos mostram aqui·1o que podem. fazer
sos . .•
Todos os nossos textos publicados durante o movimento das ocu­ . • stádio de reaparecimento do movimento revoluc1onano
no pnmeiro e · 1 Em Maio
pações mostram que os situacionistas nunca nessa alnira·propagaram proletário. uns quantos indh íduos, coerentes no essenc1a . • •
ilusões sobre as possibilidades dum êxito completo do movimento. só se encontravam em Paris uns dez situacionistas e ~ges. e n~
Sabíamos que este movimento revolucionário, objectivamente pos.sf­ . . .'"as
um na provmc1a. ~• a fiavorável conJ"unf"!io
r do. improvISO
. revoluoo­
vel e necessário, partira subjectivamente de muito baixo: espontâneo nário espontâneo e duma espécie de aura de s1mpa1Ja que ~deava a
e disperso, ignorando o seu próprio passado e a totalidade dos seus l.S. tornaram possível coordenar uma acção bastante vasta. nao só em
objectivos, surgia após meio século de esmagamento e tinha pela Paris mas em várias grandes cidades., como se se tratasse duma orga­
frente todos os seus vencedores ainda bem mstalados, burocratas e nização preexistente de âmbito nacional. Mais amplamente at~ do.que
burgueses. Uma vitória duradoura da revolução era apenas, a nosso esta organização espon1ànea, uma espécie de vaga e InJstenosa
ver, uma ínfima possibilidade, entre 17 e 30 de Maio. Mas visto essa
possibilidade existir. apresentárno-Ja como o máximo em jogo, a par­
tir dum certo ponto que a crise atingira, no qual, sem dúvida, valia
a pena arriscar. Nessa altura, independentemente do seu devir, o
movimento constituía já uma grande \'itória histórica e, pensando
isso, pensávamos também que çó metade do que já acontecera teria
sido um resultado muito significativo.

Ninguém pode negar que a l.S., nisto oposta por igual a todos os
grupúsculos, se recusou a fazer toda e qualquer propaganda a seu
favor. Nem o C.M.D.0. empunhou a «bandeira situacionista», nem
nenhum dos nossos textos desse período falou da I.S. excepto para
responder ao impudente con\jte para uma frente comum lançado por
1
Barjonet logo a seguir ao comício de CharJéty. E entre as múltiplas
siglas publicítánas dos grupos com vocação diàgente, não se viu. nas Barricada spartaqulsta . d
paredes de Paris, uma só inscrição evocando a I.S.; apesar de os ·Noske óispara com a artilharia - Spârtacus só tem inlantana - ~_grana as
á caem nas nossas fileiras - Os cães de Noske sobre Büxenste1n se lan­
nossos partidários serem sem dúvida os mais notónos mestres nessas 1çam... _ Canção dos operanos.
· · soldados e marinheiros de Berlim, 1919, atada
inscrições murais.
em Georges Glaser, Seetet et Violence

1
O comício no estádio de Chariéty, cm Paris, onde tnmbém cstJvumn rcprcsenllldos • Na Rua Gay Lussac os rebeldes - só têm carros pra incendiar(...]
csquc:rdmas, brandindo a bandcira wnitári:i» pretendeu ser lllll4 plataforma pm um
Como gran120 nos lançam -granadas, gazes de doro - E nós. as armas que
C"Ventual gs>vmio da «CSqUmla unidall. temos - só pâs e lacas a esmo• - CançAo do C.MD.O.

300 301
ameaça situacionista fot sentida e denwiciada cm muitos lados; dela teria pennitido uma mta liberdade de manobra. quer graças a um
eram portadores umas centenas ou quiçá llllS milhares de indivíduos contra-assalto num ponto do perimetro atacado, quer avançando com
que os burocratas e os moderados qualificavam como situacionistas as barricadas para leste da Rua Mouffetard, zona bastante mal defen­
e, mais arniú~e segundo a abreviatura popular surgida nesta época, dida pela policia até horas tardias, de modo a abrir uma via de
como si1us. E para nós uma honra que este termo de 1<situ», cuja retirada para todos os que foram apanhados na rede (só por sorte
origem pejorativa parece situar-se na linguagem de certos.ineios estu­ escaparam algumas centenas, graças ao precário refúgio da Escola
dantis da província, não só servisse para designar os participantes Normal Superior).
mais extremistas do movimento das ocupações como também
incluísse conotações evocadoras de vândalo, ladrão, vadio. No Comité de Ocupação da Sorbonne, fizemos mais ou menos
Não pensamos que evitámos cometer erros. É também para instru­ tudo o que podiamos, dadas as condições e a precipitação do
ção de camaradas que possam ver-se ulteriormente em cirCW1stâncias momento. Não nos podem censurar por não termos feito mais para
semelhantes que aqui os enumeramos. modificar a arquitectura deste lúgubre edificio, que não tivemos
tempo de percorrer. É verdade que ali subsistia uma capela fechada;
Na Rua Gay-Lussac, onde nos juntávamos em pequenos grupos mas nós tinhamas lançado, através de cartazes, um apelo aos ocupan­
reunidos espontaneamente, cada um destes grupos encontrou várias tes - e R1esel, também. na sua intervenção na assembleia geral de
dezenas de pessoas conhecidas ou que nos conheciam apenas de vista 14 de Maio - para a destruirmos rapidamente. Por outro lado, a
e vinham falar connosco. E depois cada qual, na admirável desordem «Rádio Sorbonnc» não existe como aparelho emissor, e ninguém nos
que este («bairro libertado» apresentava, muito antes até do inevitável pode censurar por não a tennos utilizado. É evidente que não enca­
ataque dos polícias, se afastava em direcção a uma ou outra 1<fron­ rámos nem preparámos o incêndio do edificio. uo dia 17 de Maio,
teira» ou a um ou outro preparativo de def~n. De modo que, não só apesar de ter corrido esse boato na sequência de certas calúnias obs­
todos esses grupos acabaram por ficar mais ou menos isolados, mas curas dos grupúsculos; mas esta data é quanto basta para mostrar a
também os nossos próprios grupos não puderam juntar-se, as mais que ponto um tal projecto teria sido impolltico. Tão-pouco nos dis­
das vezes. Foi da nossa parte um grande erro não termo pedido persámos nas minudências, seja qual for a utilidade que lhes atri­
imediatamente a todos os grupos que se mantivessem juntos. Em buam; é pois pura fantasia o que Jean Maitron adianta, ao escrever
menos dwna hora, um grupo a agir dessa maneira ter-se-ia inevitavel­ que <10 restaurante e a cozinha da Sorbonne [...] ficaram até Junho
mente multiplicado, congregando toda a gente que conhcci!ssemos controlados pelos "situacionistas". MuJto poucos estudantes entre
entre os das barricadas - onde cada um de nós dava com mais eles. Muitos jovens sem trabalho.» (la Sorbo11ne par el/e-même,
amigos que num ano inteiro vagueando por Paris. Poderíamos asSl.Dl p. 114, Éditions Ouvrieres. l968). Devemos. todavia, criticar-nos
ter formado um bando de duzentas a trezentas pessoas conhecidas pelo seguinte erro: os camaradas encarregados de enviar para a
entre ~ capazes de agir em conjunto, coisa que justamente mais falta impressão os panfletos e declarações emanados do Comité de Ocupa­
fez nesta luta dispersa. Sem dúvida, a nossa relação numérica com as ção a partir das 17 horas do dia 16 de Maio, substituíram a assinatura
forças que cercavam Lodo o bairro, com efectivos três vezes superio­ <(Comité de Ocupação da Sorbonne» por 11Comité de Ocupação da
res aos amotinados, e isto sem falar da superioridade do seu arma­ Universidade Autónoma e Popular da Sorbonnei1, sem ninguém ter
mento, condenava à partida esta luta. Mas o tal grupo a que aludimos ponderado essa alteração. É evidente que isto constituía um retro­
302
303
cesso com alguma importância, porque o único interesse que 8
Sorbonne tinha para nóc; era ela constituir um edific10 ele q11e o rnmi­ Vejamos os principais n:.mltados, até agora, do mo\.imento das
mcnto 1r:wJ/ucionário se apoderara, levando aquela assinatura a crer ocupações. Apesar de \"cncido, este movimento não foi de modo
que reconhecíamos a este lugar fi ico a sua pretensão a ser ainda uma nenhwn esmagado. Tal é, sem dúvida, o ponto mais notãvel e de
1mfrcrsidatk, embora uautónoma e populam; coisa esta que despreza­ maior interesse prático. Aparentemente. nunca uma crise social de
mos, e tanto mais deplorável por parecennos aceitá-la. nqquela altura. tamanha gravidade pudera acabar sem que a repressão \'iesse enfra­
Um erro de inatençâo, menos importante, foi cometido a 17 de Maio quecer, por um período mais ou menos longo, a corrente revolucio­
quando um panfleto, emanado de operários da base vindos da Renault, nãria, numa espécie de contrapartida com que esta tem de pagar a
foi difundido com a assinatura 11Comité de- Ocupação». O e.o. agira experiência histórica concretizada. Como se sabe, o poder não man­
muito bem ao fornecer meios de expressão, sem censura nenhuma. a le\·e nenhuma repressão propriamente política, embora, como é
estes trabalhadores, mas era necessário explicitar que o texto era redi­ ób\io, além dos muitos estrangeiros expulsos por via administrativa.
gido por des, sendo apenas editado pelo Comité de Ocupação; e isto vãrias centenas de revoltosos tinham sido condenados, nos meses a
tanto ma.tS quanto estes operários, apelando a continuarem-se as «mar­ seguir. por delitos considerados «de direito comW11>>. (Apesar de mais
chas até à Renaulb>. naquela altura ainda admitiam o argumento de um terço dos efeclivos do Comité para a Manutenção das Ocupa­
mistificador dos sindicatos sobre a necessidade de se manterem encer­ ções ter sido preso nos diwrsos afrontamentos. nenhum dos seus
rados os portões da fábrica, para que a sua abertura não pudesse dar membros foi alvo de tais medidas, pelo facto de a retirada do
pretexto a um ataque da policia e constituir, para esta. uma vantagem. C.M.D.O em fim de Junho. ter sido muito bem conduzida.) Todos
os responsáveis políticos que não souberam, no fim da crise, escapar
O C.M.D.O. esqueceu-se dt: fim_,. registar em cada uma das suas à detcm;ão, foram libertados após algumas semanas de prisão, não
publicações a menção «impresso por operário em greve», que cer­ sendo nenhum deles levado a tribunal. O governo teve de se decidir
t.amente teria sido exemplar, em perfeíta intonia com as teorias que a este novo recuo apenas para obter uma aparencia de calma na
0) textos evocavam e dando uma excelente réplica à habitual marca reabertura das aulas e uma apare11eia dt! e:camcs no Outono de l968;
~ndical das tipografias que laboram para a imprensa. Erro mais grave logo no fim de Agosto, bastou a pressão do Comité dos Estudantes de
amda: ao mesmo tempo que se fazia uma excelente utilização do Medicina para obter esta importante concessão.
lelefone, descurámos por completo o uso do telex, que tornava pos­
sível contactarmos muitos edifkios e fábricas ocupados em França e A amplitude da crise revolucionária desequilihrou com gravidade
transmitirmos informaçõei para toda a Europa. Singularmente, «aquilo que foi atacado frontalmente [- .] a economia capitalista a fw1­
descw-ámos o circuito utilizável dos observatórios astronómicos, que cionar bem» (Viénet), não por causa do aumento, perfeitamente supor­
nos era acessível pelo menos a partir do ocupado Observatório de tável, concedido sobre os salários, nem sequer por causa e.la paralisação
Meudon [região parisiense]. total da produção durante várias semanas, mas sobretudo porque a
burguesia francesa penJeu a confiança na estabilidade do pais; coisa
Dito isto, porém, e porque se trata de formular um juízo sobre 0 que - Juntando-se aos outros aspectos da actual crise monetária nas
essencial, reunindo e considerando todas estas iniciativas da J.S., não trocas internacionais - levou à evasão maciça dos capitais e à crise do
vemos em que deveria ela ser alvo de censura. franco, surgida logo em Novembro (as reservas nacionais em divisas
passaram de 30 biliões de francos em Maio de 196 para 18 biliões um

305
:mo depoL'i). Apó a dl!S\'Blorizaçào atro.sada de S de Agosto de 1969,
o ú Mondt! do dia eguiute t"OJTJl'ÇllVa a npen:cbcr-se de que «o fram:o,
como o general fDe Gaulle]. tinha .. morrido.. em Maio». 1
O regime 11gaullistau não passava de um íntimo ponnenor nesta
comestaçào geral dn capitalismo moderno. Mas o podi:r de De Gaulle
foi. também ele, atingido em Maio com um golpe mÕna·I. Apesar do
seu restabelecimento cm Junho - objcctivamente facil. como disse­
mos. visto a luta \crdaddra ter sido pcrdüla noutro domínio-, De
Gaulle não podia apagar, C<,mo responsável do Estado que sobrevi­
't7'11 ao movimento das ocupações. o defeito de ter sido responsável
pelo Estado que suportara o esc..indalo da existência deste mo\·i­
mento. De Gaulle, que se limitava a dar cobertura, no eu estilo Ocupação da reitoria na Sorbonne . •
·Ó prodígio! Quantas belas criaturas aqui vejo reunidas' Corno e admiravel a
pessoal, a tudo o que ocorria - constituindo estas ocorrências tão-só
humanidade! ó esplêndido novo mundo que tais habitantes lem'· - Sha­
a modernização nonnal da sociedade capitalista - • pretendera reinar kespeare, A Tempestade
com base no prestigio. Ora o cu prestigio sofreu em Maio uma
humilhação definith·a. subj\;ctivamente sentida por ele próprio tal
como foi objcctivamcnte verificada pela classe dominante e pelos crãtica ou pseudo-reformista, mas porque se tomou notório, no_ di_a
eleitores que a plebiscitam indetinidam1.:ntc. A burguesia francesa seguinte, que a Rua Gay Lussac ia dar directamente a todas as fabn­
proclll'll encontrar uma fonna mais racional de poder político, menos cns de França.
caprichosa e distraída; mais inteligente para a defender das novas Uma desordem generalizada., pondo em causa, pela raiz. todas as
ameaças cujo surgimento constatou com assombro. De Gaulle queria instituições, instalou-se na maior parte das faculdades e sobretudo
apagar o persistente pcsndclo. •<os úhimos fantasmas de Maio», sain­ nos liceus. Se é \erda<le qul!, ncudin<lo ao mais urgente, o Estado
do vitorioso, a 27 de Abril [de 1969]. do referendo anunciado a 24 de safou mais ou mi:nos o nível do ensino nas disciplinas cil"lltíficas e
Maio [de 1968] - e que a sublevação. nessa altura, logo anulara. nos poucos grandes instítutos do ensino superior, fora destes o an.o
O «poder estável» que então estrebuchou sentia muito bem que já não umvcrsitário de 1968-69 ficou perdido por completo - desvalon­
tinha equilfürio, fazendo por isso questão, imprudentemente, de ser zando-se assim os diplomas quando a massa estudantil está ainda
tranquilizado com o ritual dum.a nora adesão factícia Mas os lemas longe de os desprezar. Uma tal situação, a longo prazo, é incompa­
dos manifestantes de 13 de Maio de 68 justificaram-se: De Gaulle thel com o funcionamento normal dum pais industrial avança.do.
não chegou ao .seu 11.0 anivcrsãri~. Não por causa da oposição buro­ encetando-se uma queda no subdesenvolvimento ao criar-se um
<cestrangulament0» qualitatirn no ensino .ecundário. Embora a cor­
1
rente extremista não ll"llha de facto mantido urna \Crdadcira base no
Adcsval011ZJ1çiiD do iianco é vrtnda por DI.• G:iulle cm 23-11-68; este dermte-sc das
funções de Presidente dJ Repúblic:a an 28-4-69, \mJo a falecer an 9-11-70.
2 De Gaulle esta\'3 no poder dadc 1 de Junho de 1958, ahllJll em que foi designado pcrtom: Paris a 13 de Maio. cm smtoma com adeclaração tluma gl'C\'e geral de ~4 horas,

tximCITIHllinistro pcla Asscrnhlcus , 3CÍonal No llllem:J ll'Ullufcstação prolet.ina que UIJlll da> pala\'ras de onlem cbmaw ., Dez 1111os, J3 c:bi:gl)'»

306 307
meio estudantil, ela aparentemente d1. põe de força sufic1enre para desmentindo-a na prática. a última fomta de ideologia que o velho
promover um processo de degradação continua: no final de Janeiro mundo lhes há-de opor: a idoologia conselhísta, tal como foi expri­
[de 1969), a ocupação e o saque da reitoria na Sorbonne, e, depois mida, numa primeira e grosseira fonna, já no fim da crise, por um
disso. muitos outros incidentes bastante graves, mostraram que a sim­ grupo chamado «Revolução lnternacionah>, implantado em Toulouse,
ples continuidade dwn pseudo-ensino constitui importJ'lnté motivo de que muito simplesmente propunha - não se sabe aliãs a quem ­
inquietação para as forças da ordem. que se elegessem Conselhos Operários por cima das assembleias
A agitação esporádica das iàbricas, que aprenderam a praticar a gerais. as quais, deste modo, se limitariam a ratificar os actos desta
greve selvagem e onde se implantaram -grupos radicais mais ou sábia neodirecçào revolucionária. Este monstro leninista-jugoslavo,
menos inimigos conscientes dos sindicatos, conduz, apesar dos esfor­ adoptado depois pela «Organização Trotskista» de Lambert', é hoje
ços dos burocratas, n muítas greves parciais que facilmente paralisam quase tão estranho como o emprego da expressão «democracia
empresas cada vcz ma.is concentradas e nas quais aumenta sem cessar directa» pelos gaullistas quando estes andavam cegamente embeiça­
a interdependência da'> di"ersas operações. Estes abalos não permi­ dos pelo 1<diálogo1> referendfuio1• A próxima revolução só recoohe­
tem esquecer que nas empresas o chão continua instável e que as cerã como Conselhos as soberanas assembleias gerais da base, nas
formas modernos de exploração revelaram em Maio, simultanea­ empreasas e nos bairros, dependendo dessas assembleias, inteira­
mente, todos os meios de que dispõem e a sua nova fragilidade. mente, os seus delegados sempre revogáveis. Uma orgaruzação
conse1hista nunca defenderá outro objectivo: tem de traduzir em actos
Após a erosão do \'elho stalinismo ortodoxo (visível até nas perdas uma dialêctica que ultrapasse a oposição congelada e unilateral entre
da C.G.T. nas recentes eleições profissionais), ê agora a vez de os espontaneismo e organização clara ou manhosamente burocratizada.
pequenos partidos esquerdistas se gastarem em manobras desgraça­ Tem de ser uma organização que avance m.'Olucionariamente para a
das; quase todos leriam gos1ado de recomeçar mecanicamente o pro­ revolução dos Conselhos; uma organização que não se disperse após
cesso de Maio, para nele recomeçarem os seus erros. Infiltraram o momento da luta declarada, e que não se institucionalize.
facilmen1e o que restara dos Comités de Acção, e estes não tardaram
a sumir-se. Os próprios pequenos partidos esquerdistas se fendem em
numerosos cambiante hostis, cada qual firmemente cimentado numa
tolice que com glória exclui todos os rivais. O:i elementos extremis­
' Alusão à O.C.I. (Orgnniznçiío Comunista lntcm:u:ionnlista}, fuc:çio ttotskislll cujos
tas, numerosos desde Maio; estão sem dúvida ainda dispersos - e manbros são por Vl!leS chamados lambatiiw, do nome do seu líder. Durante a crise de
antes de ma.is nas fabricas. A coerência que têm de adquirir ainda Maio 68, a 0.C.I. dcmmciou cano fClvaJlmeirismo» a ed11icaçiio das b.1rricadas em
anda alterada, por \~.irias razões: por não terem sabido orga.niz.ar uma Paris, o que a isolou. T:il como as outras organizações de cxtn:ma-csquenla, foi ne•M
verdadeira prática autónoma; por ilusões antigas ou palavreado; ou altura p!O\'isorimnmtc ilcg31iz:ula pelo governo
atê, às ,·ezes. por uma nada sadia e unilateral admiração «pró-situa­ : Alusão ao referendo sobte a tpm'ticipoç:io• dos tmbal.b:tdurcs (nos bcnefic~ das
empresas, por c:xcmplo}, ll:nUI caro a De Gaulle, que lançou a YDSta iniciati''a lilnnll"Ópica
cionista». A sua ünica via estã no entanto traçada, obviamente diílcil
a 24 de Maio de 1%8, na sequência dai. primcirM oc:uprações de fabric3S Participação
e longa: a formação de organii.ações consdhütas de trabalhadores é aqui sinóoirno de co-gcstào, ou seja. duma mais eficaz inlegrlÇlio dos irabolh:!Jorcs na
revolucionànos, federadas owna base e:<clusiva de democracia total gcstJo da sua próprü miséria; ~ndo o modelo alemão, 1 ro-gcruio implica o dC\erdc
e critica total. A sua primeira tarefa teórica consistirá em combater. pacificação tmcdinta dos cooflitm de tra.balho

J08 309
armas" ... Responsáveis: um pequeno grupo ili! estuchmtes re\ olucio­
nários. Meio-letristas. meio-situacionistas •..>1. France-Soir; 6-8-69

Esta p~ectira não se limita à França, é internacional. Impõe-se


compreender cm toda a parte o !!COiido total do movimento das
ocupações, tal como o seu exemplo em 1968 desencadeou ou levou
a um grau superior graves tumultos na Europa, nas Américas e no
Japão. Das sequências imediatas, as mais assinaláveis foram a san­
grenta revolta dos estudantes mexicanos, reprimida num relativo iso­
lamento e o movimento dos estudantes jugoslavos contra a burocra­
cia e em prol da autogestão proletária, que arrastou consigo uma
parte do operariado, pondo o regime de Tito em grande perigo; mas
neste último caso. mais do que as concessões proclamadas pela classe
Programa que antecede o movimento situacionista dominante, a intervenção russa na Checoslováquia veio poderosa­
·Como vamos nós lançar para a falência a cvltura dominante? De duas manei­ mente socorrer o regime, pennitindo-lhe «unin> o país ao fazê-lo
ras: primeiro, gradualmente, e depois, bruscamente.• - lntemat1onale temer a C\entualidade duma invasão por uma burocracia e~1rl1Dgeira.
S11uationniste n.• 8, Janeiro de 1963
A mão da nova internacional começa a c;er denunciada pelas polícias
· Mwtos transeuntes, entre os quais ooerãrias dum estaleiro vizinho, copiam de diversos países, que julgam descobrir as directivas de revolucio­
aplicadamente citações afixadas nas paredes da faculdade, situada à beira do nários franceses na Cidade do México no Verão de 1968 ou em Praga
no Vltava': ·~ "Que terrível época, esta em que os imbecis dirigem os cegos• na manifestaçào anti-russa de 28 de Março de 1969; e o governo
(Shakespeare)•. - Le Monde, 20-11 ·68 franquista, no principio do ano corrente, justificou explicitamente o
recurso ao estado de excepçào com o risco duma evolução da agita­
«Todos lemos estes grafitos: feitos no inicio de Janeiro de 1969, ção universitária conducente a uma crise geral de tipo francês. Hã
desapareceram depois da primeira volta das eleições presidenciais. muito tempo que a Inglaterra conhecia as greves selvagens. sendo
Tiveram extStência efémera.. mas provocaram tantos comentários que evidentemente um dos principais objectivos do governo trabalhista
os responsáveis pela publicidade no metropolitano, para evitarem conseguir proibi-las: mas es1á fora de dúvida que foi a primeira expe­
uma qualquer "nova vaga", decidiram afixar em todas as es1ações do riência duma greve geral selvagem que levou Wilson' a pôr tanta
metro um cartaz lembrando aos autores de grafitos "que incorrem pressa e pertinácia na obtenção, este ano, duma legislação repressiva
numa multa de 400 a 1000 francos, acompanhada de uma pena que
vai de dois a trinta dias" ... Um especialista da publicidade resumia 1 Referência 1 Harold Wilson, primeiro-ministro do governo trab:llhislll en!JC
a acção dos autores de grafitos com a seguinte fónnula: "Combate­ 1964-70.Apartir de 1967, Wilson, para inacmcmar a lalla de lucro do copil:llismo mglês,
ram a publicidade no seu próprio terreno e com as suas próprias que dc:c!i 1 partir de 1950, tenta refcrnwr M relações indusuiais, cstlbc:la:endo, ncxnca­
damcnre, uma legislllç:1o anngme. ~Ili 1mciativa, en.:unada pela ministra do Tniliolbo,
1
Alusão às luw cO!llT'll 1 bmguc:sia \mncllul em Pnig:i. Barbara Cas1h; ~•ta WD3 violenta oposição entre o governo e as bases opcrúrias

31 t
310
contra este tipo de greve. Este arrivista não hesitou arriscar a carreira textos de base (nas editoras Feltrinelli e De Donato). ~e~ d:vido à
no «projecto C~e1,, nell\ a própria unidade da burocracia político­ acção radical de alguns individuos, embora a actual secçao Jtali~ da
-sindical trabalhista, porque, se os sindicatos são os inimigos directos I.S só em Janeiro de 1969 tenha sido fonnalmente constitu1da.
da grC\.·e selvagem, também têm medo de perder toda a sua_importân­ A lenta evolução, desde há vinte e dois meses, da crise italiana - a
cia ao perderem o controle que exercem sobre os trabalhadores, caso que se chamou (<O Maio rastejante11 - ~ começara por ~t~-se, ~
fosse entregue ao Estado 0 direito de intenir, sem passar pela sua 1968 nas areias movediças dum «Movimento Estudantiln mwto maJ.S
mediação. contra as formas reais da luta de classes. No I.º de Maio (de a~do ainda do que em França, e isolado - com a e.xcepção exem­
1969]. a greve anti-sindical de cem mil estivadores, tipógrafos e plar da ocupação da Câmara Municipal de Orgosolo, na Sardenha,
metalúrgicos contra a lei com que os ameaçavam, mostrou pela pri­ por estudantes, pastores e operários unidos. Mas também as lutas
meira vez desde 1926 uma greve política em Inglaterra; bem entendido, operárias começaram lentamente, agravando-se em 1969 a~esar dos
foi contra um governo lrrtbalhista que esta forma de luta ressurgiu. esforços do partido stalinista e dos sindicatos, que se ~edi~ sem
Wusoa leve de se de considerar, renunciando ao projecto que descanso a fragmentar a ameaça decretando greves nacionais _de um
levava mais a peito e pa ,ando para a policia sindical a função de dia, por categorias profissionais, ou greves gerais. de ~ dia, p~r
reprimir as Paralisações do trabalho, que passaram a ser. na Ingla­ província. No início de Abril, a ~içã~ de Batti~~a (provin.cia
terra, 95% de greves selvagens. Em Agosto, a greve selvagem, vito­ de Salemo, no Sul], seguida da amotmaçao das. pnsoes ~e T~,
riosa após oito semanas, dos fundidores das fábncas de aço de Port­ Milão e Génova, levaram a crise a um nivcl supenor, red~do amda
-Talbot, «provou que a direcção do T.U C. [Trade Unions Congress, mais a margem de manobra dos burocratas. Em Battipagha, os traba­
central sindical trabalhista] não está armada para desempenhar este lhadores, reagindo aos disparos da policia, ficaram senhores da
papel» (le Monde, 30-8-69). ·dade durante mais de vinte e quatro horas, apoderando-se das
CI • · d
Reconhecemos facilmente este novo tom com que doravante, pelo armas, cercando os policias refugiados nas casernas e mtunan o-os a
mundo fora, a critica radicat pronuncia a sua declaração de guerra à renderem-se, cortando as estradas e as vias férreas. Ao mesmo tempo
velha sociedade, do grup0 extremista mexicano Caos. que no Verão que os maciços reforços de carabineiros conseguiam de novo ~Ir~
de 1968 lançou um apelo à sabotagem dos Jogos Olimpicos e da lar a cidade e as vias de comurucação, um esboç~ ~e ~onselho existta
«sociedade de consumo cspectaculan>, ~ mscrições nas paredes da já em Battipaglia, pretendendo substituir a m~ci~ahdade e ex~
Grã-Bretanha e de Itália; do grito duma marufestaçâo em Wall Street, pod directo dos moradores sobre os seus propnos assunto~. Se e
relatado pela A.F.P. de 12 de 'Abril _ STOP mi; SHOW - , nesta socie­ ~erda: que as manifestações de apoio. em toda a Itãlia. enquadradas
dade norte-americana cujo «declínio e queda» assinalámos em 1965 pelos burocratas, não passaram de platónicas. pelo ~eoos os elemen­
e que os seus próprios reSJ>onsáveis designam agora como uma (mma • • . de Milã·o consegwram
tos revo1uc1onanos · atacar violentamente
.. estes
sociedade doente», às publicações e actos dos Acmrar de Madrid. burocratas e devastar o centro da cidade, co~o~tando-se nJamenle
. . Nesta ocasi·a·o• 05 situacionistas 1tahanos retomaram os
com a poli eia
Na Itália, a l.S. pôde Prestar uma certa ajuda à corrente revolucio­ métodos franceses da maneira mais adequada.
nária, desde finais de 1967 altura em que a ocupação da Universi­
dade de Turim deu o sinaJ 'de partida a wn vasto movimento; quer Nos meses seó~ ....., os movimentos «selvagens». _na Fiat e entre
a11int1><:

graças a algumas edições, deficientes mas rapidamente esgotadas, de os operários do Norte, mais do que a decompos1çao acabada do
312 3 13
governo. mostraram a que ponto a Itália está próxima duma crise
revolucionária moderna. A feição que em Agosto tomaram as gre\:es
selvagens da Pirelli em Milão e da Fiai em Turim assinala a
a n e X o
iminência dum confronto total.

Compreende-se facilmente a principal raz.ào que nos levou a tratar


aqui a questão do sentido geral dos novos movimentos revolucioná­
rios e das suas relações com as teses da l.S. Não há muito, os que
aceitavam reconhecer algum interesse em certos pontos da nossa teo­
ria, lamentavam que nós próprios fizéssemos depender toda a ver­
dade de um retomo da revolução social. considerando-a como uma
c<hlpóte.se)) inconcebível. Em contrapartida. diversos activistas à roda
no vazio, mas tirando \.ilidade de se manterem alérgicos a toda e
qualquer teoria actu.al, punham a propósito da l.S. uma questão estú­
pida: «que acção prática terá ela?)) Por não compreenderem minima­
mente o processo rualectico da junção entre o movimento real e «a
sua própria teoria desconhecida», todos queriam descurar o que jul­
gavam ser uma critica desarmada. O «erguer do sol que, numa cen­
telha, esboça duma só vez a fonna do novo mundo», vimo-lo nós no
Maio de França, naquele entrelaçar das bandeiras vermelhas e negras
da democracia operária. A sequência virá de toda a parte. E se nós,
em certa medida, escrevemos o nosso nome no regresso deste movi­
mento, não é para dele conservarmos um qualquer momento ou disso
extrairmos qualquer autoridade. Estamos doravante seguros dum
desenlace satisfatório das nossas actividades: a LS. será superada.

1 S. n..• 12, Setembro de 1969

314
Teses sobre a Internacional Situacionista
e o seu tempo

EXCERTOS

11. A linguagem do poder tomou-se furiosamente refonnista. Dan­


tes, por todo o lado, nas suas montras, só expunha a felicidade. ven­
dida pelo melhor preço em toda a parte; agora denuncia os
omnipresentes defeitos do seu próprio sistema. Os possuidores da
sociedade descubriram de súbito que se impõe mudar tudo sem tar­
dança. tanto o ensino como o urbanismo, a maneira de encarar o
trabalho ou as orientações da tecnologia. Em suma. esta gente perdeu
a confiança em todos os seus governos; propõe-se portanto dissolvê­
-lo e constituir um outro. Sublinham apenas. estes reformadores., que
são mais qualificados que os revolucionários para empreenderem
tamanha transformação, que exige tanta experiencia e tão avultados
meios; os quais, justamente. eles possuem e bem conhecem. Cá temos
portanto, de mão no coração, os computadores assumindo o compro­
misso de programarem o qualitati\'O, e os gestores da poluição des­
tinando a si mesmos a prioritária tarefa de dirigirem a luta contra a
sua própria poluição. O capitalismo moderno, porém, já anterior­
mente se apresentava, perante os antigos malogros da revolução,
como um reformismo que ~-encera na vida. Gabava-se de ter trans­
formado a mercadoria nesta liberdade e nesta ventura. Um dia aca­
baria até por libertar os seus escravos, senão do salariato. pelo menos
dos abundantes resíduos de privações e excessivas desigualdades
herdadas do seu período de fonnnçào - ou. mais exactamcntc, das

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privações que ele próprio achava por bem reconhecer como tais. Hoje cordância de todas ns ~ observações que cada modificação eficaz
promete lib1.'11á-los, além disso, de todos os novos perigos e dissabo­ e rendível a curtro prazo num determinado ponto. ~e repercute na
res que precisamente agora está produzindo maciçamente. como totalidade das forças em jogo. podendo ulterionnente levar a uma
caracteristica essencial da mercadoria mais moderna globalmente perda mais decisiva. Urna tal ciência, todavia, serva do modo de
encarada; e é a mesma produção em expansão, tão c~lebrada até produção e das aporias do pemamefl/Q que ele produziu, não pode
agora como o último correctivo de tudo quanto há, que vai ter ela conceber uma verdadeira inversão do andamento das coisas. Esta
própria de se corrigir. ainda e sempre sob o controle exclusivo dos ciência não :sabe pensar estralegicamcnte, coisa, aliás, que ninguém
mesmíssimos patrões. A insolvência do velho mundo exibe-se por lhe pede; e também não detém os meios prático de nisso intervir.
completo na ridicula linguagem da dominação decomposta. Pode portnnto discutir sobre o pra=t> e os melhores paliativos que,
sendo aplicados com firmeza, recuariam esse prazo. Esta ciência
15. A sociedade que possui todos os meios técnicos para alterar as mostra assim. no grau mais caricatural, a inutilidade do conhecimento
bases biológicas da existência na Terra inteira, é igualmente uma sem emprego e o zero nbsoluto do pensamento não dialéctico numa
sociedade, através do mesmo desenvolvimento técnico-científico época arrastada pelo movimento do tempo histórico. Deste modo. o
separado. que dispõe de todos os meios de controle e previsão mate­ velho lema <ca revolução ou a morte» jã não é a expressão lirica da
maticamente indubitável para avaliar de modo exacto e por antecipa­ consciência revoltada. é a última pa/aira cio pensamelllo cientifico do
ção a que grau de decomposição do meio ambiente humano pode nosso século. Mas este lema só por outros pode ser pronunciado, não
chegar - e em que datas, segundo um prolongamento mais ou menos pelo velho pensamento cientifico da mercadoria, que mela as bases
farnrávcl - o crescimento das forças produtivas alienadas da socie­ insuficientemente racionais do seu desenvolvimento na altura em que
dade de classes. Quer se trate da poluição química do ar respirável ou todas as suas aplicações se alastram, set,rundo o vigor da prática social
da falsificação dos alimentos, da acumulação irreversível da radioac­ plenamente irracional. Eeste o pensamento da separação, que só
tividade devido à utilização industrial da energia nuclear ou da dete­ através dos meios metodológicos da s~aração pôde incrementar o
rioração do ciclo da água desde os lençóis freáticos atê aos oceanos, domínio material que exercemos. voltando no fim a deparar com esta
da lepra urbanística exposta cada vez mais onde antes havia cidades separação, plenamente realizada na sociednde do e!;pcctáculo e na sua
e campos; quer se trate, ainda, da «explosão demográfica>>, da pro­ autodestruição.
gressão do suicídio e das doenças mentais ou do limiar atingido pela
nocividade do ruído - em toda a parte os conhecimentos parciais 17. Apolwçào e o proletariado são boje as duas faces concretas da
sobre a impossibilidade, mais ou menos urgente ou mortal confonne critica da economia política. O desenvolvimento universal da merca­
os casos, de ir mais longe, constituem. como conclusões científicas doria verificou-se inteiramente como realização plena da economia
especializadas apenas mantidas em justaposição, um quadro da polltica, ou seja, como «renúncia à vida>>. No momento em que tudo
degradação geral e da 1mpo1Jncia geral. Este deplorável resumo do entrou na esfera dos bens económicos. tudo, incluindo a âgua das
mapa em que se estende o território da alienação, pouco antes de ser fontes e o ar das cidades, se tomou o mal económico. A simples
submerso, é efectuado, naturalmente, tal como foi construído o pró­ sensação imediata das «nocividades» e dos perigos, mais sufocantes
prio território: por sectores separados Doravante, tais conhecimentos em cada novo trimestre, que antes de mais e principalmente agridem
do parcelar são sem dúvida obngados a saber, pela desgraçada con­ a grande maioria, ou seja. os pobres, constitui já um imenso factor de

318 319
m olta, uma exigência vital dos explorados, tão materialista como o começo duma era da grande produção histórica: o novo prossegui­
foi a luta dos operários do século XIX para poderem comer. Os remé­ mento indispensâvel e urgente da produção do homem por si mesmo.
dios para todas as doenças criadas pela produção, neste estádio da sua A amplitude das presentes tarefas da revolução proletária exprime-se
riqueza mercantil, já são caros demais para ela As relações de pro­ justamente na dificuldade que esta tem para conquistar os p~eiros
dução e as forças produtivas atingiram por fim um ponto de incom­ elementos práticos da fonnulação e comumcação do seu proJec.to:
patibilidade radical, porque o sistema social existentê ligou o seu para se orgnnizar de maneira autonoma e, graças a esta dcstetn1da
destino ao prosseguimento duma deterioração literalmente insuportá­ organização, compreender e formular expli7itamcnte a totalidade do
vel de todas as condições de \'Ida seu projecto nas lutas que já leva a cabo E que nt!i1e ponto central,
que há-de soçobrar em último lugar, do monopólio espectacular do
18. Com a nova época surge esta coincidência admirável: a revo­ diálogo social e da explicação social, o mundo inteiro assemelha-se
lução é desejada numa fonna total no próprio momento em que só à Polónia: quando os trabalhadores podem associar-se livremente e
pode ser plenamente realizada numa forma total, e em que todo o sem mtennediários, para discutirem os seus problemas reais, o Estado
funcionamento da sociedade se torna absurdo e impossível fora desta começa a dissolver-se.1 Podemos também decifrar a força da subver­
realiz.ação completa. O facto fundamental jâ não é propriamente que são proletária, que cresce por todo o lado desde há quatro anos. no
todos os meios materiais existem para a construção da vida livre seguinte facto negativo: ela mantém-se mwto abillXO d.as reivin~~­
duma sociedade sem classes, é antes que a cega subutilização destes ções explícitas que outrora puderam afirmar mo..wentos prolet.ànos
meios pela sociedade de classes não pode interromper-se nem ir mais que iam menos longe: e que 111lgavam conhecer os seus pro~,
longe. Nunca uma tal conjunção existiu na história do mundo. conhecendo-os todavia como programas menorr:s O proletanado de
modo nenhum é levado a ser <<a classe da consciênci1m por um qual­
19. A maior força produtiva é a própria classe revolucionâria. quer talento intelectualista ou uma qualquer vocação ~t1c~. nem
O maior desemolvimento das forças produtivas hoje possível con­ sequer pelo prazer de realizar a filosofia. isso acontece, mais Sllilples­
siste muito simplesmente na utilização que disso possa fazer a classe mente, porque ele, no fim de contas, não tem outro remédio senão
da co1isciêncw h.t.stórica, na produção da história como campo do apoderar-se da história na época em que os homens se \'êem <<força­
desenvolvimento bumano, a si mesma destinando os meios práticos dos a encarar sem ilusões as condições da sua existência e a.s suas
desta consciência: os futuros conselhos revolucionários em que a relações reciprocas» (Manifc!StO Comunista). O que há-de tomar
totalidade dos proletários terá de decidir sobre tudo. A definição dialécticos os operários é a revolução que desta vez vão ter de con­
necessária e suficiente do Conselho modemo - para o distinguir das dUZlT eles próprios.
suas débeis tentativas primitivas, sempre esmagadas antes de poder
seguir a lógica do seu próprio poder e conhecê-lo - é a plena rea­ 22. Uma parte inevitável do êxito histónco da l.S. levava-a por seu
lização das suas tarefas mínimas; mínimas tarefas essas que consis­ turno a ser contemplada, nwna tal contemplação, a crítica sem con­
tem na definitiva regularização prática de todos os problemas que a cessões de tudo quanto elt1Ste acabara por ser apreciada posttiva­
sociedade de classes é agora incapaz de: resolver. A queda brutal da
produção pré-histórica, como só pode consegui-la a revolução social 1 Alusão ao movimcntO revolucionário que ocom:u nn Polónia cm 1980-82, durante

de que falamos, constitui a condição necessária e suficiente para o 0 qual u puder de Estado foi di!.sol\iido pelas lllW sociais
321
320
mellíc por um sector cada vez mai alargado da própria impotência, vitória é tambêm indisc:uth·el. A teoria da 1S. transmitiu-se às massas.
que se tomara pró-revolucionária. A força do negatho posta em jogo Já não pode ser liquidada na sua primitiva solidão. É óbvio que pode
contrn o espectftculo via-se assim também ela enilme~e _admirada ainda ser fals1ficada, mas cm condições muito difcn.'Iltes. Nenhum
por espectadores. O passado comportamento da I.S. fora inteiramente pensamento h1~tórico pode imaginar-:.e antecipadamente garantido
dominado pela necessidade de agir numa êpoca que ao principio nem contra toda e qualquer incompreensão ou falsificação. Como esta
queria ouvir falar Je tal coisa. Rodeada pelo silêncio, a l.S. não teoria nem sequer pretende contribuir com um sistema definitiva­
dispunha de nenhwn apoio, sendo muitos demento:. da sua aclividztde mente coerente e realizado, ainda menos pensaria apresentar-se de
recuperados contra ela conforme iam surgindo. Precisava por isso de maneira tão perfeitan1ente rigorosa que a estupidez e a mâ fé ficas­
atingir o momento em que pudesse ser julgada, não «com base nos sem vedadas a quem lidasse com ela por no seu texto se impor inva­
aspectos superficialmente escandalosos de certas manifestações em ria\'elmente uma leitura verdadeira Semelhante pretensão idealista só
que se revela, mas sim com base na sua verdade central essencial­ se apoia a um dogmatimio, sempre condenado a fracassar, apresen·
mt?ntc escandalosa» (JS. n.º 11. Outubro de 1967). A tranquila afir­ tando-se logo o dogmatismo como a falência inaugural de quejando
mação do extremismo maú geral, bem como as muitas exclusões dos pensamento. As lutas históricas, que corrigem e melhoram qualquer
situacionistas ineficazes ou indulgentes. foram as armas da l.S. para Leona deste género, são igualmente o terreno dos redutores erros de
este combate; e não para se tomar uma autoridade ou um poder. interpretação, tal como o são. com frequência. das recusas interessei­
Mostrava-se pois legitimo o tom de categórica altivez bastante em­ ras de se aceitar o sentido mais univoco. A verdade, num caso destes,
pregue nalgumas fonnas da expressão situacionista; tanto por força só pode impor-se ao tornar-se força pratica. Só manifesta que é \'er·
da imensidade da tarefa. como também, sobretudo, porque esse tom d.ade por apenas precisar das mais ínfimas forças práticas para des­
cumpriu a sua função. permitindo que a tarefa fosse continuada com troçar outras bem maiores. De modo que, se a teoria da l.S., dora·
êxito. Deixou porém de convir quando a 1.S. se viu reconhecida por vante, for ainda incompreendida ou abusivamente traduzida, como
uma época que já não considera inverosímil o seu projecto 1; e foi por vezes aconteceu às de Marx ou Hegel, ela há-de saber ressurgir
justamente porque a I.S. conseguira tal coisa que este tom se tomou em toda a SUl autenticidade, sempre que historicamente soe a sua
então, para nós e porventura até para os espa:tadores, fora de moda. hora, a começar por bo;e mesmo. Saímos da época em que podíamos
A vitória da J.S . é sem dúvida aparentemente tào discutível como a irremediavelmente ser falsificados ou apagados. porque a nossa teo­
que o movimento proletário já alcançou só por ter recomeçado a ria beneficia doravante. para bem e para mal, da colaboração das
guerra de classes - a parte visível da crise que emerge no espectá­ massas.
culo não se equipara nada à sua profundidade -. e tal como e5la
GUY DEBORO e GIANFRAl\CO SA NGUINETTI
\itória, ficará sempre em suspe11SO até chegarem ao fim os tempos
pré-históricos; mas para quem sabe «ouvir a erva a crescen1, essa

1 •Qwmdo lcroos ou relemos os nümcros Ja IS~ é de Ülcto rurprccodm!C constàlm'·

mos a que ponto e qll!llllll!i \C'ZL'S ~tes tnerglimc11o.r c.1tprim11am juiz.os ou c~puseram
pontos de vista que o seguir. conmwncnte, fomm vc:nlicndos.Jt - Claude Roy, 4<1.cs
Dcscspc:r.ulos de l'cspoín> (lt f\'o111~l Ohsen'OtCJJr. 8-2-71) (N dOJ A ) Elnldo de La vtnt.able mssinn dt111S l'lnterna11onale, Pwi~. 19n

322
textos de critica da cultura : a publicar

estética e política

de cobra à internacional situacionista


antologia organizada e traduzida por Júlio henriques

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a subversão dadá

de berlim a nova iorque


antologia organizada e traduzida por josé m. justo

autores e obras afins já publicados


jules-françols dupuis (pseudónimo de raoul vane1gem)
história desenvolta do surrealismo
raoul vanelgem isidore ducasse e o conde de
lautreamont nas poesias (esgotado) as heresias
. aviso aos alunos do básico e do secundário
gianfranco sangulnettJ do terrorismo e do estado
Jaime semprun a nuclearização do mundo
guy debord panegírico
t\N rIGONA
úlúmos útulos
Mímstros <la Nooc
ilnd B.mtliÚJ
(rccdJ
Pancguico
Glll Dtlxd
U111J1 1llu llJ l..wi

WilliJ111 Bl.J:r

Esopo l:mcndado

&: ou1ru f11buL.1 Fant.bttas

Ambrmr Bitr!t
Mo."t05 ou Caiu Mdbor
\'icfroz Hmumtlo
i\\Uo aos Alonm do Búiro e do Srouuilno
Rlo:J/ \~mtigm

Nmaçio da lnqwsiçio de Goa


Ch.uln Dtllon
Bn:víuim.t Rcla\io da Oe51rw?o de Arria
&rtolo.'Ni tk w ÚUJ
Pocmu do Mamw:nco Pidcring
squidOI J'I.)) Portões do Pura!so
W11/ia,,, BW:t
\'.tg:ibundos Cruundo 1 Nouc
J.uk l.oJrJiin
Pela Vida
Alam:dr.r TJ.:i:uUvkf
Rcaird:rrulo 1 Gucm Efi=hola
um clássico da. subversão moderna Gtortt OnNIJ
lrttd.I
dísponívef nas edições frenesí
apartado 50258 • 1708 lisboa codex Discurso JOba 1 Scmdio Volunwu
~~LrBoltit
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A Vidi e Opiwücs de Trutram Shmdy
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Oiollllário lnCOOJpleto de Mulhcrci Rcbd.:b

Air.r &mibi

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Paradoxalmente. a Internacional
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. . . . artfsllca» do l6aulo IX IO for.
mullr, em teorll • 118 pr6tlca, a
Jmpoulbllldade hlll6tlca de qual­
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