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Josep Fontana

História:
n\

- Epílogo exclusivo à edição brasileira

TVadução
Luiz Rpncari

Revisão Técnica
Fernando Novais

O EDUSC
©EDUSC
-i, ' ' - V ■v" _ ' --

Fó79h Fontana i Lazaro, Josiep. ■ ■. j ", ' j, ‘- . -


„7. História : anális e do passado e-prpjeto" social/ Josep
_■ Fontana.; tradução I.u iz Roncari. — Baúru, SP : EDUSC,
: ; •• 1998 ' ' - , : . .. , .
398 p , 21 cm -- (Coleção Ciências Soctais)'

' " - ISB N 8 5 -8 6 2 5 9 -2 7 -6 ..

' 1. História - Me itodologia. 2. História - Filosofia. I.


Título. II. Série.

. . V - " ■ CD D 901

ISBN 84-7423-174-4 (original)

Copyrights) 198-2, Editoral Crídca, S. A.'


Copyright© (Öraduçãò) EDUSC 1998

Tradução realizada a partir da 1** edição (1982).


Direitos exclusivos de p ublicação em língua portuguesa.
. para o Brs tsil adquiridos pela ■
EDITORA DA UNIVERSr DADE DO SAGRADO CORAÇÃO
' Rua Irm; i Arminda, 10-50 .■ ."Ç
•- * ; . CEP 1701 1-160 - Bauru - S P ' -y. . ■'- . 5
, , Fone (14) 3235-7'1 11 - Fax (14) 3235-7219
. - 1 e-maifc ed usc(®edusc.com.br-
V
// . -r‘ V;'-~

'v sumário ■

- 7 : Prefácio

; .N. .
9 Breve, e Necessáí ia,. Expiicação Inicial

j^ p ítu lo 1 . ’ T-• ■
As Orige.ns i.

4 1 .. Capítulo 2 ' . ' • : j.


Do Renascimento à Ilustração

: 59 Capítulo^ / -
v - '. A Ilustração . - V; • "
\
7 9 . __ Capítulo 4 . .
Capitalismo e Hisltóría: Á Escola Escocesa

99 Capítulo-5 - - '
O Pensamento Histórico da Revoluçãc» Francesa

1 1 7 Capítulo 6
História e Contra-revolução: 1814-1917 ; " -

1 3 ' 7 Capítulo 7 . ■ • ■
O Materialismo Histórico e a Crítica d o Capitalismo "\

1 3 5 Capítulo 8 i ... -
, ■ . ' A Destruição da Ciência Histórica "r

169 Capítulo 9 ' _ c - ' •_ . v ,


' A Réconstruçáo. I : História, Sociologia e Antropolojgiá

1 8 7 Capítulo 10 . :•
A Reconstrução. II: A Nova Hisfória Eoonômica ' ;_y.. •• -
...
-

v,- V

'■ * •
prefácio . .: ;v.r.

1*5

( osep Fontana, lãistoriador catalão, publicou “História:


% do passado e projeto social"; em 1982, na Espanha.'
análise"
: Passados lh anos, o-livro é èditadò nó Biásilf pela primeira vez è r
inani :ém a sua atualidadé na denúncia virulenta em relação à his-
toriografia descomprometida com as lutas sociais do nosso tempo,
assini como na critica à idéia de que a Humanidade tem.um único •
e in.pvorávei raminho: o do capitalismo industrial gestãdo na.
Euro pa Ocidental... í -
'' Nesse tempò de gl obalização, em cjue seus arautos procla­
mam que esta é a única via para a humanidade, yalé á pena a /
refle xâõ de üm autor que: reconhece que sempre se apresentaram
: diferentes projetos so d a ls a o longo dos tempos. Que todo oroief
to social foi expressão die determinadas forcas políticas: e oue as
sociedades sempre se (engalfinharam em lutas violentas .paia
definir quãi o rumo a segyiir. E que os historiadores tiveram papel
importante na consolidação do projeto vitorioso. -
Investigando a historiografia desde a Antiguidade, Josep


Fontana estabelece um miétodo de análise para; desvendar o modo ;
co m o os historiadores constroem o passado. Ele não-se detém
excl usivamente na postu ra teórica dos autores analisados, mas os
ilumina a-partir da posiclio em que eles.se colocam para olhar os
conflitos sõciais do seu tem po. : . .• -
Para Josep Fontan a, falar do passado de uma sociedade é
-posi.cionar-se em relação ao tempo presente, suas mazelas e
grar idezas. ~É_ definir-se e m relação às lutas e aos proietos sociais
em confronto na sociedade em que vive o historiador. É posi-
domar-se em relação à coricentracãO-da_riaueza. producâ_o_das .
desigualdades, e, na conjuntura atual, ao créscente__desemprego
que aflige a população j ovem, . . ,t ■. ;
Calar-se em relaçãio a estes assuntos é uma atitude éxecra-
da pelo autor. ^
"História: análise do passado e projeto social” hão é uma
obra apenas para especi; ilistas. Sua linguagem é clara, seu aparato
conceituai é fadlmentr; Compreendido pelos estudiosos dás
*■-. . •'* ’ . ‘ i. Sr.. .. 1 ■ ■ ■.

c ■■
humanidades, e o especialista, sc quiser, pode se fartar com as.
minúcia* ;as, eruditasjí; por vezes, irreverentes notas dè. final de
capítulo. . •>. . . . i 'V . • \ ^ '
É obra de denúncia, sim, de engajamento numa construção
históriog .ráfica comprometida com as dores do nosso tempo, mas
escorada, em sólida erudição. E não hã como negar; na obra de
Jòsep Fontana existe muniçãorpara detonar muitas das histo­
riografia;; da moda. / ' ...V . " ... . . ’ . '• .. .

Vitor Biasóli
Outono.de 1998
Uhivérsidade- Federal.
dè Santa.Mãria
breve, e necessária,
explicação inicial - -

_jste livro n ã o st? ocupa da historiografia Cisto é, d apro-


duçtio escrita sobre temas históricos), nem dá filosofia da historia
(da reflexão sobre a histó tia feita pelosfilósofo s, a pattir defora, da
prática da investigação), mas sim da teoria ú ’a história Cisto é, do
pens amento d e qu e se sei ve efetivamente b his tõriador para òtien-
tar çr seu trabalho) e das idéias sociais subjat:entes.■do projeto so-
ciãl em que o historiador inscreve a sua tarefa. . ' , ,
Dito de m aneira hem simples, e com çis palavras mais eo-
mw is, o enfoque da analise que se empregoi i poderia resumir-se
ãssii 'ti. Toda visão global da história constitui urna genealogia do
presiente. Seleciona eordc ma osfatos do oassac lo deform a q u e con­
duziam em sua sequ ên cia até dar conta da c onfiguração do pre­
sen te, quase sempre com o fim , í onsciente p u não, de justificá-la. •
Assim o historiador nos m ostra um a sucessão<ordenada de acon­
teci) rientos qúe vão, éncçudeando-se até d ar co mo resultado "natu-
ra lf a realidade social em que vive e trabalha, enquanto que os
obstiáculos-que se ópúsercam a esta evolução r.tos são apresentados
com o regressivos, e as ahiernatiuas a ela, com o utópicas, Apresen-
ta-sc! como uma ãvetiguc.ição objetiva do curso que vai,do passado
aoptresenie, o que.arites de tudo é, um partir da ordem atual das
coisi as pára rastrear no (. tassado as suas origeais, isola)ido a linha
de evolução que.conduz às 1-ealidades atuais \ transformando em
um a manifestação do Pr opresso, com fin s legiiim adores. Entenda-
se, tmtretanto, que não ostou me referindo a um presentismo ao
m odo de Croce - ou ao a'e Cóllingwood -, d e raízes neokantianas:
que não se trata de um. a reelaboracão indh ridual dos dados do
pass ado à luz das preoci tpaçoes do historiador, senão de aleo que
se raaliza coletivamente e que, tem uma Tuna idsocial. /
■ A descrição do pi ■ esente - produto res ultaiite da evolução
histórica - completa-se' T:om o que chamo] genericam ente, uma
"economia política”, isto é: uma exblicacão do sistema d e relações
que existem entre os hom ens, que Serve para iustificã-las e racio-
breve, e necessária, explicação inicial

- nalizá-las - e, com elas, oselem 'èntos de desigualdade e exploração


que incha ?m -, apresentando-a.; como um a form a d e diuisão social
d e trabalho s e funções, q u è nã o só aparece agora como resultado
do progresso histórico, senão c:ómo a fórrria de organização que
maximizai o bem com um . C ada etapa da evolução social, cada sis-;:
tem atização da desigualdade e da exploração, teve sua própria
"economia política", sua ráóioinalizáção da ordem estabelecida, e
assentoipa em um a visão histórica adequada. Dessa evolução do
passado a o presente, m ediatizada pèlo filtro da "economia políti­
ca'", obtén i-se um a projeção a té o futu ro : um broietoscÈial aue se
expressa n um a proposta polític.a.
■) O t ]ue sustento, é que a s três partes deste conglomerado -
. história, economia política" e projeto social - encontrarn-se indis­
soluvelmente unidas: que nen hu m a ê Plenamente compreensível
■separadíL. da s‘outras. Çjuando um a dessas concepções globais da
sociedade oferece-se como alternativa a~3a ordem estabelecida, a
conexão tm trê.os seusdistintos; eíémèntbs torna-se aparénte. Unfã
vez g a n h a a batalha, entretanto, quando deve deixar de servir
como fe r r amenta crítica para atuar como legitimadora do novo
ílsten; com eça-se a dividit-ò coníunto em três elementos sépara-
sistema,
dos.; (um a história; suposta na, Tacão objetiva d os acontecim entos
significati vos d o pqssqdo;!um e t econom ia política,_suposta descrí-
ção "cient ífica"e imparcia ld o funcionam ento da sociedade^£_uns
projetos p õlíticos destinados a resòlver_o_s problemas do Presente,
realizávei s no m arco da econom ia política admitida, Ao máximo
que se chega, como fa z essepa i do neo-liberalismo econômico que
é Friedriob Hayek, é adm itir utma cpnexão entre histõrià epólíti-
■ca, porém , sem levar em conta o filtro do presente; deste modo, a
conexão i?stabelece-se no ternm o das idéias, dás concepções do
mundo, stím que apareça viciada pelo contágio com os interesses.
Os historiadores acadêmicos, p o r sua parte, não chegam tão lon-
ge: eles estão convencidos de q<ue se limitam a investigar desapai-
xonadám ente o passado, livres d e qualquer preconceito cultural .
; ou política, /. - x-
• O ,que pretendo ,ê explorar; à luz do aue foi exposto, a
história d a História, para pôr em-ceJevs£££mo~se-anioldou a mu-
., danca sot zial. A inda que se p arta ,das origeits, centrou-se a-aten­
ção sobreltudo tios raízes im ediatas do presente, com Opropósito de
explicar <còmo suigiu a concepção global da sociedade e da

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bre’ire-, e necessária, explicação inicial

hisi ária subjacente às a j innações teóricas e ãpratica da investiga­


ção' dos historiadores a tuais. .Porque, ainda q u e esta análise se-
fa ç a em form a d e um a ;revisão da história dá História, sua finali--
dacie não é tafito d d e t?sclarecer o passado, com o.a de ajudar a
des. bastar o bosque em q u e, entre todos, estamos tratando de én-
. con ira r novos cam inhos. O que se pretendeu e, simplesmente' üpli- ;
car ã História os m étodos de análise da hrôhriahistória: estudara
- gen ealogià d e nossas co ncepções dó. passado, para tom ar claro o-
•- pap-eV que desem penham em nossa com preensão'da sociedade-
a tu al e em nossos Oroietos para o futuro.
Encontramo-nos 7mm momento em que é evidetite que o ca-
- bitv.lismo se. acha num ci-crise estrutural. Suas promessas de pro-
grevso e felicidade para iodos, não só não se cumpriram\ como .
tan tbém descobrimos q u e são irrealizáveis. Porém o ruim é due-
. riperp arece existir umprojeto-.alternativo válido, que possã resolver
o a m junto dos problem as qüe enfrentamos, e começamos a rep a-
\ rar que o que tínhamos tomado p o r tal está contam inado com de­
masiados elementos do velho projeto capitalista, para escapar â
sua quebra. É necessária, p or conseguinte, desm ontano corpo in-
' teir o de idéias em que se apóia o sistema social em que vivemos, em
qu alqu er das sitas varia ntes: súa teoria economicista da história,
sita visão do capitalismo cómo Uma etdba em qú e desapareceram
as ' \coações extra-econôt nicas", e o proieto d e um futuro- èm que os
êxitos da industrializaccio irão resolver todos os problemas dos ho-
met is, seja pelo cam inh o_da liberdade de_jnercado, seja pelo d e■
u m a economia com blaiíifLcáCão centralizada.
Tem-se qu e .com eqar à construir, ao mesmo tempo, a nova
^ história e o novo projeto -.social, assentados num a compreensão crí­
tica■da realidade p resente. Para o prim eiro, deveremos refazer-
nos sa forma de en ten d er o crescimento do capitalismo como um
progresso, para a p ren d er a vê-lo como o desenvolvimento de uma
n o v a form a de exploração; deveremos voltar a explorar tantas al­
ternativas descartadas com o utópicas e inviáveis, para comprovar-
se Ci[caso não havia nela s projetos que apontavam a outras linhas
. post tíveis d e evolução. De ■veremos ter em conta, sobretudo, cjue a li-
nhc t do passado q u e pro, ietarmos ao futuro, tem que apontar para
u m a sociedade, cujo elem ento definidor fundam ental não have­
rá d e ser ò_de constituir w na fase mãis avançada do desénvolvi-
me> ito industrial - o qm ? tampouco implica que se tenha qu e re-
t breve, e necessária, explicação inicial

chagar ta.I desenvolvimento pó, rprincípio senão a de ttosáproxi- '


mármos c lo ideal de supressão.de todas asform as de explom gãodp
homem: cie um a so ci^ a d e igualitária, na qual se tenha elímina-
do toda cç '>erção. Umasociedac le em que não siga sendo preciso ra-
cionaliza.ra desigualdade co m o um a condição necessária para o
progresso 'coletivo, nem constru ir toda urriã visão dia história para
legitimar este Ifrgu mento. A o hérm ino deste livro - acabada a ex­
ploração ílÕJongoflci história cia História - será chegado o momen­
to de recolher e desenvolver esóas idéias. -- - " . " ■ ■
■ %Sei que algum leitores pensarão que o fio condutor.desta re- "
visão do pensam ento social d as historiadores ê excessiva mente rí­
gido e as, m inhas explicações demcisiado unilaterais^ Deverão re­
cordar en tão que, como adven 'e desde a prim eira página, está nao
é um a his tória da historiografia, à m aneira tradicional,-e que não
pretende . ser uma-alternativa a tal genèro de estudos, senão algo
distinto.'Q ue não se quis mo: \trar a evolução da História "comó
ciência", senão d a r uma visão ’política", no sentido mais n obreza
palavra, cie tal evplupão. Segu.e d a í que o fio condutor seja distin­
to das coi sas d e que se faia.
De, vo também justificar a dureza da crítica d e alguns dos '
juízos qút? aqui foram form ulados, e que contrastam com as boas
' maneiras habituais no m unda acadêmico. A prim eira coisa a es­
clarecer é-que aqui se julga a Veoria, e que um a "má teoria" - qua­
lificação ,que se tem antes de qualquer coisa como termos de um
projeto so ciai determinado - p o d e vir acompanhada de boa erudi­
ção. C riticara viragem teórica queL ucienFebvre imprimiu à esco­
la dos At males, p o r exemplo, não implica m enosprezar as belas
- páginas q u e escreveu sobre a religião de Pabelais. Porém, p o r óiitro
lado, riut n m undo de conven ções em que todo novo livro vem a
"preenchem um vazio", e em q tie.sepratica habitualmente o bonito -
jogo que m eu amigo M oreno Fraginals denom ina "te-escrevo-a-
nota-de-h?u-livro p a ra que logo tu-me-escrevas-a-nota-de-meu-li-
vro",. talvi ?z convenha voltar ã sã e esquecida prática de se"chamar,
de tontos aos tontos e d e engat ladores aos enganadores.
. Pexmitam-me, finalm ente, uma instrução de uso. Como se
verá, este livro contêm dois tip os distintos de notas. Uínas remetem
ao p ê da própria página e cotfiem citações extensas ou amplifica­
ções e dig ressoes que convirian i ser lidas ao mesmo teinpp qite o tex-
to. As oiilras, que enviam às p agina s finais do livro, contêm uma

12
bre ve, e necessária, explicação inicial

w V, *' ' *"•


justificação bibliográfica, estrita do que aqui sé disse. Sua finalida­
de é a de mostrar que a concisâodlestaspágii ias procede menos da
siii iplicidade, que de utn esforço deliberado de simplificação. Po-
'rém , sewirão também p a ra p ô r a-descoberto as limites dos conheci-
_ ■ • t ■ N -
mentos do autor (e a impossibilidade em que se tem encontrado de
actisso a muitos livros n as bibliotecas em q u e teve que trabalhar).
Pei isb, entretanto, que ei isas notas truncarian: i excessivamente a lei-,
lu ra fà que me levou a agrupá-las no fin a l ira sugerir que se lhes
des se uma olhada geral, antes ou depois da h Htura d e um capítulo,
a m enos que interesse reco rrera elas para enckirecer ásfontes em
qui? se baseia algum poi no concreto.-
Na preparação á'e. um livro como este, contraí numerosas
dív idas de gratidão] qive vão desde a que cciresponde a Gonzalo
Poruõitj-por sua inesgotávelpaciência, até a tju e tenho com os p ar­
ticipantes na Prim eira S 'emana de História d<áFilosofia e da Ciêfi-
-cia ,.pêla amável acolhida, passando,pelas c ontas pendentes cóm
os ninigos que m e propo rcionara m. livros ou mè form ularam críti­
cas, e pelo agradecim ento a Perich, p o r ter-,me perm itido utilizar
um a aguda historieta sw.a - ou melhor, um a r eflexão esboçada. Po­
rém , o estímulo m aior recebi dos frequentes contatos com pessoas
dedicadas ao. ensino dm História, que m e.têm levado a comparti­
lha r com elas a consciência da respoitsabilüiade ê a importância
do nosso trabalho. A elas, antes d e túdo, vai dedicado este livro.

Josep Fontana
Barcelona, dezembro de 1981
a « o r i g e n s

D, *esde os eon necofe-nas manifestações mais primárias ie


éle mentarès, a História item tido sempre uma função social - gera; 1-
mtrnfe a de legitimar a ordem estabelecida ainda que tenha tendi i-
do a mascará-la. ápresen.tando-sé com a aparência de uma nanarão
o b jetiva de aronterimentos concretos;)Ò-próprio corpo dé tradii-
çõi es orais das sociedade ss que não conhecem a escrita, tem sido eis t-_
bo:radò para justificar e transmitir o que se considera importante
pai ta a sua estabilidade!# bdos bs elementos desta tradição - genealc >-
gia Sj poemas, fórmulas t ituais’ iproyérbiòs^fete/.-jêm uma finalidad e
deiterminada e, reciproc amente, "cada instituição e cada grupo-se* p ;
cia i faossuem uma identi dade própria que se acompanha de um par h, dr°'
inscrito nas repres èntações coletivas dé umájtradicão que o i'* *
exj püca‘e justifica", Nad a pode parecer mais objetivo que uma gc >■
Hei dogia. porém, nassoc iedades pastoris as genealogias servem par a
leg itimar direitos sobre í i terra e podem modificar-se, quando se m o­
dificam as necessidades aque_resppndem,‘ .
Também as repre sentações figuradas nos monumentos púbL l-
co:; guardam objetivos !semelhantes. Os relevos do Egito faraônico
ou as pinturas maias nã o só estavam destinados a perpetuar a me:-
mciria dos soberanos,çcimo também tinham uma função didática:;a
de recordar os fundame ntos religiosos e profanos do sistema social
vig;ente, tal como devia:n explicá-los verbalmente os sacerdotes.As
cei ias de triunfos militares, em que nunca falta a representação do s
mortos e dos vencidos, ; serviam de advertência de que qualquer im-
tcrito de subverter a ooièm estabaiecida seria reprimida duramen i-
te, tanto se procedesse ide inimigos de fora comb de dissidentes die
deintro. Noutro sentido,;a colocação no forum romano de uma série
de estátuas de grandes tiomens, ordenadas numà seqüência tempo- ■
ral, pretendia mostrar ai continúidade da história de Roma. désdi e
Enéias até Augusto ou, q que dá no mesmo, sugerir que a política de
Àu gusto era a culmiriaçiío "natural!1.de toda uma evolução historic? i,
capítulo!

enquanto que a coluna Trajam í, erigida para comemorar as guerras


dácias, tei m podido ser qualific ada como um "documento polítiçg"
V1, -Os- inícios da história escrita estão ligados à justificação do
Estado m onátquico, pejojdupl o processo de assinalar sua origem
sagrada e de identificá-lo com o povo. Os mais antigos textos histó­
ricos con hecidos são as listas c le reis, como as qiie os sacerdotes su-
jnérios guardavam nos templos, onde se contava .corno a realeza
descendeu dos céus, no com eço, de uma etapa de reis divinos, se- —
guida.poir outra de monarcas sobre-humanos - como esse Gilga- .—
mesh, quiinto rei da dinastia dt: Uruk, cujas façanhas os poetas per­
petuaram - até entrelaçar-se coíiu os soberanos coetâneos. O mito se
fundia as: sim com a história e_ completava a genealogia do Estado
— í> monárqui cofassociavá aos reisi às divindades, reforçava o prestígio
da casta siacerdotai e contribui ía para explicar as formas dé organi­
zação do presente. Observe-se; rpor exemplo, qué o mito do dilúvio k
se encom xa òriginariainente em diversas sociedades-'que comparti- .
Iham o fa to de basear sua ecomomia na regulamentação sociahdo
aproveitai mento do s rios: òjça.os do dilúvio, sugerido ou não por
inundaçõies históricas, criava u m contraponto que fazia ressaltar-os .
benefício: s do estado Mdráulicc >. Como na Mesopotâmia, no Egito os
mais antifjos documentos históricos são listas de réis,como a pedra,
de Palenrio, que_data de uns 4í.500 anos, e que contém além disso
uma relaç ão de acontecimento s importantes, como a altura alcança­
da anualn íente pela inundação do Nilo.3 ' - ' ’’
-i? Co stuma-se pensar que entre estas formas primitivas de ex­
ploração d o passado - que não excluem, como se vê, uma seleção e
ordenaçâí a dos fetos, destinada: s a apoiar uma interpretação do pre­
sente - e ns. grandes obras históricas da Grécia clássica haja um sal­
to no yazi o:_çjue a História, tal e :omo a entendemos hoje, foi inventa­
da pelos j jregosjno século V an tes dá nossa era. Porém, assim como
nos const a que os sacerdotes maias liam nos hieróglifos muito mais
do que hoje podemos deduzir de seu significado estrito e literal, há
motivos p ara suspeitar que èstt ç corpo de "narrações e crônicas, ins­
crições dt: conteúdo histórico, ■compilações de oráculos e profecias,
e listas de reis", que forma a-pai t e conservada da historiografia. egír>-~
cfeToujriõsopotãmica,: poderia servir.de base a um saber mais am- ’
pio, transi mitido oralmente pei los escribas e sacerdotes. Herqdoto
nos disse, pór exèmplo, que o s sacerdotes egípcios' "enumeravam
segundo s ciis papiros os nome s de outros trezentos reis" depois de
Menés. Porém "acrescenta que também se explicavam de maneira

!-ó'V
V\ ..
16
muifó uniforme no referente "às coisas humanas", e podéin muito
beirt ter sido. estas, reflexões as que inspiraram a parfe do seu texto
em que se entrelaçam as fornias de organização social, a regulação
do <:ntomo físico c a sUc.essâo das dinastias a partir de Menés, em
cujo tempo o Egito éra uin "terreno pantanoso" e ele mandou secar
as torras alagadas pelo ri'o, fundou Mênfls sobre elas e mandou es-
cavi ui um lago junto à cic iade* Se é lícito pensar que o saber histó-
rico deries povos pode t er ido mais além dò que revelam hoie os
tèstomunhos arqueológicos, resulta plausível supor que puderam -
infliiir neste terreno sobrè õs gregos, comõ o fizeram em tantos ou-
trõs da ciêncja e da arte7'___- . ,
—r - •Um consenscTqua se universal faz a historiografia grega-nas­
cer com os "logógiafOs'' <da Ásia Menor, que tinham recolhido a in­
formação dos manuais em que os marinheiros anotavam os portos
e pc jvos das costas meditierfârieas, com observações sobre seus cos­
tumes e sobre a história ilocal.A mesma palavra "história" deriva-de
um verbo" que significa ' 'explorar, descobrir", o que viria a cófres-
pon derao fato de qüe a primitiva historiografia grega era, antes dc
tudi 3, uma exposição de '"descobrimentosilsobre terras e povos es-
tran hos A figura mais d a itacada entre estes logógrafos é a de Heca-
teu de Mileto (c. 500 A O , cuias obras se referem à descrição da ter­
ra e à história, e de quem i se destaca,a.yontade expressa de analisar
racl onalmente os mitos d o passado, "porque as tradições dos gregos
são contraditórias e, em niünha opinião, ridículas", se bem que é acu-
sado de ter querido fazê-lo com a simples^aolicaçâo do senso co-

'■ Não há que estranhar qmc os sacerdotes compreendessem perfeitamente


íis "coisas humanas'*1, alénn das divinas, se temos em conta que no Egito o
<:ontroie dòs sistemas d<: irrigação parece ter-se organizado tocalmente.
com a participação dos templos, a quém teria correspondido arbitrar os
conflitos que surgissem, na aplicação de uma ordenação consuetudinária,
i ião escrita, do uso~dãs1í gu asT ^ h c provavelmente tenham tido também
1 una importantíssima fan ção redistriburiva, necessária para fazer frente às
a.c

i ncertêzas provocadas pt das variações no volume das cheias do Nilo, que


j podiam criar dificuldades i no sistema de irricacão, quando eram excessivas,
..(■ fome, q uando eram insi aficientes. Observe-se, entretanto, nue os sacerdõ-
] ~es tratam~dc ligar a origi rm do controle das águas à figura do primeiro s o
i aerano. Menés. o que pai e cc falsa c c provável que eles soubessem que ò
i;ra. porém cumpria a fii aalldade de legitimar, uma monarquia sagrada e,
í som issò, toda uma estru tura política c sociâlTnã qilãTôs próprios_sacerdó-
l:es ocupavam uma posi< ã o privilegiada (Karl W Butzer, Early Hydraulic
ICivilization In EgyptA Study In Cultural Ecology, Chicago University
IFress,Chicago, Í976,ppi 107-108ypn«/»«)- • .=
- capítulo I

mura - limitando-se a escolher o mais verossímil -,o que o teria con­


duzido ao fracasso. Atrás de Hécateu viria o grande salto adiante ie- .
presentado por dois homens, Heródoto e Tucídidõs,'com qüem a
historiografia grega chegaria ao seu ápice e, pòr sua vez, se esgota­
ria, para entrar numa larga decadência de "muitos s éculos de quan­
tidade se m qualidade".5 ^
Es ta visãò culturalista tem sido enriquecida p or François Châ-
teiet, que: insistiu na estreita relação que existe emane este floresci­
mento du História e o aparecimento de uma nova consciência polí­
tica, e, so 'bretudo, por Santo Mazzarino, que expôs/ uma visão reno­
vadora das origens da historiografia grega, que se e ntrelaça com as
mudanças ocorridas na sociedade helénica entre 6 5 0 e 550 aC.Ào
mesmo t empo em que se difundia uma economia r nonetám, no in­
terior de algumas cidades-estado, ocorria uma rupti ira do equilíbrio
existente ~em prejuízo dá velha aristocracia fundiári a e em favor dos
setords paais ligados à.atividade marítima e ao comlércio.Tsto moti­
vou uma série de mudanças políticas, que se dirigiram inicialmente
contra oí ; reis, para dar lugar às tiranias, e, finalment e, às revoluções,
que permitiram aparecer regimes democráticos c ontrolados pela
nova aris tqgacja,como aconteceu em Atenas, ao redor do ano 600
AC. Estas; modificações foram acompanhadas de niiudanças réligio-
sasTquc podem exemplificar-se com o orfismo, e que significaram a
introdução de motivos ligados a idéias de purificaçãio e às cosmogo­
nias orieintais. Do impulso dado pelos poetas e pelo s escritores pro­
féticos n asceu a tendência a revisar criticamente <js mitos gregos,
' que encontramos em Hecateu ou em Heródoto. Da fusão de reyolu;
ção política e mudanças religiosas surgiu a interpi etação_histórica
^daidade clássica:umãinterpretaçãó~ãristocrática,p<orémfavorável-à
democra câa e hostil aos velhos mitos em que sé a ssentava:a socie­
dade da realeza c da olígarcjuia.6 v
——_V cíí O primeiro dos grandes historiadores da époiça clássica é He­
ródoto d e Halicamasso (c. 485 - c. 424 aC ), que c ontinua os logó-
grafos c 'combina os conhecimentos recebidos deles com os adqui­
ridos peí jsoalmente em' suas viagens, que lhe permitiram conversar
com os escribas persas e os sacerdotes egípcios, gj j á primeira vez,
\ o histori: idor não se contenta em narrar, assinalá as >causas dos acon-
tècimentos e busca o sentido profundo da evoluçã o liistóricãrÃln- ■■íE -
da que siea mantendo uma causalidade "divina" p araaqueleijacons
teci mentos que parecem sobrenatuarais, propõe antes de tudo ex­
plicações "humanaselaicas.e.em particular,políticas" Convémdes-

18
as c >rigens

' taatr também,o fato de q ue se atreveu a construir uína história "um -


ver sal", que não só se o c upãya dós gregos, como também de outro;;
povos, e que fora capaz de obter um rico caudal de notícias so b « ;
est< :s. À investigação his tóricá contemporânea tem reivindicado c ■
‘ valt )r das informações qu ie nos oferece, contra as acusações tradiçio -
, naiis, de que era um narrador crédulo e pouco veraz. Contra a babi -
tuaJl valorização acadêmi ca, que faz dele um predecessor e deTucí -
dides, õ autêntico mestre, hòje tende-sè á destacar em Heródoto ,
nãc i só a amplitude de ur na concepção! aué leva a incluir rtá Iiistóri; i
a tc italidade da atividade humana, súá preocupação antropológica e :
a curiosidade e interesse: qué mostrou pelos aspectos econômico; ;
e se teiais.Assim como, principalmente, o feto de que relacionara tó-
dos estes dados.com o fim de buscar uma explicação para determi-
nad los acontecimentos, o que faz com que, nas palavras de Momi ■
glia no,-possa considerar-se que foi Heródoto quem "convertem
' . nurna regra qüe os historiadores explicassem ps acontecimento;;
que: contavam".7 ? • .• .
__ Ky . Tucídides (c. 460. - c. 400 aC.), político frustiado por um fra -
- cas so militar que o obrie ;ou a marchar ao exílio, dedicou-se a inves -
tiga x "as férreas leis que regulam o predomínio entre ós estados £
. ain terpiêtar com dura firieza o mundo polítiõõ^quêTiãviã~destroça -
dcT süã~vídã'lEstudou~a ' guerra do Peloponesõ, porque estava còn -
vencido de qué se tratava da maior da história e que era de conhe -
cimiento mais seguro que as antigas - "os acontecimentos ariterio •
res a estes, e os ainda rniais antigos, resultou-me impossível, na ver -
dadle, conhecê-los exata: mente, devido ao longo tempo transcorri ­
do, porém, a julgar pelo;; indícios em que tenho confiança quandei
olho o mais longe possível, não acredito que foram.de importân ­
cia, ném quanto àsguen-asncm quanto ao resto "p o ré m também i
porque acreditava que um estudo exato do passado servia parai
descobrir as regras comi que mover-se no presente - "conformar-
me-ia com que quantos queiram inteirar-se da'verdade do sucedi ­
do ie da verdade das cois; as, que alguma vez tenham de ser iguais ou i
semelhantes segundo a lei dos acontecimentos humanos, a jul ­
gue :m útil". De Tucídides tem-se valorizado sobretudo seu afã de dq :
cun nentação exata, aprejgoado por elè mesmo - "quanto aos acon -
teci intentos que tiveram lugar ná guerra, não achei óportimo escre -
ve4 os inteirando por qu; ilquér um riem guiando-me poxjninha-opi -
. nião , somentelèlãtei c c asas;nas que eu estive presente_cm,sobre:
ela;; irtterroguei a outros com toda a exatidão'possível"-, o qué hão >
capítulo 1

impede que, em assuntos que:, o afetam pessqalmente, deforme de­


liberadas mente os fetos. Elogia-se igualmente sua maior precisão
cronolójãca e o caráter mais laico - mais político. - de suas interpre­
tações. Comparando esses dois pontos com Heródoto, explica-se
em bqa : medida pela limitação, no espaço è no tempo, do tema tra­
tado e p o r sua proximidade: de participante direto. Custa com­
preender, em troca, que Fink:y o elogie por "sua concentração na
guerra e na política com excl usão de todo o resto", ou que se che­
gue a fal ar da "modernidade <leTucídides". Parece difícil qualificar
de "mod erno" a um historiad or que nos conta a fuga de vinte mil
escravos de Atenas como um incidente desafortunado, e mais, sem
expor ás; circunstâncias do feito.Tueídides é, simplesmente, o cor­
respondi ente de Ranke e dos 1íistoriadores acadêmicos de; qualquer
época, a que serve mais de justificativa que de modelo. De modo
que riao dcvc surpreender.quie o veltio er ingênuo Heródoto come­
ce a panecer-nos mais próximo, nós que pensamos que a História
não pode reduzir-se ao relato dos fetos de governo e dê guerra das
classes élõminantes.8 . ' • -
- A linha de análise da s iociedade que encontramos nos gran­
des hlstc iriadores do século V ;apaxece também em boa parte dos so­
fistas des >tes anos: em homens como Protágoras (c. 490 - c. 42Õ), que.
afirmava que "o homem é a medida de todas as coisas", como Gor-
gias ou com o Trasímaco, a quem Platão nos mostra, defendendo a
tese de c[ue "a justiça não é ouitra coisa que o interesse dos mais for­
tes". Honaens para quem as lei s e os preceitos morais são um produ­
to da soc :iedade - e não dos de uses ou de alguma outra origem trans-
cfendentie -, que desenvolvem uma concepção do progresso huma­
no, antagônica à visão religiös ;a dominante e que cultivam a retóri­
ca como uma arte indispensável para a vida política da democracia.
Pretende :ndo desqualificar o s ofista, Platão fez o seu melhor elogio,
ao dizer que "não ensina outira coisa, senão os mesmos princípios
que o vulgo expressa rias suais reuniões". Porque as preocupações
dos sofis tas, a visão da história de Heródoto e deTucídides, o teatro
de Sófoc les e de Eurípides ou.; a medicina de Hipócrates, aspectos di­
versos did que Momigliano chama "a revolução intelectual do sécu­
lo V", nãc >só estão relacionado s entre si, por uma série de traços cul­
turais quie lhes são comuns, cioirio fombém pelo feto de correspon­
derem à:5 formas de democra cia que fizeram a, grandeza da Atenas
de Péridles.9 ■' ‘ - ■
asongens

Tudo isto mudou com a crise do século IV A historiografia


cJec :aiu, não porque falta; ssem figuras geniais-ou porque sc próduzi-•
ra uma "reação contra T uddidcs". senão porque, nas lutas soclalii
qu<: tiveram pór cenário principal Atenas, acabou predominando
uni a tendência conservai dora, que propunha riovos.métodos de aná ­
lise da sociedade, para futndnmentar areconstnjçãoda polis', já que.,
os aplicados anteriormetite tinham conduzido ao triunfo de tehdên -
cias populares e haviam levado ao poder a umá.nova classe de'lide-
- res de origem burguesa; O fundamental desta mudança nos méto
dos -de análise consistiu em separar da História á reflexão generali
2ad ora, convettendõ^Tn a c iência política de Platão e Aristóteles.
Par i ã História propriam ente dita fleou somente o estudo do parti
ctxlí ar, e assim acabou idei ntificada com a poesia ou submetida à ãçãc
./■ c de ' ümã retórica decader ite, para engendrar a chamada "história trá -
7 giS j"^h~êia~ggTáBulas e de acontecimentos maravilhosos, ao goste >
■do grande público, quê s e transformaria finaimente em um-gênero
liteirário sem nenhum ponto dê.contato com a reflexão sòbre a-so--
cie< iade. Se o impulso an terior cónservou-sé nós sofistas radicais ou i
gil / em outras escolas, comoi a de Epicuro, é quase impossível sabê-lo,,
devido à perda da maior parte de suas obras, que contrasta comi
tudo o que se conservou de Platão e Aristóteles, o que nos parecei ‘— òi»
dever-se apenas ao acaso. Em todo caso, e para ò nosso propósito,,
con ivirá agora determo-n< as um tanto nestes homens, mais do que se -
guiirmos aiguns- hi5tsfia dotes menores, _aue~pouco contribioírami
parao na tarefa
nnn tnfwafn deêlaboracão
rlp de um
nm projeto soc
nrníptTí çnpiiil ~'

O pensamento político de Platão (427-347) e de Aristóteles!


(384-322) - prescindirem os aqui da problemática decifração daque •
le dle Sócratesj- coincidam na sua oposição' á democracia ateniense:
pos terior a Péricles* c e m propor formas de governo1alternativas,,
quCLse ápresentam com o mistas - associando oligarquia e democra ­
cia porém nas quais se mpre prevalece uma minoria defensora de:
princípios aristocratizam .es. Não quer .isto dizer que sentiram repug--

* Poucas vezes terá se e: apressado mais eloquentemente o desprezo pelai


democracia do que na R'épiíblicet. “Nasce, pois, a democracia, creio, quan ■
- do, tendo os pobres venc :ido, matam a alguns dè seus contrários, desterrara!
a outros e aos demais os fazem igualmentè participantes do goverôo e doEi
rargnsl. Ao fim, e "Dor caiusa da liccnca que bá, eescraviza a democracia".,
surge desta a tirania. "A d cmasiada liberdade, parece, pois,que não terminai
cm outra coisa' senão cm um excesso de escravidão, valendo o mesmo parai
o particular que para a c idade” (J.ci Repzíbllca, 557a e-563e e 5ó4a).

21
capítulo 1

nância po r formas mais autoritárias de governo, sei ião que' as jul­


gavam me nos viáveis. A prova está em que, na práti< :a, ambos cola-
« boraram c om tiranos aspirantes ao papel de reis-filó; ;ofos - Dlonísio . -
' de Siracus a e Hermias - e que Aristóteles acabou cpn 10 amigo e co- -
laborador dos ocupantes ínacedônios de Atenas, o <pie lhe custou
morrer no exílio. Ambos orientaram sua réflexãó na <iireção de uma
ciência política, que, na definição de Aristóteles, deve explicar
"quantas c lasses de constituição há, quais são os meie >s mais adequa- ,
dos para a. sua manutenção e quais as causas, intem; as oü externas,
pelas quai s rarla firm a pode ser destruída" - e o livre ) quinto da sua -
Política, d edicado a estudar as causas das revoluçõe s em cada sis­
tema e os modos de preveni-las, faz dele um ante© essor da social .
'bistory do século XX. No caso de Platão, a elaboraç; ío é menos sis­
temática c; tem-se prestado aos mais estranhos -equí vocos : A' Repú- -

uma prop ostareacionária da sujeição da comunidac le a uma classe


. governant e aristocrática. Os detalhes dessa proposta efatridemasia-
do radicai s para permitir uma cômoda implantação,. e o próprio fi­
lósofo mu dou-os em As Leis, onde se propõe uma no1va estruturação
social, coi n uma comunidade dividida em propriété irios fundiários
que governam e trabalhadores sem terra,.que se api oxima mais do
feudalismij que de um suposto comunismo .Aristote: les, por sua vez
em troca, faz um projeto mais pragmático e se apóia c nas realidades
existentes;, em especial na escravidão* O primeiro n ucleo da socie­
dade é a família, integrada pelo marido e pela mulhi :r, amo e escra-
vos (só ps i camponeses pobres substituem.o_es.ciav o por um boi).
Acima da família está ó povoado, ou associação de f aniílias, e sobre
este, a po.lis, ou reunião de povoadps. O sistema id cal de governo
para ap o lis é uma forma mista - a politeia ou timocn icla, de cüja de- ■n
generação surge a democracia - que se apresenta cot no uma mescla
de democ racia e oligarquia, sem predomínio dos rio os nem dos po­
bres, mas o das pessoas de fortunamediana. Porém <3 modelo é am­
bíguo, sera precedentes históricos em que exeniplii Ficá-lo, c o caso

* Aristói ceies racionaliza a escravidão cora uma interpretai 3 0 claramente ra­


cista, que vem a fazer de sua Política uma espéde de “e conomia política"
do escr avismò. O escravo' - que, por definição, não c crc go - difere de seu
■ amo "cnmn nm animal de Um homem", de modo qtufes ta espécie de ani-
X/ mais in feriores "são por natureza escravos e é melhor pai ta eles (...) que se­
jam goi remados por um dono" (Política, I, v, 8-9).

22
as oingetis

équ é, na única vez em que se tratou de pôr em prática as idéias po­


líticas dé Aristóteles, durante a ditadura "ilustrada'' de Demétrio de
Falei ro, entre 317 e 307, o resultado foi um regi me opressor; dé com
seqi iências nefastas para as camadas mais humildes. De modo que,
os atenienses, retornados à democracia em 3 0 7 , aboliram quase to­
das ;as reformas introduzidas naqueles anos.11 ~ ' -•
—~ í f > O quedem mais interesse com relação à teoria da historia d a
concepção das formas de governo comQ_etapais da evolução huma-
nasí ‘araTIãtao^ há cinco formas de governo1:um a boa - que se chamar
ra re ino, se Um só manda, ou aristocracia^qVian do são muitos - e qua-
tro más, que se escalonam e sucedem através de alguns processos
que nem sempre são claros - como nas complexas elucubrações nu-
mér icas que pretendem explicar como do seio»da forma aristocráti­
ca, a mais perfeita, pode surgira condenável tim ocracia,primeiro dos
sistemas viciosos è degenerados. As quatro formas más são: á iinio-
cracia, identificada com o sistema de Crcta e d e Esparta, "tão exalta­
da pelo vulgo"; a oligarquia, "regime cheio dé iinumeráveis vícios"; a
dem '.ocracia, <ja que iá vimos que opiniãafle_tii lha; e, finalmente, sur-
gjntí lo como algo natural da evolução do reginu; democrático, a tira­
nia, "quarta e última enfermidade do estado".*: Tara Aristóteles] dife-
rent em entenSlrêsparer^forinas de governo, integrados por uma
varií inte boa - quando predomina o interesse d á comunidade - e'ou­
tra roá-qúando.se impõem os interesses dos quié mandam. O primei-
ro p ar corresponde ao governo de úm; sua vari ánté boa é a ivaleza,
e a i má, a tirania. jO segundo, ao governo de u ns_^oucovòu_dMjj'-
cos, e nos dá a aristocracia, como forma boa, ie a oligarquia. como1
sua degeneração. \Q terceiro e último correspc mde ao governo dos
dem iais e será uma boliteia ou tim ocracia - ess a fofmaãdeal degov-
eme ), .qúc cm outras ocasiões nos pinta como uma combinação de
oiigí trquia e democracia - ou, em sua forma vieic >sa, uma dem óa-acia,
situação que se produz quando os pobres não só mandam, como
tamlbém impõem os seus interesses.'-

t . * Se-na República predomina a análise comparada, dis formas Üe governo,


r ias Leis temos um esquema evolutivo, partindo di: alguma'catástrofe natu­
ral, depois da qual os homem se encontram sem organização social aJgu-
1 na. Começam reunindo-se nós montes, formam c lãs, mais adiante agrupa­
rd es de dãs, que elegem alguns para que os gover nem, até que, tendo pro-
{ pedido suficientèmenté, atrevem-se à-descèr às pi anícies para fundar dda-
. des (As Leis, 676-682).. ~ ^ ;
i -

capítulo 1

Destes esquemas, que'são ao mesmo.temperei assiflcações e


propostas iim tanto vagas de um sistema de etapas históricas, passa­
mos ao últiimo dos grandes historiadores gregos que nos interessa
aqui* e que:, como se verá, vincula-se 'diretamente coin esta proble- •
mática. Poliíbió Cc. 200.- c. 125) escreveu sobre Romai e para os ro­
manos, aint la que o fizesse na lmgua grega. Quando.no ano 168 aC., ,
os romano: s venceram-os macedônios em Pidna, tom aram diversas
medidas pttra assegurar o controle da Grécia, entre <:las, a de obri­
gar a Liga A quéia a enviar mil jovens das classes domú tantes para vi­
ver na ltáli; i, como reféns que iriam passar ali dezesse te anos da sua
vida. Um d estes reféns era Polibio, que se destacaria como geógira- -
fo. historia« iordas conquistas de Roma, educador de Cipião Emilia-
no e, inclus ;ive. com oagentea serviço de aiguns grup os senatoriais.
Continuaví i na Itália quandò, no. ano de 146, os roman os esmagaram
a tentativa de rebelião dos gregos, e parece ter tratado de melhorar
> ' . ' .
a sorte do: i derrotados. Sua condição de cronista do imperialismo
romano visão de dentro - como aniigo.da aristocracia governante -,
porém con i a experiência de um vencido, cònverte-o num testemu­
nho de val or considerável. Pela primeira vez, aliás, um historiador
podia ocuf >ar-se de um tema "universal", sem a disper: ião da obra de
Heródoto i tem os limites do âmbito estudado porTuç ídides. Polibio -
recusava a "história trágica", porém não se content: iva tampouco
'-pom a eruc lição livresca. Devolvendo à História seu vt :tho propósito
^generalizac lor - reintegrando-lhe a ciência política desl ãcada por Pla­
tão e Aristóteles - queria que nãosó fossejnvestigação sobre o pas-

* Nos seicílios que transcorrem entre a morte dc Tucídidcu .c.Q-tiascimentQ '


de Polibi o. não há historiadores de obra conservada - conv étn insistir na se­
leção qu c se opera através da perda dos livros de muitos ã utores, dos qiiàis
não conservamos mais que os títulos do que escreveram o u pequenos frag­
h- mentos, que não permitem formar deles uma idéia adequa ida - nem que te­
nham fei Ito alguma contribuição renovadora para o pensa mento histórico.
Xm / «/-'

) 0 único historiador do século IV.AG. do <


te foi Xemofonte, "polígrafo" aguerri se deve desde um trata do de equitação.
até livro: >que Finley qualifica como "filosofia popular (nut u scotido pejora­
tivo)", e que se tomou famoso pela narração de suas prój rrias façanhas na
Atiabasl s - livro que atribuiu a um tal de Temistóeenes.dc» Siracusa. com o
fim de t<imar mais confiáveis os elogios de si mesmo que. faz em suas pági­
nas - e p or sua contribuição ã biografia de Sócrates. De su a HeUenlca, uma
história ida Grécia, de 4 l l a 3(>2AC„que pretendia ser algo como uma com
tinuação de Tucídides, deve-se falar numa história da histo riografia, por seu
valor coimo fonte de noticias, porem não num livro como este.

24
as o ngens

sado, como também, c sobretudo, um meio de formação política-


dafinue se tenha falado d e "história pragmática", ainda aue o termo
scfã muito contravcrtidõjí-.* o que explica que Considera-se necessá-
nõ~; icrescentar o conhec imento direto dos lugares e dos homens à
fria relação das:notícias sobre pactos e batalhas.13 .V,
O aspecto de Políb áo que iria influir no pensamento histórico
posi teriqr - de maneira inc Üreta, posto que sua obra foi desconhecida
no Ocidente europeu du rante a Idade Média e só em parte se con­
servou- foi sua formulaçíío de uma teoria cíclica dos governos,'que
fecha e completa as elaborações de Platãò e Aristóteles, incòrporan-
do-a s a um marco histórá :o - o que, além disso.Hvrava a ciência his-
tórit ra de sua condenação i de ocupar-se_s_omente do singular, e volta­
va a convertê-la em ferramenta dcJanálise social. Políbio nos descre­
ve'as diversas formas dé g;overho e nos mostra as razões que condu­
zem, a seu apogeu, prime ird, e. a sua decadência, depois, até engen­
drar'uma. reação que fará qúe sejam substituídas por outras. O ciclo
se iiiicia quando os honn:ns, ao término de uma catástrofe natural,
vivem Como os animais e sé reúnem em tomo dos mais valorosos e
fortes de seus semelhantes, criando a m onarquia brtmitiva .que se
com verte em unta autênti ca ivaleza. quando o motivo para a adesão
pass a a ser a estima pela:superioridade intelectual do chefe.A.deca­
dência dafealeza engendra a tirania, e a reação contra ela de gru­
pos escolhidos da socieck ide dá lugar a que esta seia substituída pela
aiix iocrada,cu\a degene ração é a oligarquiaJ a pugnacõntrao go­
verno oligárquico não é obra já de um setor limitado da sociedade,
mas se faz com a participação de uma ampla massa do povo, e seu
resultado é a instauração 'da detnocm da, que também acaba por de-
genòrar-se e se transforma em oclocrada bu governo das turbas.
Nesi te momento a sociedt ide chega a um grau de dissolução, em que
os h omens voltam a viver como animais, como havia sucedido após
o ca taclisma natural, e v a lta-se a iniciar-se o ciclo de monarquia pri-
niitr va, realeza, tirania, aris tocracia, oligarquia e ociocracja. Ainda que

* "Que homem será tão néscio ou negligente que não queira conhecer
„com o c mediante que ti po de organização política quase todo o mundo
] labitado, dominado em e inquçnta e três anos nãocompletos, caiu sob um
Liiiico império, o dos romanos? (...) Assim como, com vistas a este domínio,
s erá possível, através da r íossa história, compreender daramente todos os
a contecimentos, do mesn 10 modo, também, quantas e quão grandes vanta-
g;ens propordona aos estudiosos o tipo de história pragmática" (Políbio,
Historias, c ' .

25
_ capítulo.l

seja possívell assinalar muitos antecedentes intelectuais a éstes es--,


quemas, corão vimos ao falar de Platão e Aristóteles, itampouco se
pode esque cer que . os gregos tinham vivido a experiência de. se
verem submtetidos sucessivamente à pressão de uma série de impé­
rios - Pérsia, Lacedemônia, Macedônia e Roma - è eram conscientes
da transitori edade de tais construções políticas.1'
Quando passamos dos historiadores gregos aos romanos, a
dificuldade para interpretar o pensamento que anima as suas obras .. -
- para pôr eim relação sua visão do passado com sua "economia po­
lítica1’ - aum lenta. Temos, em primeiro lugar, o problema dos proê-
mios: seguir ido um costume que deriva dos retóricos gp-egos, os his­ ’ ..
toriadores latinos fazem preceder suas obras de expos ições filosófi­
cas^onde, st : insiste em sua preocu p yão pela imparei ialídadé e em
seu propósi to moralizador. ap osições aué tióuco ou n ada têm a ver
com a obra em si. Pelo que se refere à imparcialidade, <é difícil admi­
tir encòntm-la nos grandes historiadores da etapa fim d dá Repúbli- i
ca e do primeiro século do Império, cujos vínculos co m a política -
eram claros .. É difícil atribuir objetividade e propósito s moraíizado-
res a Salústi o (87 - c. 35 aC ), político turbulento, acus? ido de crimes ,
e abusos; a um lito Lívio (59 aC, - 1 7 dC.), a quem si; considerava .
como um d efensor do regime implantado por Augusto, ou a um Tá­
cito (c. 58 c. 120 dC ), que expressava o rancor da classe senato­
rial, reduzida a um papel político secundário pelos imperadores, o
que explicí i que tios tenha deixado uma imagem hos til e deforma­
da dos rein ados deTibério, Cláudio e Nero.lJ
Umai obra coma n de Ttto Lívio pode integrar-se perfeita­
mente den tro do esforço de construção _de_um pass; ido histórico,
levado á cabo nos tempos de_Augusto^com_o,propc isito de legiti- -
mar o fim da Repúbüc^ej^estabclecimfntp__dc um novo sistema
político. Um esforço que se manifestou na política dte restauração
de monumentos, de colocação de estátuas e insc rições, ou no
apoio dado à composição da E neida, que havia de icriar um mito
nacional romano, de acordo com os propósitos do Augusto, de
quenuVirg íliq havia anunciado que "faria renascer o século de
ouro^Nlo se trata de reduzir os motivos dos historiadores a seus
interesses* políticos imediatos, nem de supô-los co m o simples por-
ta-vozesjJc:jomipartj do, jn asIsim- de-s ituar-s ua-“dbrã~ti rüm'à'purspêc-
tiva mais simpia, em termos de elaboracão-pela. cias ;se dominante
nma hegemonia cultural, um de cuios elementos básicos era q
que se tem chamado de o "historicismo romano"', segundo.o qual,

26
asoriigens _ - . - - ■

as fo rmas sociais estabelecidas e a estrutura política destinada a


presj ;rvá-las seriam.a obra de muitas gerações c le romanos^ atuando
ao lo figo dos séculos, numa linha de evolução única e predetermi­
nada .À elaboração desta hegemonia - cuja necessidade ia além das
diferenças que pudessem implicar os interesses políticos de grupò
- cqiiitribuiriám os poetas, os teorizadores da |política fe em lugar
muifr o destacado, Cícero, cujas elucubrações ac:erca da história não
passí im de retórica’) e os historiadores, fossem senatoriais~paiti dá-
nos ido Império õu republicanos nostálgicos de-um passado-mais
ou menos inventado, que, ao fím, resultava sec:úndário ante o que
estav a em jogõlComo disse Wafeh, falando das vinculações atribüí-
das a Tito Iivio, este não era um partidário de Auigusto "em nenhum
senti do significativo".O que sucedia era que "as: atitudes fundamen­
tais cie .Lívio - seu arraigado' sentimento religio so, seu patriotismo, :-
sua_E'reocupação com a moralidade -se nutriram do clima que pre­
valecia nos .primeiros anos do Principado".16 _ "7
Paia compreender isto, 'tem-se que ter e m conta a profunda
. crise social que comoveu os últimos tempos da República, no séçu-
io I a ’C. Não se trata somente de fatos como a irevolta dos escravos:'
lidentda por Espártaco, que chegou a contar com 150.000 homens
em arraias, como também de sinais mais graves <ie dissolução social,
ainda i que representassem uma ameaça militar imediata muito ^me­
nor, í a mo a insurreição de Catilina, que uniu hc ibres romanos arrui­
nado s_com camponeses pobres da Etrúria.À cri se da classe dirigen­
te podia abrir o caminho às reivindicações dos, camponeses e da
plebi; urbana, e engendrar um foco revolucioná rio. Para evitá-lo não
havia: outra saída a não ser pôr fim aos abusos dos de cima e ofere­
cer a os de baixo a possibilidade de expressar ó seu protesto dentro
da ordem estabelecida, sem recorrer à violência! Esta saída é á que
irá olferècer o Império, que garantirá a paz sociial com o apoio dos
soida dos e da plebe urbana, ainda que, ém cont rapartida, não tenha
mdh orado a sorte dos camponeses. Graças ao novo regimè, escre­
verá 'Horácio, não há que temer as comoções públicas nem a morte
viole iita. O preço pago pelas classes dominante s' por esta paz social
foi alto. e se compreende que haià sérias difenmças dê ápreciácâo
entre: um Tito Lívio, que hão perdeu nada, e una membro da classe
genat orial postergada, como^Tácito.^ o rém, na tarefa de contribuir
para:a construção de ümá História que servisse <ie justificação da or-
dem estabelecida uma "economia política" que raclonali7âsse a
pobreza dos camponeses e a sujeição dos esciravos - as diferenças
!

, ; , capítulo!

desapareceriam para dar lugar a um empenho coinpartilhadc^ O


próprio Tácito reconhecerá que, depois de vinte ano s de discórdias
civis e de excessos, Augusto "nos deu com uma constituição a paz
sob um principie: desde esse momento, os laços se fizeram sentir
mais duraimente''.17 r.- -
__J-y I^Ent re Tácito e Santo Aeostinho (354-430') há uma larga coc-
xistência <ie uma historiografia romana pagã e outra <cristã, Como há'
mime as instituições políticas de Um império que s c desmorona e
uma IgrcjE i que vai ocupando' progressivamente o lug ;ar dá "débil or­
ganização estatal romana! Por um. lado, autores pagãos "menores-,
como Aria no, Dion Casio, os escritores da História Ai igusta, ou esse
Amiano Mlarcelino (c. 330 - c. 397). contemporâneo de Santo Agos­
tinho, cujgi obra está na linha de uma historiografia laica, preocupa­
da c om as causas externas è internas da decadência <io império. Por
outrOiUip;i historiografia cristã que, ainda que cscrifci em latim, não
surge da r omana clássica por um processo de evolução ou degene­
ração, mati antes responde a uma nova concepção_da sociedade - a
necessidatde de justificar um novo sistema de relacõ es_entre os_ho­
mens. As: Sim se explica que os historiadores clássi cos caiam gra-
dualmentc no esquecimento. Só Salústio será ampla mente lido du­
rante toda i a Idade Media, na medida cm que se acoi moda aos obje­
tivos mor: dizantes perseguidos p.elos historiadores <;ristâos.TIt.o_Ii-
viosera admirado deJ o nge - não se tomará a lê-lo até-o século XII -
e Tácito p<ermaneceria ignorado.até que o redescobr issem os huma-
nistas. A história romana servia, sobretudo, como compêndio de
acontecimentos e anedotas usadas como exemplos d e moral, o que
explica o >êxito de compilações, como a de Valério M áximo.que scr-
- viiãó em <;erto modo de modelo para as de inilagres cristãos, às que
se unem p>ara formar o repertório dê argumentos pai ta uma socieda­
de que empregava quase exclusivamente métodos o: tais de comuni­
cação, corno a leitura em voz alta e a predicação. Isso duraria até
que, nos íécuíos finais da Idade Média, e em conexão com "a cria­
ção de instituições centralizadas características do estado feudal",
volte a dilâmdir-se o conhecimento da escritura c a : multipliquem
dc nçap-cis livros.18 -
■------- P tjue mais distingue o esquema da historio,grafia cristã dó
da clássica não é, como se costuma dizer, a co n traposição entre
uxrt mode. lo cíclico e outro linear - da criacão dq mii nrio ao fim dos
tcmpos_-Lmas sim o fato de qué a greco-romana busicava a explica­
ção dos fenômenos históricos no interior da própri a sociedade, fa-

28
asinigens

zenc to uso de uma cau: salidadc fundamentalmente terrena, en-


quaiito que a cristã súpoe que existe um esquema determinado
vind o de fora da sociedat ic humana, por desígnio divino, qite mar­
ch o curso inelutável da evolução histórica. O estudo da-história
serve ao cristianismo pata confirmar a fé - base em que se susten­
ta a :nova ordem social^ c o m a sequência dos milagres e a compro-'
vaçã o do cumprimento clas profecias^Se nem tudo do anunciado,
pelas profecias já se cuinpriu, do seu estudo podem-se deduzir
também orientações sobre o que sucederá no futuro. O passado se
estuda, além disso, pata incluir toda a história não-cristã dentro
das pautas marcadas pelo esquema bíblico, do mesmo modo qiie
se atipira incluir a todos o s homens vivos na comunidade dos fiéis:
à ca tolicidade dã Igreja corresponde a universalidade da Justória.
crist ã. E para as duas tare fas - decifrar as-profecias e coordenar os
.dive rsos relatos históricos - necessita-se de um bom conhecimen­
to d;a cronologia.19.. .v. - ... . . ,
Preocupação com a .universalidade e fixação de uma crono­
logia generalizável combi nam-se na ohra.de Eúsébio de Césarea (c.
265 -330), que, nas suas ( 'rônicas, conhecidas no Ocidente através
da versão latina de São Je rônimo, esforça-se por entrelaçar o relato
bíbli co com a história do; s povos dò Oriente Próximo e com a gre-'
co-romana. Dedica a maior parte do seu trabalho na construção de
uma tabela sincrônica pài.a determinar ã concordância dos fetos re­
latados na Bíblia com as li stas dé soberanos assírios, medas, persas e
egíp cios, com a periodiza ção grega por olimpíadas ou com as listas
dos magistrados romanos:, assentando as bases de um sistema que
chej;ará até a Cronologia', einendada dos antigos reinos, de New-
ton, inspirada ainda pelo iinteresse no deciframento dás profecias.A
- preocupação com a cromologia tem também dimensões mais mo­
destas, porém de origem igualmente religiosa. Para começar, a que
se refere à fixação da data da Páscoa, que condiciona a de outras fes-
tivid ades religiosas, e que exigia um complicado esforço de relacio­
nam ento de dois sistemas >de calendários distintos. Foi predsamen-
te mos branebs que ficavam entre um ano é outro das tábuas pas­
cais, que os monges com eçaram a anotar os acontecimentos máis
notá veis do ano - cometas, tormentas, mortes de grandes persona­
gens; iniciando uma fpnna de anualidades-que não demoraria cm
emá ncipar-se desse m arco estreito. Por outro lado, fpranr também os
motiiges que começaram a preocupar-se com a determinação mais
precisa das horas do dia, icujo emprego estavã éstrèifemente fixado

29
capítulo 1

na regra de São Bento, o que conduziu nà direção que haveria de le­


var à construção dos primeiros; relógios mecânicos, :nò século Xin.20
À concepção, cristã da í üstória* por outro la<do, contempla a
evolução da humanidade cormo algo ■necessariamente passivo, mo-
vido desde fora, tal cojno obscrvamos num manuscrito catalão do
século X iy que nos apresenta as seis idades da história, figuradas
numa roda, em cüjó interior esta o anjo encarreg; ado de movê-la:
"por este anjo'sê mudam os tempos e as idades", rios adverte uma _
legenda. Isso não impede, cntr etanto, que, em seu al ã por apreciar o
futuro, os historiadores-teólog os buscassem pautas e ciclos no inte­
rior desta seqücncia, guiando-; se peias profecias. Ha via, em especial^
três grandes modelos proféticos de interpretação histórica, que se
empregavam complementaria mente, já que não po deria haver con­
tradição entre eles. O primeii x> derivava de Daniel. que havia visto
sair do mar quatro grandes bcstasfa quarta tinha ciez chifres, entre
os quais desponta Uni décii no-primeiro - com " pequenos olhos
como de homem e uma boca que proferia coisas gnmdes ou jactan-
ciosas" -, cujo nascimento prciduziu-se aó mesmo t empo que a que­
da de Ir&s dos anteriores. Q uando apareceu o ancião dos dias, a
quarta besta foi morta e Ianç; ada ao fogo, e ò veih< 3 "sentou-sè para

* Convém insistir em que não se fala aqui da história e scrita durante a Ida-
A - MéHr« m a s sim apenas da mue corresponde ao mui ido feudal europeu,
Não nos referimos nem à rica literatura histórica do Império .bizantino,
nem à historiografia realizada no âmbito cultural islâmí ico, com um concei­
to mais amplo do universo e t ima visãò social mais rica . Seguir, como se faz
neste livro,o fio condutor que leva até as nossas concepções, obriga a pres­
cindir de tendências e figuras que ficam à margem dest a linha genética, por
maig valiosas que sejam, O ex cmplo mals notável é.o de Ibn Jájdún (1332
- 1382), historiador norté-a£ti< an o de ascendência sev ilhana. que nos seus
Mukaddima nos ofereceii un ia introdução- à metodoli agia da história, con­
cebida como “informação ace :rca da organização soda 1", c que acertou em
estabelecer um vasto esquen ia cíclico, que trata de e splicar como os po­
vos das estepes e dos deserto:; conquistam as terras aiá Lveis dos sedentários
e fundam vastos impérios, qu e são, por sua vez, destra lidos por novas inva­
sões nômades, procedentes d e suas mesmas terras de origeõl, ao fim de al­
gumas gerações, quando os n ovos réinos'"bárbaros" pi trderam já a sua vita­
lidade. De todo modo, Ibn Ja ldún é uma figura solitáiria, sem precedentes
na cultura islâmica nem influ ênda considerável nela.: Descoberto em mea­
dos do século XIX, foi uni pr<rdccessor genialj-porém: ma importância para
a história da História é escas:;a. (Há uma tradúção de Ibn Jaldúh publicada
recentemente pelo Fondo de: Cultura Econômica, Mérsico, com o título de
Introducdón a la bistortà u niversal Veja também .V ves Lacostc, Él naci-
miento dei tercer mundorlhm Jaldún, Península, Bar celona, 1971).

30
I

a s ongens

jiulgar c fbrám abertos os livros". À interpretação: habitual sustenta­


va que ás quatm bestas representávamos t iuatio grandes impér ios
c onhecidos pelos judeus - babilónico, medà, persa c macedônio - ,
dlepois dos quais viria o flm do mundo. A necessidade de atualizar
mina profecia que, entendida assim, não se ]havia cumprido; levou a
r efundir num só os impéiros meda e persa, e á fazer que o-papel do
' - qjuarto passasse ao romano. O problema, cc imo Se verá, reproduz iu-
1 s e com a queda do ,impérió romãrio, mom« :ríto eni que houve q ue
: se acrescentar que os dez chifres eram dez reinos, como os surgidos
o dlas ruínas do império, que podiam durar ta rito como conviesse,: até
q[ue aparecesse o décimo-primeiro chifre: o Anticristo. anunciador
dlo flm iminente do mundo. Ò segundo modelo é o do Apocalinse
-d le São Tóão. aue se encadeia em alguns aspectos com a visão de O a-
_niel - há uma besta saídajiomiar com sétec abeças e dez chifres <íck
•_n oadòs, oor exemplo -. porém aue acrescer ita um novo e_enigm; ítí-
c o elemento, quejgstai^ulestinado à te r .urr t papel muito import: in-
p ; na história profética medieval:haveráiim período de mil anos e m
, qtie, encerrado o diabo no abisrr m produzi ráurna primei rairess ur-
: heição, limitada aos eleitos, c Cristo reinará em paz com,eles no
n mndo. Ao final desse milênio feliz, voltará a.se soltar por um c ur-
ti j tempo o dragão infernal, para que engane "as nações11, e logo vi-
ri io a 'segunda' ressurrdção> a de todos os n lortos - c o' juízo final rj3)
:rcrirõlnõaê1p} que deriva da íiteratua pa trística. é o da cháma da
"semana cósmica".Semelhante aos seis dias: da criação, mais ò st:ti-
' n io de descanso, a história dò inundo se div ide em seis épocas, q ue
c orrespondem também às seis idades do ho mem, da infância à se ni-
li dade. A sétima idade da história seria a dc >final deste mundo, lal-
v ez a do milênio anunciado por São João.At :ontecia acreditar-se, 1sa-
siaando-se nos tentos bíblicos, que os.diás d a semana cósmica enun
d e mil anos,dc modo“que ao fim de seis miil,depois da criação,<:o-
n íeçaria a fase final dos tempos.21 ,N
' Os modelos proféticos acomodaram-: >e à história do Impér io,
e os cristãos, que viviam numa perpétua es pera do fim do mune lo,
que iria trazer-lhes os anos felizes-do milênio,perscrutaram as evi-_
d ências da-decadência de 1101113 para ler ní :las os signos do- temjpò
q ue’ aguardavam. Entretanto, p fato de ligar ( i cumprimento das pi rò- ■
fticiasa um acontecimento terreno, tinha o grave inconveniente de
o blocá-las à prova e de pôr em perigo a fé se as previsões não se n sa-
' . li zassem.Daí que um homem como Sarito Aí ;ostinho, bispo de Hl| >o-
n a (3^4-4301. combatesse tal identificação, em espçdal. depois ido ~
capítulo 1

ano 410, quando Roma íbi conquistada e saqueada i por Alarico, o ,


que parecia anunciar o momento esperado. DesSe j estimulo surgiu
yA cidade de D eus, que não se limitava a condenar a is especulações
^proféticas;, como ia além: reinterpretava a história,: separando a de
iRoraa da do cHsti^sinõi a "cídãde'terrena11 da "c livinít’, qiie era
' aquela a que pertencia legitimaméntej} crisâp: a úr uca a que se re-
] feriam as profeciãsTé cuia história não tinha nada a y<cr com os ácon-
|tecimeritc3s políticos dos reinos e dòs unpérios.TjAgç jstinho confiou
a seu discípulo Paulo Orósio)(+ c. 418), a tarefe d c escrever uma
nova hist óriã do mundo que partisse dessa mesma idéia. Nas suas
Histórias contra os pagãos, Paulo Orósio voltava a imbricar o rela­
to bíblico, çom a história profana, para passar por cã ma do saque de
Roma pel os bárbaros, como mais um incidente pern oitido por Deus
"pára a correção da cidade soberba, lasciva è blasfe ma", ao mesmo*
tempo qu iè felava pela primeira vez do romano-cristã io como de aígq
singular e: específico, diferenciado do Império.—
f^De :pois dessa ruptura, no transcurso dos séct tios VI ao IX, os
historiadores cristãos se dedicaram a1restabelecerá >enlace entre o
relato bíblico e a realidade politicagem que viviam^' orém, desta vez,
referindo-se aos rcinos que haviam surgido da dêstimiçio dò Impé-
rio do Oc Idente. nara reafirmar o papeída Igreja na nova ordem po­
lítica, ao mesmo tempo que a legitimavam .apresen tando os novos
estados c orno continuadores de Roma imperialjGr egório de Tòurs
(530-594;), arcebispo e membro dé uma rica femília í ienatorial, escre­
veu uma História dós fran co s, que partia da criaçã< 3 do mundo, po­
rém detiiiha-se com especial atenção no período cio ano de 575 a
591, para referir-se sobre uma série de aconteciriier ítos vividos pes-
sóalmént e. Seu livro é um desfile de dignitários laicos. e eclesiásti­
cos, onde -.j> povo aparece como vítima passiva de u má idade de cri-
mes, pes tc, fome, prodígios - "alguns diziam que ti nliam visto cáir
serpente s da$ nuvens, outros sustentavam que um povoado inteiro
tinha sido destruído e havia se dissolvido no ar, çc >m as casas e os
homens que viviam nele" - e falsos apóstolos, relatado com tòda a
fidelidadêp oreste (Herodo to da barbárie'^) que nãó pretendia outra
coisa, sejgundo afirmava, que "pôr as coisas de maneira ordenada
para des crever os acontecimentos", num tempo c m que ninguém
era capaz de "escrever um livro sobre o que su ced e hoje",[Isidoro
__de Sevilã ia?(560-036) é importante, antes de tudo, p or suas Etimolo-
giã sfcú t npilação enciclopédica daquela parte do saber antigo que
parecia i jtil integrar no ensino da Igreja, enquanto que suas Histó-

32
as origens

ria s ãos godos, vândalos e sUevos, destinadíis a cumprir a mesma


fuiição poííticaque a obra de Gregório deTò urs, têm um interesst:
muito menor. Só que o Estado godo, para o que havia escrito Isido -
ro, foi destruído péla invasão muçulmana, e a Iiistdriografia hispano-
crif itã teve que refazer a tarefe, para acomoda ir a legitimação à mo •
narquia asturiana, fingindo uma continuidade: do reino godo ao a s-
turi iano, às custas de falsear a verdade historie a e de inventar genea -
fog ias fantásticas^ que faziam dos caudilhos- montanheses descen ■
der ites de príncipes godos refugiados nos pt :nháscos cantãbricó s,
. Bec la (673-735), monge do mosteiro dè Jarrovv r, escreveu iima Bis tá ■
ria da igreja e do povo da Inglaterra-, onde nos fala, sobretudo, cbi
Inglaterra saxona é celta, fragmentada ein reinos, e da expansão doi
crisitianismo romano por ela. Em Beda, tem sido elogiado o seui
interesse ém expor suas fontes de informação, "para tirar qualquer'
dúvida (...) sobre a exatidão do que escrevi", o qüe não obsta que:
seu relato esteja cheio de prodígios ingênuos <: de milagres.estupen
dos. ftuilo Diácono (+ c, 800), de uma família d a nobreza bárbara,
edu içado na córte de Pávia, refiigióú-se no mc steiro de Montecassi--
no, depois da queda do reino longobardo. Escireveu umas Historiae
lontgobardom m , qüe neste caso eram uma justificação póstuma do
Estado desaparecido. Passou, finalmente; à cor te de Carlos Magno, e
conn ele se encerra, de certo modo, este ciclo de recomposição do
rela to histórico em função da_ necessidade di; legitimar tuna nova
ordem política, na qual o papel da Igreja resul tava decisivo.33
tfA destruição das monarquias bárbaras, com a chamada "revo-
luciio feudal" do século XI. que pôs em perigo a posição da Igreja,
abriu caminho a uma grande m udança no pr nsam enrn social cris-
tão, da qual surgiu tuna economia política - a i :eoria dás três ordens
- qu e serviria de fundamentação ideológica à sociedade feudal, até
o tr iunfcTdõ capitalismo] Na origem destas muidanças sociais está -
com o mostrou Pierre Bonnassie, analisando o caso da Catalunha -
um crescimento econômico que quebrou, poir volta do ano m il, os
vcliios equilíbrios da Europa cristã, ao suscitai rias exações dos .ban­
dos armados instalados nos castelos, que se apoderaram do exce-
den te dos camponeses, còm o pretexto de de fendê-los de sua pró­
pria violência, e os submeteram a uma série d e obrigações, que to-
lhiaun sua liberdade^ ao mesmo tempo qué Unes arrebatavam boa
pari e de suas terras.Assim consolidou-se a nova servidão, enquanto -
que desaparecia a escravidão antiga. Dos bandos auxiliares da velha
nob reza surgiria uma nobreza menor,a cavalaria, num processo que

33
capítulo 1

significava a consagração da posição de privilégio dos cnrpòliadorês.


O poder político do conde e semi ingressos fiscais fica vam ameaça- £
dos, e este só pôde recobrados, a<;eitandó uma parte d o feto consu­
mado, mediante o recònhecimen to do direito dos cav aleifos a sub­
meter e explorar os camponeses .[Ãssim foi como o sistema feudal, - V
nascido dã decomposição do Imipério romano, chegott a sua crista­
lização, numa forma que Bormas* ;ic descreveu correta: mente^_supe-
-rando a falsa dicotomia de feudalismo e ,senhorio ao definida -
como "um regime que sê funda n o confisco, freqüente mente brutal,
dos benefícios (do sobreprodutc i) do trabalho campo nês, e qué as- .
^egunírpõr um sistema mais ou menos complexa de redes de de­
pendência (vassalagem) e de grairificàçÕes (feudos), a i^distribuição
hõ seio dbTclasse dominantêa.^ e. . >
Muitas coisas iriam riiodi£lcar-se nesta: sociedade, desde a es­
trutura familiar, que tenderá agora àfinhagem, até;0 papel da Igreja,
que corria o risco de perder a s ua posição como leg itimadorá das
monarquias bárbaras. A reação o dcsiástica se manifesi tatá em distin­
tas direções. Por um lado, por es remplo, tratará de manter o còntro-
le social, com uma nova è mais c-stritaj é g ulamentação do màtrimô-
niõ; por outro, e esta é talvez a st ia basefimdamental, iaferecerá uma
nova interpretação da sociedade, a teoria das três oitriens ou esta­
dos, que justifica a sua função ric i seio da nova socieda de fcudal.Esta
visão propõe uma "economia p olítica" còm uma divisão social do'
trabalho entre três grupos distintos: os cavaleiros, q ue lutam para
defender o conjunto da sociedotde de seus inimigos internos e de­
temos; os eclesiásticos, que reza in e mantêm a relaçã o com a divin-
dade. com o fim de propiciar b(;ns e evitar castigos j t spcigdade de
qiíe formam parte; e a massa rims que trabalham, os trabdíhadoivs, ^j
que mantêm aos outros grupos, em pagamento dós st erviços-qug re-
ffhfm delps /nõhv mostrou que: esta visão consolido u-se pouco de- ^
pois do ano mil, "fruto tardio d o renascimento cultu ral carolíngio",
é que surge da „operação de introduzir á igreja nò velho esquema
.dual dos que mandam e dos sú ditosjÃTlgrcjà reagia assim c ontra^,
sua margínaiiração na nova ord em feudal, õferecend o-lhe_umaJègi-
timacão. ao mesmo tempo que a defendia e se défeí idia cõntra um .
úúnojgo com um: a heresia popt dar igualitária^
Os esforços que p Igreja havia realizado para combater o' uso
dé modelos proféticos como chave para interpretar o futuro imedia­
to tinham sido inúteis. Sua infle lência é evidente em todáa hístorio-

34
as origens . "

grafia medieval,e inclusive mais além, nas próprias ações políticas>


Téi n-se observado, por exemplo, que a coroa< ;ão imperial de Cario:»
Magno, teve lugar na data em que, segundo alguns dos cômputos
ma is difundidos, iriiciava-se o sétimo dia. dá história do mundo e ,
coi n ele, uma nova época. Quem contribuiu p; ara pbtenciar esse use i
dos modelos proféticos foi-o abade calabrês Joaquim de FiorLCc.
Í l :í 2 - 1202), com conseqüências que irianut omár-se transcenden­
tais;. Joaquim era homem de saber e virtude reconhecidos, escuta ­
do com respeito por reis e papas. Se. o- quarto concílio dé Xatrão
condenou,ainda que matizando suásanção co m elogios,algumas de:
suas idéias trinitárias, foi sobretudo por razõe:s políticas, posto que:
g§&
lê s ' ''" r V -
Joaiquirh estava relacionado com o partido da: paz, inclinado a uhiai
trar isação com o Império. No terreno da dõútr ina, opunhá-se à esc o ■
m -: 7 lastiea e patrocinava um estudo mais profundo das Escrituras,comei
- q q; ue lhe serviu para formular uma série de pi iralelismos entre o Ve ■
lho e o Novo Testamento. Sua visão da história enlaçava q. esquema l'
d a : semana cósmica com dütro, de três periòd os ou status, deíermi-
g -X had o pela intervenção da Trindade nela. Daí si írgiu o universo com- ■
pie: só do Livm das figuras, com dois jogos de sete etapas cósmicas
paralelas (correspondentes ao Antigo e ao No’ toTestamento), a que
se í sobrepunha o dos três status, Esses pcripi dos o\i-status corres-
S.'^ V~ =: imndiam a uma idade do Pai - a da velha lei -, outra do Filho - a dó''
Eva ngelho, que havia durado até o presente e unia terceira idade.
a dt a Espírito Santo, que tinha começado já a partir dos tempos de
São Bento, porém cuja culminação se produziria assim que o Anti-
cris to fosse derrotado e uma Igreja renovada, n itegrada por monges,
remasse em paz e contemplação sobre a t e m , e sob q império de
uma lei nova, a de um Novíssimo Testamento, ique não seria escrito,
com o os anteriores, mas que se apresentaria a percepção imediata
do espírito.* O que havia de realmente novo neste esquema, deixan­
do d e lado a fascinação que puderam exercer as especulações e as*1

"' (O primeS^idos três períodos de que Êdamos foi em tempos da Lei, quan­
d o o povo dõ Senhor serviu como um menino p o r um tempo sob os ele-
i nentos do mundo. Não estavam capacitados para j ilcançar a liberdade do
1 '.spírito. ate que veio o que disse: 'Se o Filho os Hf >era sereis certamente H-
t Tes’(João, 8,66). Çi segunde) período foi sob o Evs ingelho e dura até o pre-
sienté, com liberdade em comparação com o pas:;ado, porém sem ela em
c lomparação com 6 futuro (...) ^"tcrceirõjpériodo virá até o flm do mundo,'
£ ’í 4 i ' '
m s * •::
• • -
.35
capítulo 1 v.

figuras de Joaquim, era que antecipava um futuro iminente de feli-


cidade, que òs homens podiam ajudar a'construir: um j irograrna que
seria recolhido com entusiasmo.pelas novas Ordens rcilij^osas, é em._
especial pelos fcanciscanos, e que algúhs empregariam para fazer
uma crítica da Igreja de seu tempo, tão afastada da co ntemplação e
da pobreza..26 • - - - . .. » .
A ini fluência do joaquinismo e da mensagem que afirmava
que era pos isível construir um mundo melhor e mais ji ãsto, Como es-
tava animeiíado em Seu modelo profético, será ampla ,-e duradoura/
Animou ao: >grupos que propugnavam a reforma da If peja, çomo os
flagclantes, e a heresias populares de conteúdo radiei d, como a dos
"irmãos apostólicos" <äe Frei Dolcino. Heresias q u etêm ura cónteú-
dajnais tetxeno que celeste e cujo segredo - o de seu último senti­
do e o da ! audiência que cònseguiraih entre o povo - consiste em
que expressam em termos culturais-religiosos - os que têm aó seu -
alcance o homem medieval - umas aspirações de neforma social,
cpmojljné L Labriola, ao: comentar a forma cm qltc Frei Oolcino
"transfigun iva" os problemas políticos do monientc i "em tipos já
simbolizad os pelos profetas e pelo apocalipse", mec lindo "os tem­
pos da pro vidência". Ao que acrescentava: "Porém foi ;te um herói, o
qual demo nstra que essas fantasias pão foram a causa do teu traba­
lho, mas o envoltório ideal em que davas conta á ti m esmo, como fi­
zeram tant os outros um século antes que tu, incluído Francisco de
■Assis,do desesperado movimento das plebescontra a, hierarquia pa-

já não sob o véu da letra, mas em plena Uberdade do Esp írito, quando, de-
■pois da destruição e cancelamento do falso evangelho d o Filho de Perdi­
ção e die seus profetas, os que ensinam a muitos acercai da justiça serão
conto o esplendor do firmamento e como as estrelas pa rã sempre/O pri-j
liteiro? pieriodo, que floresceu sob' a Lei c a circuncisão, começou com
Adão. Ç) segui idOpque floresceu sob o Evangellio, começ :pu com O zias^?
:/tercêirq, no que se pode entender a partir do número da s gerações, come­
çou em tempos de São Bento. (...)Alétra do Antigo Testanriento parece, por
uma c a ,1 a propriedade de semelhança, pertencer ao Pai .A letra do Novo
Testameinto pertence ao Filho. Assim, a compreensão esp iritual que proce­
de de ai nbos pertence ap Espírito Santo. De maneira sen lelhante, a ordem
dos cas: idos que florçsceü no primeiro tempo parece per tencer ão Pai, por
uma propriedade-de semelhança, a ordém dos que pred icam no segundo
tempo, ao Filho, e assim a ordem dos monges, a quem o s últimos grandes
tempos tem sido concedidos, pertence ao Espírito Santo'" (da Expositio in
Apocítl') psim, f, 5 r-v, tomado da tradução publicada ia Be màrd McGinn, Vi­
sions oj rtbe End, Columbia University Press, Nova York, l 979, PP- Í33-13ÍK

36
ás origens

pàl. contra a burguesia já forte rios município s e contra a nascente:


mo narquia". A mensagem do joaquinismo, e dl i tradição herética po- ■
puí ar, transformou-se com ds hussitas ria baíie ideológica de umai
primeira revolução antifeudal, e tomou, nos movimentos dos cam -
por íeses alemães, nós começos do século XVI, o caráter de uma san- ■
cão religiosa ao direito dos homens à igualdad e. Por este desvio, um.
jogo de doutrinas criado inicialmente para as:segurar a estabilidade:
de iima ordem social, havia se transformado ei n subversivo è se em- •
pregava para combátê-la. A revisão hlstórico-p irofética do joaquinis--
mo., na medida em que punha em discussão a autoridade da hierar­
quia eclesiástica - imaginando urna Igreja melhor em uma socieda--
. de i riais justa minava à economia política do sistema. Ós cámpohe- ■
ses ingleses dòs século XIV ou os alemães dó s começos do século
XV]: tinham deixado de acreditar que a estruti ira trinitaria da socie- ■
dade estamental fosse "um reflexo divino da divisão funcional dò
trabalho násociedade".17 - - ; ■ —- ~ ^ .
I As mudanças sociais destes_séculos d a baixa Idade Média
pre parariam a transformácão do tipo de Hist<iria düe servia de sü-
por te à economia politica_dor feudalismòj N_: i m esm a m edida em
que a Igreja foi perdendo uma parte essencla 1 da sua função orga­
nizadora da sociedade, que passou aos novos Estados que agora se
con stituíam - às monarquias feudais, consolid; idas a partir do sécu-
a Históri ^Abandonou-se prcv
grensivamente a velha História universal crist ã, com sua identifica­
ção de "a ligreja do povo", à maneira de Gref ;ório de Tours ou de
Bed a, para dar lugar là crônica cavaleirescajde Villehardouin a Mun-
tancr, jústificadora de uma classe social c de a eu predomínio, e sur­
gira m, junto com ela, outros tipos deilcrônici l laica Iriue. se faziam
usó da teoria das trés. ordens, em boa medida a secularizavam. Des-
tacai-se entre estes tipos a crônica "real", que tinha a finalidade de
legi timar o papel das monarquias - sançionadp..até então pela con-
sagt ação -,aò identificá-las com s_eus.pqyos..e.<aue. por isso mesmo.
abandonaria latim.Jínguaumjgersal. da ígrt:ia, para expressar-se
nas falas populares. Porém a transformação-tia História iria.ainda
mais além, de modo que junto à crônica cavaleiresca ou à da "mo­
narquia e o povo" vemos florecer outros gên eros -[crônicas de ri
dad es, diários de instituições laicas, livros de r ecordações pessoais,
-ritcT - que nos fedam simplesmente dos homens e de seus trabalhos,
com o antecipações toscãs de novas formas dc: entender a história,
Este s antecedentes tinham,de frutificar sobreitudo na Itália, onde a

37
capítulo 1

dc instituição dás cidaries-estados re­


publicanas, lias que haveria, de siurgir um pensament o político que
se expressaria fundamentalmer ite em termos civis, comò corres^'
pondia às preocupações: de un ia sociedâde'democi ática; gradual- -
mente orientada para o com én:io. No apogeu desta etapa, tem-se
que situar fenômenos culturais distintos, porém paralelos, como o
primeiro hum anism o 1de Pádua, o pensamento.pòlítiico de Dante -
que "queria superar o presente, porém com o so lh o s voltados ap
passado".- ou a arte realista de G iotto - que "ganhou a confiança em
si mesmo, e o caráter prático d os que viviam do cqmiércio estavam
à irentejda com unç e estende un um agressivo cor )trple_ sobre o
campo". Quandó a crise do sccnlo XIV abalou este mundo e pôs
em evidência süàs limitações, foi precisamente qüan dó, do intento
de transformá-lo para evitar sei a dêsiiioronaméntp, :smgiu a refle-
xão crítica dos humanistas florentinos.3* ' “
— Ch i a mo s com issó ao p o n to em que a crise; dá sociedade
feudal aponta, pela primeira ve2:, na direção que acal >ará conduzin­
do, depois de- uma longa e còmj: jlicada evolução, ao tiriunfo do capi­
talismo e da burguesia, e à cons< éguinte elaboração di : uxna nova in­
terpretação da história e de urna economia política distinta. Esse
"trânsito" é o que vamos fastreai : nos capítulos seguin tes. Porém, an­
tes de fazê-lo, gostaria de deter-i he por uns momentos ná caracteri-i
zação que deve dar-se aos movij mentos antifeudais; aos quais temos
nos referido de passagem. É fiei jüente quaíificar-se õ s mãis primiti­
vos de "utópicos" - o que signifie :a, simplesmente, que nãò têm lugar,
em nossos esquemas das etapas da evolução social - 1e aos mais ma­
duros, de "protó-bufgueses" - ist:p é, anunciadores dá s futuras revo­
luções burguesas da Holanda, Inglaterra ou França. É natural que
numa coalizão de homens que lufam contra o feudá listno haja ele­
mentos proto-bifrgueses, porémi párece-me difícil admitir esté qua­
lificativo para os traços igualitários que aparecem ná revolução hus-
sita ou em outros movimentos radicais. E lógico qúe í i historiografia
acadêmica reconheça como um signo de progresso - "antecipado" a
seu tempò, se se quer; porém ni mea "utópico" - tudo o que anuncia
o'mtindo do capitalismo triunfei tte - á genealogia do s istema que lhe-
dá de comer -, e que rechace, e inclusive condene,o qúe não se en­
caixa nesta evolução.Porém, se não se participa da economia polt
- ticá que- acéitám. nossos cientis tas acadêmicos, c rião se comparte ■
de sua preocupação por legitiimar ó presente, não tií i por què acei-
cil ivr •, V. '
as origens . :V" > - ■

7 " tar sua estreita visão hist órica,' entrando em s«;ú jogode sobrevaio-
rização dó proto-burguê.‘>e de. desqualificação simplista de tudo q
;-C . . mais..É necessário tratar 'de desvelar a lógica Lnerentè a alguns pro-
: jetos sociais, que não podemos contentar-nos com adjetivar como
milenaristas.o que equivale a situá-los fora d a ordem "naturai” da
evolução históricã-29 . _
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39
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capítulo 2

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do renascimento
mg à ilustração .g .
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jTVté alguns anos atrás,'era habitual n :ferir-se à historiogra­


fia «:scrita,pelos humanistas italianos em termos meramente cultu­
rais. Seu mérito teria-ebnsistido ém fazer da Flistória um gêiierò li­
terário independente, ainda que eles se contt :ritassem em imitar a
Salú stio e áTito livio, e a seguir as lições de Cíc :ero. Corno o seu pro-
posiito era o de ensinar moral "por exemplos", a. exatidão do que nar­
ravam, resultava, para eles, como coisa secundá ria, contanto que á li­
ção a tirar fosse correta.A maior novidade teri a sido a de rlrixar Hr
ente :'ndèr o cursò da história como resultado ida ação da providên­
cia, pára vê-lá "como o relato de atividades hui nanas inspiradas por
mot ivos_humanos'*, é até isso podia supor-se q ue o tinham aprendi­
do c ie seus modelos latinos,aos què recorriam como mestres da líft-
e do estilo,
Esta interpretação tradicional tem cedido lugar a outra que
assii tala a relação que .existe entre as mudança;; culturais, a crise das
velh as formas de governo e a ascensão áo poder de novos grupos
sociais. No caso de Florença, especialmente, tieni-se.podido exami­
nar como as'sucessivas crises da cidade, entre 1402 e 1527, guar­
dam um estreito paralelismo com a formação de uma consciência
políirica, que sé expressaria através de novas formas de História, de
Leonardo Bruni a Guicciardini. Haris Baron, p or exemplo, mostrou
que os estímulos que promoveram o aparecimento da historiogra­
fia f.lorentina do século XV foram muito mais políticos que cultu­
rais. Na passagem do século XIV ao XV, várias cidade^ italianas, èn-
çabe :çadas.por Florença, travaram uma batalha vitoriosa contra a ti­
rania e conseguiram salvar a liberdade republ icana. A consciência
do s ighificado dessa iüta foi uma fonte de estí mulos para, o jpensa-
men to C a cultura dc Florença/A sua importânt :1a para a iluminação
dajn ova história seria decisiva. "Foi a dupla exr >eriência da seculari-

I:
j
capítulo 2

zação da política e da ascensão de uma cidade-esta.do republicana


ao lugar r nãis destacado da cer ia italiana, o que causiouuma revolu­
ção nas c< Micepcões político-hi stóricas dos florentin' os" . Pela primei-.
ra vez esplorâr-se-iam os latos; da antiguidade para vaiorizá-ios po--
liticamemte,'sem empenhar-se cem buscar neles a açlio da providên­
cia e o çu mprimento das profe cias bíblicas. Essa qriemtação pode-sè
ver nas obras de homens com o Coluccio Salutati i[1330-l406) ou
Poggio Bracciolini (1380-1459 ), e resulta clara na. Lciudatio ploren-
tínae U rhis de Leonardo Bruni:(c. l37Ó -1 4 4 4 ), on de, ao panegíri­
co do meio físico e da cultura, acrescenta-se o do regime político,
graças ao qual "esta prudentíssima cidade tem tambiém ajustadas to-
dasas' suais partes, que disso re sulta uma suprema e concorde repú­
blica". Dait partiria a nova hlstciria-renascentista.au«; não há aue_se
entender como um mero avanço-estilístico. Sé Bru ni emprega nas.
suas obras o discurso retórico, é para poder expor o s debates e ten­
sões, e trazer à luz os conflitos políticos, cónyênc (dpitambém de
qué a eloiqüência púbica é nec essária para a prática dá liberdade
f Não seria só nos terrenos da política e da historiografia que
se deixaria sentir a influência dessa mudança. Foi também por obra
j "daqueles, pedantíssimos investigadores de antigas; histórias", que
|começou realmente a modificar-se a visão do mui ado natural e a
|abandona Lr-se a-fé na física dei Aristóteles e na cosmologia de Ptolo-
^neuLjSbicla que, anteriormente, outros homens tenliam expressado
suas dúvidas, foi a conquista do sentido do antigo com ó história, ò
■que permitiu analisar aquelas teorias como produto de alguns ho­
mens determinados num contexto cultural dado, e não como reve­
lações efrituadas por boca de i Aristóteles ou de Ave. rróes, o que era
uma com dição necessária para poder criticá-las e colocar-se em si-
s. ■ ■tuação de: superá-las.3 . ' . ,
r Q ue isso acontecera solbretudo èm Florença, não há que es­
tranhar. Sie em outras cidades ilralianas dava-se o domínio político da
burguesia, em Florença o quadro coríiplicava-se, co m o conseqüén-
■ cia de um i maior desènvolvüne nto econômico. A co nfluência da ati­
vidade bttncária e da indústriatêxtil havia enrique eido, a muitos e
• j reduzido os demais à condição de proletários. "Neuihuma outra ci-
,5^ 1?dade itali;ana poderia engendram uma variedade tal d e condições so-
ciais". O i humanismo surgiu nesse meio, não ho dai? universidades,
s1' Ksenão no dc advogados c nottirios, que, reuniam a dupla, condição
f. de letradi os e de participantes ativos dá vida públic; a. Este vínculo à
política tiem muito que ver co m a laicização.de suas; concepções da

42
as ações de outros horm ens. "Chanceleres da i epública, pesquisaras n

mos anos, qqe surgiram os fundamentos da ci ática histórica. O reric

formação das primeiras icoleções em Roma e JFlorença ensinou ao. s

tica, não só haviam de sa ir melhores versões d as obras iiteráriàs clás i-


sicas ebons repertórios das leis romanas, cormo tembém os primei ­
ros exercícios de crítica histórica aplicada aos documentos. O riiaiis
fernoso destes foi a denú incia da chamada "Do ação'de Constantino",
qiie pretendia que o imperador havia dado ao papa Silvestre e a

Lorenzo Valía (1407-145 7), a serviço de Alfoiiso, o Magnânimo, de;


Nápoles, e obrigado a d e fender o seu soberanc ) contra as pretensõe: ;
políticas do papado, que m. fez uma crítica demolidora do docümen -
to e pôs em evidência o s. anacronismos, erros de linguagem e inexa -.
tidões de toda ordem qu e continha. Só que nã o há que contentar-sc;
com esta dimensão filolc >gica de sua crítica, já que Valia lhe deu tam ­
bém úm conteúdo religã dso - há que recordar- se que escreveu umas:
anotações à Vuigata, que foram publicadas poi r Erasmo;em 1516 - e.,
sobretudo, político, ao rt :clanrar o direito de s ublevar-se contra a ti -
rania de alguns papas qu ie "de pastores de ovelhas, isto é. de almas,
converteram-se em ladre ies^ejaeccenários"7
, ,' Em 1434, os Méd lieis conseguiram co ntrolar o governo de:
Florença, dominado por patrícios que lhes era m fevóraveis, é gover ■
narum a cidade durante í iessenta anos, sem ab olir de feto as institui­
ções republicanas, num longo período de prosperidade e floresci-
- capítulo 2

mento. O j egime afundpu em 149 4, com a invasão fran icesa. e csta-


bclCceu-se então oima nova con stituição republicana, que dava
maior participação às camadas m édias e populares. Os anos dessa
ITtapa republicana, que durou de 1 494 á 1512, foram te mpos de co­
moção, que viram a pregação de ! Savonarola e a sua morte, e regis­
traram fortes tensões sociais, agn avadas pela crise econômica. Dê
1512 a 1526, houve um novo perí bdo de governo dos Médicis, que
daria lugar a uma seaunda Jase rc publicana, entre 152!Z_£. l5 3 0 .^fe
ses anos-túrbulentos viram figurar entre os protagonista is da vida po-
j ídca florentina os homens qtlé haveriam de ser, n esse mesmo
témbo, renovadores da ciência hl stórica:Nicolau Maqt liavel e Fran­
cisco Guicciardini, Contemporâni eos e amigos, ainda que de idéias
políticas e históricas claramente diferenciadas.6
Nieolau Maquiavel (1469-1 527) era filho de um humanista e
recebeu uma educação ampla e d em cuidada. Seus primeiros anos
de atividade parecem ter sido dedicados aó_mundo dios negócios;^
em 1498, entrou para o.serviço político dé Florença, e, ainda que
sua‘posição social - pertencia ao irámo empobrecido die üma boa fa­
mília - não lhe permitisse optar pelos cargos de embaixador ou de
governador, que desempenhou se :u amigo Guicciardini, teve respon­
sabilidades importantes e levou a i cabo um trabalho di plomálico de
primeira oídem. No terreno pol ítico, apoiou a república contra a
aristocracia, o que explica porquie os Médicis o destituíram de seu
rargn na rhanrêjãHâ, em 1512, e o obrigaram a exilar- se. Esses anos
de ócio político permitiram-lhe 1 evar a cabo toda a Su a obra de his­
toriador, teórico da política e Lite :rato - O príncipe, os Discursos so­
bre a p rím eim década de Tito L ívio. Da arte da gue.rra, Histórias
fiórentinas, A i7iandrãgora,ctc. Recuperou mais tarde á estima dos
Médicis e foi protegido pelo cardeal Júlio, que, ao tomar-se papa
com o nome de Clemente VII, d íamou-o.a Roma (152:4). A restaura­
ção da república em Florença d espertou nele a esperança de que
voltariam a chamá-lo para o seu velho posto ria segunda chancela­
ria - em sua obra escrita dos últ imos anos, não havia abdicado em
nenhum momento de suas idéia is políticas porém, ma sua tidade,
não tinham confiança nele nem; qs ricos, que pensava m que preten­
dia arrebatarjhes. os seus bens, r tem os pobres, que o consideravam
inimigo da sua liberdade, de moi do que, um velho e ai nargo Maquia­
vel, que começava a pagara Jamia equivocada que Iht; havia dado O
p rín cip e, morreu_sentido com e ssa rejeição.7 -
do renascimento à ilustração :; . ■

' r^’^ aqulavel defeni deu uma utilização política dd História,


como ferramenta impre scmdiVeJ^pa-rajj,rna_a rtc racional de dover -
Enquanto que no Diireito e na Medicina liavia se sistematizado
o conhecimento do passado para aplicá-lo na prática, '■ ‘êm troca,
para ordenarias repúblic as, manter os estados, orwtni/ar a m ilíria r •
administrar a guerra, para iulaar os súditos c: aumentar o império
não se encontra príncipe nem republica que recorra ao exemplo
dos antiaos”. Utilização possível; pelo fato de que a natureza huma ­
na tem sido a mesma en 1 todas as épocas, pel o que "é fácil a quem i
examina com diligência as coisas passadas, prevenir em toda repú
bliça as futuras e aplicar aqueles remédios que têm sidousados pe -
lqs-antigós ou, não achar ido-os, pensar em' oút fos novos, pela seme- ■
lhança dòs acidentes”. Po 'rque, ainda quê òs hu nianistas tenham pro-;
r clamado sempre,.a utilidade prática da História, não tinham conse­
guido usá-la sistematicamente, como o demonstra o caos político
que reinava na Itália desde a crise de 1494. M; aquiavel ambicionava
uma espécie de corpo di Dutrinal político, eiab Orado a partir da His­
tória, que se parecessé ao que,tinham compilado os comentaristas
da lei civil. Nada há nisto que possa reduzir-se a uma concepção cí­
clica da história, seoão_c|ue se refere, sobretudo, à necessidade de
aorehder cam-O-passado para agir com acerto no presente. Na dis­
cussão acerca de se o detrisivo é a fortuna ou a virtii •um tema ha­
bitual do humanismo -, sie inclinará pela opini ão de que, por muito
que influa o azar, o homem, avisado lhe fará frente com mais possi­
bilidades de êxito do que aqude que se abandona a ele.8
A prova deste realismo a temos em que, quando abandona o
terreno da teorização para ocupar-se da polílica concreta - ou da
história concreta - entreg a-se a uma minuciosa análise dòs fetos. Em
O príncipe proclamará: "sendo meu intento escrever algo útil a
quem o ouça, tem-me parecido mais conveniemte ir à verdade efeti­
va da coisa no lugar da imaginação dela". Nas s uas Histórias Floren-
tinas nos anuncia que seu propósito é interpretar a história de Flo­
rença, levando em conta as divisões internas i: os conflitos sociais
que se tem produzido no seu seio, no lugar de limitar-se. como tem
feito'a maior parte dos hi storiadores, a narrar rtsjgiierras que os flo-
rentinos têm sustentado c ontra seus inimigos iexternos, Porque são
precisamente as divisões iIntestinas ás que podem dar explicação do
fracasso da república. Só que esta análise não é: nunca uma mera ra­
cionalização teórica, nerti se escuda na prete nsa neutralidade dd

45
capítulo 2

cicntificismo. Maquiaveí não oci iltará jamais as eonviicções que o


inspiram e c pie ò levam a fazer a apologia do "vivere l ibero".
' •- ' ^ '
É coiísa sensível con hecer d e onde nasce nos p o v o s este desejo-
de v iv er livre: porque se vê por experiência que sis cidades não
aujne ntaranr ntm ea de domii d o nem de riqueza, ser ião quando es­
tivera m em liberdade A . razão é fácil de entendi ir: porque não
é o "bem particular.mas o b e m comum o que faz g ran d esas cida-
'des. Ei, sem dúvida, este b e n i comum não é respei tado máis-qíie
nas repúblicas. f

Que aqueles que tinham ; iversão por essas idé ias republica­
nas conseguissem convencer o mundo de que esse hotnfc.m era um
defensor da tirania e que se tenl ia identificado o adjetivo "maquia­
vélico" comi conceitos que não têm nada a ver coni o seu pensa­
mento diret o, claro e lívre, é algo •que deve fazer-nos t nedítar sobre
, a mentira d o saber acadêmico que .propicia tais enganos.5
Frant:Ísco'Guicdardim (1483-1540), nascido ^d<: boa família,
foi um' advogado de êxito, até que se incorporou ãi política,.em.
1511, ao ser designado embalxad or ante Fernando, o C atólico, na Es­
panha, onde o surpreendeu ò regresso dos Medieis ao poder.
Durante o novo regime desemp enhou cargos de considerável im-
■portância, c omo os de governador de Módeha, de Re ggio c da Ro-
magna. Tm! ia fama de bom adm Jnistrador e de sabe r opor-se aos
abusos da j obreza, porém a crise: de 1527, com,a volta à repúbiica,_
significou piara ele um diiro revés. Odiado, pelos floirentínos, teve
gue defender-se de ser "ladrão tio dinheiro público,:saqueador de
nossa terra, homem de_qdjosa;vic la prjvada.desejoso d o retom o dos
MédicSTam ante'da tirania l f i n imjgojfa.liberdade, çj amutn"•O fra­
casso o lev a, como a Tucídides , a escrever a históriia como uma
forma de refletir sobre a política ou, melhor,sobre a suia própria sor­
te. As difere nças entre Guicciardini e Maquiaveí - de quem foi ami­
go e a quen >teve por colaborado r - são consideráveis. Discordavam,
para comeqar, na ótica política. Aò republicanismo de Maquiaveí
opõe-se" ã aimbigüidade de Gtfic ciardini, desconfiado com relação
aos "que pi edicam tão eficazme! nte,a Uber^de", port kn têm como
objetivo real "seus'interesses pajticulares11.Não é partidário da tira-,
nla, mas de uma liberdade moderada, que era o que os Médlcis ti­
nham tenta- do estabelecer. "Não,<: q futuro das liberdac lés, nem o fijth
para o qual fiaram criadas, que to dos governem, porque não devem
governará ] não ser bs que são apt os a isso e o mereçan i, mas a obser-
do renascimento à_ilustra ição

vância das boas leis e das boas ordens, que são mais seguras viveri-
". ~do'cm liberdade do que sob o poder de um o >u de poucos'1. Ou sejt i:
. uma aparência de dem ocracia, com um cor ítrole oligárquico. Po r
trás dessa atitude está tun medo evidente do povo, aprendido hás
comoções da sua própri ia cidade: "Quem diz i am povo, diz vetdade L-
ramentc um animal louc:o,cheio de mil erros,, de mil confusões,(...)
' sem estabilidade".10__ : ' ..
.. Porém, as diferem ças que mais rios imp.ortam são as qúe se re
ferem a sua distinta con cepgão da história, és treitaménte relaciona i-
das com-seus respectivo s princípios pofíticos. Dfentedk: Màquiavel.,
Guicciardini nega-se a o rer nas interpretaçõeis globais do passado o
na possibilidade de usai>se o conhecimento da sociedade, adquiri .-
dõ.átravés delas, para sé: predizer o futuro. O' tema da importahei; i
do'contingente reaparece urna vez ou outra, numa negativa a qual ­
quer possibilidade de ui na ciência política: sç ibrevalorização do. pa r
pel dá fortuna - "nas còií ;as humanas, a fortün a tem um enorme po -
. dei; porque se vê que a i toda hora recebem grandíssimos tnovirnen -
ftos dé acontecimentos Jfortuitos, e que não í:stá no poder dos h o ­
mens preveni-los ou evifc á-los" -, impossibilidad le da previsão - "as coi -
sas futuras são felazes e : submetidas a tantos aicid en tes,.- e, cpnse -
quentemente, recusa de, qualquer tratamento global dos fetos polí­
ticos - "e um grande erro ■felar dascoisas do m undo indistintamente:
e absolutamente e, por : assim dizer, por regra; porque quase todas
têm distinções e exceçõi es, dada a variedade d as circunstâncias, que:
não se pòdem avaliar coim uma mesma medida". Assim,quando cri ­
tica os Discursos sobre a p rim eira década d e Tito Lívio, de Maquia -
vcl, o fez opòndo as "distinções" às afirmações globais deste. Suas
obra histórica máxima, a . História da Itália, r epresenta uma minu ­
ciosa descrição dos acot itecimentos que tiveiam lugar desde a cri--
sede I494,própriade qi iem tem uma concepção miúda e posítivis- ■
ta da história c atribui a o acaso, a fetores imp íevisíveis e pontuais,
os grandes acónteciment os - o que é uma form ia de justificar os seus
propnos fracassos -, até a ,o ponto de que uma narração histórica se-
meihante serve, antes de tudo, paira i^ s f ^ ^ T q iu e '^ n d e instabili­
dade, à maneira de um n iar revolto pelos vem os^sejanTsubmetidas
as coisas humanas".11 ""
Porém ocorre que esse homem - escrito r muito inferior a Ma-
quiavel, que não fez nenhuma contribuição' valiosa à teoria da
história - tem sido elogiai do desmedidamente iportódos os historia­
dores acadêmicos contei nporâneos, que o co ntrapõem sempre, ao
capítulo 2

- " "perigoso" Maqüiavel. aue caía cia tentação de pensai■Para Gilbert,


a Storia cVÜalia é "a primeira gr ande obra da historiografia moder­
na"; Fueter elogia nele "a ignorância de outros motivos-que não
foram os do egoísmo e da ásper a e impiedosa análise: psicológica",
porém também - e isso resulta i àrtamente significati1vo - sua "aver­
são às regras teóricas11, além de ; tssinalar uma cfetinçlj io que se tor-
nará tradicional, entre um Maqu iavel ”utópico",~isto éyrévolucioná-
rio, e um Guicciardini "realista", i isto é respeitador da <Ordem estabe-
lecida^Dai a apresentá-lo como modelo de um “ofíciio de historia­
dor", entendido como mera rian ração literária, não híi mais do que
um passo. O pobre Guicciardini não merecia, seguraniente, ser des­
tinado a um ofício tão triste con ió o de servir de just ifícação a tan­
ta mediocridade. Lendo-o com ci uidado é fácil ver que ■a contraposi­
ção extrema a Maqüiavel não é sustentável, ainda qu e existam, for­
tes diferenças entre eles. O que s separa, princibalment e. suas formas
de conceber j i jiistória é quê, como disse Vittorio de Caprariis,
Guicciardini "nãcfvê ou não pod é ver que numa imag;inada história
'■■■'■ de Roma, Maqüiavel vinha adivir ihando uma história eterna, e dela
, deduzia a d mâmica da livre luta política".1" _
_p saber histórico dos humanistas florentinojS, o miolo de
pensamenm viyo que haria deb: fixo de suas fórmulas;, iria ser com­
batido pela igrejadaContra Refo rma, qíie condenava ;;eu caráter lai-
59, e pelas monaquias do absplut ismo.que o rechaçavam por ser re­
publicano. Na Itália, a história hu manísticá foi esvaziai ido-se de con­
teúdo e convertendo-se num cc mjúntfijde^ fórmulas. Os tratadistas
da ars bistoríca acabam, nos fin s do século XVI, na t rivialidade ou
na preocupação exclusiva pelo a domo literário; isso, é a conscqüên-
ciá lógica de "ter-se apresentade >como preceito, com o método dp
‘esCrever-histórico’^ não como problema da história.".18 •
r-
—S Um último momento d ej sua manifestação deu -se na França,
_na segunda metade dqs.éciil.p X\ íl, com os teóricos dal"história per­
feita". Essa corrente parte de Étie nne Pasquier, que nãc >só pede a ve­
rificação critica das fontes, eprne > também espera que o historiador
chegue a estabelecer regras, çon i que explicará o cur; ío dos estados
por "demonstrações políticas", n tão menos palpáveis que as da ma­
temática", La Popelinière proptu iha uma história gen d, que abarca­
ria todos os aspectos da vida do 1tomem e trataria de dlar a razão dos
acontecimentos, no lugar de lin titar-se a narrá-los. E o ponto mais
avançado desse movimento se e: ncontra, talvez, em jeian Bodin e no
seu Método p a ra um a fá c il coi npreensão da história (1566).Bo- ._

48
do renascimento à ilustrac ;ão .y -

din divide a história em ■três campos: a "natur al", que estuda ás cau -
sas que trahalhamjna ria tureza; a "sagrada", que se ocupa das mani-
f / i
festações divinas; e, fina]mente, "a história humana", que "expõe as;
acõesdo homem nas sociedades". Com isso s e limpa o terreno dasi °v
intromissões de filósofos da natureza e de.teó logos, é se fundameri • _
ta a crença, expressa iá u o r Pasauier na poss ibilidade de construir r -
uma_ciência histórica can a? de nrplirar raHonalmente a ascensão e:
. á quedá dos impérios e idas civilizações:Essa corrente não chegara
a sobreviver durante o stículo XVÜ, procurara o identificar seus cul- -

tuadores aos "libertino; 5", para combatê-los conjuntamente em


nõmc do altar c do trono.A historiografia fiancesa do século XVII
verá, por exemplo, o triumfo do irracionalismo teológico, culminado b
rio Discurso sobre a bist ótia universal (1 6 8 1 ) de Bossuet, onde se
. faz. tudo. depender diretamente do. desígnio divino * Não há lugar
nem para .uma causalidac le em termos humanos, nem sequer pára o
acaso. Toda a possibilidaide dé uma História' que analise racional-
mente a evolução humana acaba assim negada.1-1 m
•'Em Castela, durant :e o século XVI, deran i-se as condições que
- puderam conduzir a uma . renovação completa na História. O desco- .
'' brimento da América rompeu os velhos esquemas do cosmos. Gon-
zalo Femández de Ovietlo (1478-1557) escrevia a respeito: "Thdo
isto é melhor remetê-lo às cartas de navegação e cosmografia nova,
- a qual, ignorada por Ptollomeu e os ántigos, s obre nada disso fala-
- ram". Porém não só os mapas seriam renovados. Nessas terras acha-
■ vam-se animais é plantas, até então desconhe eidos, e nelas habita­
vam, povos diferentes, co m línguas, costumes <: formas de organiza-
■ ção social distintas, que c 1 cronista preocupava i-se. em descrever. Em
: alguns lugares encontraram grandes civilizaçcies, cujas obras supe- -
ravam as do solo curopet 1 dos conquistadores, povos que conserva­
vam memória dè sua hist ória è que tinham lof frado estabelecer um
admirável equilíbrio com a natureza.** Os viajantes tinham os olhos

* "Deus sustém desde o n íals alto dó céu as rédea; i de todos os reinos; tem
todos os corações cm su; is mãos: tanto contém as: paixões, como lhes sol­
ta o freio, e com isso m ere tddo o gênero human 10. Quer fazer conquista:
dores? Faz marchar o esp anto diante deles ê inspira em seus homens um
valor invencível. Quer. x r legisladores? Lhes en via seu espírito de sabe- ■
doria e previsão". (Jacque; v-Bénigne Bossuet.üfrcoi trssttr Vbistoire univer-
se//e,Gamicr-Elammarion.Paris, 1966,p .427).; , . . . . •
; Bcmal Diaz d e!Castillo, por exemplo, nos deixe iu uma admirável descri- ■
capítulo 2

abertos p;ira ver e os ouvidos a tentos às explicações dòs indígenas,


Inclusive o s que escrevem pára nos contar foçanhas pcssoais não es­
quecem dle faiar-nos dos povos; que conheceram: "Quis contar isto
porque, altém de que todos os Jtiomehs desejam saber, sobre os cos­
tumes e pis usos dos outros, os que alguma vez sé virem a ver com
eles estejam avisadosde seus costumes è astúcias, o que geralmen­
te é proveitoso em semelhantes casos". O interesse pela evangeliza­
r ão dos índios obrigou a um profundo estudo das culturas que se
jiretetidia destruir e convertem os mi5sionários_em precursores da
antropologia moderna** O mais importante desse nosso ponto de

ção da >ddade deTenochtttlan é dè seu imenso mercado: "E depois dê bem


observado e considerado’'tudo o que tínhamos visto, tomamos a ver a
---- grande praça e a multidão de gi :nte que havia nela, uns comprando é ou­
tros ver ídcndq. que somente õ n imor e d zumbido das vozes c palavras que
ali havii a soava a mais de uma leg ,ua, e entre nós houve soldadosjjue tinham
estado em militas partes dp mundo, e em Constantinopla, e em toda Itália
e Roma t,e disseram que praça! tâiq bem traçada è com tanto acèrtò e tama­
nho è cheia de tanta gente n ã c tinham visto" (Historia verdadera de la
conqui sta de la Nueva Espafla., capítulo 32). Estavam contemplando uma
cidade maior que qualquer uma, da Europa de seu tempo e a realidade- de
uns int ercâmbios que traziam à capital "quantos gêneros de mercadorias
que há em toda Nova Espana", ]numa escala que dificilmente podia ver-se
em ner ihum mercado interior - não maritimò - do mondo que procediam
os com quistadores. Não menos interessantes resultam as observações de
Cieza dle León sobre a forma piela qual os indígenas do Peru conseguiam
.ananca ir colheitas de uma terra tão dura, ainda que fosse para propor que
se rçço nvertesse tudo para prod luzir trigo, vinhos, carnes, lãs" e azeite, sem
dar-se c :onta de que isso implica va em romper indelicado equilíbrio da-CCP-
nomia andina que John V. Mura i nos descreveu de modo tão convincente
("O controle vertical de um má; timo de pisos ecológicos na economia das
sociedíides andinas”, in Forrtjaciones econômicasy políticas dei mundo
andino. Instituto de Estúdios Peruanos, lima, 1975, pp. 59-115), c quê te­
ria imp Ucado forçar as populaçi 5es indígenas a um sistema alimentício dis­
tinto, c om as graves dificuldades que poderia acarretar (sobre este. proble­
ma, vejia E.S. Wing e A.B, Brotvn, Paleomitrition, Academic Press, NoVa
Yoik, 1979, p. 3). . .•
* Em st ;u empenho por conhec cr as culturas dos povos indígenas, com o
fim de facilitar a sua sujeição, h iaviam de ser os Sahagún e demais, alguns
dos pr ecursores dos antropólo; gos modernos, que fizeram para o imperia­
lismo capitalista o que aqueles para o da Espanha absolutista. Evans-Prit-
chard t em sustentado, ém noss( 3 século, a necessidadfc dos estudos de an­
v tropologia sodal.para dominar politicamente as comunidades, variar sua
economia - "por exemplo, mudando seu sistema de posse.da terra, indífc
zindoos a plantar cultivos de exportação, ou simplesmente instituindo
mercados e uma economia monetária'1-, ou conseguir sua conversão ao

50
L.

- 'do irenasdmento à ilustrarão _ V. •_

- vist a é que essa observa< ;ão de mundos n ovosd e formas de organi­


zação e de c ulturas distintas, continha a sem tente de projetos glo-
bai: s. Os cronistas das ín<dias, qiie, na expressa o de Uanke, "contem-
i_ pia: ram a conquista comc i um todo", poderiam ter sido os logógrafos
. dei uma historiografia espanhola renovada. Por outro,lado, a conquis-.
tajro u xe grandes transformações à própria sociedade espanhola e '
sus citou reflexões renov; adoras em muitos ten nenos. Porque, sé o pa­
dre Las Casas (c; 1474-15 66) denunciava a des truiçãq das índias, frei
'íbrnás.dè Mercado (c. 1? >30-1576) o fazia com relação aos horrores
da iescravidão-negra, a que o estudo dos ’’tratr >s e contratos" o leva­
va, tomo ao padre Azpii cueta (1493-1586) o das trocas, a percep­
ções cheias dè. lucidez sobre o dinheiro e os j preços.1?. . . -
Essas possjbilidad es não se. cumpriram i, entretanto, na histo- /
riot trafia espanhola do st :culo XVII, que iria alimentar-sé da ars bis- -
tônica mais ressequida, tónica parte do humanismo chfil eme pôde-
a m dgar-se n á K paaM nasjdigceis condições de uma sociedade as- ;
sediada interiormente pela Igreja c pela monBirquLa.Maquiavel con-
verteu-se em pura retórica nesse seu desnaturalizado sucessor que '
é Li ais Cabrera de Córdo ba (1559-1623), qüern, na sua D e historia,
par 'a entenderia y escril nrla ( 1011), nos diz ique as histórias

dão notícias das coi sas feitas, pelo que se c >rdenam as-vindouras, e
assim para as consultas são utilíssimas. O que olha a história dos
tempos antigos atentamente e guarda oque ensinam;tem luz para
as coisas futuras, pois uma mesma maneira de mundo é_toda. As
que foram voltam, ai inda que debaixo de outtros nomes, figuras e co­
res que os sábios conhecem.

A fatalista entrega a uma concepção d clica consumou-se. O


que: um dia foi pensado como arte de gover nar republicana, coh-
venteu-se ao fim em emsinamento literário - nem sequer moral -
para monarcas absolutos. Onde Maquiavel se ocupa de temas
con aò as relações entre c >príncipe e a multjdi io ou "a causa de que.

■cristianismo. E conclui:!"; V importância da antropi alogia social para a adtní-


; nistraçáo colonial tem si do reconhecida, de mod o gerai, já desde os prin­
cípios do século, O Ministcrio.de Colônias e os governos coloniais têm
;mostrado um interesse crescente pêlos estudos e investigações nesse
■campo". (E.É. Evans-Pritc hard, Antropologia soei, dl, Nueva Vision, Buenos . .
.Aires, 1973,p. 124).

51
capítulo 2

.os povos abandonem o solo p átrio e invadam outr o", Cabrerajig


, Çórdoba d liscorre sobre matéria is _tão transcedentais 13ara o historia­
dor com o ' 'o bom som da oracãci" ou "da antonomásia c do epíteto".'6
À st tmelhante instrumeni tãí teórico * corrcspoi ndia uma práti­
ca historkugráflca degradada até extremos inconcebíveis. A Espanha
do século XVn viu florescer as falsas crônicas e pôs em circularão
as fabulaçoes mais disparatadas,, que não só ofendiam aos priiícípios
elementares da crítica, Como a(,é aos do senso comum.Assim, para
dar só um exemplo, frei'Gregor io de Argaiz se atreve: a inventar em
sua Poblaiciõn eclesiástica de lEspaüa, entre outras muitas maravi­
lhas do mesmo teor, as cartas que se cruzaram entre o s judeus de Je­
rusalém e os deToledo. com o objetive daqueles.dti.consultar aos
qüe residiam na Espanha acere a do que deveria fazer-se com Jesus
GristciTsernrjueTünguém pareça ter-se preocupado com os múitòs
mescs_quj ;_lériam qnC-transmi irer entre a prisão e a crucifixação,
.para ser possível semelhante intercâmbio epistolar. Entretanto, em
meados d o século XLX, um liviõ de texto universitário espanhol
continuava fazendo' aflrmaçõies tão estupendas icomo esta: "A
história ai ítiga compreende,.cc uno se disse, todos o: s tempos trans­
corridos cies de a criação do nu indo até o século V d; i noj>saera,j[iie
formam um período de quase 4 .5 0 0 anos".17 •
O ç^ue se salvou da herar iça dos humanistas fo 1 o conjunto de
métodos <; de critica textual, e o trabalho arqueológico.As querelas.

* Daí a surpresa de se ler um t :specialista espanhol: "O s tratadistas espa­


nhóis die História durante os-séi mios XVI e XVH são, em .sejj conjunto, su-
periore s_ags_ do resto da Europa . Foi a Espanha, durante essa época, o país
cm que: mais livre e amplamenti: se meditou sp.btc.a prolMemática geral da
história i"fSan5ãfio Montcro Díãz , "A doutrina da História nos tratadistas do
FécúkT de o u rJ7 introdução' a Lmis Cabrera de Çórdoba, De historia, para
entendería y ejõvW/*çJnstTtu tp de Estúdios Políticos , Madrid, 1948, p.
XVI)-D Í5parate de alto calibre, q|ue implica desconhedm ento da produção
teórica de outros países nos set mios XVI e XVII - que, n ada menos, são os
séculos- em que escreveram Mac[uiavcl, Bodin,John Locke: ou Pierre Bayie
a sobre :valori2acão desses tratadlistas locais - Fox Morcill o e Mclchor Cano
são estudados por Cotroneo-ao lado dos italianos in/ ti attattsti delT "Ars
hlstorhca" e não são mais inten tssantes que o resto - e i rma extrema mio­
pia sob ire as condições de "libei rdade" em que se moveu a vida intelectual
espanh ola da época. Claro que o ensaio de Monteio Díaz ,que não deixa de
ser útil como repertório de aut ores, fiai escrito ém plena euforia dó impe-
riai-frai íquismo (Veja, como cor itrapartida, o quadro que: se descreve em
Luís G il Pcmández, Fanom tifti social del humanism o_tispafíol, 1500-
JSOO.yUhambra, Madrid, 1981, |pp. 42^-535). '

52
dor enasdrnento àUustraç ão • ■ _ ■- ■
•' ‘ i . *. „• ’ . .1 ;
relií dosas aguçaram o eni ^enho dos partidário?; da reforma e obriga­
ram ~a Igreja católica a deipunir seus textos da carga de mitos que a
eles iain se agregando, forçando uma atividade, .cujos bons exemplos
são, os bolandistas - osje siiítas que estabeject;riam ;is. atas dos san-
tós, com o fim de rélviad icaf Um núcleo de vcirdade histórica debai-
x o j j a canga das fábulas - e os beneditinos ma urinos. eem especial
Mafc liUon (1632-1707), qme elaborõu um corpo) de métodos e regras
para o estúdo~gõsdocmiaentos na sua D e te iiiplom atíca (1 6 8 1, o
. mes imo ano-da.nublicacã< a do Discurso de Bossuet). Não se deve, en-
- tretanto, sobrevalorizar ai importância-dèstes avanços metodológi-
• cos; ê menos ainda apresentá-los como o nascimento da historiogra­
fia i nodema. ym a coisa isãb á$ ferramentas cc >m que o historiador
atuai sobre seus material« s e outra muito distirita a teoria que deve
dar-lhe cr plano Reral de isuas investigações. No primeiro terreno, o
• trab alho dos bolandistas ie matiirinos' tem sidõ i iecundoinò segundo,
; . hó (Jue corresponde mai s^propriamente à tfc itória. não trouxeram
■nad a^ Mahillon ~e Bossue t não só são contem' borânèos: como tam-
y bén i pérfeitanicnte comnatíveis.13 ' . ”
' Nem pelos caminhos da ars histórica dio humanismo tardio,
nem pelos da crítica das fontes transmitiu-se o impulso renovador
do. 1Renascimento, asfixiado pela intolerância da reação. Isso não
que r dizer, entretanto, que o caudal secara pior completo e que a
Ilustração tivera^que inv entar de. ndvo o pro jeto de uma História
corr io instrumento de an lálise dã sociedade. Mão há uma evolução
regt ilar que conduza de í -laquiavel a Montesqi deu pelo caminho da
histi ortografia; porém há tiima série de corrent e ; subterrâneas que os
enla çam, e a influência d o florentiho no flane :ês - comõ em Bacon
ou r ios_pensadores da rev olucão inglesa do século XVP - é inegável.
O qi je acontece, é que as idéias sociais do repu blicanjsmo renascen­
tista e suas concepções I íistóricas aparecem e ntrecruzadas com os
avanços em outros campos da ciência. Não se pode entender o
cam inho oue vai de Maai riavel a Viço, por exemplo, se não se passa
por Gassendi. Galileu ou 1Descartes: ciência da natureza e ciência so-
, ciai avancanLContuntame:nte.— - • t
Porém, ao falar de "ciência da natureza " convém recusar qs
tern tos com que nos pinta habitualmente o seu desenvolvimento o
- ácaclemiçismp, como- urn ininterrupto avanço do erro à verdade
através de um contínuo ;acréscimo de conhecimentos. Quando os
espí ritos científicos do renascimento começa ram a demolir a cos-

53
capítulo 2.

mologia arif itotélico-tomista - qu<: dava conta do natural e se com­


pletava comi uma explicação teollógica do humano abriram cami­
nho a duas jjrahdes correntes disi tintas, porém, nem_setnpreantagô-
nicas: a da inagia natural e a d a ; filosofia mecânica: Custa-nos hoje
percebermos a importância qui: teve o pensamento hermético,
numa corre nte que vai dé Giorda no Bruno a Newton, passando por
Comenius o u pela Royal Society. Na medida em que estes "filósofos
da natureza" propunham alguns sistemas que integravam o macro-
cosmos físico e o microcosmos lhumano,:sua proposta atacava tan­
to a cosmologia tradicional co m o a religião estabelecida. E eles
eram conscientes de que suas idléias renovadoras - como as dos fi­
lósofos mecânicos, como teve que aprender às süas custas Galiléu
- não seriarn aceitas pela sociedade em que viviam, se não se cm-
dasse previ amente da sua transfc irmação. É o que se expressa numa
carta de Campanella a Galíleu, és icrita em 1632: "Estas novidades d.e.
verdades antjgás, de novos mun dos^dC-novas estrelas, novos siste-
mas, novas nações, etc, são anúncio de um século novo'1. Não c de^
estranhar q[ue Campanella - imp regnado de milenarismo jpaquiriis-
ta - propusi era-se à reforma da sociedade ou que as idéias da magia
natural aparecessem associadas aos programas políticos dos gru- ;
pos mais radicais da revolução inglesa do século XVII.** Para com­
bater essa iameaça de subversão havia que reconstruir outra visão
do mundo, .distinta da que havia dominadona Idade Média.adapta-
da aos conhecimentos e às nece ssidades sociais dos novos tempos,
que^explic asse saüsfatoriament e o mundo físico e conservasse o
J,: Império d a religião sobre a esfi ;ra dojhumanq. O mecanismo duar
\

* Dclio 'Cantimori seguiu minuc ãosamentc os fios de alguns programas


"herctici 3s” - que acabariam_ass.in i considerados tanto pela Igreja católica,
que não1 conseguiu rcnovat-se _clonformc às aspirações desses homens,
com opi;la refoimTprotestance, logo convertida em sustentáculo conser­
vador àí i sociêdadeV do Estado - que conduztnãni. põr um ladoTao anaba-
tismo, o om a sua carpa rcvoiua nnáda, _ou a Campanella, enquanto que,
$■
por outro, pela via do soctriianis mo. levariam à Ilustração e às origens do
TiCcrSHs inõTMàglai religião, cicn cia. epolítica aparecem frequentemente
associad las”no pensamento eurcipeu dos séculos XV ao XVH1, de modo
que, rel< -gar cada umã delas a su a esfera própria, transportando para trás,
num fia grante anacronismo, coincepçõcs do presente, pode dificultar a
compre ensão das realidades do passado (Veja, quanto ao significado das
heresias; do século XVI,Dello Cantimori,ErettciJtaUanidel Cinquecento,
Sansoni , Florença, 1978). : -

54 í
do re jiascim ento à ilustraçã ío

lista de Descartes, que pode parecer'uma resposta, fésültava peri-


gosq, porque podia deriv; ir fácilmèniépara una materialismo ateu.
A no va visão do cosmos í bi construída apoiam do-se nos resultados
de d úzehtps anos de renovação científica pelos investigadores in-,
; glesf :s de século XVII. en a, especial Newton, o me nos oferecia um
- mun dofisico que refletia a_ordem_da sociedadle humana e aiudava
a rac-ionaliyar f-sta última.* Gomo disse Brian. Easíéa; "Os filósofos
méciinicos e experimenta iis se aliaram ém sua maioria com os gru­
pos dominantes e privili ^giados, e se obrigai ram a interpretar o
mun do natural e suas des icobertas de unia fór má que. se não con-
tjihú ásse para reforçar o p o der de çlasse existe nte, pelo menos não
mmàisse a sua legitimidade]1.19 , . ' : ■
Neste, contexto.compreende-se melhor a reaparição, na se­
gunda metade do século lÇVTI, daqueles aspect as miais progressivos
■do p ensamentp renascent ista, qúe tinham sido ideixados de lado pe-.
' los'ciceronianos,herdeiro;; da retórica humanis ta, Essa fusão de des-
cobr imentòs npvós e ideai ís: velhos expressa a "<txigência dei integrar
an ova ciência da natureza cóm uma novae ’fivne’ ciência do homem
e da:sociedade, para enxer tar, enfim, todas as no1vas conquistas em vi-
r spes. gerais capazes de just ificá-Ias e defendê-las, assegurando sua afir-
mgçíío no terreno da vida civil". Esse foi, precis amente, o propósito
de G iambattista ViCo (1668-1744) na suá Ciêncda nova, que os ro­
mânticos leram mal e Cr oce Interpretou errai damente. Vico só se
com| preende quando reint egrado no curso da vi da científica da Itália
' do Swl, no trânsito do séciulo XVII ao XVin. Então compreendemos'

* "O mundo natural Intelfo, que consiste nos céu s e na'terra, significa <S
- mundo político inteiro, q u e consiste nos tronos c no povo (...). Os céus,
com o que há neles, significam os tronos e dignidades c aqueles que ps
gi azam; á tena, com o que há nela, a pente inferior e as partes mais hal*as
d;i terra, chamadas Hades ou Inferno, a majsJaaixa e miserável noreão do
Jjiovo" (texto de Newton citado in M.C.Jacob, The newtonians and the
Englisb Revolution, 168‘ >-I720, Harvester Press, Hassocks, 1976, p. 14).
C omo Margaret C. Jacob explicou num'livro recente, a universo de New-
tem, onde "as forças espiri tuals controlavam á nati ireza, como os reis e os
òl ligarcas os seus estados", correspòndia à sociedat ie monárquica da Ingla-
te:rra dos Hannover. Diamte dessa imagem cosmo lógico-política. os radi-.
c tis, que conservavam a t radição da magia natura 1, sustentavam a de tim
v "tianteisnio" queTpêlÕcãnlinho.da divinização da natureza, conduziria ao,
materialismo ateu de Hol bach (M.C. Jacob, The radical enUghtenmenC
pcxhtheists, freemasons tin d republicans, Allen and Uriwin, Londres,
lí)81,p p , 21-23). .' . j- - 1 •• . * -
capítulo 2

seu anúncio de que é possível converter a História numa ciência so­


cial mais precisa, se cabe aqui a. expressão, que as d:a natureza:’T)
.mundo civil foi feito certamente: pelos homèns, pelo que se deve e
pode encontrar os seus princípios dentro das modificações de nossa
mesma m ente humana. Pelo que:, qualquer que reflitalsobre isso, se
maravilharia de que todos os filó:sofos se tenham ocupaáo seriamcn-
te dê consieguir a ciência do mu indo natural, do qual, como foi feito
por Deus,;sómente Ele tem à ciiíricia, enquanto que fie esqueceram
de pensar isobre o muiídp das na ções, ou seja, o gruindo civil, do qual,
tendo sido feito pelos homens, poderiam eles conseuuir a ciência".
Um Vico q ue, longe de estar prei so num.mundo fechai lo, como se re-
pete irtcan savelmcnte, formular una proposta de etap; is do desenvol-
vimento social, que implica umu concepção de progiresso, tenta dar
urnà_éxplii cação racional - em termos sociais - dos ve lhos mitos, e é
capaz de j jroclamarã necessidi ide do casamento em tre/a teoria e o
método q íScÕú'A filosofia con templa-a razão, de on de vem a ciên­
cia do v erdadeiro; a filologia òb serva-a autoridade dò arbítrio huma-.
no, de onde vem-a consciência do certo (■■..). Erraram por igual, tan-
to os filósofos que não se preoipuparam em certificair as suas razões
com a aul oridade dos filólogos ■como os filólojgos que não se preo-
cuparam.i :rtrverificar as suas autoridades com a razão dos filósofos".
Bem entendido, que, por filólogõs^êntendê'"tõriõlFõs gramátlcõsriús-
toriadorcfi, críticos que ténhaim se ocupado do Conhecimento das
línguas e dos fetos dos povos, iscja nos aspectos inte rnos, como são
os costunaes e as leis, como n c externo, como são as guerras, as pa­
zes, as alá inças, as viagens e o c .omérçio".20
Porém, a melhor demonstração de qual seja a correta com­
preensão do pensamento de Viico, não a encontraremos num esmiu-
çamento dos seus textos - que sãò tantos e S o complexos, que per­
mitem que se feçam as mais diíversas montagens de ies mas sim na
observação da trajetória em ique se integra: de onde vem e para
onde conduz, quais são as influências que tem exercido. E isto re­
sulta inequívoco.Vico procede da tradição científic a mais avançada
do século XVII italiano e seus continuadorcs são os Ilustrados do sé­
culo XVIH, que tomaram dele “as linhas do movim ento histórico e
a teorização da participação f lopular","junto com e lementós funda­
mentais para a luta contra o feudalismo ^contra "a barbárie da dou­
trina feuidal", para dizer com as próprias palavras do. napolitano -.
"Nesse sentido - dirá Badaloni -,e à margem de antecipações idealis­
tas, o pe nsamento de Vico lev ava cm si a carga de <:uriosidadê cien-
■¥• do r énáácimento à ihistraç ão

'' tific a e de vontade dé reiforma do melhor pètisamento do seiscen-


• tos, ambas atenuadas conr 1 relação à confiança ide Bacon, porém pre-
sent es como para fazer entrever na história humana ps primeiros
í^ í^ y sig n o s de ünfâ .dêndashmya“.2*■■ ; J ■■ '
Nos capítulos que se seguem, analisar-: ;e-á este mesmo pro-
. bléraa - a emergência Ldé uma nova concepçã o da história, que se
; ly adet juará às Jiecéssidadès; coetâneas - no contexto de duas socieda-
r% ',%■] dés e de'dois momentos Jhistóricos muito dive rsos: a FranÇa da Ilus-
traçíioe a Inglaterra da primeira revolução burguesa. -

I p p íM :

i&ví. -V-; .

M ÊZ' :

‘1

•: i
57
c a p ítu lo 3

a jilustração

o que é a llusitração? Kant_definiu-a em 1784 como: “A


salda do homem da sua tninoridade voluntária. Minoridade, isto é,
incapacidade de scrvir-sc: de seu entendimento sem a direção de
outr o.Voiuntária, já que a causa não reside numa deficiência do en-
tendlimento, mas sim na fálta de decisão e de valor para;servir-se
dele sem a direção de oi -itio, Scibêre. aude\ Quse servir-se de sua
própria razão. Eis ai a divisa da Ilustração". Porém essas palavras
não refletem a realidade de um momento do passado, mas sim a
ilusã o de uns homens qt ie acreditaram, equivocadamente, que se
acha ivam às vésperas do iípice da historia da ascensão até a razão:
uma história que está mu ito longe de haver-se completado, depois
de dóis séculos, como o' demonstra qué q Sapere aude\ continua
sentilo, uma aspiração.1' * .. .
Os estudos sobre a Ilustração costumam limitar o seu desen­
volvimento entre as últim as décadas do século XVD e as últimas dó
XVfl I, entre a revolução it íglesae a revolução fiancesa. O importan­ V
te, não obstante, não é da tar, mas sim definir a natureza do proces­
so, As investigações costt unam limitar-se ao terreno cultural: anali­
sam os autores c as suas obras, as influências que se exercem entre
-.eles, a transmissãO-de tem as isolados de uns livras_a„outros. Esse tra-
tamç :nto separa as idéias de seu contexto histórico, desliga-as dos
sistemas de pensamento d e que são parte, e favorece uma concep­
ção iimanentista, que se ln nita a considerar a gênese e o desenvolvi-
men to de temas e aspectos concretos. É possível que esse método
resuJIte útil para certa fbnina de conceber a história da filosofia ou
da li teratura, porém não i ios serviría para nosso propósito de rela-
cioir ar a visão da história <ios ilustrados com as suas concepções da
soci< :dade. Um objetivo s<:melhante requer uma ótica mais globaii-
zadora.2 ' ' . ' •'
-, ■O conceito que se empregará aqui é muito distinto. Conside­
rarei nos que caeni dentro do âmbito da Ilustração os sistemas de

59
capítulo 3

idéias dos que, conscientes do espancamento da sociedade feudal, '


Jrataram de rcformá-la a partir de si mesma, para que pudesse con--
tinuar subsrstindo, É o que corre:iponde, no terreno d a política, ao
que se costi ima chamar o "despo tismo ilustrado", ou sisja, ao Sacas- •.
sado intente i de conjugar os infe ressesde uns sobêra nos que não
pretendiam outra coisa que refon çaro Estado absolutis ta - nos terre- .
nos finance iro, administrativo e militar e alguns_setores reformis­
tas qüe os :ajudaram nessa tarefei porque acreditaram , équtvocada-
mente,que "os tris filósofos" pen.savamfr mais riém, Oahsformahdo
as sociedad ies. que governavam. \Os limites cronológit :os da Ilustra­
ção podem t fixar-se entre a revolução inglesa do século XVTl e a
francesa de»XVTg.A primeira abriu um processo de mudanças polí­
ticas e ecor íomicas que colocou1à Inglaterra na frente dos países eu­
ropeus do seu tempo. Os ilustrados viram essas mudanças, porém
não soubéiram entender o nexo" que existia entre revolução e pro­
gresso, e trataram de’ alcançar o s mesmos resultados por meio de'
um programa de reformas compatível com a ordem social vigente.
A revoluçã o francesa veio demonstrar, ap fim, a invia bilidade desse
projeto, que em nenhum lugar tinha sido levado tão l onge como na
França. Es; ia mesma exoeriênccã demonstrou que as mudanças ne-
cessárias para alcançar um pro; gnesso_semelhante ac i britânico, evi­
tando os iriscos de radicaüzaçã o presentes na revoj.ução francesa,
exigiam a formulação dejDipgramas mais ambicioisois é complexos
que os da Ilustração, que incluíissem a transformaçã: i da.propriedã-
de e o est ajxdecimcnto de novas formas de organiza ção política. Ao
velho esquema reformista frac:assado, sucederá um programa revo­
lucionário burguês, estudado para tornar possível uma mudança
controlada* Desde esse momento, entretanto, nçns encontramos
fora dd miarco da Ilustração.

* lncor re-se com demasiada frei pêncLr no erro de supo: r-se que um pensa-
- mento radical no sentido religioso - como o materialisiro o ateu de Holbach,
por cx emplo - hí~de correspon der a atitudes políticas lf jualmente radicais.
Margaj ret C.Jacob rios ensinou recentemente que a pe nsamento do ''pan­
teísmo'' britânico, que na sua versão original ia ligado ;io republicanismo,
foi ass tmiiado por Holbach e sou grupo, sem a carga po lítíça que levava na
sua or igem, como correspondi a às pessoas com fortes laços de interesses
financ eiros e sociais, que osiiigavam ao_ancigo regime, e que não podiam
js p S ã r. em conseqtiéncia’ mais que a uma monarquia ilu istrada (Maigaret C.
Jacob,, The radical enlighteiv nent; pantheists, freemnsorts and republi­
cam, .Allen and Unwin, iondre s, 1981, pp: 262-263). Co: mo já se viu, a inter­
preta: ;ão da Ilustração que se dá nestas páginas tem m uito pouco que ver

r*r\
aüiüstração

• Nesse quiadro intei^retàtívo -que não sustento que àejã me­


lhor que ós outros para a história cultural - não é possível continuar,
coní iiderando conjuntami:nte os autores franc eses e britânicos dp
sécú lo XVm, como costui na-se fazer na maior p>ãrte dos livros sobre
a Du stração. Ainda que se ja_çérto que existam jinfluências dé pehsa-
men to e estilo entre eles., há algo que os.separa çlaramente: o fato
de g ue vivem em socieda des muito distintas e .que, em conseqüên-
çjgjj ;eus objetivos a"respt ;ito destas têm de sei r também diferentes.
'^Casini percebeu-o muito bem ao dizer-nos qué^em fins do século
XVn , a sihiação de uní e j de outro lado.daMaricha era dificilmente
com parável. Por uma par te, a sociedade móye 1 e o poder político
riesl< ícado saídos da rêvol ucão inglesa: bor out; ta. a sólida aparência
da n íonarquia absoluta dt; Luís X iy cOnLÜumá rígida estratificação
de ó rdens feudais"jPorémi, enquanto a sociedaide britânica se enca-
minl ia para-sua expansã o . a Franca vê o seu dt ^envolvimento frus­
trado pela persistêndá di £ obstáculosJntem.os.!À Inglaterra poste-
rior_ à revolução corrcspo >ndem a idéia de pro gresso, o:liberalismo
;. ecoti lômico e a visão histe írica da escola escoct ‘sa; à França feudal, a
idéia, de natureza, a proposta fisiocrática e a concepção da história
de Voltaire e Montesquieu .Ainda que os livros circulem de um a ou­
tro li ido do canal, em amb as direções, e alguma s dasádéiás que con­
têm se incorporem a sistomas de pensamento distintos, o que im­
porta i é a coerência global 1 dos programas socia is que subjazem sob
as interpretações^da história Daí que, ainda qüando a Ilustração.
- femr :esa e a escola históri ca escocesa sejam co ntemnorâneas. se te­
nha 'escolhido falar prime iro dos'que, como os ilustrados, represen­
tam uma etapa anterior no processo de desenvolvimento que con­
duz até a sociedade do ca pitalismo.3 ;i ’ " ■

dom a que FrancoVcnturi atribui em'bloco aos *m araástas", para quém, sc-
gi ando sua’ maneira pessoa J de ver as coisas, o fund ameutai seria ver a Hus-
ti ação como "a ideologia <la burguesia em desenvt olviiucnto” (Franco Vcn­
turi, Utopia e riform a neIViüuminismo, Einaudi/Torino, 1970, p. 20). Os
h: istoriadores marxistas pt idemjtènder, cm alguma s ocasiões, à simplifica-
çiio, porém sempre costûinam ser superados por : iimplificadores críticos,
a<tostumados a iabricar vc irsões caricaturais do nu tnxlsmo para demoli-las
d' enois vitoriosamente. Nã o. custa muito compreen der que a Ilustração, dê-
fij nida do modo que'aqui s e propõe, tenha recebidc i a adesão da burguesia,
n>os' anos que expressava as aspirações de refont ia da sociedade feudal,
o jmpartilhadas com amp los setores da própria ; aristociaciaj porciii, foi
.st ibstituída por outras fort nas ideológicas, onde ou quando os objetivos dá
burguesia c da. aristòciaci; » deixaram de ser compatíveis c a primeira pasr
' sj )ti a expressar.suas aspiu içãs.nosAÇ-US-prQpnflS. tejm os
—5
Vï '
m
■:V-
capítulo 3
V* ------------i----
i ' ' . ■
.
*; 3]
Não é difícil identificar o s antecedentes'do pensamento his­ ' ífl '
tórico da I lustração francesa, po rém importa compreender que este
não pode ireduzir-se ao resultad o da soma de tais influências, senão "... v -? ï
que. ainda que recolha sua linguagem e adote parte das suas idéias,
integra est es elementos num.eí iquertía novo e original, com o qual
-propõe-se a enfrentar os problemas específicos da sociedade fran­ •
■m
cesa do séiculo XVm.* Devémõis buscar o primeiro desses antece­
dentes no renovado intéresse p<rias ciências dá natureza e. em esõe-
t víí
cial, pela física newtortiana, qu<; leva os ilustrados a transportar os
esquemas destas disciplinas paira o campo das ciências sòciais, tra­
tando de t :stabelecer uma espé cie de física da sociedade. O segun­
d a é ajier ança do libertinismo, por onde se transmite boa parte do
caudal critico iluminado pelo Renascimento. No século XVm conti­ v, :
nuará a difusão manuscrita dessas obras que integram o que Spink
chamou "ais ciências humanas c landcstinas". Essa tradição de anoni­
mato se estenderá em bbã meclida à obra impressa dos ilustrados,
que publicavam seus livros sem a indicação do nome do aqtor, ou
se ampara1vam nos mais diverso s pseudônimos, além de buscar para
a sua edição os lugares com maiores garantias de liberdade, como
as imprensas das cidades dê Anisterdam ou de Genebra. O terceiro
fatoq.tay« : o mais visível e apai repte na etapa inicial do pénsamen-
t

* Do me :smo modo, convém obs ervar que a Unguagem e qs programas da


Ilustraç: io francesa serão adorad os por outros países onde, em co n tato s
distinto: i. os resultados serão tam bém diferentes. O que taostra a importân­
cia dc n ão limitar-se a catalogar as idéias, ou a buscar as relações entre os
textos, r nas sim pôr umas e outn is emrelação com os problemas da socie­
dade e com as atitudes que diar ite deles mantém os seus autores.E o que
tem feito, para a Espanha, Gonza lo Anes, ou o que propõe, para a América
ibérica, José Carlos Chiaramonte , que nos mostra o caráter reformista dos
ilustradi js , que aceitavam "a diyis |o_dp trabalho que lhes oferece, rudemen­
te, a reft )rma dos bourbons", e dt rnuncia õ uso ocasionaLc-até oportunista.
que faze im os autores europeus ( Pensamlento de ia Ilustração. Economia
y sociee. !od iberoamerleanas er,i el siglo XVIII, Ayacucho, Caracas, 1979,'
citado d as pp. XIX e XXXH). Espt :cialmentc interessante é o caso da ílustra-
ção alemã, cujo desenvolvimento pode acompanhar-se, por exemplo, em
Nlcoiau Merker, Uilluinintsmo tedesco. Etá dl Lesslng, Latctza, Bari, 1968,
ou em I lenri Brunschwig, Societi ? et romantisnie en Prusse au XVIUe siè­
cle, Flan tmarion, Paris, 1973- Será conveniente ter presente isto - as diferen­
ças fundamentais que separam ;a Ilustração francesa da germânica - para
compre ender-se melhor as orige :ns do historicismo, entendido como rea­
ção à cr adição ilustrada. *■_ '

62
to ili jstrado, será a influêr teia do chamado "pinonismo histórico11'*,
jfrutç) de ter estendido á t eflexão crítica aò terreno da história, po­
rém nãó limitada à discussão dá validade das fontes, que era o má-
ximc) a que tinha chegado (a historiografia'ortodoxa, mas sim aplica-
da at js próprios' conteúdo s: aos fatos, às idéias, às valoracões. Os mé­
todo s d&Mabilloti, ideado s pára depurar e revitàlizar a história ecle­
siástica, serâo empregado: 5 copitra ela por homens como Richard Si-
niòn na sua História críti ca do Antigo Testamento (1678), enquan­
to a dúvida começará .a penetrar em terrenos até então imunes a
ela, <:òm obras como a H istória dos oráculos, de Fontenelle, ou Da
debi lidade do espírito h u m a n o , do bispo Huet.<
' O máximo representante do pirronismo será Pierre Bayle
(164 7:1706)’ protestante convertido ab catolicismo aos vinte e dois
anos e retomado ao prote stãntismo aos vinte e três. Em 1681,escan­
dalizou a'Europa com seus Pensam entos diversos sobre o com eta,
onde, além de insistir êm que "a antiguidade e a universalidade de
uma opinião não e râ u m :sinal, de verdade", sustentava què "o ateís­
mo i iãô conduz necessar iamente à corrupção dos costumes", afir-
madio que iria desencadear um tremendo debate. Sua obra funda-
men tal é o D icionário histórico e crítico (1687), onde.fez umaapli­
cação sistemática dos mét odos críticos ao conteúdo da história. Bav-
JèjM irtia de uma cohcepçi lo da crítica que até então havia se limita­
do a pouco mais que à análise dos textos e propunha estendê-la a
todo s os campos do saber. s.em outras exceções que as referentes ao

f * O bispo Huet referia-se assim sobre as origens do chamado "pirronismo“:


"i L arte de duvidar estava quase em sua perfeição e o espírito, humano es-
c iva convencido da sua debilidade,quando Pírron, natural da Elida,lhe deü
a última mão; pois, após hnverlido os livros dé Demócrito e deftlétrodoro,
ai -ompanhou Anaxarco ã 1índia e teve ali conversas com os magos e os gim-
n ossofistas, c, uma vez reg ressado ao país, propôs um tipo mais perfeito de
ir ícompreensibilldade, qu< : os gregos chamam acatalepsia. Tendo observa-
d o com muita penetração que os antigos, depois de ter reconhecido a sua
- ij[n°rância em tudo e indlusive a.sua ignorância desta ignorância, conser­
vavam contudo um modo de filosofar que parecia admitir alguns conheci-
. n lentos como certos e utilizar algumas afirmações, o que o féz tomar uma
nova forma t a pôs fora dia-alcance dqs artifícios dos dogmáticos.Ná reali-.
. d ade, Pírron não deixou n ada por escrito', porém teve discípulos e estes tí-
' Vieram outros que cuidafaim de expor essa doutrina em obras, das quais al-
gi limas conservadas em toda a sua integridade chegaram até nós" (Pierre
Dianiel Huet, Traité philosophique de la faiblesse dé 'l ’esprit humain,
Nfourse,Londres, 1741,pp .124-125). ' ‘
capítulo 3

Estado (qu e cairiá no domínio d a sátira ou do libelo) e à religião (na


medida eni que a considerava acima da razão). A crítica converte-
se assim n a atividade mesma d a razão e transforma-se. "na arte. de
conseguir, através do pensamento racional, conhecimentos e resul-
)tadqs exatos".5 ,V .
■j? Rayie não ataca nunca dirctamentc a religião, mas sim os abu­
sos, fraude s e deformações dos t i|ue a utilizam para seus fins. Denun­
cia os faisc >s doutores, a quem (ds povos deveríam dizer: "Se não sa­
beis (...) que nos enganais, vossa estupidez merece que vós
enviemos a trabalhar a terra, e se o sabeis, vossa maldade merece
que sejais colocados a pão e água entre quatro paredes". Uma.coisa
são, entretanto,as suas intenções e outra os efeitos que conseguirá:
a agudeza mesma da sua denún< ria conduzirá’ a alguns além dé onde
pretendia lleváJos. Seu livro está nà origem de muitas crises de cons­
ciência. A influência do Dicion ário foi enorme. Figurava na maior
parte das bibliotecas eclesiástic as„cómentava-o a boa sociedade de
F " Paris e era lido nos cafés de Ger íebra; a futura imperatriz Catarina D
da Rússia, iquando ainda duques a, empregou dois anos na leitura in:
< 7 tegral de s eus quatro grandes tomos. Foi um dos livros mais difun-'
didos na Europa da primeira metade do século XVm e contribuiu
decisivamente para universalizar o conhecimento da língua france­
sa, facilitando com isso a circula'ção internacional das obras dos ilus­
trados.6
Não deve, entretanto, coiafundir-se Bayle com os homens da
Ilustração. Foi um de seus grandes mestres,na medida em que os en­
sinou a pe nsar - ou, pelo menos., a atrever-se a pensar -, porém nem
equaciono u os problemas da sociedade em que vivia, nem ièz outra
contribuição que não fosse a generalização dos métodos críticos no
terreno da história. A análise das concepções históricas dos ilustra­
dos deve com eçar por Voltaire 0 6 9 4 -1 7 7 8 ), que, embora fortemeh-
te influenc:iado por BayIe,foi muito mais que um continuador deste.
Voltaire definiu a história., para a Enciclopédia, com estas pa­
lavras:

A Hilstória é o relato dos fatos que se tem por verdadeiros, ao con-


trári o da fabula, que é o rei ato dos fetos que se tem por felsos. Há
a hií itória das opiniões, que não é muito mais que a compilação dos
erro s humanos.A história cias artes pode ser a mais útil de todas,
quando une ao conhecim ento-da invenção e db progresso das ar­
tes ii descrição de seus me. cartismos. A história natural, imoroprla-
men ite chamada história, é iim a parte essencial da física. Tem-se dl-
vidido a história d o s acontecimentos e m sagrada e profana; n
história sagrada é u i m sequência das opera ições divina.«; e miiagm-
sas.-pélas quais tem agradado a_Deus condi 1
judia c pôr à prova i aojpr^nte_ajao.ssa.fê,‘ ’

Nevvtón, pensa que pode acontecer à História


semelhante à experimentada pelo física, que fará
screver "os velhos sistemas". Porque Volta ire vai mais além da
preocupação pela exatidiio do dado concreto, ainda que tenha defi­
nido a História pela sua v eracidade e dedique um tratado ao "pino- |
nlsmo". Empenha-se, por exemplo, em superai - o estreito marco da
histi 5ria política tradicion; al, para construir, em í;eu lugar, a "do espíri­
to h umanq".À frente de rima de suas obras mais ambiciosas,nos ad--
o seu objeto "não é o de saber em que ano um príncipe ’ ,
de ser conhecido ■sucedeu a um piínci pe bárbaro numa na­
ção incivilizada.Se se pud esse alcançar a infeUcãdade de meter-se na
caboça a série cronológica de tòdas ás dinastias, hão se saberia Ou­
tra coisa que palavras".* i Falou-se queVoltaire fracassou no intento
de c ontar a história de ui na sociedade inteira e que, no seu Século
de S u is XIV, o realizado ifica muito longe dos propósitos - "as ane­
dota s sobre a corte parec em ocupar uni lugar: mais importante que
os cí ipítulos sobre as -artes; e as ciências". Porém , essá crítica não leva
em ( :onta o valor que tinh a o simples própósite >de uma história "so­
cial" semelhante, ainda que por fim caísse nuntia meramente cultu­
ral, coisa que se entenderá ao examinarmos su as idéias políticas.8

* Sabemos por unia carta c leVòltaire a Jacób Vemet,, o editor génebrino, que
esse texto estava redigido iriiciaimentc em forma dlisünta: "Olho a cronolo­
gia e as sucessões dos reis como meus guias, c não <íomo o objetivo de meu
ti -aballio. Este trabalho ser ia bem ingrato se Umitasi ie-me a querer aprender
e m que ano um príncipe Indigno de sê-lo sucedeu a um príncipe bárbaro.
P; arece-me, lendo as histór ias, que a teria não foi fei Ita mais que para alguns
soberanos e para aqueles -que serviram as suas paisões;quase tudo o mais
fi ca abandonado. Os historiadores assemdham-se.misto, a alguns tiranos da-
q ueles que nos falam; sacrificam o gênero humano a um só homem” (Vol­
ta lire, Oeuvivs complèles. Fume, Paris, 1835-1838,XI,pp. 448-449).R-Navez
n os conta que Néaulme piublicou esse texto, crá 11735, com deformações
cismo a de converter a úl tima frase em: "Os histoi dadores, nisto igual-aos
reis, sacrificam o gênero h umano a um só homem". Leitura abusiva - conio
Violtaire fez constar diante: de um notário - porém não de toda injustifica-
d: i, que moveu o autor a el iihinar todo o argumento., como as dúvidas (nota
ei n Voltaire,/.eírívs chotsins, Garnier, Paris, 1963, p. 582).
capítulo 3

Tampiouco é..justo acusá-lo de ambiguidade. Há que recordar,


para começa r, os riscos do ofício i ia Fiança do antigo regime: Não é
por diversão' que publica suas obras anonimamente ou com tima
rica e variada coleção de pseudo nimos,* ou que vive na fronteira,
preparado p ara escapar do outro lado, como o fará, por precaução;
em diversas ocasiões. Esse homei n foi espancado pelos criàdos de
uma aristocr ata, por não conduzir -se com o devido respeito, foi pre­
so sem prooesso e viu suas obras serem perseguidas cegamente. Na
Inglaterra, p<:rcebeu a vitalidade dle uma sociedade que, pela revolu­
ção, havia g; mho novas margens de liberdade, havia eliminado os
privilégios feudais e se eiicontniva no caminho da prosperidade
econômica:;Porém, quando quis contar essas coisas num livro,viu-o
queimado cmi público pelas mãos; do carrasco, de modo qué apren­
deu a expressar-se com maior cuiidado.5 . "<.
Que j t história lhe interess; t, antes,de tudo, como meio para a
compreensão da sociedade em qüé vive, mostra ao recusar _a .
"história antiga e declarar que. só ;lhé importa aquela que permite
compreendia: os progressos da sixriedadeeuropéia, progressosjqipe •
parece iden tificar com à gcnêse dò capitalismo,** Ele vê a evolução
da humanidade em termos culti arais e estabelece quatro grandes

j * René Po mcau observa a freqüên< :1a com que Voltaire recorre a pseudôni-
mos ecleí iiásücos; "A filosofia da bistóría, por exemplo, todo o mundo
sabe que se deve à pluma do abadie Bazin;a Defesa desta Filosofia foi es­
crita pelo sobrinho desse abade. É a um "bacharel em tcologianjt quem de­
vemos o jPtrronismo da história, enquanto que as Carias chinesas a de­
vemos a "um beneditino", etc. (\ roltaire segiin Voltais, Laia, Barcelona,
1973, pp, 1>16). Porém não se trata de um traço de humoi; sqmcnferHá
um_ay£ên JigQtemqjiiiiXVoltaire q u e ji c g k _ a _ D l A l c g a t e r m d a d e ^
- D icionât io filosófico, queixando^ ;e de que haia "cristãos tão indignos des--
se nomC ' como para suspeitar que sou o autor
tin Õeuvirefcõmplètes, X, p .6 Í7 ),.o que diz aVemct, que pode Interessar-
lhe em puiblicar as suas obras em Genebra, “porém c uma empresa que eu
gostaria (jue fosse muito secreta, cm atenção às medidas que devo obser­
var na Fr, ança" ( in Í(L, XI, p. 449)- -.
** "Eu gostaria de começar um e;studo sério da história,no momento em
que esta se toma interessante par a nós: parccc-mc que isso ocorre até o fi-
. nai do sé:culo XV". Quais seriàm ios acontecimentos "interessantes", ficara
logo claro: a imprensa, o Renascimento, os descobrimentos (e em especial
o da America), a reforma,..Graça; s a isso fbrmou-se um mundo unificado,
por onde: circulam mercadorias, c:ostumes e idéias. "T\ido.nos fez recordar
cada dia que (...) todas as.partes do mundo estão reunidas há uns dois sé:
culos péla indústria de nossos p:tis. Nao podemos dar um passo que não
nos le m b re i mudança que tem ocorrido no mundo desde então" ("Frag-

66
a il ustração

épúcáS. quatro/.“séculos11, que correspondem à Grécia clássica, à


Roí ma imperiai, à Europa do Renascimento e, i inalmente. esse "sécu-
Ío d e Luís XIV1 em que a razão humana aperfeiçoòu-se é pôde che­
gar a conhecer "a sã filo sofia", se bem que nâio faltem ein ocasiões
- petrcePc5esiem_outro se ntido, como os que levam a relácionar de­
senvolvimento industriaiIe cultura.10
" Convém analisar s is razões desse interef ;se obsessivo pelo cül-
tunil.VoItaire penetrou ria sociedade inglesa através de sua ciência
' . •e d e seu pensamento, e soube entender que estes guardavam fela-
. ção com á organização s ocial e o desenvolvin icnto econômico, po­
rém não acertou no modo de ver a natureza dos nexos existentes
entre esses diversos plainos. Sabe que o conhecimento é uma ferra­
menta para criar consciê ncia,e pensa que corn isso se pode chegar
a m edificar a própria retdidade social, a tranfomiar ojnundo: "Mui­
tas inações que‘durante kmgó tempo portaram chifres e ruminaram,
. começam ágòra a pensa r. E, uma vez que o tmhpo de pensar che­
gou ;é impossível tirar dc >s espíritos á força qii ie adquiriram. Há que
•. se tratar como seres pensantes os que pensam, còmo se.trata aos
bru tos como brutos". A uma visão da história que se funda na evo­
lução do espírito humaino, corresponde, uma concepção política
que sustenta que é a ilus tração dos homens, com o instrumento de
ino< iificação de sua cojnst :iência, que transform lara o mundo. E a essa
con ccncãQ políticaxorre sponde. por sua vez, i rm programa de ação
çon 10 o dos ilustrados, qi leVoltaire pôs em pni não_sípormeip
dos seus escritos, c omo também dos seus coimbates pela justiça e
jgelai jplerância, em casos; como o de Calas ou o do cavaleiro dc ia
Barre, que foi torturado e executado por não ter-se ajoelhado na
passagem de uma procissão, e cujo corpo foi queimado, precisa-
mente, com o D icionário filosófico dé Voltai re. Porém o mal sérá
que os que contêm ò controle da sociedade eim suas mãos, e se be­
neficiam dele, não irão modificar a sua conduta i por mais que se ilus­
trem - Voltaire acabara dnsenganado dos "reis-filósofos" -, enquanto
que os seus súditos, por sua parte, não podem ailterar a situação com

nnentos sobre a história", in Oetwivs, V,pp. 24i-2d2). Poderia parecer qüe


e sse ponto de vista fosse contraditório com a suai pretendida vontade de
. a lcançar uma visão univei rsal, que o move ao fáiar-; nos da'história da China
,e da índia e a zombar dc u lína tradição qúe parece i confundir o inundo corn
a s tribos judias; porém es: ses propósitos costumanr 1 limitar-se ão terreno fi-
1*ísófico e religioso, e tem uma finalidade estritam ente crítica, a semdharí-
Ça do que faziam os homiens da Enciclopédia, dlfitrçando seus ataques ao
c ristianismo com roupage ins.prientais. ;" > '
' , capítulo 3

o mero exeicíçio da razão. Sua- újnica saída - pófém es ta cai já fora.; .


, do âmbito d o reformismo ilustrado - sérá a de consegu ir, pela força,
que os seus soberanos não continuem tratando-os "coimo brutos","
Penso que, no fim da sua vida, o próprio Volta ire era cons­
ciente do seu fracasso, quando escrevia.a Diderot,'em agosto de
1776, uma carta que vem a ser vima espécie de testai nento dd ho­
mem público: ' . ' - 1 -7

A sã filosofia ganha terrena i desde Arj.mguelsk ate- Cadiz; porém


nossos inimigos continuam tendo ao seu lado o orvalho do céu ,a
gordura da terra, a mitra, a larca de caudais, a espa da e k canalha.
Tildei o que temos feito, limitou-se em conseguir que as pessoas
honradas dissessem que ternos razão, e taiveza fa cer com que os
costiim es sejam vim p suco mais delicados e honestos; Entretanto,
o sangue do senhor de la B arre ainda éstá quente (..,)."Viva longa-,
men te, senhor, e osãlá poss a dar golpes mortais n o monstro cujas
-: oréUbas só.éu posso"mordei.’.“ - . " v" - - d '?■ . —

Cur iosãmente,-á obra d c um homem de int enções menos .


subversivas que as deVòltaire, que não só não desejuva a mòrte do
monstro, ço rao também que jarnais mordeu-lhe as or elhas, terá con-
seqüências mais transcendente ús. Refiro-me a Charl es-Louis de Se-,
condat (1689-1755), barão de La Brède, que recebí :ria o nome de
Montesquáeu, herdado do seu tio junto com uma magistratura.Aris­
tocrata acomodado, cultivador dos vinhos de Bord eaux - bom co­
nhecedor', por isso, da agricultura e.dos mecanismos do comércio
internacional - era homem dc considerável bagage m cultural, afei­
çoado às ciências e à literatura. Sua reflexão, difere ntemehte da de
Voltatre, não parte da critica h dstórica, mas sim da Lepriá política, e
•a sua pre ocupação é a de dar uma explicação racional da natureza
das formias de governo c da:; leis que correspondem a elas. Sua
grande obra é O Espírito das Leis, aparecida em 1748. No prefacio
nos explica seu propósito:

Gotnecéi examinando os homens e acreditei qu e, nessa infinita di­


versidade de .leis e costum es, não eram guiado is unicamente-por
si ia fantasia. Propus os pírincípios e vi que os ca sos particulares se
adaptam a eles-com o p o r si mesmos, que as histórias" de todas as
n ações hão são mais que: suas conseqüências, e que cada lei parti­
cular está ligada a outra lei ou depende de outra mais geral.15

^ Montesquieu nãp^preitendia, entretímto, eslabelçcer uma es-


pécie de ciência estrutural dias formas políticas que ocupassexulm

fiR
a ü ustração

jjai •da História, como e ntendeu.Althussm;j i ias sim que partia do


gri ncípio de que "as leis ,jig seu significado n iais amplo, são as rela-
çõí ^.necessárias que prc icedem-dâ natureza d;as coisas". Não se quer
dizer, por conseguinte, c xplicar os fetos a partir de algüns sistemas
. téó ricos estabelecidos p réviamene, mas sim t ratar de construir tais
■ sist emas a partir da reali dade "das coisas", Agora, de qúe "coisas" se
trai a? É sabido que Moritesquieu insistiu na importância do Clima
ém reiação com as form; as dé organização soc ial, o que é explicável
no caso de um agricultoi r que vivia numa soçi èdade cm que b bem-
-ést ar ou o desastre depe ndiam das flutuações climáticas, è tem tam-
bér n muito que ver com as preocupações ciei ítíficas dó seu tempo,
das quais compartia. Poi 'ém, costuma-sê esqu eçer, por outra parte;
' , qüe: ete mesmo, nos prev eniu contra qualquer tentativa de inteipre-
taçíío monocausal, ao db;er-nos qúe as leis nã o só guardam relação
con ii o solo e õ clima de uni país, como tambi iiri com "o gênero’ de
indij dos povos", coiri a s ua, organização política,sua péllgião,süa ri-"
. çfae:za,seus costumes, eh e. E até consigo mesmas, "com sua origem,
com o objetivo do legislador; com aórdém das coisas em que se es­
tabeleceram". E que é precisamente a soma de todas estas relações
aqileform a, conjuntameinte, "o espírito.das.leis".u ■■
Duas são as contribuições de Montesquieu para a teoria "da
hist ória, que nos interess: i destacar. A primeira, exposta nas Conside­
ra a 5es sobre as causas ate grandeza e decadi meia dos rom anos, é
a distinção entre o meraimente acidental e àquilo que tem uma im­
por tância estrutural para explicar os fenômenc >s históricos: a afirma­
ção de que existem umas "causas gerais" que p ermitem dar conta da
evo: lução histórica e qiie justificam o estudo c ientífico desta.* A se-*1

'' "Não é a fortuna que dc imina o mundo: isto se p ode-perguntar aos roma-
itos,que tiveram uma série contínua de prospericltàdes, enquanto góvema-
i am dentro de certo plano, e outra ininterrupta dc adversidades, quando se
<:onduziram dentro de ouitro plano distinto. Há ca'usas gerais, sejam morais
c ju físicas, que vigoram eim cada monarquia: a elei /am, a mantém ou a pre­
cipitam. Todos os acidem tes estão sujeitos a essas causas, e se o acaso de
i ima Batalha, isto é, uma <iausa particular, arruinou i algum Estado, havia ou-
t ra causa geral que fazia com que esse Estado devesse perecer por uma só
1 latalha: cm uma palavra, c >impulso principal afiasi ta consigo a todos os aci-
c lentes particulares" ("Coiudldératíons su les cause :s de la grandeur des ro- ■
inains et de leur decadrnce", irt Qeuvres Coihpiètes, Seuil, Paris, 1964,'
JCVlH.p. 472.A tradução castelhana foi feita dápublicada cm 1776 em Ma-
clri - pp. 239-240 A obra havia chegado muito íintes na Espanha.Tenho
t im exemplar, provavelmc :nté o primeiro qué d ic ulou por Barcelona, què
trás a aprovação 1nquisitO'rial de 28 de outubro de: 1739).

69
capítulo 3

gunda é a sua visão da evoluçãoJvuouúia, còmo a passagem por uma


sucessão de etapas, definidas pela forma na qual os homens obtêm a
- sua subsistêi ida. Ainda que Monte squieu não tenha dado a essa "teo­
ria dos estados" o lugar central qu e irá ocupar no pensamento da es­
cola escoce: i'a, e- em especial em Adam Smith, expressou com toda
clareza o feno de que "as leis gu; ardam uma grande relação com a
forma com <jue os diversos povos; propiciam sua subsistência", e.esr
tabeleceu ui na gradação que corá' eça com os povos caçadores, segue
com os past ores, passa aos agricultores e chega até aos que se.dcdir
cam "ao comércio e-ao mar1'. Exporá lucidamente ás linhas de inte­
gração e cot operação pelas quais i rá desenvolver-se a sociedade capi­
talista _ e dhegará inclusive a antecipar a necessidade de que-essa
"grande sociedade" que se anuncia, estabeleça-se dentro de formas
políticas de mocrátricas, que repr esentam uma maior garantia para a
propriedade burguesa, condição necessária para o desenvolvimento
das novas al ividades econômicas:: "As grandes empresas dç comércio
não são, po is, para as monarquiaí;, mas sim para o governo de vários r
(...) Uma certeza maior ha prop riedãde, como parece haver nestes,
estados, estimula a empreender (qualquer coisa",.15 .
Agricultor numa França .feudal, porém, ligado ao comércio
exterior, Montesquieu reflete em suas contradições as da sociedade
em que vive. Assim, ao lado de ssa dara antecipação da sociedade
capitalista, o encontramos defendendo a‘ justiçâ senhorial, base da ■
sobrevivên cia do feudalismo; Junto a sua condenação incisiva da es­
cravidão, e:m nome dos princípios do direito natural, achamos a
aceitação c la dos negros, sustent ada com argumentos claramente ca­
pitalistas^ endo entre eles o mais importante, o de que "o açúcar se­
ria muito caro, se não se fizesse trabalhar por escravos a planta que
o produz”. 16 ’ •
*

* "O trig o da África não é para os africanos; o do noite da Europa não é para
os povo s setentrionais: é paia todos aqueles que querem trocá-lo com o
produto i de suas artes. Quanto mais trabalhadores houver na França, mais
lavradores haverá na Beibetia. P orem um lavrador alimentará a dez traba-
. thadore; s: O mar tem peixes em iquantidade inesgotável; só faltam pescado-
- res, frot as, negociantes. Se os bo sques se esgotam; abri a terra' e tereis ma­
térias ct ambustíveis. Quantos filó sofbs e viajantes tem feito descobrimentos
que res ultaram inúteis, porque, oa situação presente, a indústria ordinária
basta p: ira as necessidades! Os f ilósofos hão encontraram essas coisas para
nós, ma s sim que resultarão boa s quando houver sobre a terra ura grande
povo" ("Meus pensamento", 366; in Oeuvres completes, pp.892-893).

70
ailustráção ~ '■ '■• .'

" Se Voltaire foi um . homém de intenções subyersivas que sutn


■i vei teu muito pqúco, po rque empregou suas forças de forma inadt:-
■ qiiada, Montesquieu foi um conservador qué, pela direção que deu
ao seu pensamento,-te ve consequências revolucionárias. Poucas
p é >soas viram o alcance real de sua obra com tanta claridade, cúrno
o eiditor genebrino Jaco b Vemet, que lhe escrevia em setembro de
Í7‘Í8, quando acabava tle aparecer O Espírito das leis: "Ninguéni
, satie encontrar como-vc is ás raízes naturais'das coisas". Só que bus-
. car as raízes naturais das formas de governo, na França de fins do àn .-
tig<j regime, implicava m inar os cimehtos da sociedade feudaTe aca
bar convencendo das excelências dessa sociedade burguesa, que
haveria de realizar todãíi as promessas do desenvolvimento, capita-
iistarÇomo disse Ehrárd: "Nà história das idéias, alugar de Mohtés-
quieu seria mais modésro, se as verdades qúe defende não estives-
sêni prenhes de verdades contrárias".17 . V
No desênvolyimé nto cronológico da Ilustração, caberia ago­
ra f alar de um homém qi ie é difícil qualificar de ilustrado, e qué teve;
um papel muito secundíLrio na formação das idéias sobre a histófist
que pretendo seguir aquicjean-jacques Rousseau (1712-1778). Pou ­
cos casos se encontrarão como o deste "cidadão de Genebra", que:
ales inçou uma enorme influência sem ter feito grande coisa mais
que: repetir idéias alheias com uma eloquência pessoal, com umal
ênfase e coloração que as tomariam atrativas aos românticos. Emi
real idade, as duas idéias mais originais que achamos na sua obra, pa ­
reô :m ter sido "emprestadas" por Diderot, ainda que Rousseau nos:
quisesse lazer acreditar c[ue eram suas e no-las tenha vendido como-
fábulas, como a da sua súibita iluminaçãomo caminho de.Paris aVin--
cennes, em 1749, ou suais "contemplações sublimes" nos bosques,
em 1753,A primeira dcsisas idéias, a da civilização como origem da.
coe rupção db ser human q, é a que melhor integrou-se no desenvol-
vim ento ulterior da sua obra, na medida em que o conduziu a dedi­
car-se aos problemas relacionados com a educação. Pelo contrário,
a c< nndenação à proprie dade privada da teria, çonsideráda como
causa do aparecimento d a desigualdade entre ps homens, * não só•

• "O primeiro que, ten d o cercado um terreno, decidiu dizer:Isto é


meu, e encontrou p cssoas.bastante simples para acreditar nele,’foi
o verdadeiro fundad or da sociedade civil. Quantos crimes, guerras,
assassinatos, miséria s e horrores teria poupado ao gênero humano
aquele que, arrancar ido as cercas c tapando as valas, tivesse gritado
a seus semelhantes: ‘Evitem escutar a esse impostor; estarão perdl-

.. 71
capítulo 3 .

correspondeaquele "tom duro e sombrio"-que confessa dever à in­


fluência d«; Diderot, como que i joderia muito bein pe :rtencer literal­
mente a cie. É difícil explicar dle outro modo que Rousseau tenha
recorrido /sistematicamente ao itrabalho como legitimação do direi­
to de propiriedade, o que é powco coerente com as imprecações re­
tóricas corntra os que cercaram a primeira terra. Se a propriedade é
a origem 'de todos os males niío se entende por que não tenha a
obra de Rousseau preocupação alguma com os proç ediméntos que
poderiam empregar-se para aboli-la,_coisa ha qual já haviam pensa­
do outros coetâneos seus.Admitindo os defeitos dai sociedade em
que vive, Rousseau não oferec e para ela remédios sociais, apenas
propõe a via da transformação anterior do homem pela educação. _
Daí quê, s e o seu papel no desenvolvimento das idélias pedagógicas
é importa ntíssimo, não o é assi m no terreno da refle a ã o sobre a so­
ciedade. Siuasjdéias sobre a história sãò confusas. Sie nas etapas dp 5
desenvohdmento da civilização humana fàz aparec er a metalurgia
antes da aigricultura - com o qu e demonstra uma esc assa comprecn-
são dos miecanismos do crescimento econômico -,n o terreno da po­
lítica, às formas de governo tandem graduaimente para o poder ar­
bitrário. lissa concepção dege nerativa da evolução social, em con­
traste aberrto còm as idéias sobre o progresso que tiinham se desen­
volvido n a Inglaterra, e que, m una ou noutra forma,, apareciam tam­
bém na raiz da reflexão dos ilustrados franceses, parecia não' deixar
outra saí(ia que a volta a uma sociedade agrária priimitiva, compos­
ta por pequenas comunidade; s de vida sensível, pnóxima a dos sel­
vagens. Como adverte Starobinsky, Rousseau sabe perfeitamente
que é iimpossível um retomo à natureza muna escala qúe englobe
toda a sociedade, de modo que "a única atividade que continua
sendo p<jssível é a educação (de Emílio". Porém, esisa educação não
só n ã o c; o caminho para c hegar a uma transformação coletiva,
como tamibém acaba fazendo do próprio Emílio um ser incapaz de
viver entre os homens. "Rousseau, significativamente, prolonga a
' história idessa educação até o momento em que En íílio se converte,
por sua vez, num solitário co mo o próprio Jean-Jaicques". Não é es­
tranho q[ue esse pensamento, que apaixonou os rpi nânticos, em ple­
na reaçãio irracipnalista contra as idéias do século XVM, tenha süs-

t d os, se esquecerem que os frutos são de todos e a terra não é de


ninguém'" (Rousseau, D iscours sur l'o rig in e cie. l'inégalité, Gar:
n ier-Flammarion, Paris, 1 9 7 1 , p. 205).

72
a ilustração ' . ' ■_

cití ido nos ilustrados, scms contemporâneos, respostas que vão des­
de o sarcasmo dc Voltaire, negandòrse a "andar de'quatro patas", até
o d esprezo dé Diderot, O que se pode assinai iar, é que, se Rousseau
' infituiu muito sobre a sensibilidade, assim còtno sobre as idéias po­
líticas, as suas idéias sociais,jqúe têm um lugar fundamental no seu
pei isamento,não deixara un o menor rastro. Nci desenvolvimento das
idé ias ilustradas sobre ã história, ò pensador genebrino representa
mais um desvio que um;ietapa.1S . • •" ^
O marco teórico ] jroposto por Montesi qiiieu será ò dominan­
te n a maior parte das reflexões históricas do;s ilustrados franceses,
inclusive daqueles que conservaram a linguagem e algumas das
pre ocupações de Voltair e. Ãos "séculos" da h istória do espírito, de­
fini dos por. critérios cul turais, sucedera a pe rcepção das relações^
qüc; existem entre as eta pas do desenvblvime nto social e as formas
d e ; subsistência. À prime ira dessas conçepçõe s correspondia o pro­
pósito de modificar o nmndo atuando sobre sua consciência me-
diáiite a çrítiça; à segúndla, a convicção de quts tal objetivo só pòde
- logirar-se no terreno da reforma política. O homem que expôs essa
concepção da sociedade c da história, e que, ;*o mesmo tpmpo, tra­
tou de levar à prática o programa que deveria realizar a aspiração
proposta por Montesquieu,-e mais datamente exposta pelos fisio-
cratias - conseguir um de senvolvimento economico capitalista, pre­
servando a propriedade da terra para a classe feudal foi Turgot.
Não é este o lugair adequado para analiisar o pensamento da
fisiocracia, ainda que conviria insistir na necessidade de não isolá-la
exc essivamente dos intentos reformistas, que se estavam produzin­
do ;simultaneamente em outros estados feudais europeus. Mxux fez
jiist iça aos seus méritos, <; às suas limitações, ai i defini-la como "uma
reprodução burguesa do sistema feudal, do im pério da propriedade
da t erra". Do que se trata’ra,era de tomar possi :vef o desenvolvimen­
to cio capitalismo na agriícultura, à maneira in glesa, no seio da pró­
pria. sociedade feudal, adaptando-a à medida ( jue fosse necessária
sup ressão, com indeniza ção, daqueles direito s qué se mostrassem'
iricc impatíveis com a exj jansão do comércio iinterior; abolição dos
privilégios e monopólios ;.grermãis, etc. -, graça is à férrea direção de
um poder despótico. Flo tence Gauthier defini iu a sua política agra­
ria <:omo um intento de ' 'submeter a produçãí y à grande proprieda­
de, isto é, integrar aos semhores proprietários cte terras tio desenvol­
vimento capitalista".19 '- t . “ V

73
capítulo 3

Turgòt (1727-1781)'tínlia uma concepção histórica do pro­


gresso herda da de Moritesquieu. O s fenômenos da iiatureza se repe-"
tem invariav cimente, enquanto qme o gênero humano mpstra uma
evolução, como cada indiviiduo, sua infância e seus progres- ,
sos".Todas as idades do mundo e:ncadelam-se ppr uma sucessão de
’ causas e efei tos, hum processo de mudanças, cujo motor fúndámen-.
tal são as tra nsformações econôm icas, que modificam o conjunto da
- sociedade.■() quê o governante ilustrado tem de fazer é estabelecer­
as bases de uma reativação económ ica,que, ao mesmo tempo que
resolverá os; problemas mais gra’?es com que sê defronta habitual-
mente""o governo - escassez das c olheitas e crise financeira do Esta­
do -, tomará. possível a passagem a uma etapa superior-do desenvol­
vimento, qu .e acabará mudando l eis e costumes, e transformando a
: própria soc iedade.A peçá eissenciál do projeto reformista deTurgot
era a liberdade do comércio de .grãos, que haveria de'tornar possí­
vel o estabt decimento de um me:rcado interior e potenciariá o que
continuava' sendo o principal setor produtivo"dã èconómia france­
sa. Em relacção às mudanças esperadas ria ágricultúra, conviria abo-'
llr as restri ções gremiais à prod ução industrial, com o fim de que
esta se ada] atasse às necessidades de um mercado capitalista em ex­
pansão. Subestimou a força das jresistências que haveriam de ofere­
cer-lhe, ao mesmo tempo, tanto os núcleos dirigentes da sociedade
feudal, com o os dos camponeses, e acabou soçobrando com esse
programa <pie quis implantar se m recorrer ap despotismo que pro­
pugnavam os fisiocratas ortodo xos. A sua queda viria demonstrar a
incompatibilidade do desenvolvimento capitalista e da propriedade
feudal. Nãc >ficava outra opção q ue resignar-se ao imobilismo r o que
não seria muito fácil numa ép oca de crise agraria e pobreza cres-_
cente - ou propor reformas mai s profundas do sistema.“
O e studo das "raízes naturais" do sistema sociál francês, ini­
ciado por Montesquieu, tinha conduzido a fazer a crítica das suas li­
mitações fundamentais e a propor um programa de reformas a par­
tir do interior. O fracasso des; ;e. programa deixava os problemas
pendente;, enquanto que a crítica começava a ultrapassar o ponto
a que tinhiam chegado os fisioc.“ratas, dirigindo-se às "raízes sociais"
do sistema. Nesse caminho, encontraremos dois homens que signi­
ficam umi a ponte entre a Ilustração e a revolução: o abade Bonhot
de Mably, irmão fie Condillac, e:, muito cspeciálmente, Dideròt.
Ma bly (1709-1785), que é muito citado e muito equivocada­
mente, é duplamente interessa nte, tanto por sua preocupação com

74
'- a ilustração s

"a história, como pela cri'tica que fez do programa político dos fîsip»-
cra.tasiA História parece -Ihè ser um instrumento indispensável paru
compreender os mecardsmos fundamentais da sociedade c, com
isso, tomar possível um programa político eficaz.A missão do histo­
riador não pode ser a d e acumular dados ou entreter os seus leito­
res - "coser uns fetos a outros é contá-los com amenidade" -, mas sini
a d e "descobrir as causais dos acontecimentos e a cadeia que os én-
trelIaçamVHá de ser um a História que "feia à razão", que mostra o
marco social - "os costumes e b govemp dá república"-para expli­
car as ações dos homem s.21 ~ . < ■ ' - -■ <
Mabiy enfrenta as propostas políticas dos fisiocratas nuni
sen tido claramente proj pussivo. Não aceita o fundamento mesmo
de suas concepções sociais, que é o princípio de que ã proprieda­
de privada da terra seja . um. fetq natural e etemo. Como Montes-
qui eu, acredita que nas o rigens dahistóriahumaria nãó existia á p ro -
pricdade privada, e, com o ò Rousseau influenciado por Diderot,
pensa que a apropriação» da terra criou a desigualdade das fortunasi
e, c om ela, "todos ós víci os daTiqúeza, todos os vícios da pobreza, o
embrutecimento dos esj jíritos e todos os preconceitos e paixões",,
cujiis conseqüências serão "governos injustos e tirânicos, leis par ­
ciais e opressivas e, para dizer tudo em poucas palavras, essa multi ­
dão» de calamidades sob ;as quais gemem os povos",Não se trata, en ­
tretanto, de propor um impossível retomo ao estado da natureza - at
pro posta de "andar de q uatro patas", que Voltaire acreditava 1er em:
Rousseau -, mas sim de encontrar soluções aos males criados p or
um:a evolução irreversívid. "Se não é possível obedecer às simples»
leis da natureza, convém estudar, pelo menos, por que meios a in­
dus tria humana pode aln da remediar'uma parte dos males'que a de- •
sigualdade de fortunas produziu"!_E õs "remédios" têm de buscar-se
por caminhos semelhantes aos que se tem experimentado naqueles
paíües europeus que abandonaram o absolutismo. Por que felar de
impiérios asiáticos, como fezem os fisiocratas? "Temos na Europa di­
vertias monarquias moderadas; este é ò modelo que deve ser-nos
pro posto e não o ridículi o despotismo dos chineses".22
Quando se ocupa do comércio dos grãos, vemos Mabiy racio-
cimtndo em termos capiitalistas mais coerentes que os dos fisiocra­
tas. Depois de expor as f épercussões desfavoráveis que a liberdade
de comércio teve para as camadas humildes da sociedade francesa,
nos dirá que, se se pretemdia fezer flòrcccf a agricultura, havia que
con íeçar-se assegurando •o bem-estar de todos aqueles .a quem os fi-
capítulo 3

siocratas imçluiam sob adenomi inação de a classe estéríl:"cm neces­


sário què esta pudesse consumi ir para alentar os trabalhos e a indús­
tria dá agricultura". Mably não é partidário das regulamentações da
atividade i ndustrial, que associa mos.tradicionalmente com o colber-
tismo - e nisto coincide com Turgot porém entende que.o comér­
cio de griios necessita de algtiimas regras, enquanto subsistam as
condições; sociais vigentes na F rança do antigo regime. "Submeteria
o comérci o de grãos a regras m enos estritas, num país em que hou-.
vesse mai(> proprietários que emtre nós e que não estivesse habita­
do quase •exclusivamente por liomens que só podem viver do seu
trabalho"/3
Um ia revisão do pensamt :nto ilustrado francês, por superficial
que seja,nesultaria incompleta s e deixássemos à margem os homens
que fizeram a Enciclopédia, desqúem sempre se acostumou dizer
que não ti nham preocupação a Iguma pela história. O que não pare­
ce válido ipara D'Alembert, que no D iscursoprélim inar faz eco das
nòvas concepções "sociais", da disciplina, ao definir o seu objeto
como o d í: estudar a forma na q uai os homens se agrupam em socie­
dades "e com o estas distintas so ciedades têm dado nascimento às di­
ferentes espécies de governos". Também não o é para o Diderot ma­
duro, que colaborou com RaynadnaHistória filosófica e política do
estabeleci,mento e do com ércio dos europeus nas duas'índias,
onde se emprega a História com o arma de denúncia do despotismo,
de modo que resulta compreen sível qüe o parlamento de Paris proi­
bisse o liv ro em 1781, argüindo que "tendia a sublevar os povos".“
Diderot é consciente da novidade e da natureza insólita des­
se tipo de discurso histórico, e o defenderá como arma de luta con­
tra a tiraniia. "Se desde o seu co meço a história tivesse tomado e ar­
rastado ptdos cãbelos aç>s tiranos civis e a o s tiranos religiosos, não
creio que eles tivessem melhor ado, porém teriam sido mais detesta-,
dos.e seus desditados súditos tr:riam sido menos pacientes",Eis aqui
como a ciritica se dirige agora diretamente contra os "tiranos". Já
não se tra ta de formar a consc iência dos homens em termos mais
ou menos abstratos; de ensinar-lhes a pensar, como queria Voltaire.
O que o i íovq historiador fará é denunciar diretamente os abusoS~
que se deve combater e incitar aos oprimidos a lutar, como quando
se dirige aos ingleses e’ expon do-lhes os atropelos da. Companhia
das índias, lhes diz: "Povos cujo s rugidos têm feito tremer tantas ve­
zes a yosS'ós mesinqs soberanos s, o que esperais?, para quando reser­
vais vossas tochas acesas e as piedras das ruas? Arrancai-as...".“ "
£i ilustração

. Porém, o mais i revolucionário dessa inova História não reside


tio tom, na incitação h luta popular, mas sim na maneira de çonce-
fciê-la como ferramenta para planejar a mudança social. No exórdio
q[ue Diderot pôs no Ir/ro VI de Raynal, exp lica que passou já a ida-.
d!e heróica, em que o i ànatismo e o afã de c onquistá - isto é, os dois
piretextos que justificavam a ordenado da sociedade feudal - m o
v iam o mundo,As socii idades atuais poderia m definir-se. como "mer­
cantis1’, já que se basetivám numa articulaçâio de trocas e intercâm-
b ios, e na sua continua ção "os anais dos pov os haverão de ser escri­
tos pelos comerciantes filósofos". Entende, além disso, que o inte-
rc;sse renovado pela história é o resultado lógico de uma evolução
q ue levou a atenção do s homens da ciência ida natureza à ciência da
sociedade, Primeiro houve eruditos, depois; poetas, metafísicos e,
sucessivamente, geômdtras, físicos, naturaliíitas e químicos, Porém
aí;orar"Ogosto peia história natural está em decadência. Dedicamo-
n<is por inteiro às ques tões de governo; de legislação, de morai, de
p<nlítica e de comércio. Se me fosse permitidlò aventurar tinia profe-.
ci;a, anunciaria que os e spíritos irão voltar-se para o lado da história,
corrida imensa na qual a filosofia não se piaintou11.“
É o trânsito do estudo <das coisas ao estudo dos homens em.
so ciedade, da idéia de n atureza - ou de uma c oncepção dos avanços
humanos que não vai além da percepção d o desenvolvimento,das
cii incias e do espírito - à de progresso, numa proposta global e pler
na ,s Com a emancipaçiio da História e a suei elevação ao plano de
ciüncia que estuda as causas da evolução humana, esta converteu-
se em instrumento, fundamental para uma n ova análise política. A
révolução que se avizinl lava iria tirar dela sua; s melhores armas ideO-
lófpcas. .. i :

77
capítulo 4

capitalismo e . a\

V ^
história: ã, escola ■ ; d V ,
escocesa
f . . - ^

o processo revolucionário dos anos de 1640 a 1 6 6 0 -


5V

transformou a sociedade inglesa, não só no terrenopolítiço, liqol ■ ■ty.


-dando a monarquia abs oluta, còmo também no econômico.* Com a
ab olição das possessões feudais, em 1646, abriu-se caminho paira. . ' ' ’
ü f ' ufaa etapa de desenvob /imento capitalista na agricultura que^ soma­
da à expansão comcrciial, assentou as bases que fariam possível a
ec losão da revolução in dustrial, um século mais taide.1

■ * É dificil sintetizar as p olêmicas produzidas em torno da revolução ingli;-


sa, desde que, no comei ;o do século XDC, ocorreu a Thieny e Guizot con i-
pari-la com a francesa c lo século XVTII. Os historiadores acadêmicos britâ­
nicos repudiaram indigi nados a comparação, Para começar os franceses e
eles filiavam de duas revoluções distintas. Enquanto que, para Guizot, á r e ­
volução começava em 1 640 e terminava em 1688 - veja-se, por exemplo, a
lição 13 da sua H istoria cie la civilización en JSumpa, Aliamja, Madrid,
1972, pp. 287-306 -, par; i Macaulay só teria havido revolução em 1688, po r
onde começava a sua H istória eia Inglaterra. Pèlo que se refere ao ocorri­
do entre 1640 e 1.6 60, a maioria optava - e continua optando atualmente -
"por negar todo conteúd o social aos fetos, reduzindo-os a uma querela reli i-
giosaou a uma "luta de i déias“.Mais sutilmente, um cultuador da social bis~-
tory, Lawrence Stone. tenta desfiizer toda ilusão de luta de classes na Ingla.-
terra.do século XVII c a substitui por este estupefeciente princípio socio-
histórico: "Uma forma m ais frutífera de ligar a mudança econômica c socia 1
à revolução é fezê-lo através da teoria dá inconsistência de statiis, que sus
tenta que uma sociedade com uma proporção rclativamente grande dt
pessoas experimentando uma alta mobilidade é provável que se encontn
numa situação de instabiilidade" (L. Stone, The causes q fih e English Revo
tution, 1529-1642, Routledge "and Kcgan Paul, Londres, 1972, p. 54), Ot
seja, se há pouca estabili dade - na medida em que haja muita mobilidade ■
é provável que haja insta bilidade. Maravilhoso descobrimento què abre no­
vos horizontes às ciências sociais! Lastima-se que sirva"pouco para enten­
der, pór exemplo, por q u e Wmstanley c ôs dlggèrs lutavam contra a pro­
priedade privada da tem i. No pólo oposto, tem-se que situar a obra de his­
toriadores de inspiração marxista, como Christophcr Hill, cuja obra se cita

>• -
capítulo 4

Porém, nos enfrentamentos que ocorreram durante esses


vinte anos, mão só vieram à luzais apirações em conflito da aristo­
cracia ffeüdal e da burguesia, como i também as de outras camadas so­
ciais que sonhavam em leviar a re volução por outros caminhos, de
acordo com as siias próprias neoessidades. Seus inimigos os acusa­
riam, ao me; ;mo tempo, de lieresiia cm matéria de religião e. de ter
propósitos "i niveladores“: de prete: nder a partilha igualitária de todos
os bens. Port :m, a verdade é que h avia entre eles grandes diferenças,
que iam desde as propostas dos setores mais moderados - campone­
ses e artesão >s, pequenos propriet: írios independentes, a quem o pu-
ritanismo haivia ensinado a pensar por si mesmos -, que não preten­
diam muito mais que evitar os atmsos do capitalismo (como. a pri­
vatização díis terras comunais, e:m prejuízo dos camponeses po­
bres), até òs mais radicais dos dig} jers, que fundaram colônias comu- -
nitárias,'zombaram da rêligiào estabdecidá e tinham bem claro qiie
á batalha qü e pretendiam ganhar era á qüe_cstavã se dando entre "a
propriedade: por um lado" e "a còmunidadé por outro". Homens-
comoWinst anley, que denunciava que a propriedade privada da ter­
ra havia se e:stabelecido pela violência - "o poder de cercar a terra e
possuí-la en kpropriedade foi traz: ido à criação por vossos antepassa­
dos por me io da espada"-, que c onsiderava que a crença no céu e
no inferno c ra purã superstição ie que "à eliminação das classes so­
ciais e da propriedade privada era necessária,(e suficiente) para eli­
minar a injustiça e as suas consecjüências". Homens que apontavam
com os seu s programas, não para um mundo como o que criaram
os vencedo res, que é o do capitalismo, mas sim para uma sociedade
diferente, igualitária e justa, que haveria de ser, nas palavras de Hiil,
"algo muito rijais nobre, algo que: ainda não alcançamos".2
Burguesia e aristocracia p erceberam o perigo que havia nes­
sas formula ções radicais e se uniram para combatê-las.Os vencedo­
res deram-s e conta de que era n iais fácil ganhar uma revolução do
que consolidá-la,impedindo que fosse mais longe, e os vencidos en-

repetidai nente neste capítulo. Uir ia boa síntese da historiografia da revolu­


ção se et icontrará no livro de R.C . Richardson, The debate on the English
Revolution, Methuen, Londres, 1977. Uma apresentação dos debates mais
recentes está em C. HUI, "Parliament and People in Seventeenth-Century
England", In Past and present, no. 92 (agosto de'1981),pp. 100-124, que
pode aju dar a veneer a confusão causada por obras em que o detalhe im-
pUca á p erda da perspectiva, com o a dc Anthony Fletcher, The outbreak o f
the English C ivil War, Edward Armold, Londres, 1981. '

80
cap italismo e história: a ei scola escocesa >. ' \i

ten'deram què valia a.pe na chegar a ura com promisso; já que, por
cim ia das querelas sobre:as formas de gòvemò, estava a necessidade
comum de defender as :>uas propriedades. Assim foi como se che­
gou i à solução pactada d e 1688, a essa "glorios a revolução" incruen­
ta, c }ue significava, na res ilidade, o final negod iado da revolução ini­
ciada em 1640, da qual todos procurariam escjuecensè a partir des­
se momento .Assim foi cc imo, entre 1688 e 17215, alcançou-se uma.si:
tua<;ão de estabilidade piolítica, que iria manucr-se longamente, ao
admitir Uns e outros um a ordenação cm que o rei governaria com
o consentimento dos senis súditos mais impe rtantes, dos "homens
de propriedade", ao mes mo tempo que limita va a participação das
das ses populares na vida.política, impedindo- as de atuar nos julga-
mei ítos na condição, de j iurados ou criava-se i im sistema educativo
desitinado a aumentar as diferenças entre os se tores extremos da so-
ciec lade e a consolidar, c< )m isso; unia Inglaten -a polarizada em duas
classes.’ . : ;
'' i;; Os Whigs, hêrdeir os da revolução, expi ressaram sua concep­
ção da sociedade n ateo ria do gbvertio civil d e John Locke (1Ó32-
Í70 4), que partia da idéia de que os homens tinham cedido voiun-
tarií unente a um soberan □ a liberdade de que j çozavam no estado de
nati rreza, porém não só piara que esse soberan o lhes garantisse uma
'prenteção pessoal - como havia-dito Hobbes no Leviathan, refletin­
do o medo e a inquietude dos anos da guerra civil mas para que a
sociedade política e õs legisladores cumprissem com a missão fun­
damental de "salvagi!ard:u ãs propriedades de: todos".AO sustentar
esse: propósito do contrato social numa interpretação histórica, da
passagem do estado natural ao das sociedades organizadas,podia-se
encobrir o Êito de que a monarquia limitada <era- uma das conquis­
tas alcançadas pela revolução, fingindo que-nião se tratava mais do
que uma volta ap passado, a umas antigas tradições de liberdade
pen iida quando a invasã o da ilha impôs aos anglo-saxões_o "jugo
non tiando". A essa conc epção da sociedade civil corresponderia
um: i nova noção de projf >riedade privada, que se definia como um
direito absoluto e exclusivo sobre ás coisas e hão cómo uma' par-
ticij laçâo nos resultados ie sua produção; é qui e se contrapunha tan­
to à idéia de propriedade: compartilhada do feudalismo (à multipli-
cida de de direitos sobre t im mesmo bem, e en i especial sobre a ter­
ra), <como às aspirações c omunitárias dos radicais. Em estreita asso-
ciaç ão com estas mudanç as estão as experimentadas nas atitudes re­
ligic isas e no pensamento científico. Se o universo de Newton refle-

81
capítulo 4

tia a imagem de uma comunidade humana hierarquizada, regida


pelo interesse individual dos hon aens, as propostas rei igiosas dos lar
tifudinários - nome com o qual se designava os antigos puritanos
que se haviam acomodado à igreja restaurada - conhdbuíram para
fundir ciência, religião natural e c;oncepção da socieda ide, até tomar
a economia de mercado como ailgo natural, que traduzia na esfpra ■
humanã o funcionamento das íe is do cosmos/1 .
Esse complexo de idéias, entretanto, só tinha plena validade
para as classes dominantes, pam os "homens de pròjpriedade", po­
rém não era compartilhado pelos amplos setores "quis haviam fica­
do à margem do compromisso ontre burgueses e grandes proprie­
tários, entre w higs (antigos revo lucionários) é toriés (antigos realis­
tas). Há tuna tensão popular que: mostra que não exüstè, juntou es­
tabilidade política, uma estabilidlade soda}.E essà tensão não surge ■
da luta dos destituídos contra, ois proprietários - como-sustentavam
estes, com o fim de isolar os deacóntentes e obter o apoio dos que
acreditavam ter algò a conservai: mas sim'do cnffen tamento entre
as notas formas.de propriedadiE burguesa e as conc.-epções a que
continuava ligada à vida camp onesa, cujos hábitos comunitários
confíitavam com o capitalismo t rrescente que invadia agora os cam­
pos ingleses, "O que estava fren' qücntemente em jogo - assinala E.P
Thompson - não era a propriedade, defendida pela lei 1, contra a não-
propriedade: eram definições all temativas dos direitos; de proprieda­
d e"^ repressão teve que endurocer e os delitos cont ra a proprieda­
de - isto é, contra as novas form; as burguesas dela - fòi ram castigados
com uma dureza até então desconhecida. Porém a repressão não
bastava. A lógica do capitalismo devia ser inculcada aos que não
eram seus beneficiários diretos: fazia-se necessário ellaborar uma vi­
são do mundo que pudesse ser universalmente aceit a, inclusive pe­
los pobres e pelos explorado;;, a quem se ofereceria um futuro
cheio de promessas em troca d o seu conformismo com o presente.-
A tarefa de construir es ta nova visão do nu.indo a levou a
/ cabo, em boa medida, a escola i histórica escocesa. Começou com
uma investigação sobre o entendimento humano, p rosseguiu com
uma reinterpretação da história e acabou cnstajizándlo numa econo­
mia política. Isto é, partiu de um projeto de p recisara lógica das
ações humanas individuais,* continuou com a dos homens unidos 1
em sociedade c, uma vez que havia legitimado dessa forma a socid-
* Não posso ocupar-me aqui do s trabalhos que à teoria ■do conhecimento
humano dedicaram Hobbes, Loc ke è Hume, porém conví ;m insistir-em que

82
capitalismo e história; a escola escocesa

da de existente, limitou-se a oferecer uma tec nologia db desehvolvi-


m< mto econômico,'que haveria de bastar pai ra assegurar d progre s­
so futuro, sem necessidade mais de révoluçõ es.Á parte central des­
sa visão era, preedsamente, a sua concepção: da. história: uinà coi 1-
cej pção que apresentaria o curso dá evolução do homem como um a
ascensão até o capitalismo, e quê se prolong aria numa projeção a o
futuro cm que o desenvolvimento econôinla d- entendido de forro a
qu e_exclüina qualquer outra, via de crestiàei Uto qúe riap fosSe a p i-
pit alista - permitiriã satiifazer as necessidades: e as aspirações da hi i:
ma inidade inteira.'6 ’ r. .
A preocupação pela história não era àl lheia a nenhum deste s
hoimens. Francis Bãcon (1561-1626) "tinha já destacado a importân­
cia dé um tipo de história civil, concebida mu ito à maneira dosDwr-
coi si de Maquiavel, como instrumento para a áçãq política. Hobbe s
tenitoU no Leviathcmvtma "História racionaiií ada" de um co rp o 'p o
Iítii co, e Harringtoh ( 1611-1677) trouxe com Õceana idéias sobre ;a*i

tais investigações formaram parte do projeto glo! bal de formulação de um a


nova interpretação da lodedade. Joyce Oldhar n Applcby assinalou qui:
. conceber a vida econôurica como parte da orden a natural das coisas exigi: a
estabelecer "uma. pauta consistente da conduta i ímrtana" Não poderia há-
" ver análise científica da economia, se não se pude ssem verificar determina
das regularidades na forra de entender e atuar d< )s seres humanos 0-O.Ap -
plehy, Economic tbought and Uieology in sever, \teentb-century England',
Princeton University Press, Princctoh, 1980, p. 2 47). Por outra parte, essa
análise científica da m eitc era coerente com as i idéias dominantes; "O pú - ’
blico burguês do século XVin pedia a seus filósc ifos que nos mostrassem,
dando voltas nas nossas cabeças, sistemas píanet ários em modelos reduzi -
dos, concebidos à maneira dos,de Newton: ponte >s materiais ou molécula;:
psíquicas, elementos indvisíveis. vinculados cntr<: si por. um sistema finito
de leis exterior a eTes”0-P; Sartre, El Idiota de la famlliá, Ticmpo contem -.
poráneo. Bóchós Aires, 1975,1, p. 77). O que esta1va de acordo com as ten -
dências de uma fisiologii mecanicista, que busca; /a inspiração em Nerwtoei
ç que se uniria em Hartley com a teoria do conhe dmcntó humano de Ldc -
fcc para fundar uma psicologia fisiológica.ORobért e . Schof\eAd,Aiecbanls»i‘
Iand materlalism. btitsb naturalpbllosoplry in . an. age o f reáson, Price- ■
• ton University Press, Princeton, 1970, p. 198).A'i soerèncta dessas "teorias:~
ida mente humana11 com á visão da sociedade foi esquecida uma vez que,
itendo triunfado plenamentc a burguesia, aposent ou parte das armas ideo- ■
Ilógicas que lhe tinham dtdo a vitória e "restaurou sobre o altar da Razão as:
’ verdades eternase o espiritualismo inais Vulgar"(I ilafarguejd ea de lajus-
iHciay dei bien. Su origen, Presa, Barcelona, s\d, j ). 18).A isso sé deve que
' ILocké ou Hume sejam estudados hoje como. "fili ósofos", ignorando os-as­
pectos mais terrenos e comprometidos das suas c >bras, do que as suas filo-
■wfias não podem separarse Sem ò risco de torna rem-se ininteligíveis.

83
capítulo 4

relação entre distribuição da terra e estrutura do poder, què repre- -


sentavam ui n estímulo pata Se pensar a história em relação com a
situação ecc mômica. Locke, finalmente, rechaçava o típ to de História-
que se cons; agrava a cantar os feitos dos conquistadore s, "que na sua
maior parte são òs grandes carniceiros da humanidade' -',porque ten­
dia a ensinar aos jovens "que o assassinato é uma das atividacfts lou­
váveis", por< ;m queria, em contrapartida, outra classe d ehistória, de­
dicada a esitudar as origens e os fundamentos da soiciedade, para
ilustrar o co nhecimento da lei civil, e a situava entre as matérias que
"um cavalheiro não deve tocar ligeiramente, mas sim estudar còns-
tantemente". Está claro que o que se rechaça é a história glorifica-
dora dos fidalgos e das monarquias,consubstanciai corn a economia
política do absolutismo,e o que se pede,o gênero de análise do pas­
sado que sii va para racionalizar, as instituições da socic idade burgue­
sa. De todo modo, as primeiras formülações de um ia concepção
whig da his tória, e em especial as de Paul Rapin, limitavam-se a glo­
sar o mito dla velha constituição anterior ao jugo nonn iando e. a can­
i
tar a sua rec zupçração. Q verdadeiro fundador de uma <zoncepção dc
acordo com o que Locke pedia foi Hume.7
David Hume (1711-1776), de uma família da pe quena nobre­
za rural esc ocesa, de pouca fortuna, publicou aos vinite e oito anos
de idade ò Tratado da natureza hum ana (1739). nual recebido e
que começ aria a concretizar a sua fama de ateu, aum entada com a
Investigação sobre o conbechnento hum ano (1748) e sua Investi­
gação so b fe os princípios da m oral (1751), que ele considerava
"sem comparação, o melhor dos meus escritos"..A reprovação dos
meios bera-pensantes impediu-o de alcançar uma cátedra universi­
tária, porérri foi,nomeado diretor da biblioteca dds zadvogados de
Edimburgo, o que lhe proporcionou os meios matéria ds e a tranqüi-
lidade necc issários para escrever a sua obra mais ambi ciosa, a Histó- '
ria da Inglaterra (1754-1762), recebida a princípio c om protestos,
mas que acabaria convertendo-se na versão estabelecida, até que a
substituísst ; nessa função a de Macaulay, um século msds tarde,e que'-
chegou a c zonhecer mais de setenta edições até o fi nal do século
XDÍ, sem c ontar as traduções para outras línguas. Po uco antes, em
1752, havistm aparecido os seus Discursos políticos, aos quais nos
referiremo!. mais abaixo. Pouco a pouco, esse homenn, que não era
nem tory n em urigh e que não havia se dobrado a nad à, acabou con­
quistando a fama e o êxito.Viajou para a França, onde os ilustrados
o receberam entusiasticamente, desempenhou diversos cargos di-

84
. cap italismo e história: a escola escocesa

pló: máticos e viu melhorar a sua posição e a sua fortuna. Os últimos i


quatro anos de sua vida passou-os com "o mesmo árdor pelòcstu-
do que sempre senti e a mesma alegria pela companhia de Outras:
pes soas", mesmo sabendo-se vítima de uma enfermidade incurável;
moírreu "com a morte de um filósofo", contrariando aqueles qiie es--
per: ivam yê-lo caído no desespero, a esse ímpi o que tinham tentado
exc omungar. As análises acadêmicas costumai m apresentar-nos três -
ou «quatro Hunves distintos, sem relação alguma entre si.-Primeiro
vent o filósofo, depois o economista - do qúai tem-se feito valoriza­
ções hiperbólicas - e, ém último lugar, o histoiriadòr: aquilo em que
trabalhou mais e pelo que o consideravam -os Seus contemporâ­
neo s. Esse esquartejamento é disparatado, já qi re filosofia, economia
e hi stóriá formam um todo na obra de Hume, cientista social. Basta
ler o s textos introdutórios do Tratado da haV urezahuinána pára
dar- se conta de que crê numa ciência global do homem,'"a única
fun< lamentação sólida de todas ás demais", qui; abrange desde a "ló­
gica - a matéria d e que ele sabia-se ocupado m ds seus estudos sobre
:ò entendimento - ate a política, definida como a ciência "que consi­
derai os homens enquanto unidos cm sociedade e dependendo uns
dos outros”. Ou continuar nesse mesmo livro até a seção dedicada
à "Origem da justiça e da propriedade", forte mente carregada de
preocupações históricas,® - •' - -
A contribuição mais original de Hume a o campo da teoria da
hist<iria - a que faz dele o. verdadeiro fundador •da escola escocesa -
encontra-se já nos seus Discursos políticos. ÍHiime parte de uma
consideração dás etapas do desenvolvimento humano que apare­
cem estreitamente ligadas às atividades econônrúcas. A primeira fase
foi a do selvagismo, em que os homens se dédi Içavam unicamente à
caça. e à pesca. Daí saiu para passar a outra, em. que cresceram desi­
gual mente a agricultura e as manufaturas: um a economia de base
agrária, semelhante à que dominava na'maior parte da Europa do
seu tempo (e Hume fará uma série de considerações inteligentes,
sobr e o peso dos fatores climáticos e políticos no desenvolvimento
econômico, convencido de que o absolutismo engendra a pobreza,
porçim também de qüè a liberdade por si só não basta para engen-*
drar o crescimento). Dentro dessa sociedade., o" desenvolvimento
econômico bàseia-se na divisão do trabalho e n; a articulação do mer­
cado. Numa primeira etapa, estes mecanismos : miam intemámente,
na b ase dq intercâmbio dos excedentes camponeses pelos manufa­
turados locais. Logo, entretanto,o comércio exterior e ò luxo resul-

85
capítulo 4 .

tatão detci -minantes para acelerar a produção. Á atr; içaó dos obje­
tos novos levados pelo comércio distante incita ao s poderosos a
consumir mercadorias que seus antepassados des< lonheclairi; os
grandes benefícios desse tráfico incitam a outros comerciantes á en­
trar na competição e, finalmente, a indústria locaiprocura imitar es­
ses produtos de fora, para os quais há um mercado -vantajoso,.Esse
modelo é usado como padrão que dá conta dò prog resso humano.
Assim, diante daqueles que supunham que o planeta podia ter esta­
do mais densamente povoado que no presente, Hum e arguméntava
que, já que o comércio e as manufaturas eram mencis florescentes,
disso haveria que deduzir-se que também estava roais atrasada'a
agricultun i, necessária para a subsistênçia humana ,e condicionante
do tamaribo da população Fectía o raciocínio cóm uim ato de fé rio'
progresso engendrado pelo capitalismo: .’ ^

Todlas as coisas que nestes últimos tempos forami descobertas ou


ape ffeiçoadas não contribuíram por acaso para to m ar a subsistên­
cia do homem mais fácil e,com Isso,a sua proliferação e aumento?
A n ossa habilidade superior nas artes mecânicas, (> descobrimento
d e : novos mundos, que aumentaram tanto o com éi 'do, o estabelcci-
me nto dos correiqs c o uso das letras de câmbio: tudo isso parece
ext remamente útil para o estímulo das artes, da indústria.c da po-
pul ação. Se.o abandonássemos de repente, quant os danos aconte­
ceriam em toda classe de negócios e trabalhos! Q ue número enor­
me de famílias pereceriam imêdiatarnente de necessidade e d e
fonte! Não parece provável que nenhuma outra iinstituição pu or­
d em poderia preencher o vazio dessas novas invíinções.

Nestas idéias encontra-se o essencial da escol a escocesa, e de


nossas próprias concepções sobre o progresso. Huime morreu,em
1776, o naesmo ano em que apareceria a primeira edição de A ri­
queza deis nações, onde Adam Smith o citava com o mestre c ajm-
go, e em que se publicou o primeiro tomo da Decaidência e queda
do ímpéiHo romeino, de Gibbon, que Hume leu e soube apreciar;
como sabemos pelo seu autor, a quem visitou em Londres, pouco
antes de morrer.5 " .
Eélward Gibbon (1737-1794) era defkmília bem colocada, o
que pemoitiu-lhe dedicar-se ao estudo sem maiores preocupações.
Uma fugíiz conversão ao catolicismo - experiência (semelhante à de
Bayle - custou-lhe ser expulso de Oxford e acabou despertarido-lhe
uma atitude crítica cia religião. Enviado por seu pa^ao continente,
recebeu ali uma educação ampla: suas abundantes !leituras incluíam

86 '
capiitalismo e história: a escola escocesa

■os aiutórés latinos e gregos, uma boa parte da literatura histórica do-
seu tempo e os teóricos das ciências sociais, como Lpcke,Montes--
y quhm.Hume eVoltaire.* "Foi em Roma, em 15 de outubro dé Í764,
meditando entre as ruínas do Capitólio, enquanto os Frades descal­
ços cantavam as vésperas no templo de Júpiter, quando me veio
pek i primeira vez â imaginação a idéia de esc :rcver a decadência e
. quç da da cidadcVComeçou a tarefa em 1768 ê o primeiro voliime
da 1 Decadência e queda do Im pério rom ano apareceu, como já se
. diss e, oito anõs depois. Seu êxito foi imediato, a ponto de esgotar-se
três edições em pouco tempo. "Meu livro - diiá Gibbon - estava em
tod: is as mesas é em quase todos os toucadon ;s". Os cinco volumes
rest antes iriam aparecendo até 1788, prolon gando o relato até a
que da do Império do Oriente, nos albores dos tempos modernos.A
fort úná do livro se deve em boa medida à mes tría de. Gibbon çomo
esci itor; porém o vajor perduíável em sua obr a tçm-se que buscá-lo
em outras razões. Fól o primeiro qüe acertou i ria reunião das con­
cepções teóricas dos "filósofos" com o trábalíio dós investígadorès
eruditos tradicionais: qúe aplicou á mentalidade do século XVm ao
saber do XVII. Úm historiador da antiguidade como Finley afirmou
que seú livro foi "a primeira história moderna de qualquer período
da antiguidade (e provavelmente á primeira história tout cpurí)''.'0
Na obra de Gibbon, a consideração da decadência de Roma
afasi ta-se dos tópicos usuais e se vê confronta) da com uma visão do
projjresso econômico, de clara raiz britânica, que aparece como vx-
gor< )so contraponto. No texto de excepcional:interesse, no capínüo
38, Oibbon detém-se para considerar as causias; da ruína do Império
do <Dcidentc, e nos oferece um esquema, do progresso humano a
part ird o selvagem primitivo, "nu tanto de mei utè còmo dé corpo é
privado de leis,artes,idéias e quase sem linguíigem", numa situação
que deve ser "o estado primeiro é universal do homem"! A partir
dessie ponto, acompanhamos a sua ascensão "mandando nos ani­
mal'>, fertilizando a terra, atravessando o-ocean o e medindo os
céu!s’\Tal progresso foi irregular e variado, e e m muitos momentos
tem -se visto fases dq queda que pareciam pô-lo êm perigo. Porém, a

* "O Tratado dó governo, de Locke, instruiu-mi; no conhecimento" dos


prindpios^frígs, que.se acham fundados mais nu razão que na experiên­
cia; porém meü deleite residia na frequente leltii fa de Montesquleu, cuja
c :ncigia de estilo e audácia nas hipóteses tiveram f orça para despertar e és-
t imular o génio da época" (E.Gibbon, Áutobiog rapby, Librãry, Londres,
_ 1 932, p. 72)
capítulo 4

experiênc ia global da história revela ç(ue "nenhum povo, a menos


què a facc: da natureza sê modifique, voltará a cá írn a barbárie origi-'
nãl”. Gibbon n ãose contenta, entretanto, em expressar sua fé no
progresso humano, distingue entre os avanços devidos aos indiví­
duos geniais - como os poetas.ou os filósofos ò s : que devem ser
atribuído;; aos grupos Ilustrados da sociedade - com o os da lei e da
política, das artes, das ciências, do comércio, e tç.- e àqueles outros,
mais elementares, porém muito mais decisivos pant a subsistência
dos homtms.que são apreendidos pelo conjunto d a coletividade e
conservados na prática desta.

- Cai da povoado, cada família, cada indivíduo deve possuir sempre- a


hai aüidadc e a inclinação para perpetuar p uso d o fogo e dos me­
tal; 5; a propagação e o serviço dos animais doqiési ricos; os métodos
de caça e pesca; os rudimentos da navegação; o cultivo imperfei­
to -do trigo e de outros grâos nutritivos, e a simpli :s prática dos ofi-
• c io s mecânicos. ;•

O gênio individual ou os avanços dos grupos; mais ilustrados


podem extinguir-se, como aconteceu com as leis c: os palácios de
Roma, ”p orém essas outras plantas, resistentes, sobrevivem à tem­
pestade e: fincam uma raiz perene no solo mais desfavorável". Q uso
da foice para ceifar anualmente as colheitas consér vou-se e desapa­
receram os costumes bárbaros das tribos itálicas primitivas. São es­
tas artes 1básicas, ligadas à subsistência do homem, a is que formam o
autêntico motor do progresso humano. Difundidas pelo comércio,
pela guei Ta ou pela pregação religiosa, estenderam-; se por toda a ter­
ia e "nun ca se perderão". A lição final que surge dessa considerarão
sobre a decadência de Roma é inequívoca, própria do homem qué
aprendeu com Hume e foi influencia'do posteriòrrnente por Adam
Smlth: "Fbdemos chegar à agradável conclusão de que cada idade
do mundo tem aumentado, e segue aumentando ainda, a riqueza
real, a felicidade, o saber e talvez a viftude da raça humana"."
Essse economicismo de Gibbon - expresso numa dimensão
máis am.plá, menos superficialmente mercantil, que em Hume -
enquadra-se perfeitamente bètn.com a siia aceitação da ordem esta­
belecida na Grã-Bretanha e, conseqüentemente, com a sua hostilida­
de poste :rior à Revolução Francèsà. Pensar que a suã condenação
dos revo lucionários signifique uma viragem na sua forma de enten­
der a sociedade, como sé disse muitas vezes, é compreender muito
mal os fi andamentos mesmos dessas concepções, nascidas da expe-

88
ca pitalisnio e história; a escola escocesa

riílncia de uma revolução e destinadas a criar a convicção de que


qualquer novo intento revolucionário seria iuma loucura insensata.
Vinte anos antes da eclosão cia Revolução Fnincesa, Gibbon discut ia
en 1 Paris com Mãbljí atacando a idéia de urn governo popular e d e-
feudendo a monarquia. Mostra-se hostil a qiif dquer reforma do siste-
mii político britânico, troveja em suas cartas <contra as "loucas idéias
só bie os direitos à igualdade natural dos hòr nens", e expressa nelí ts :
ídóias sobre à Revolução Francesa que antecipam surpreendente-'
mente o que dirá Burke posteriõrmente: peinsava que os francesr *s‘
de veriam ter-se contentado "com unia tradução literal de nosso si s-
tenía" (o britânico) e denunciava, antes de tudo, o confisco dos'bens
do Iclero "que golpeia a raiz de toda propried ade”.Tudo isso era pe r-
fei tamente coerente com as concepções da : sociedade e da históri la
qu e sustentava, de modo ique é desnecessário supor-se algunua
fornia de apostasia-ou de conversão.“ ~ 1
As concepções da escola escocesa foi ram divulgadas, depóiis
de Hume e antes de Smith, por. dois autores que contribuíram müito
pa ta. a sua difusão, porém que contribuíram pouco para o seu enri-
quecimento. Adam Ferguson (1723-1816), que sucedeu a Hume
com o conservador da biblioteca dos advogados e foi professor d e
filosofia moral na universidade de.Edimbufgo. Publicou, em 1767, o
Ensaio sobre a história da sociedade dvtil, onde a passagem da
barbárie à civilização apresenta-se condicionada pelo processo d e
dhfisâo social do trabalho, e onde 2 propriedade privada e as inst l-
tuições do governo civil aparecem relacionadas com as etapas d o
cr<rseimento econômico.William Robertson ( 1721-1793) contribui u
paira a divulgação das novas, concepções .com a sua História do im ­
p era d o r Carlos V (1769) que começava .coió i, uma extensa introdu­
ção - U m a visão do progresso da sociedade na Europa" -, onde s è
mostrava a'semelhança da "situação política" idas tribos indígena^ da
América do Norte com a dos antigos germanos e afirmava que "a
me-.nte humana, seja donde for que se a coloq ue na mesma situação,
%■■■. nas idades mais afastadas e nos países mais distantes, assumirá a
mesma'fornia e se distinguirá pelos mesmos; costumes" 1Com essie
tex to e com a sua História-da A m érica, Robe :rtson converteu-se ni d
ï i ’- T ■ ex] portador de uma visão um tanto triviãlizadía da teoria dos quatro
est ados e alcançou um êxito considerável na Europa. Porém parece,
fora de toda dúvida que foi um simples plagiário de Adam Smith <e
quis não acrescentou nada às idéias que divulgava, de modo que não
m erece maior atenção.11 ; . ' . '. ■

' 8Si
capítulo 4

A figura mais importante da escola é, p o r muitas razões,


Adam Smith (1723-1790), que foi professor de filoso fia moral em
Glasgow e comissário dè aduanas em Edimburg. Foi amigo de
Hume.como jã se disse, e relacionou-se comVolíaire,Turgot e Ques-
nay. Sobre o seu pensamento.exiiste uma massa enorm e de estudos,
que costumam considerá-lo comc > um economista, o q ue é um erró.
Em A riqueza das nações Smith: Sintetizou a concepçã o ivhig da so­
ciedade - on.de a defesa da propriedade aparece comei fundamento
da ordem civil as idéias históricas de Hume e a fiíiica social de
Montesquieu, situando no cento a da- sua construção uma concep­
ção do progresso de caráter econômico, que nòs mostra a evolução
da humanidade - - • .L

com o atuándp através dê qu atro'estados sócioecon .ômleos conse­


cutivos, cada m » dos quais baseando-se mim "modo de subsistên­
cia" particular:caça,pastoreio,agricultura e com ércio.A cadáesta-
do correspondem diferentes j idéias e instituições sob re a projprie-
dadé e o governo, é em rcla<;ãò a cadau m deles po<de-se fazer afir­
mações gerais sobre o-estádio dos costumes e da rnoral, do exce­
dente social, do sistema lega I, da divisão do trabalhe, e assim suces­
sivamente.11

O que temos é, por conse guinte, a combinação de uma visão


da história como ascenção da barbárie ao eapitallsmo, um-programa
para o pleno desenvolvimento d este - dentro de um marco do libe­
ralismo econômico, com um sistema político que garanta o respei­
to pela propriedade privada - e uma antecipação de um futuro de
prosperidade e riqueza para-to dos.* Não tem sentkiq discutir-se
Smlth compreendeu ou não-o 1Fenômeno da revoluç rã o industrial,
que achava-se então nos inícios; o que importa é que icompreendeu
o capitalismo e que, pelo caminho que assinalava, ia .-se inevitável- .
' mente à industrialização moderna.1’

* Gomo disse Hobsbawm: "A.riqu eza das nações deAdani Smith deve ser
lida antes de tudo - como fizeram seus contemporâneos - c omo um manual
de economia do desenvolvimento >,escrito numa época em que o desenvol- :
vimento só poderia ser capitalists! O que o autor tratava d e fizer, era iden­
tificar a natureza do processo histórico que conduz ao des envolvimento, ò 4
:

caráter dos obstáculos que se op õem a ele e ás condições que permitem


superá-los" (EJL Hobsbawm, "Capltalisme et agriculture: lies reformateurs
écossais au XVHIe siède, in Anna les, 33,1978, no. 3, pp. 5130-601; a citação
in p. 581). ' *

90
capitalismo e história; a escola escocesa

; ... - . : Uma visão economicista como a de Sn lith elimina deíibera-


• dam.cfite toda referência às transformações po líticas, que aparecem
~ com lo uma conseqüência do processo do dcsi envolvimento econô­
mico. Isso pode ajúdar-nos ã explicar por que Â1riqueza das nações
pôde ser interpretada como um mero tratado <de teoria econômica.
Éxtràir do seu interior a concepção da história. que a inspira - e qüe
scrv e de/undamentação última às suas propôs ;tas econômicas - nos
servirá paia valorizar melhor o seu álcance e j iara descobrir aidéia
de s ociedade'que propugna.16-. : . '• n"
•' Ilido começa com a época em que os iiqmens eram caçaÜo-
■ res <; coletores, "como as tribos nativas do No rte da América", e vi-
vian i de maneira igualitária, sem distinções de r íascimentò ou de fõr-
tuna ., sem soberanos nem comunidade prqpri: imènte dita. A segun-
~ da'e tapa inicia-sé quando, os homens trarisfon iiam-se em pastores,
" ' com o os‘ árabes e os tártaros. Nessa fase comei ;a a desigualdade das
forti mas e, para prescivá-la, introdúz-se "autc iridade e subordina-
. ção". Os ricos“necessitara do governo civil para defender os seus
bem s, e os menoslricos assòciaih-se a eles para i qüe os ajudem a con-
servar os seus. “O governo civil, na medida em que é.instituído para
a de fesa da propriedade, é na realidade instituí 'do para a defesa dos
ricos contra os pobres ou dós que têm alguiru i propriedade contra
os q ue não têm nenhuma". Eis aqui como, apci ias transitado da bar­
bárie à Civilização, nos defrontamos como está é identificada com a
- cotu :epção'w hig da sociedade?17
Da &se pastoril passámos à agrícola e o modelo faz.se então
mais complexo, Há uma ordem lógica do d esenvolvimento que
deve: iniciar-se com as relações campo-cidade, cóm o .intercâmbio
. de p rodutos agrícolas por manufaturas. Numa etapa ulterior desse
proc:esso'de crescimento pode-sé passar já ao i roméfcio.internacio­
nal. 1Essa é "a ordem natural das cojsas"; tal con io deve ter aconteci­
do "em cada sociedade e em cada país".* Só qu e na Europa a evolu-

* "De acordo com a ordem natural das coisas', porta nto, a maior parte do ca-
p ital de cada sociedade em crescimento é dirigidt >, primeiramente, para a
aj incultura c, finalmcnte, ao- comércio exterior Ess a òrdemde coisas é tão
n aturai que foi observada em certa medida, segucu do eu creio, em cada so­
ciedade e cm cada país. Algumas de suas, terras dc-.vem ter sido cultivadas
at ates de que pudessem estabclecer-sc cidades cor isideráveis, e alguma cs-
— p écie de manufatura de tipo primitivo deve tpr-sic: desenvolvido antes de
q ue se pudesse pensar em empregar-se no comei cio exterior" (A Smith,
A n inquiry intó the nature anda causes o f the W'eaítb o f natíons, m , 1).
capítulo 4

ção produziu-se dé maneira diferente, tal como havia notado Jhime.


Aqui o primeiro estímulo surgiu no meio de umà agrii cultura feudal ■
atrasada, su bmétida à rapacidade dos senhores, dado o apetite por
objetos de lluxo por parte da classe dominante, que levou a estimu­
lar diretamente as manufaturas - sem que o avanço deitas se baseas­
se, como deveria ter sido, no progresso paralelo da agricultura .-e o
comércio exterior. Este fenômeno-não é bom para c> crescimento
econômico, que resulta assim maisdento e incerto do que teria sido
se seguisse a sua ordem lógica,* porém teve, em conti npãrtida, uma
conseqüêmcia política importantíssima A sede de luxo dos senhores
levou-os a s acrificar os meios com.que mantinham a si ia autoridade,
. e o resultado disso foi uma revolução "silenciosa e insensível" que
acabou üqílidando o feudalismo. Senhores e comerciantes levaram
a cabo, assim, "uma revolução da maior importância para a felicida­
de püblicà'’, sem que nenhum deles a houvesse proposto. Eis.aqui
como o progresso econômico engendra transformações sociais
mais transcendentes que as qüe alcançam os homens quando se su­
blevam contra os poderes estabelecidos:18 1 j
Postos já no caminho do pleno desenvolvimento do capita­
lismo, os descobrimentos e a formação de um merca do mundial ti­
veram umii importância decisiva: "O descobrimento da América e
da passagem para as índias Orientais pelo Cabo da Hoa Esperança
são os dois maiores e mais importantes acontecimentos registrados
na história da humanidade".Não, como se dizia em muitas ocasiões,;
pela chegada de metais preciosos é pela revolução dos preços,**
mas sim pela expansão do mercado, que suscitou a extensão da di­
visão do trabalho e a inversão crescente de capital, dois processos
que deverm marchar conjuntamente para que continue o progresso
e se conso lide "o sistema mercantil", o quarto e supremo estado da

* "Na ma dor parte da Europa, o comércio e as ntanufnuuji s das cidades, no


lugar de ser o efeito, têm sido a causa e a ocasião da mel! tora e do cultivo
do camp Essa ordem, entretanto, sendo contrária a o ' curso natural das
. coisas, é necessariamente lenta e incerta. Compare-se^ ieritro progresso
daquele: >países europeus, cujas riqúçzasdepende do set i comércio e das
suas manufaturas, com os rápidos avanços de nossas colônias norte-ameri­
canas, que baseiam-se na agricultura" (Smith, Weaítb o f natlons, 1 ,11, par-
te 3a.). -
** "Q~au mento da quantidade de ouro e prata na Europa,, e o aumento de
suas manufaturas e agricultura são dois acontecimentos que, ainda que te­
nham ocorrido quase ao mesmo tempo, nasceram de causas muito distin­
tas, e tí:m apenas alguma conexão natural um com 0'u outro" (Smith,
Wealtb tofnations, I; 11, parte 3a.). .

92
história:-a escola escocesa ; \ v

í * 1 *- •-_* .. *' > -. -ir ‘ ,


;ão humana: "o sistema moderno e que se observa em seu
grau em nosso país e em nosso próprio tempo“.29 - ''
G sistema mercantil ou seja o capitalis nio - traz emparelha­
dos 1ãenèfíciòs sem conta para a sociedade. O produto é tão grande,
que todos estão abuhdantemente providos: é uma "universal opu­
lência,que se estende aos mais baixos escalões do povo". Reduz as -
difet enças sociais, já que entre um príncipe e i im trabalhador eurõ-
fnuito menos distância do que a existente entre um traba-
e "um rei de uma nação selvagem". E se bem que seja verda-
á expansão do. sistema em escàlá mund ial não parece ter fà-
vore cido do mesmo modo aos africanos, asiáticos ou americanos au­
tóctones que aos jornaleiros europeus - Smith insistirá em que "um
yuigí ir jomaleiro nà Grã-Bretanha tem um modi o de vida muito mais
confortável que um soberano dos.índios"-, isso deve-se a que no
momento de entrar em contato com a Europa esses povos eram
mais fracos e puderam ser. submetidos e explorados pelos çufq- .
peus. Porém, o próprio capitalismo, na medida em que estende os
conf lecimentos e as melhoras por meiò do in tercâmbio, permitir-
lhes-á fortalecer-se e gozar no futuro dessa i universal opulência"
que Ihoje a Europa desfruta.20
Uma concepção semelhante induz a déb car nq esquecimento
o terreno da política, que aparece só marginaln rente.Assim, quando
Smitih assegura que o aumento da produção ina Eiiropa deve-se à
"queida do sistema feudal é ao estabelecimento dê mm governo quê
, cone ede à indústria o único estímulo que necessita: uma tolerável se­
gurança de que poderá gozar dos frutos do seu trabalho",pressupõe
que iisso se alcançou pela "revolução :silenciosa. e insensível", da na­
tureza fundamentalmente econômica, do que já falamos antes* Es-

* : Em algumas ocasiões a sua argumentação não res ulta plenamente satisfo-


tí iria. Por exemplo, ao folar da Polónia, "onde o s istema feudal continua
o dstindo", nos diz que "é, no presente, um país tão miserável como eia an-
te:s do descobrimento da América" (Smith, Wealth df natíons, I, 11, parte
3: i.). Como demonstração de que os metais preciosíos americanos não Bas­
ta ram para transformar a economia européia, o cas'0 polonês resulta interi-
ra mente válido. Porem, quando recordamos a fõfm a pela qual nos diz que
piroduzlu-se a dissolução do feudalismo na Europa, não podemos deisar.de
pierguntar-nos, por que não aconteceu o mesmo cia Polônia.Acaso os no-
bires polacos nãó foram sensíveis aos apetites de c onsumo de luxo, .como
o :; seus congêneres do Ocidente? E, cm tal caso, supondo-se que ali não
hi ouvè a revolução silenciosa, não seria lícito orgar lizar uma revolução po­
lítica, por ruidosa que fosse.com o fim de .eliminar, os obstáculos de,um re­
gi me que dificulta o presdmento econômico? ■ ,r->
capítulo 4

queceu-sc inclusive de que na. 1Inglaterra foi necessária uma revólu-


ção nada silenciosa para instalar uxn sistema de goverr 10 civil de acor­
do com os seus princípios. Qu ando enumera as cansas que obsta-
culizaram o crescimento econôm ico britânico, entre 1 6 6 0 -e
1776, inclui entre elas "as desordens da revolução", etn que pese .
o foto de que, pelas datas escolhidas, indiquem qut: só pode refe­
rir-se à "gloriosa", de 1688, dado que a fesé anterioir cai fora desta^
- periodização.1' ; <
Pòr trás de A riqueza d, as nações há, como f ;e vê, uma con­
cepção coerente da história que, por sua vez, impliica numa visão
claramente conservadora da sociedade. Se o progresso econômico
explica p or si só a ascensão do homem desde a época da barbárie
em que se dedicava à caça - ser n propriedades, sem <listinção de es-:
tratos, sem sociedade propriam ente dita - até a dvilútaçao e à rique-
■: za representadas pelo sistema mercantil, bastará aguardar a plena
culminação deste - nos momeintos em que o rumõir das máquinas
anuncia já o advento da revolução industrial - para ver como a pro­
priedade estende-se "aos mais baixos escalões do p ovo"e também,
com o tempo, a todos os povos explorados do mundo, na medida
em que sejam capazes de imitar os métodos de seus exploradores:
as regras que engendraram a ri queza das naçõcs.Toda ação política
que vá mais além do mínimo n<rcessário para preservar a proprieda­
de privada ou assegurar o funcionamento do sistema,é nefosta.*
Toda revolução é uma loucura. “
Por isso, quando a revolução aparece na França, e o seu
exemplo reavive as raízes latentes do radicalismo inglês, adormeci­
do depois de sua derrota no séiculo XVII, os homem; que comparti­
lham dessa visão da história t: da sociedade levan taram-se diante
dessa ameaça Gibbon fica contra os revolucionários franceses e
aprova o que disse Burke - o que implica na condenação dessa

„ * Convém advertir, entretanto, c|ue essas funções que se reservam ao Esta­


do são largamente importantes e requerem uma conside rável participação
ativa na defesa da ordem buig uesa, contra os descontt :ntes de qualquer
tipo. É exagerado considerar es sas misíões como resldu ais; isso c ò que a
burguesia pretendeu fazer crer que o capitalismo basea1va-sè num jogo de
regras "naturais" e eternas, acc itas espontaneamente p or todos, que po­
diam funcionar à margem dos nr íccanlsmos políticos. Por ém isso só era ver­
dade para os que aceitavam tais regras. Para assegurá-las, du para cortar
qualquer veleidade de destruí-la is, havia um complexo cc mjuntó de institui­
ções políticas novas, desconhet ddas pela sociedade feuc lai, desde os regis­
tros da propriedade até os dive rsos corpos de polícia.

94
eapi talismo e história; a escola escocesa ^ -
~ *— — 7 ...............' ~ — ----- r :— i..................... ........... .................. i . . ’ ' • - • -

mes tua ilustração que havià admirado nos seu s anos de juventude,
qüaiido ainda nâo previa ondepodla chegar. Ò próprio Burke não é
-senâip um político w big, tãó próximo a Gibbo a, que rechaça o "gq-
vermo democrático", como Adam Smith que condenava "às desor-
. den: > da revolução". Por fim, o pior do que lainçavam na cara dos
frãri' ceses era de que .estavam pondo em perig< o a inviolabilidade da
propriedade burguesa. :
Edmuhd Biirke (1729-1797) èra «im poli tico irlandês mais ou
men,os liberal, cujas opiniões sobre a economia eram muito próxi:
mas das de Smith - segundo ele próprio, Sraitlr reconheceria -, ain­
da q ue convertesse a "mão invisível", que harm onizava os interessès
indrriduais para maximizar o bem comum, na nnãp de Deus. Suas Re-
1 flexi Jes sobi-e a Revolução da França (1790) d>eram-lhe fama np seu
tempo e voltaram a dar-lhe na segunda metade: do século XX, quan-
; do õ s ideólogos clã "guerra fria" acreditaram vé r héie um precursor,
f a quem Se podia usar em apoio da cruzada antti-bolchcvique, o que
deu lugar a uma extensa literatura sobre a sua obra, dé escasso inte­
resse histórico, porém muito reveladora, quahidò põe a descoberto
as raízes de tanta erudição acadêmica, neutra c: desapaixonada;13
Burke,admitia que a organização sòcial fi ancesa tinha defeitos
- corno o de não dar o valor devido aõs "proprietários" -,pprcm pen­
sava que isso poderia corrigir-se com uma série dejeformas, como
í havii am feito os ingleses em _l688.0 mal era qúe: do outro lado do ca­
nal mão se havia seguido essa estratégia e as coisas estavam sendo le­
vada s de tal modo, que talvez resultasse difícil c letê-las a tempo, para
pôr a propriedade privada da terra protegida i das aspirações dos
camponeses (o que poderia despertar na Inglaterra os ecos emude­
cido: s das demandas radicais "da sua revolução), j Mais da- métad.e do li- •
vró dedica-se a dar voltas em-tomo desse problema.Tíida começou
com o confisco da propriedade eclesiástica, depreciando "a doutrina
da p rescrição"1,que sustenta que o simples desjfrute da propriedade
por :um tempo suficiente deve pô-la protegida das disputas sobre a
sua 1 egitimidade. Se se põe em dúvida a prescrii;ão, "nenhuma classe
de p ropriedade estará segura, enquanto se con verte em objeto sufi-
. cieni te,para tentar a avidez do pobre indigente". Os camponeses ne­
garão os direitos dos donos das terras que cülth'am e lhes dirão "que
a suc :essão dos que têm cultivado a terra é a aul .êntica genealogia da
propriedade, e não uns pergaminhos podres".13
Com essa defesa da propriedade privada contra azevólução,-
n ão! saímos do âmbito fixado por Locke - para c artiipar tocia basç de
capítulo 4 í-

concepçoes distintas da propriedade, como as dos radicais britâni­


cos do siículo XVH -, nem estamos fora do cam po do liberalismo - 7
econômico smithiano. Burke nos serve para confirmar o caráter
contra-revolucionário dos seus antecessores, compl ementandoos é
ilustrando politicamente seus ideais "Não será de e :stranhar que as
classes dominantes do continente, europeu aprendlessem.a lição e
se dispus essem a evitar os riscos da via francesa revi olucionária, abo- ;
Undo o feudalismo com uma sábia e prudente comb inação de Smith
e Burke, 1com ã qual poderiam estabelecer os fundai mentos nécessá- -
rios para o crescimento capitalista, sem perigo de subversão nem
ameaças para a propriedade.25
A transcendência dessa concepção da histc iria é corisidera-
vel, na tn edida em que acabou convertendo-se na b .ase sobre a quaf
edificarai m-sc as ciências sociais do nosso tempo e que, de uma ou
outra for má, impregnou inclusive o pensamento popular.* Elemen­
tos fiind: unentais dela seguem plênamente vigentes i, incorporados à "
. ciência a cadêmica, porém também às propostas de concepções que
se apres« mtam como alternativas. O êxito que alcai içou ã escola es­
cocesa n ão tem talvez precedentes na história inte. lectual da huma­
nidade. ( ionseguiu fazer-nos compartilhar da sua vis ião linear do pas­
sado, que se estabelece como uma rota marcada po r revoluções tec­
nológica s, que abrem para o homem suas etapas .‘ sucessivas de as­
censão. Nos fez aceitar, com isso, sua visão do pro gresso, que con­
siste em definir como avançado tudo o que conduz ao capitalismo
e à industrialização, sem aceitar que possam existir outras formas
válidas <Jle configuração da economia e de organiz ação da socieda­
de, às quie se pudesse chegar por outros caminhos, desqualificando

* *A construção teórica de Smith e de seus sucessores - disse E.P.Thomp-


son - |[ibi] um quadro sistemático de pensamento tão a mplo e tão flexível,
que formou a estrutura dentro da qual configuraram-si s as ciências sociais
e o piensamento político da Inglaterra vitoriana; serviu de garantia ao im­
perial ismo comercial; conquistou a inteligência da bi irguesia em tòdo o
mundlo; e depois de uma impressionante c dura resiistênda (Hodgskin,
O w en,0'Brien)fcz capitular diante de si o movimento operário inglês, que
reagrupou-se para maximizar a sua recompensa dentn j do marco que lhe
era di tado. Finalmcntc, sobreviveu, menos na teoria elal borada que no mito
popular, até nossos diàs. É em nome de certa lei "natural” de uma econo­
mia Uvre, que o público tolera a sua falta de liberdade 1iiante dos monopo­
listas, dos especuladores de terras e os que controlam os meios de comu-
nicação" (E.P.Thompson, The poverty oftbeory and'c itber essays, Merlin,
Press .Londres, 1978, p. 63).

96
e história: a escola escocesa

as Pias alternativas como retrógradas ou impraticáveis (utópicas).


Contagiou nossa visão do presente, fazendo- nos crer quc existem
um as regras da economia que atuam à marge m da política e que a
submissão do homem a um jogo exclusivam ente econômico, senu
alguma, é o que caracteriza o sistema iem que vivemos. Com i
tud o isso, corrompeu nossos projetos para-o fiuturo, que nos acostu ­
mai tnqs"a ver como uma superação que nos c onduzirá a uma etapai
mais elevadá da industrialização, incapacitamdo-nos para propor
um a autêntica alternativa ao capitalismo,
Pelo fato mesmo de que partes essenciais dessa condepção'
dãjhistória e do progresso permaneceram coladas em nossa visão
do miindo, é importante que nos esforceníos em compreender a.
sua gênesfe e autêntica natureza. Chegamos a uixn ponto em que, não
velhas profecias sobre as quais depositávamos riossas
esperanças, não podemos prosseguir sem revisar criticamente! a
coh cepção de-progresso em quê se baseavam, para assimilá-la com
:na consciência do qué significa - de que s e trata de um cresci-
para alguns, que só pode manter-se com aexplornçâo dos de-.
mais -,’ou para rechaçá-la e substituí-la por novos objetivos que se
havierá de alcançar por'outros caminhos.
á__

ol pensamento
Mstórico
da revolução
francesa

V? ... ^
* a medida em que a Ilustraçãó era. um programa para a V - ■■ 1
reforma da ordemféudaí,encontxqu-se diante de um dilema, quan-
dò demonstrou que as reformas possfvels'eraim msuficientes,-e que:
as mais-ambiciosas não ]podiam vencer as resistências internas doíi
privilegiados, como se vi u com o intento por jparte deTurgot de im ­
plantar o programa fisioerático. Tinha qtie escolher entre renunciai*
,à refòrma.e voltar à sustentação pura e simples da ordem estabele-•
dda - que é o que farão o s ilustrados de muito: 3 países europeus, ins •
truídos. pelo ocorrido n a. França.-; oú tocar em frente, vencendo
toda oposição, o que sign lificava entrar pela via 1revolucionária.Ap fe- •
lar dos ilustrados, mostiamos já que muitos deles, desenganados
ante os resultados do despotismo, acabaram por-radicalizar suas
propostas. Dessa forma preparava-se seu trânsito para posições re­
volucionárias. " ' ' •*:
Da experiência da s resistências interna s à reforma nasce um
dos tiaços mkis originais da historiografia da rr :volução. que á distin­
gue claramente das concepções da escola escocesa. Esses homens
admitem também que a um grau de desenvo lvimento econômico
j c, . ■ correspondem determinadas formas de organdzaçãó da sociedade,
de leis e depolíticajporé m.diferentemente do is teóricos escoceses,
não acreditam que baste o crescimento econô:mico para engendrar,
numa evolução paralela, as mudanças sóciais.Também dão-se conta .
de que as forças ligadas às formas de organizaição caducas.resistefti
ao séu desalojamento do> poder e tratam ide conservar a velhá or­
dem', ainda que seja à custa do crescimento ecòhôtnico.De modo
que chega um momento em que só a ação política - a revolução -

99
capítulo 5

pode desbloquear o caminho e íat :ilitar, com isso, o pró] prio progres­
so econômico. De simples epifch' ômeno da economia, como ha es-
. cola escocesa, a política converte-se no terreno da açã ò mais trans-
- 1. ' cendente dos homens.Assim é com o os historiadores ida revolução
\ chegaram a descobrir os conceitos de classe e de luta de classes.
Há um outro traço importa nte que separa estes 1historiadores
dos seuã colegas insulares. Com o'a sua reflexão iniciou-se no seio.
de uma.sociedade que não era ainda capitalista, que nãojiayia en­
trado pelo caminho irreversível que estava seguindo a economia
britânica do século XVin, são colc jcadas a eles duas saí<las possíveis.
Uma - a mais "normal" t extensa - consistirá em buscar a repetição
do esquema inglês, limpando o cí iminho para o capita lismp. Porém
haverá também os que pensam que existem outras possibilidades
de desenvolvimento econômico >e organização social, que não pas­
sam pela expropriação dos pequt mos camponeses, mas pelo seu re-
■ ~ "forço. Como esse programa alterniativo não conseguiu se impor, cos-
"" ■ rumamos còlocar nos que o defemderam.a etiqueta d e fabricantes ■
de utopias, e nem sequer nos colocamos de acordo se eram ou nãò -
retrógrados (como sustenta a ma ior parte dos que crê em que o ca­
pitalismo e a industrialização são etapas inevitáveis numa linha úni-
ca de progresso), se buscavam o mesmo que os outros por cami­
nhos distintos, ou se propunham, fórmulas que tivessem permitido
ir mais além do que as b r i t â n i c a s -' •_ ■ " .
. Na base desses projetos alternativos estava a id éia de apoiar-
se nas massas camponesas para construir uma socledside igualitária
ou que, pelo menos, preservasse, na medida do possível, as formas
de trabalho e de apropriação em comum. Uma possibiilidade como
essa era plenamente rechaçada jaelos membros da escola histórica
- escocesa, pára quem, a desigualdade econômica e a propriedade
privada eram características necessárias do próprio p rocesso civili­
zador. Porém, numa sociedade com o a francesa do século XVTO,
onde os elementos de vida agrícola comunitária eram ainda muito
importantes, resultava difícil sustentar semelhante pro posição. Mon­
tesquieu havia dito:

Os fundadores das república s antigas, tinham repart Ido iguaimente


as tertas e isso só tomava un i povo poderoso numa sociedade bem
regulamentada, e com punha um bom exército, te ndo todos um
interesse igual e muito grande em defender a sua pá tria. Quando as
leis não eram rigidamente observadas, ficaváni a s coisas pouco
mais ou menos como estão , no presente entre nós: a avareza de al-

' / \ 'í
100
p i pensamento histórico da revolução francesa

guns particulares e a prodigalidade de oi itros faziam passar os re­


cursos das terras de umas mãos para outr as, e logo se Introduziai

PC
r as artes pelas mútuas necessidades dos r icos e dos pobres
igual repartição da terra foi que tornou R oma, cedo, capaz do se u
engrandecimento.

Também Mably e Rousseau, como já se disse, acreditavam


nu m passado em que a propriedade estava ig palitariam ente repart 1-
d a, e pensavam que esse passado tinha sidoi mais feliz que o pnt:-
sei ite, ainda que as suas opiniões sobre o nem èdio que conviria apl i-
c a r fossem diferentes.2 ^ _
Porém houve outros homens, mais próximos das realidades
camponesas francesas; que sustentaram que era possível propor
unia. linha de evolução social distinta, partindo da mesma interpre:-
taç ão do passado. Se se admitia que o homem vivia mais feiiz nun 1
mundo de igualdade e cooperação, e se a soei edade cámponesa no s
dava o exemplo de que era perfeitamentê posisrvèl subsistir em çom-
diç ões parecidas às daquele mundo Idílico pi rimitivo - em especial ,
se ;a livrava da carga estafantc das tributações feudais -,por que não
orgsanizar-se de modo que esses aspectos foss< :m potenciados, no lu.-
gai de sacrificá-los àf voracidade destrutiva dc) capitalismo? Morelly
(c. 1700 - d. 1755) será, provavelmente, o primeiro a explicitar ess;i
proposta. Pensa, como Rousseau, que num pr ihtípio não havia pro-
pi* edade privada e que a introdução desta foi a causa de todos o:>
males, porém, diferentemente do genebrino,:sustenta não só que a
eliminação desta é possível, como também qi ie não há reforma viá­
vel se não se toma essa medida:

É èm vão, sábios da terra, que busqueis um estado perfeito de liber ■


dade onde reinam tais tiranos. Discorrei quanto'queirais sobre ai
melhor forma de governo, encontrai qs medos de fundar a mais sá -
bladas repúblicas, fazei que uma nação po pulosa coloque sua feli ­
cidade em observar vossas ieis; sc não tiverdes cortado a raiz dai
propriedade, não tereis feito nada.Vossa re pública cairá um dia nc >
estado mais deplorável.
' i s' -V* ' ' . ;' -1 '•■■■
O remédio reside em impor um código conforme aos princí­
pio: 5 da natureza, cujas três leis "fundamentais <e sagradas" dizem que
"naiia na sociedade pertencerá singularmente: e em propriedade a
nirij juém" (salvo os artigos dc uso pessoal), queítodo cidadão "será
sustentado, mantido e ocupado por conta do público", e que "todo -
ddadão contribuira, por sua parte, à utilidade pública segundo as

101
capítulo 5
1

suas forças, tí dento e idade". Que i déias desse gênero nãò eram es­
tranhas ao campesinato francês, mostrá-lo-á Charles-Roibert Gosse-
lin, homem d<e extração camponês; a, que, em 1787, suste nta que a fe­
licidade do. liomem não exige o retorno ao estado cie natureza,
como supunlãa Rousseau. Que a vinica coisa de que se necessita é
que os campios "sejam repartidos de tal modo qiie todos possam,
trabalhando, encontrar assegurada a sua existência". Rara isso não
são precisos complexos planos e:conômiço-polítiços:'"O caminho
mais curto p ara destruir a desigutddade séria voltar a p ô r todos-os 1
bens em comum, para fazer uma jrepartição igual, a ex< ímpio do le­
gislador de E Isparta. Cada um vivei ria feliz com a sua pa rte" .3

Es.sas idéias, como já se disise, apóiam-se na real idade da co­
munidade agrária de meados dosdculo XVIII: uma com unidade que
se definia "p or uma certa estrutura religiosa e adminií.tratiya e, so­
bretudo, por' um.sistema econômico e social fundado no jogo das
obrigações c xmnmitárias, na limitação dos direitos de- propriedade ' ■
privada e na existência de umá teirra de exploração colistiva". A pró­ . '-t
. »'•’•
pria reação senhorial contribuiu para unir os camporu ;ses contraio
feudalismo, ■encobrindo as difere hças que pudessem existir entre
eles. Diferen ças que reapareceriam quando, uma vez conseguida a
abolição das obrigações feudais, as camadas rurais niio ligadas ao
processo d o desenvolvimento capitalista reivindicassem ir mais
além, como os homens da aldeia de Seyne, que, na primavera de
1793, diziam que, uma vez liquidados o rel,o clerò e a nobreza, "fal­
ta suprimir o s grandes proprietários".* Pouco importa como defina­
mos essa so lução alternativa que: não conseguiu impl antar-se: pro­
cesso de co ntenção do desenvollvimento capitalista, i ria revolucio­
nária ou via norte-americana. O interessante é que tampouco foi
deixada no >esquecimento. Soboul opina que a eliminação do feuda­
lismo debili tou os laços internos que haviam unido o campesinato.
É certo que isso bastou para sepiirar da luta comum a burguesia ru­
ral, porém esta era ainda minoritária. Penso que a crisie agrária que
* se seguiu às; guerras napoieônicas - quando os preços dos cereais e

* O que ' é justamente o contrário do que diria ura bom burguês, como
Louis-Séb astien Mercier, cinco anos niais tarde: "Depois de ter destruído o
feudalism io, a nobreza, os pariamer itos, e o clero; depois de t :_ervarrido a Sor­
bonne, õíi frades e as monjas, c reformado o código político, civil e crimi­
nal, creio que já foi feito bastante1' (citado por Jeffry Kaplow na sua intro-
tfução à e :dição abreviada de Louis-Sébastien Mercier,Xe tableau de Paris,
.Maspero, Pans, 1979,p .7) - ... ___

\
102
o pensamento ídstóricoúi ia revolução francesa

os do vinho baixaram b rutaimcnte; encjiiantc >se mantinham as cai >


gas fiscais, obrigando o s camponeses a prót luzir mais para p od er
vender mais - contribuii a em boa'medida para orientar a economl a
camponesa para o men :ado. A industriãlizaçíío reforçou esse prc t-
cesso, ao arruinar as ath ddades domésticas, n as quais ás famílias rui-
rais podiam encontrar u m complemento pan i as suas rendas em di i-
nheiro. Porém o apego às veihas formas comunitárias manteve-se ,
peto menos até as ins; surreições camponês ;as. de 1848 e 1851.*
Agulhon recorda-nos qu ie, até 1848, "ser cam ponês não è somente
possuir ou explorar aigi mias parcelas: é parti icipár dó iiso coletivo
de um certo número de bens, direitos ou cos tumes", e que em cer-
„ tas zonas da França, com io na Prússia renana c lo jovem Mans, os rou -
bós de lenha nós bqsqui es - bosques dos quais a burguesia havia so ‘
apropriado e de quem o s camponeses segui; im as considerações -
eram os "delitos" mais fi reqüentes. Será provaivelmente essa discre­
pância inicial, entre a pe irsistência das formas de economia campo -
nesa e a penetração do <:apitalismo no campo, o que explicara a in - 1
fluência do marxismo, ei n fins do século XÍX-, em algumas zonas etr i
que as propostas coletiv istas encontravam ainda audiência,4

*A resistência das aspira.çõcs camponésas mostr.a-se de maneira mais e lo ­


quente, no caso inglês, o nde a "solução altemath >a" tinha sido já decapita -
da pelo triunfo burguês, em meados do século XI/H,pòrém onde a semen-,
te lançada por WInstank :y volta a brotar em meados do século.XEX, comi
O’Connor e as saras colôi lias agrícolas cartístas, e ; se prolonga até influir no .
poderoso movimento agi arista suscitado por Hem ry George (Dennis Hardy,
Alternative com m iinttie s In nineteentixentury England, Longman, Lon- ■
dies, 1979, capítulo 3, "The Communities of Agirarian Socialism”, pp. 65--
119). Por sua vez, o mo vimento "georgista" este ndeu-se a outros países;
onde enxertou-se nas. coi crentes autóctones de pe nsamcnto. Isso sucederia
na Espanha, onde encont ramos a influência do gc lorgismo no andaiuzismo
de Bias Infante e nas prc ipostas de reforma agrár ta de Pascual Carrión, vi­
gorizando uma raíz agrar ista, que nos havia ofere cido já uma tentativa de
■ reinterpretaçãp histórica tão interessante como o Colectivlsmo agraria en
Espaiia, de Joaquin Costt i.Também aqui achariam os resistências campone­
sas "esquecidas" pela hisi toriografla académica, çctmo mostra este parágra­
fo de uma obra pouco m enos que desconhecida; '‘Individualizou a classe
burguesa a propriedade i ie quase todos os bens que, com adenominação
de ‘próprios’, possuíam' c is povos, e também de parte dos bens comunais,
■ ■, privando desse modo de meios de vida a muitos infelizes (...). Contra me­
dida tão arbitrária tfverai n que protestar violenta mente anos depois, - em
1873 - os proletários de >nuitos povos, que destru ixram as vàias e cercados
das propriedades" (juan 3 bsé Morato, Notas para lã historia de los modo
produeción etn Espaiia, Biblioteca. Socialista, Madrid, 1897, p. 179).
capítulo 5 :

Do seio de uma dessas zonas camponesas em que o sistema,


comunitário foi suficientemenfte forte, em fins do século XVIII,
como para ffeiar a chamada "ro volução agrícola", da Picardia, surgi­
rá o homem que, recolhendo a.e acperiência camponês ia e a lição dos
ilustrados,começa a realizar o st :u programa, sè nãó aintes de chegar­
ão capitalismo,'■o. qual se revelai á impossível ante o rumo que ado^
ta a revolução, porém para além do capitalismo. Mas <desse homem,
Babeuf, e de suas idéias-felaiemos niais adiante.5
A grande riiaioria dos re volucionários, entretamto, represen-
tantes de uma burguesia em as censão, optara pelo caminho "nor­
mal", que conduz pela via do de; »envolvimento capita: lista e se mani­
festará contra qualquer projeto ide "lei agrária" e programas igualitá-
\rios no terreno econômico. As sim, um homem corno Anacharsis
Cloots, q "orador do gênero hui nano", com toda a sua pregação in-
ternacionalista, opõe-se a uma d ivisão igualitária da.tc:rra - "isto é le­
gitimar a rapina, é.açenderia gu ;erra do pobre contrai o rico":Argu- f
menta que algo semelhante cim compatível com as no rmas da soçíe;
dadé industrial - "0 menor trab; lihador de uma manufatura imensa
rechaçaria ao hipócrita que.proj pusesse repartir os an tnazéns e capl-,
tais de um fabricante, cujas rclat ;ões longínquas prop. içiam trabalho
a mil e duzentas famílias operari ias", assinala também que converter
em cultivadores independentes a todos os camponeses implica epi
deixar sem assalariados as grane ies explorações agríc o Ias è as fábri­
cas, e conclui, no mais puro est ilo britânico; "a propi-iedade é eter­
na como a sociedade".6
O grupo mais significativ- o dessa tendência bir rguesa é o dos
chamados "ideólogos", cujas figt iras mais interessante s, desse nosso
. ponto de vista, são Çondorcet (1743-1794) -eAntoinic-Louis-Claude
Destutt deTracy (1754-1836).Çondorcet passou das matemáticas à
História ná sua busca de "uma ç iênda para prever os progressos da
espécie humana, dirigi-los e acellerá-los", da qual "a liústória dos pro­
gressos já realizados deve ser a primeira base". Na m edida em que
se crê que o aperfeiçoamento das leis e das instituiçiões públicas é
‘conseqüência do avanço da ciê ncia, é lógico que a sua'análise da
história, numa sucessão de etap as parecidas .às da escola escocesa,
baseie-se nos progressos do "espírito humano". Q qu;ri não o impe­
de de ter bem clara a conexão t :ntre propriedade pri vada e civiliza­
ção, e pintar-nos "à escocesa" e sses inícios da agricultura, em qüe .
"cada terreno tem um dono a qt iem os frutos pertem :em exclusiva-
mente". Destutt deTracy, coironí;1 deputado pelá nobireza em 17891

104
o pensamento histórico da revolução francesa '
- ■ . i:

passado à reserva em 1792, publicará a suá obra máxima, os Ele -


m entos de ideologia, de: 1803 a 1815. Essa "ciência das idéias" esta.-
va destinadara uma pedagógica,' cujo fim era ajudar a criar
uma situação social caracterizada pela harmonia dos interesses do
cada um com q intcres; ic comum, Era lógico que uma proposição
semelhante o levasse a i ima aceitação ácrítici j dos fundamentos dí i
oixlem estabelecida, con teçando péla proprie dade privada. DepoL >
de ter mostrado que a noção de .propriedade: é uma das primeirai s
noções adquiridas pelo homem,* afirma que é também um funda -
mentò'"natural" da sociedade e que é impossível evitar a desigual­
dade que procede da' su a existência. Coimo conseqüência, deve seir
fitlso o que contam aigums historiadores sobr e um passado cm qut;
os homens eram iguais.** O intento dos "ideóilógos" de levar a revò ■
lução por uma via refom lista moderada, com i im cientificismo !'neu -
tro" que antecipa muito;; elementos do positivismo de Comte, ch e ­
gava demasiado tarde (om demasiado, cedo, se pensarmos nà utilida ­
de que pode ter tido no smomentos reyoluci onários de 1848). De -

* É revelador que, enqua nto o adjetivo que os in gleses uniam ao substan -


tivo "propriedade" era o de "legítima" - que indic a que está protegida pela i
lei, com todo o peso do governo e das suas forças repressivas -,os france ­
ses da época revoludon! iria, num meio que disci ite a legitimidade da pro -
priedade burguesa, falem do seu caráter "sagrade i* - como -no artigo 17 de:
Declaração dos direitos <Jò homem c dó cidadão ■■e o reforcem em termos i
que pretenderão que a :ma origem não deriva d a lei, de uma convenção i
soda!, senão de alguns ]princípios anteriores à üódedade - "naturais" - e:
mais gerais. Tal é a prop osta de Destutt de Traqç que, nos seus Élemens
d’idéologie, sustentará' c[ue, se o primeiro que nasce no espírito do ho­
mem é o sentido da sua i dentidadè pessoal, enqu: into aprende a distinguir ■
' ' o seu eu dos demais, dist iugue o meit do teu c ac Iquire a idéla'de proprie- ■
dade. "A idéia de proprii :dade c uma conseqücn> cia necessária, se não do
isolado fenômeno da sei íslbilidadé pura, pelo mj mos do da sensibilidade '
unida à vontade" (JÉleme ns d'idéologie, IV e V Traité de la volonté, Cour­
rier, Paris, 1815, p. 82).
** "Se, pata proscrever da sociedade essa desigual dade natural, tratássemos
. de negar a propriedade r aturai e de nos opormos às consequências jtec.es-
sãrias que derivam dela, itrabalharíamos em vão; porque nada do que c na
natureza pode ser destru ído pela arte. Semelhantt :s convenções, 'se fbssém
realizáveis, seriam uma es cravldão demasiado and -natural e, por conseguin­
te, demasiado insuportávi :I pàra.ser duradoura (...). O único efeito de tal or-
; -, dèm dé coisas seria estabelecer a igualdade da mis cria ë da necessidade,ex­
tinguindo a atividade da indústria pessoal: Sei m uito bem tudo ó quê se
conta da comunidade dos bens dos espartanos.P<orém,respondo resoluta- '
mente, que isso não é ver dade, porque é impossívi d" (Élemens d'idéologie.
- Traité de la volonté, pp. :289-290)". * . ■ /: i

105 ‘
capítülQ 5

pois de hâve r ganho a partida, a bi arguesfe recolhia as si ras velhas ar­


mas de com bate ideológico, pata. voltar aos fundamentos tradicio­
nais da socic:dadc; as ferramentas criticas de ontem não tinham uti­
lidade alguma quando era ela qu e havia se instalado n o poder e a
sua preocupação fundamental era a de çonservá-lo. Napòleão, que
havia consid lerado a si mesmo ccrnio um dos'"ideólogos", voltou-se
mais tarde c ontra "essa tenebrosa metafísica" e culpou os seus mais
inofensivos cultuaddres de todos os males da França. Havia desco­
berto que a religião era muito m ais útil que o raciona lismô-iiustra:
do para susc :itar á obediência ao poder dom inantes fq ,’ura do. velho
Destutt, cego e sofrendo de achaques, pedindo que o levassem às
barricadas, n a Paris de 1830,pani mostrar a sua oposição à monar­
quia _dos Bo urbon, resulta num sí mboló patético dessa. empresa fra­
cassada^ da 'qual, o qúe teve maisí êxito,foi o menosOriginal e me­
nos valioso: a função divulgadorai da economia política liberal feita
por Say.7 — * ^ ^ - > " . - ^
O qu e os historiadores, da épòca revolucionária trazem à teo­
ria da históiria é a introdução do s'conceitos dé classe: e d é luta de
classes, que dão uma dimensão p olítica à ínterpretaçãc >eçonomicis-
ta e passiva da teoria dos quatro estados. Ò mais conh ecido e origi­
nai dos pen sadorés que abre esso caminho é Bamave (1761-1793),
"natural de Grenoble, advogado, ex-deputado dá Assembléia. Consi-
' tuinte, dom idliado em Sainte-Egirède, cantão de Gren oble, departa­
mento de 1’]Isère, condenado à m- orte como conspiradt ar, no dia 8 de
frimario do ano 2, pelo tribunal revolucionário de Fiiris", segimdo
conta a sua ficha biográfica no d icionário das vítimas da revolução.
Bamave, ad vogado do Delfinado,,que cresceu em nvei<o. da atividade
industrial e da prosperidade burguesa da sua terra matai, e que se
converteu i ium dos omdorcs mai is distintos da assemb léia, escreveu,
em 1792, algumas notas que sói seriam publicadas c:m 1843, e.às
quais se daria o título dc Introdução à Revolução Francesa. Um
ano mais ta rde, em 1793, Barnavr : seria guilhotinado, s ob a acusação
de conspir; ar com o rei para imprimir uma marcha n íoderada à re­
volução. O interesse desse texto não reside no feto dt: que se ajuste
fielmente à teoria dos quatro estados - na sua versão i nais conserva­
dora, smith iana, que vê nascer a propriedade privada ;a partir da eta­
pa pastoril -, mas sim na dimens ão política que acrescenta. Bamave
crê, como t as escoceses, que ao j jrau de desenvolvime :ntò da ecorio:
' mia corresjpondetn determinadas formas de propriedade e um.mar­
co institucional concreto.Além disso, entende que Cãl feto implica
o pensamento histórico d a revolução francesa

cm que uma classe socii d,â que controla o se tor dominante da ecc>-
nomia e beneficia-se da s regras de propriccL ade existentes, cxcrç; i
uma hegemonia no plan o político e ofereça r csistência ao seu alija.-
mento do poder. Com o que impede que o m arco jurídico e institu -
donal possa adaptar-se ; is mudanças que se experimentam na eco ­
nomia e deve acabar sei ado deslocada ou dei -rubàda por uma açãc)
política.* Essa çoncepçi iq da "revolução política": como condição
que permite abrir camir lho à mudança econômica é ilustrada com
rim exemplo bastante el oqúerite: .. . *’ ' _

Desde que as arte; í e o comércio consig; im penetrar no povo <:


criem um novo me: io de riqueza em prove ito da ctássé trabalhado -
h- ' . ra, prepara-se umia i revolução política; um riovadistrlbuição da ri -
- queza prepara uma .nova distribuição do j ioder. Da mesmaformu
- que a posse das tei Tas elevou a aristbcrác ia, a propriedade fbdús -
trial deva o poder <iõ povo; adquire a suã li íberdade, multiplica-se e:
começa a influir nc 'S negócios públicos. :

Duas- observações 5 ajudarão a entender corretamente esses;


textos,Em primeiro higa r, Bamave parece participar do mito "siêye -
sianq" do terceiro estada i, que identifica com o "povo", como Siieyès;
o identificava com a "na ção", ò que nãò o im pede de crer que, èmi
alguns casos, pelo meno 'S, "uma nova aristoci.-acia, uma espécie de:
aristocracia burguesa e mercantil, poderá ( ,..) clevar-se mediante:
esse novo gênero de riqt ieza".A segunda, sobre ò uso da palavra "re--
voIução".Já se viu que e le pensava que tal "re:volução,nas leis polí--
ticas" poderia produzir-s< : "por uma progressão suave", sem necessi--
dade de "violentas como ções". Acreditou'que na França poderia fa­
zer-se desse modo, mas r ia aposta perdeu a ca beça e a vida.8
Não foi Bamave o único que teve consciência do caráter de
luta de classes da revolu ção. Em 1815, R Roederer (1754-1835) es-
creveu O espírito da reu olução de 1789, livro >que não se atreveu a
publicar até 1831. Nele >mostra que o enriquecimento progressivo

-. v ,
* "Os que estão em posse :ssão do poder, pela natu ireza das coisas,'íàzem as
i
leis para exercê-lo e para conservá-lo em é
suas mi ios; assim como os iiji-
périos se organizam e se constituem. Pouco a pouco, os progressos do cs-
tado social criam novas ft irmas de podei; alteram a s antigas e mudam a pro-
porção das forças.As ant igas leis hão podem còn tinuar subsistindo então
por muito tempo; como i rxistem, dc fato, novasai ítoridades, é preciso que
se estabeleçam novas le ís paia fazê-las fonciona r e reduzi-las a sistema,
Assim os governos muda m de forma, algumas ve zes por uma progressão
doce e insensível; outras, por comoções violentas" (Barnave, Introduction
à la révotution fmnçaist ?, Armand C oIin,Paris,lí)71,p.3j:

107
/ .
capítulo 5

da burguesia na etapa final do Ar ítígo Regime fez dela a força social


dominante, que reunia em suas imãos a maior parte cia riqueza na­
cional. Desde o momento em qu e-a nova classe ascemdente tornou-,
sé mais rica.e culta que a aristoc racia, não lhe restava mais que rei-"
vindicar o seu lugar legítimo na Cirdem política, que é ;o que fez a re­
volução: "não são escravos sujeite >s pela conquista, néna servos liber­
tos das cadeias do feudalismo ó s que começaram essa revolução.
São (...) hom ens livres ep ro p rie târios, são os burgueses das vilas e
cidades, fartos das vexações dos nobréS e dos senho« ;s, porém não
carregados de cadeias".9 ,
Entretanto, os historiadpre s que escreveram nos anos da revo­
lução foram esquecidos como ini :ômodos - como o foram os ideólo­
gos, quando a burguesia achou líiais seguro apoiar-se nos teóricos
conservadores da restauração - e as sitas idéias foram' d livulgadas por
uma série de historiadores da prit neira metade do séçu Io XIX, què às
empregaram no duplo combate: contra uma monarquia restaurada,
que não acertava em cumprir co: m o seu papel, prime: Iro, e contra a
ameaça de ressurgimento dos grupos revolucionários radicais,mais
adiante. Ocorreu, além disso, que esses historiadores dá década de
1820 a 1830 - o que Michelet cha maria "essa nobre plê iade histórica
que, de 1820 a 1830, lança uma I uz brilhante", e que c oncretizou-se
nos nomes de Barante, Guizot, f dignet, Thiers e AugcistinThierry -
foram grandes escritores e polítl cos proeminentes, quie alcançaram
renome popular e viram multipli car-se as.edições de s eus livros. De
modo que veio a se supor qúe o ( juc continham fossejintegralmènte
deles. Ignoraram-se as suas raízes e sobrevalorizou-se ;i importância
das suas contribuições à ciência h listórica, o que permit iu que se lhes
atribuíssem méritos que não lhe s pertencem* e com que se com­
preenda mal o verdadeiro carátei : das suas obras.10 :

• Escreveu-se assim que Guizot "t<rvc - o primeiro entre o;s historiadores -


a intuição do materialismo histór ico na sua História das revoluções da
Inglaterra" (Émile Coomaert, De stins de Cito en Franae depuis 1800,
Éditions ouvrières,Paris, 197 7 ,p.rS3),o que parece um tatito fora de lugar
para um homem que escreve coií iás como: "Os homens a que Deus toma
. para instrumentos dos seus grandi :s desígnios-estão cheios de contradição
c de mistério: mescla e une neles , em proporções profum lamente escon­
didas, as luzes e os erros, as grand ezas e as debilidades" (ï i Guizot, Histoi­
re de la république d'Angleterre et de CrommvielL, Florin in y .Hen, Brusc-
las, 1854,1, pp. 3-4). Ou tem-se fcilto afirmações tão corta: tites, como esta
de Godechot: "Tem-se demonstrado que Marx e Engels tomaram cm par­
te a sua teoria do determinismo hi stóricb da leitura de Mig net; isto é, hojc,
uma coisa demonstrada" QnActei; du colloque François Guizot, Société

108
o pensamento histórico d; a revolução francesa

• Ç-
Falando deThierss e de Mígnet, Letebvre dirá que 'eram jor^ >
nalistas, ocupados em cltieio na luta que a bi trguesiá levava contni
os antigos privilegiados para salvar a obra soicial da Revolução, tal
como a havia consagrad o a Caíta de 1814. Fsizlam obra política ao .
defender a Revolução de: 1789, a revolução 'burguesa", liberal e cen -
sitária,e legitimavam p or antecipação a de Í 830".AugustinThierry
r\ -
(1795-1856) confessa, n o prefácio as suas Ca rtas sobre a história
da França, qiie "em 181.7, preocupado pelo ’ vivo desejo de contri -
buir pela minha parte, cc im o triunfo das.idéiã s constitucionais, pus - -
me a buscar nos livros d é história provas e argumentos para apoiai ■
iltíQC :
as minhas crenças políticas". Por esse camihh o chegou a descobrii•
: $rzr' Hume è interessou-se p e la revolução inglesa, à. qual dedicou uma sé -
rie de escritos, publicados entre 1817 e 1820, surpreendentes pelat
sM.jY sua profundidade e luck iez. Porém, além dess a- preocupação políti ■
ca imediata,Thiérry soube propor os fundam cntos de uma renova ­
ção da história da França ç segundo as mudanç as que haviam se pro--
..duzido em sua sociedado.Thiértyápercebia-se de que haviam h e r­
dado uma história composta para legitimar o aintigo regime e qudti-
nham que refaze-la por completo, se se qut:ria'que cumprisse a.
mesma função com respeito à sociedade burguesa. Denunciava a.
sua redução a uma sucessão de biografias de monarcas - a maioria
dos quais era qualificada abusivamente de re is de França, quando ’
não eram mais que chefe :s de povos germânic os, como esse Clovis, -
a quem propunha que liòssc chamado, mais apropriadamente, de
Chlodowig - agrupadas pior dinastias. À históri a dos reis e aristocra­
tas que até então se havií i escrito - e que não p lodia considerar-se le­
gitimamente como histói ia da nação francesa - ,* havia qüe acrescen-

de l’histoire du protestai itisme fiançais, Paris, 19‘ 76, p. 301). Essa superva-
lorizaçào da influência d os historiadores da Restauração sobre o maras­
mo parte, entretanto, de Plekanov, que lhes dedi cou o segundo capítulo
do seu Ensaj'o sobre a desenvolvimento da concepção mohlsta da
história (1895). O que não significa que esses h nmens não tenhãm .sido
importantes como transmissores das idéias que estavam se elaborando de
um e outro lado do canal da Mancha, como demo nstram as cartas e as no­
tas de leitura de Marx e i i c Engels. " ' 1
. ** "A história da França, tí ü como a tem feito os és<critores modernos, não é
a verdadeira história do país; a história' riãcional, a história popular: esta
história jaz ainda sepuitnda sob o pç das crônicas contemporâneas, de
onde nossos acadêmicos elegantes não cuidaram de tirá-la.A melhor-parte
dos nossos anais, a mais séria e instrutiva, está por ser escrita; nos fãlta a

-V
109
capítulo 5

tar-lhe a do terceiro estado - não só a burguesia, com o também "a


nação, ment js a nobreza e o clero" que éra, na realida de, "a história"
mesma do d esenvolvimento e do: 3progressos da nossa sociedade ci­
vil, desde o caos dos costumes, das leis e das condiçcíes qüe se se­
guiram à qu eda do império roma no, até o regime de b rdem, de uni­
dade e de li berdade de nossos di as". Nisso se empenh ária em abor-
. dâr no seu 1 Znsaio sobre a form a tçâo e progressos do terceiro esta­
do, qüe sen/iria de introdução, a uma coleção de documentos que
fosse, para o terceiro estado, oq[ue as clos velhos eruditos tinham
sido para o •estudo das monarquú is c da ígreja.Thierry não foi capaz
de terminar o seu ambicioso pro jeto e não teria quenu o continuas- (
se por esse caminho. Os seus esicritos teóricos estão hoje esqueci­
dos e é leml arado simplesmente <:omo o autor dos R ei atos dos teni-
p os merovíi ngios, que são aprese ntados como excmpl o de uma his­
toriografia i-omântica, pitoresca e pouco confiável n o terreno da
erudição, o que nao só implica esquecer ó melhor dà suã obra,
como tamb ém entender deformiadamente a classe de: história que.
pçptendeu f ãzer." ■
Menç )s interessante que Tlaicrry; ainda que a su a sorte tenha
sido maior, JFoi o homem que ché:gou a ocupar os mais altos cargos
políticos da. monarquia moderada e converteu-se no mais famoso
desses histo riadores: François Gu izot (1787-1874), de t àmília hugue-
note, filho c le um homem guiiho tinado pela revoluçãt i, doutrinário
liberal, inim igo do absolutismo - porém, mais ainda d a revolução -
que não duvidará em autodefmir-se como "burguês e protestante".
Eliminado d.o ensino e da política pela reáção ultra de 1822, dedica-
se à históriai, e, em concreto, à revolução inglesa, comi o fim de ex­
por o desenvolvimento do governo representativo. A primeira par­
te da sua Hi 'stóría da revolução de Inglaterra, aparecida em Í826-
1827, era píirte de um combate mais amplo contra unia monarquia

história d<as cidadãos, dos súditos, ; i história do povo. Essa hi Istória nós apre-'
sentaria, a .o mesmo tempo, exemp 'los de conduta e o intei esse e simpatia
que busaunos em vão nas aventuras desse pequeno número de persona­
gens privi tlegiados que ocupam is oladamente a cena histt irica. Nossas al­
mas se se: ntiram atraídas pelo dest Ino das massas de home ns que viveram
e sentiram como nós (...); o progresso das massas populares até a liberda­
de e o bei n-estar nos pareceria mai is imponente que a marc ha dos conquis­
tadores c as suas misérias, mais co movedoras que as dos reis destronados'1
CA.Thierrj /,"Première lettre sur l’hi stoire de France", 1820, it îD Ix ans d'étu­
des bistoi iques, Paris, 1846,pp. 2'>726Z),
• . : / ; '
o i lensamento histórico c la revolução francesa - . í"

que não respeitava os límitesdã sua própria carta outorgada. Há que


reçonhccer-lhe o mérito, que comparte com Thierry, de haver ass i-
" naládo o caráter de enfr entamentó social que: se dá na revolução in­
glesa e havê-la compara do à francesa, e não s e lhe pode negar aceir-
toíi. como o de ver as conseqüências das lutas religiosas, explicãn-
. do-nos que-"no seio das: classes inferiores (.. 0 começavam a circu­
lar idéias de uma igualdí tde até então desconf tecida". Porém o seu 1i-
vrc j segue sendo essenci almente um estudo di e história política, cor a
* esc :assa compreensão de ts mudanças eçonômi cas e de seu efeito na s
atiitudes de grupo, cheio de temoresante os possíveis extravios da
luta contra o absolutismo. A sentença final d a obra define perfeita-
mt.nte esse caráter: "O espírito revoliicionái do é "tão fatal áos ho-
mems que exalta, aos quie derruba.A política que conserva os estai-
do.’s é a única que dã final feliz às revoluções e garantias de seguro
àoft seus resultados".1* ‘ ••
Contihuadoresda tradição burguesa, esses homens seriam
protagonistas da revolução de 1830, que "1foi’considerada pelo s
_ historiadores como a sua ’vitória’ (...) Gub:ot e Thiers tomaram
pairte nas articulações, conclusões e negociiaões que escamotea­
ram o triunfo da revolui ção' em favor do duq ue de Orléans; Guizo t
foi um dos autores da c arta revisada". Não <; casual o destino po-
■lítioo que o aguardara: Gulzot será o campç :ão do conservadoris -
mm durante o reinado d e Luís FiÍipe;Thiers (1797-1877), por sua
parte, esmagará a Comuna e restabelecerá a ordem burguesa so­
bre: os cadáveres dos re volucionários. São os continuadores da re-
vol ução, em.seu pensamento histórico, com o em sua obra política
-Ttiidesq dirá de Guizot que "enquanto que, <:omo historiador, pô:;
"-v o acento sobre uma certa luta de classes, para explicar a ascensão
da burguesia, por outro lado, como político, negou-se a ver que:
ess a luta de classes poderia prosseguir"-, poném continuadores d a­
quela revolução que executou Babeuf e freiou qualquer intento
de radicalização que pu desse pôr em perigo as conquistas e a d o ­
minação da burguesia.13 . '
Não são, entretan to, os únicos continu adores, porque, tanto
ou mais legitimamente ç(ue cies, o são também aqueles queipartin -
do dos pressupostos iniciais da luta antrfeuidal, tentam, cpntinuai •
p o r uma linha que leve cm conta os interesses è as aspirações daí i
classes populares camponesas e urbanas. Essa outra "corrente é ai
que: conduz ao socialismo do século XDt - a essa mesma Comuna,,

111
capítulo 5

por exemplo, que será reprimi ida porThicrs Marx: e Engels reco­
nheceram essa filiação, ao escrever, em 1844:

O tmovimento revolucionário iniciado em 1789ruo C írculo social,


que: no centro da sua trajetória tinha com o seus principais repre-
sen tantcs Leclerc e Roux, até que, por último, sucumbiu por. um
mói mento com a conspiraçi ão de Babeuf, havia ilürt linado á idéia c o
mui aista, que Bupnarroti, o amigo de Babeuf, introt luziu de novo na
França, depois da revolução de 1830. Essa idéia, oonseqüentemen-
te é laborada e dcsenvolvid a, é a idéia da nova ordi cm universal das
coiíias.11 -■■■(■

A trajetória, por conseguinte, começa com homens como os


enragés, oomo esse cura Jacques Roux que escreveu que "os produ-
tostda ten a, como os elemento s, pertencem a todos os homens", e
que se levantou contra os agiotas e os açambarcadores que se enri­
queceram especulando com a r evolução, gritando-Ihi es: "Vós sóis os
ladrões, anarquistas e assassinos, porque tiraram, dos operários o
pão de que necessitam para sus tentar-se". Continua ruais tarde com
Babeuf, quie, se formousuas pi inteiras concepções sobre a duplá
base da experiência vivida do feudalismo na Picardia e da leitura do
pensamenito histórico e social d e Mably, as superará n tais tarde, para
chegar a p ropor, com os seiís s eguidores;'não uma ’ ria alternativa,
mas sim a destruição de um capiitalismo que a própria revolução'fez
arraigar pr ofundamente na real lidade francesa. Assini o Manifesto
dos iguais" não será nem o sonhio em vão de volta a uim passado idí-

j * "A revolução francesa não é mais que o sinal de outra irevolução maiòr,
que será a última (,..).A lei agrári a ou a partilha dos campos foi a vontade
imediata de alguns .soldados sem princípios, dc algumas povoações movi--
das por Sieu instinto mais que pel]a razão, Nós tendemos a. algo mais subli-
i me e mai s equitativoVo bem comt, un ou a comunidade do. t bensl Não mais
propried ade individual das terrãs, a terra não é de ninguéin. Reclamamos,
queremo s o desfrute em comum dos frutos da tena: os fru tos são de to­
dos, Ded aramos não poder continuar sofrendo que a imensa maioria dos
homens itrabalhe e se esforce no serviço para o prazer da; pequena mino­
ria (...). Desaparecei de uma vez, distinções indignantes entre ricos e po­
bres, entr e grandes c pequenos, ei atre amos c criados, entr e governantes e
governados. Que não. haja mais d íferenças entre os homens que as da ida­
de e do sicxo. Posto que todos teiiham as mesmas hecessiidades e as mes-,
más iaculldades, que não haja pana todos mais que uma s ó educação, que
uma só dasse de alimentos Povo de França, abra os olhos e o coração
• à plenitui Je da fclicidadei reconhe ça e proclame conosco: a República dos
Iguais" (1 isse texto, cujo autor é S; plvain Marechal, é citado pela versão pu­
blicada im Buonarroti, Conspiration p o itr Végalüe dite.de Babeuf, Éd. So-
ciales.Paiis, 1 9 5 7 ,0 ,PR94-98). - - ' . .
o pensamento histórico da . revolução francesa _ .
‘ -\ '! r'
lico, nem um intento dei ítro da revolução, mais sim o programa de
mm nova revolução "qut: será a última".1' . - . .
—~ Paralelamente aos dessa trajetória, encontraremos òs repre-
serilantes de um certo "socialismo francês", como Louis Blanc
(1811-1882). Na sua His tóría de d ez anos, pareceu por uns mo-
. mestos compreender a ; armação social da ev olução Histórica, po­
rém acabou demonstran do que.entendia tão mal as coisas nef ter­
reno do estudo da históri ia,* como nó da liita |jolítica, já que foi um
dos maiores responsãvéi is de que as forças p opulares e operárias
que participaram da revi olução francesa de 11348, fossem conduzi­
das áo fracasso por um; i via morta. Em cam inhos paralelos tam­
bém, talvez mais próxim os, encontramos os ] pensadores do socia­
lismo chamado utópico - que socialismo n ão' mereceu até agora
essa qualificação? com p Saiiit Simon (1760 -1825),'que antecipa
- a plenitude do capifaÜ! smo industrial, porém trata, ao mesmo
tempo, dê atenuar os ma les corn os princípióis de um novo cristia­
nismo. Ou como o Fouri er (1772-1837) que item antecipações de
surpreendente lucidez si obre.a família ou sobre a necessidade de
evitar as destruições de recursos naturais a que conduz a expan­
são capitalista. O caminf io mais direto, entre carito, é o que, nasci­
do de Babeuf, conduz p< ir Buonarroti (1761-1837) à ação revolu­
cionária européia da prir neira metade do séci lio XIX. É o cantinho
em que acharemos Augu sto Blanqui (1805-lí 181), que sabe ler na
evokiçâõ histórica a.prof ecia de que o futuro será do comunismo:
"O estudo atento da geol ogia e da história re\ ela que a humanida­
de començou pelo isol; unento, pelo Individ lualismo absoluto, e
que, através de uma larg; t série de aperfeiçoa] méritos, deve chegar

• *Blanc vê muito daramei ate, por exemplo, que "n a mágica história de Na-
poleão e o povo armado,: i boiirgeoisie se desvane- ce, digamo-lo assim: mas,
olhando com atenção, per cebc-sc quc-Napoleão co; ntinuou a obra da Assem­
bléia constituinte em mar éria de comércio, de indi ístriae de crédito públi-
a>; conservou e favorecei u a tirania oculta sòb o princípio da divisão das
propriedades deu, em luma palavra, vigor a qua ntó forma hoje a base da
dominação que exerce a t bourgeolsle" (L Blanc, H. ístória de dez anos, Ob­
teres, Barcelona, 1845,1, p ■.4). Porém logo emenda tudo, quando, depois de
haver mostrado.o enfrcnt amento do partido feudal e do burguês nos anos
di Restauração, nos diz: "a luta não existia, pois, mai s que entre as idéias feu­
dais e os interesses boui%;eois" (ibid., p p ,55-56). Siua vida política é seme-
Utante nesse alternar de ir tomentos de lucidez e erros desastrosos:

113
capítulo 5

à comunidade".* Por todas essas vias, a herança revolucionária da


França do séiculo XVHI, o fermemto vivo da revoluçãoi, passará ao
materialismo histórico.16 ' ' •
Enquamto isso, entretanto, c ra a herança conservadora a que
dominava a historiografia francesa, cómp a burguesia dominava a '
sua sociedad e. Temos falado já d a geração de 1820 a 1830. Pouco
depois, um irmão de Augusto Blamqui, o economista Adolfo (1798-
1854), fará u ma engenhosa síntesie em que recolhe a tradição eco-
nomicista da i escola escocesa e 11ie aplica uma invenção francesa
desses anos' a de que na Inglaterra produziu-se uma "revolução.in­
dustrial" - qu e.não quer dizer uma revolução na indústria, mas sim
uma transfoi raaçãò total da economia e da sociedade produzida
pela indústri a - de efeitos semelh antes aos da revolução política e
social da França, que poderia assim ápresentar-se com o uma alter­
nativa a ela. 1qa sua História da econom ia política na Europa, pu-
. blicada pela primeira yez em 183 7, não só fará a defesa do ecOho-
micismb - ao sustentar que a historia e a economia não podem sér
estudadas en i separado: "a primeira proporciona os fatos; a segunda
explica as su as causas e deduz as conseqüências" -, o qme tem claras
, conotações c iespolitizadoras, com o também culminará ;a sua análise
, com esta int< :rpretação: "Enquanto >a revolução francesa fazia as. suas
experiências sociais sobre um yul<tão, a Inglaterra come :çava as süas
no terreno d a indústria".A ação p olítica volta a ser perturbadora e
desnecessária - como já tinham descoberto os historiadores e eco­
nomistas bri tânicos do século XVHI. Partindo da história, Adolfo
Blanqui não lerá no futuro, como o seu irmão, o revol uciqnãrio, q

* Uma forr na muito mais trivial de utilização da história cc imo apoio das
idéias com unistas é a que pratica C abet, usando uma lista d e supostos co­
munistas ilustres - com erros monstruosos - como argume nto de autori­
dade: "E se te disser que todos os homens que são a honr.t e a tocha da
humanidac le, Socrates, Platão, os reis Lieurgo,Agis, Ceomen o,Jesus Cristo
mesmo, todos os padres da Igreja, o chanceler da Inglaterri i Tomas More,
Campanell a, Locke, Montesquieu, Rousseau, Helvétius, Fé nelon, Fleury,
Morelly, M: ibly, Condorcet, etc., eram comunistas? - De verdade? - Que po­
pulações li tteiras, todos os cristãos dos primeiros séculos, i nilhares de al-
bigcnsçs e valdenses na França,milhares de lolardos ha Inglaterra, exérci­
tos de anal oatistas e irmãos morâvi'OS na Alemanha eram co munistas?'' (H.
Cahet, Dot txe lettres d'un commu niste à un réformiste si ur la commu­
nauté Pre, mière lettre. Ddanchy, P; iris, 1841, p. 2)
fc-
o pensamento histórico da revolução francesa

triuiifo do comunismo, nuas sim o dp capitalismo industrial. Erã, en­


fim, a concepção da hist :ória conveniente de uma etapa em que,
suas cõh quistas essenciais, a nõva classe dominan­
te, a burguesia, desejava instabilidade: crescimento econômico sem
nov.is rupturas sociais, quie poderiam pôr em perigo os seus privilé­
gios ; tão tmbaihosamente: ganhos.17 . " ' j
c a p ítu lo 6

'v.

hi stória e
eo»ntra-rév<olução:
1814-1917

D. 'epoísde 1814, generalizou-senaEur opa umaséffcdeteõ- cio


x dências que conipartilhav; ami da preocupação di e conter o avanço das
rY'W3‘ fal/l
idéias revolucionárias nas, camadas populares n irais e urbanas, c para
' assegurar um novo.cónser iso que cimentasse a cirdem social, uma vez
que a fundamentação tiãi JiçiohãrB ãT õ dcdade: feudal e das tnònar- fy . : ;<
qúlas de difeito diyino hav ia Se fencüdojrremcd iavdmcnte. Essa nova
ry.s .. v
báse paira o edifídp social se achara no fortalecimento da idéia de na­ - C
ção, entendida como a cot nunidade dos'homen; j que cotnnartí lhám a'
..mesma história e cultura,; simbolizada por uma bandeira e umhino.e ■ ., I.
encarnada na pessoa do m onaica constitucional - ou presidente da re­
pública, que rio caso tant o fez - è das instituií ;õès do governo que
compartilham com ele, en i maior ou menor me dida, ripóder.'
Gs intelectuais irão buscar as raízes da ru icionalidade na Idade
Média, e trarão à luz todo esse tesouro de mitos;, lendas e poesia que
até então compunham um a parte dé uma cultura popular desprezada
pelas camadas educadas. É a época em que irão <:omeçar a publicar-se
compilações de romances e a editar-se os conte )s e lendas populares
(com o que os irmãos Grin im, por exemplo, aspii ram devolver ao povo
alemão um caudal de mito s próprios), No terren o da literatura, encon-
- tramo-nos, também, com a recuperação do popu ilar e. do nacional, ain­
da que seja através de um romance histórico, que evoca um passado
autóctone e glorioso, de uj m costumbrismo que incorpora a-viáa coti­
diana das pessoas dó povt i, destacando suas pec ruliarídades locais, ou
de uma narrativa e de uma poesia que potendan i a paisagem, signo da
individualidade nacional, P lo campo concreto d; a história, as 'crônicas
medievais apaixonam mais ; qué os textos deTáci to ou de Salústio, Rei­
vindicação da individualid ade frente à análise social dos homens da
<M (.--»'f'& w
PtUiOK1Á, >•., owt ^ . c

VL
117
capítulo 6

Eustração, 'de »ma Idàdc Média própria diante de un ia antiguidade .


clássica, que representava uma cultura comum,do senlimento diante
da razão.Todos esses traços compõem uma imagem global, e por isso
mesmo vag 3, do romantismo, des; >e romantismo que, co mo disse Man-
zoni, "tem, : além disso, significado: s expressamente distir itos na França,
na Alemanl ia e na Inglaterra", e q ue, num mesmo país, pode aparecer
inspirado tí mto pelo catolicismo c lonservadór de Chatea ubriand, como
pelo populismo republicano de Í/Echelet.2 -
M
Porom, se esse conjunto ide traços culturais eideológicos re­
) ( sultava ime :diatamentc assimiláve :1 pela burguesia, a tar efk dé tomá-lo
pl * aceitável p ara as classes populares, com o fim de^supriir os das socie­
dades do antigo regime, não se iria conseguir sem dilSculdade.Para
manter a o: rdern interna seriam c xiados um sistema de cárceres e um
â js ^ ^ direito pet tal novos, com corpo: >de polícia centraliza dos. Para asse­
gurar-se á.c llfusão dos valores e « leais da nova sociedade, destacar-se-
á a educação popular, até lazer dleia um elemento eficaz de controle
? pnCAA . w
social. No «raso concreto do ensi no da história,-podenuos ver que, na
■ ' v„ «- França, foi uma disciplina reserv ada para a educação dos filhos dos
^ jíipríncipcs até meados do século XVHI; a revolução introduziu na es-
cola uma hdstória universal do hi amem, de intenção fili osófica, cuja fi-
nalidáde em a de formar cidadão s consdentes; desapareceu com Na-
V' poleão, parra voltar, mais adiante , transformada em his tória nacional,
destinada a formar patriotas, nãc 1 ddadâos,3
' " u ? Se c 1 romantismo é diferei ntc de uma país para <rutro, também
o é no tipci de resposta que inspiira no terreno da história.O que re­
sulta perfeitamente explicável, se forem levadas em conta as dife­
^ ' 1 f 'J rentes nec essídades da Inglaterr a, que teve a sua revo lução já no sé­
. y ' ^ à culo XVÜ ir conseguiu esquecê-1la (fazendo acreditar t pie o reaimen- *
r terevplucionáriofoiavoltaàordem de 1688), a França, que trata de
pòtenciar a herança conservadora da revolução de 11789, e a Prús­
r
&
sia; que se esforça em se reformar só o bastante para 1 ião ter que en-
r ' golir a sua. Essas diferenças refletirão nos programas que subjazem
à é às proposlas que irão formular-se como justificação "dentífica” da
^ /V - história, porém em todas elas s<: perceberá a existên cia de uma sé­
.j?' i r “
rie de traiços comuns. Romantismo, historicismo, interpretação
3 - . whie da h istória. positivismo, el :c„ são estratégias dis tintas para um
&
mesmo objetivo:a preservação.dao rd em burguesa.Flascidasda co­
moção eui ^TiãTrfé'1789 a 181 4, essas estratégias se rão reavivadas^
pelos estai os revolucionários d o 1830,1848 e da Coimuna de Paris -
pelo espec ;tro do comunismo, p rimeiro, e pelo terror da Internado*

118
histó ria e contra-revolução: 1814-1917

nal, c lepois - e se manterão vigentes até 1917, pa ra transformar-se en­


tão, i ia mesma medida enu que mudou o inimigo ao qual terão que
fàzer ’ frente: a história do ]pensamento reacioná rio vem a ser um re- ?
jlpcc utegativo do pensam ento revolucionários ipie combate.
v Na Grã-Bretanha, o resultado imediato dt >êxito de A riqueza
d a s) iações é das concepç Ões contidas nela inifc >iuo desenvolvimen­
to, di i História, que resultava desnecessária, úina vez que, admitida
' uma doutrina do progresso que prometia a felicidade para todos
. j denti ro.de uma ordem estivei, bastava uma tecnologia social, papel
que i iria assumir a econom lia.A primeira .metade: do géciilo XIX é, na
G cy Sretanha. uma época i ;ém grandes historiad ores. Uma época em
' que I Víalthus, Ricardo e Stiuart Mill codificavam eis verdades "eternas"
da ec ronomia, enquanto a síenhorita Harriet Man thirieau - filha de üm.
eòm< srcíante arruinado, su irda, feia e virtuosa - <atpliçava às. pessoas
sensí veis, através de roniiáncirilios senümentiis e-educativos, ós
prim úpios da economia política e, em. especial, os do seu admirado
' Sgnh or Malthus. que- reco mendava aos~pohres quê se abstivessem
de pt rocriar, como partedi: uma educacão. para que aprendessem a
contientar-se coni-.o que.i;;e lhes havia designado na justa partilha
dos-1 jens deste mundo. U ma época em que o radicalismo parece
confj nado nos versos dos poetas - no sonho da Nova Jerusalém, de
B la k tco m a sua denúncia, das "sombrias fabricas satânicas" e da es-
cravi dãõ engendrada pela industrialização, qu rios hinos que Shelley
corn] Jiiriha para uma revoilução que nunca haveria de chegar -, mas
que é :stá também numa literatura popular de crítica do capitalismo,"
sileni ;iada pela cultura aca idêntica.'1
O primeiro dos grandes historiadores b ritânicos desde Gib-
bon i Fqi Thomas Babbingtc m.Macaulay (180Q-ÍB59), que surgiu nos
mora entòs em que a amei iça interior tomava n ecessário reforçar o
consi enso. Macaulay é considerado como um dò s artífices da chama­
da "ir iterpretação whig" d a história, que reconstrói o passado para
most rá-lo como uma ascensão continuada até àis formas da liberda­
de cc institucional inglesai; explica as. lutas polí ficas "èm termos da.
situai ; ão parlamentar na G rã-Bretanha no séculc j>XIX, isto é: em ter-,
mos de reformistas luhigs lutando contra torie s defensores_do_£ffl-
tus q uo". Porém há multo mais que isso na sua. obra. Toda a sua vi­
são d a história está imprejuiada da herança da escola escocesa e da
sua c oncepção de progres so, que Ihè serve paru transformar'um es­
quema merameníe polític o etn uma' apologia da revolução indus­
trial. Sua obra máxima seria sua Históridrda Inglaterra, publicada
capítulo 6

entre 1848 e 1861, que não deixa de ser uma história da revolução
de 1688 e do reinado de Guilherme Dl (não abrange; mais que de
1685 a 170 2), por mais que, em :>ua intenção original, tenha sido d e-,
prosseguir até a reforma eleitoral de 1832, completam do o ciclo que
la "desde ã revolução que trouxrí a harmonia entre a coroa e o par­
lamento à i evolução que trouxe a harmonia entre o piarlamentoe a
nação". O { jonto de partida era perfeitamente; coerente com o seu
propósito: mostrar que p acordo estabelecido entre a monarquia e
o parlamer íto, em 1688, havia p ermitido evitar os gn ivés riscos do
radicalisme >e da anarquia - uma das passagens mais v ivas da obra é
aquela em que descreve a sitiiaqão 3a cidade de Londres entregue
ao "selvage :m e ignorante populacho", nos momento s entre a fuga
de Jacques Q e i chegada do novo rei, Guilherme UI - é, ao mesmo
tempo, ton iou possível a constri ição de uin sistema p>alítico estável,
condição cio progresso britânico: "Sob os auspícios 'de aliança tão
estreita eni re a liberdade e a pre lem, cresceram de tal modo a pros­
peridade, a . riqueza e o bem-estar, que não há exértip Io de progres­
so parecid'O nos-anais da espéc ie humana". Assim Mácaulay podia
acabar a p rime ira parte da suá obra,'aparecida, em 11848, com um
canto à est abilidadè social britânica em meió de uma Europa sacu­
dida pelas revoluções, ainda qu< ; fosse fechando os o lhos à ameaça
potencial tio cartisnio* Esse ho mem»-d£fensor do liberalismo e da
industrial« ação, bom escritor qme admirava os romances de Scott -
uma admiração que compartilhava com ò historiador fiancés
Thierry -, o ferecia à sociedade b ritânica de meados d o século XIX o

* "A noss ,a volta, agita-se o mundo nas convulsões da agoiíiia de gnuidcs p o


vos. Gov etnos, cuja duração parei cia, não há muito tempo, alcançar séculos \
inteiros, têm-se visto de imediatc' atacados e derrubados. As discórdias ci-
vis têm t :nsanguentado as mais oi gulhosas capitais da Euri rpa ocidcntal.To-
das as m ás paixões, a sede de lucr o e a sede de vingança, a antipatia de clas-
ses, a an tipatia Je raças, têm-se dlesencadeado livres do freio das leis divi-
naseh u manas (...). Suspendeu-se o tráfico e a indústria pa ralisou-sc. O rico
viu-se pr >bre e o pobre viu aume ntar a sua indigência (... ). No entanto, na
nossa UI ia, não interrompeu-se, n em por um só dia, o cur so regular do go­
vemo. 0 ls poucos malvados que ansiosamente desejavam a licença é a pi-
ihagem 1 nlo tiveram a coragem d e enfrentar, nem por ura i momento, a for­
ça de ut na nação fiei, reunida nt ima atitude firme em toi rno" de um trono
paternal . E se se pergunta era qi ic nos diferenciamos cio 5-outros povos, a
resposta é que nunca perdemos o que eles louca, e cegar nente tentam re-
cobrar. Cjiaças a ter tido uma rrv olução conservadora no século XVTI, não
tivemos uma revolução destrutoica no XIX" (Lord Macaui: ty, Historia de la
revoluci óh de Inglaterra, Madrid, 1908, IV, pp, 504-505).
k i fih-* V & ú b ' <& :
■& ^
histiiria e contra-revoluçãc >: 1814-1917
'kr&fccs*- tsC y\\
-v' : p>o-va c
tipo de análise do passadio que precisava para sustentar sua econo­
mia política è as suas promessas'para o f a t u r o V
~~~~ . Com a eliminação ■da ameaça revolucionária, interna, na se­
gunda metade dò século : XIX. desaparece para a sociedade britânica
à ne cessidade de manter vivo o combate idepli ágico. Entre Macaulay
e Iojrd Acton (1834-1902).,o otimismo w hig cv: tpotou-se c não ficou _
maif i qüe ó vazio - à ausêr icia de ideias orientae la para negar a valida­
de à qualquer ideia pèrtuirbadora -, que será ci uaçterí^çQ jfe ifisto-
riog rafla acadêmica britar tica do, século XX, Na sua carta aos colabo­
radores da Cambridge Mo déni History, Acton e sage: "Nosso esquema \
requer que nada revele o país, a religião ou o ] partido a que perten- I
cem. os escritores. Isso é essencial, não s.q sobre a base.de que a im- W
■\JS-

J
parc ialidade é a caracteri stica da Historiografia i légitima, comotam- &
bémi o trabalho é realizad o por homens que se reuniram com o uni- \->r
f
co objetivo de aumentar o conhecimento éxato". A felácia acadêmi- ’ -jt ■
ca d a imparcialidade foi prodamadasolenemerite. O passado está aí, tT
nos documentos, esperan do que os historiador es recolham os fetos,
. •os la pidetfl - dando-lhes fó rma narrativa - e os sir vam ao públicoA es-
tes 1 lomens nem sequer s e lhes ocorre pensar que a sua concepção
da st nciedade condiciona £i sua prática de histor iadores, desde a esco-
■lha dos "fetos rélevantes", até a forma de apresi :ntà-los, êncadeando-
os d e modo que Conduzam "espontaneamente" à ordem social pré­
sent! ejggitimada assim pe la "iustória".6 f rv -
A assepsia acadêmica explica porque n;i historiografia britâ­
nica desaparece quase po>r completo aquele gtinerõ de reflexão so­
cial, sustentado entre a e conomia e a história, que foi próprio de
Hume e de Smith, e que não feltava nem em Wlacaulay* Quando al­
guém alheio ao sacerdócio acadêmico dos.historiadores profissio­
nais o tente, como sucederá com Bückle (18211-1862) em meados
do siéculo, o estamento inteiro se lançará sobne o intruso para des-

* Macaulay defende a industrialização dos seus críticos conservadores e


sustenta, baseando-se no fato de que a mortalidade nas cidades industriais
é menor que a média da In iglaterra e de Galês cinqt lenta anos antes, que ‘ás
p essoas vivem mais tempi o porque estão melhor a áimentadas, melhor alo­
ja das, melhor vestidas è nv rlhor assistidas cm suas «infermidades" e que "es­
ta is melhoras devem-se a o ;aumento da riqueza na ri onal que produziu o sis­
tema manufetureiro" (T.B. Macaulay, Criticai and ,bistoricál essays, Dent, —: - '
Londres^l907,n,p. 197XA. expressão final desse otimismo é o seu augúrio,
die que cabe esperar um século de crescimento eç onômico. que trará a fe­
licidade para todos. , r ' -
capítulo 6

pedaçá-lo e os manuais de hiíitóiria da historiografia consolidarão a


lapidação, r eservando-lhe um niciho entre os seguidores de Comte -
o que está longe da verdade descartando-o sem ter -se molestado
com a sua leitura. Quando a tentativa é realizada por um membro
da própria profissão acadêmicíL,. como James E. Th orold Rogeirs
(1823-1890), professor de economia da universidade de Oxford,
acabará afostado vinte anos da cátedra. Porém ocorre qué Rogers
acreditava haver descobertov de: passagem, "que grande-parte da
economia política que circula usual mente sob a fé das autoridades
da ciência mão é mais que um conjunto de logomaqirias, sem rela­
ção alguma com os fatosda vida sociai", e que os operários faziam
muito bem em desconfiar dela.p osto que os economistas geralmen­
te pertenci;im às classes acomodadas e ignoravam quase tudo sobre
ó trabalho e a condição de vida dos trabalhadores, fada pode ser
mais eloquente que o foto de queria Inglaterra não se publicou um
Èvro sobre a "revolução industri al" até 1884 - quando já fozia mais
'de meio século que o conceito era empregado por franceses e ale­
mães - e qu e ãindà então se aceil ava essa denominaçã o com muitas ~
reticências: os historiadores britânicos não queriam <ouvir folar de
revoluções, nem no terreno da tecnologia industrial.7
O ca so da França é distint o e mais complexo. J á felamos dos
historiadores da época da restauração, que continuavam os aspec­
tos mais moderados da historiografia ilustrada e revolucionária. A
eles poderiiá associar-se um homem como Alexis d e Tocqueviiie
(1805-1859), que.com O antiga A-egimejs a -revoluçã o (1856\nos
oferecerá u ma análise cheia de lucidez dos enfrentam en tos de clas­
se naTFranç, a do século XVHI e díis causas que conduz iram à revolu­
ção: uma. re ivoiuçãò que "surgiu corno por si mesma d o seio da so­
ciedade que iriã destruir". Não s era essa, entretanto, ai corrente do­
minante na. historiografia francesa do século XIX, mas sim outras
duas - romsintismo e positivismo' - que representam a mptnra mm
relação ao nassado ilustrado e re volucionário.6
A primeira tentativa romfmtica de contrapor-se à análise da
sociedade tia Ilustração foi, prmwelmente, O gênio do cristianis­
m o, de Cba teaubriand (1768-1848), esse estranho livro que preten­
dia uma apiroxitnação ao Cristianismo pelo caminho cia poesia e da
beleza, supondo-o superior ao d;a razão, com o que viria expressar,
como viu Birandes, "a convicção de que a irtteligênda contemporâ­
nea é anticristã e que. a fé désapiareceu". Ao ocupar-sie da história,
Ghateaubriíand fozia o elogia sis temático de Bossuet, em nome da

122
histó ria e contra-revolução:: 1814-1917

bele; ta que acreditava encontrar na sua "eloqihência cristã". Pprém


era dlemãsiado inteligente para pensar que se pibdia voltar ao pròvi-
denc rialismo trivial dó bis] io de Metz, dado que lhe constava que "o
pens amento social não rc troage, ainda que os fatos voltem freqüen-
temí :nte para o passado". A grande tarefa de fa: ter triunfar o roman­
tismo, tanto no terreno' d; i literatura conio.no d a história, estava re-
serv: ida, entretanto, às gerações que nássafiam para o primeiro ola:
OP d epois de 1830- Na hi stóriafseu grande representante foi Jules~
Midi ielet (1798-1874)rquc_ao_ubé reunir a vontade de ruptura com
o pe nsgmcnt&-ifiStrado a algumas propostas p olíticas de um certo
jpopi iÜsmo_progressista, q ue' haviam de ajudar a conduzir as forças
~soçÍ£ usjnohilizadasjpela n svolução-pelo cam in] to de um nacionalis­
mo 1jurguês. ^Michelet no sexplicou que a idí da de escrever uma
histó ria dã França ocorreu-lhe nos dias da revo lu^ao de 1830* - isto
é,no primeiro dos grandes morneptos em que ocorreu o risco dése
levai; as coisas àlém da orc iem burguesa - e a su; a missão foi a de ofe­
recei r-nos uma visão pessoal da nação - a reali dade atiial não seria
mais que aformá adulta d<íüm "ser nacional francês" que havia exis­
tido desde a origem dos tempos -, adornada co m uma retórica vita-
lista, que lhe permite ofer ecer um falso marco totalizador e susten-,
tar q ue o seu programa com o historiador e "a ressurreição da vida
ínteg jraMhdo isso serve à finalidade de desviar as classes populares
de qualquer objetivo class lista. Como' dirá Lamartine, historiador ro- 1
mâm tico da revolução com o Michelet: "Há que dirigir as massas
para que não se deixem levar pelos-caminhos da subvèrsão total è
do materialismo".5 ,, v
Numa Fustel de Çoulanges Cl830-1889) viria a ser, de certo
mod o, um herdeiro dos jhistoriadores românticos, Com A cidade
a ntiga (1864) soube gamhar o apreço da coirte de- Napoíeão íri;
onde: deu cursos especial:3 para a imperatriz Eugênia e o seu séqui-
■to. D epois da Comuna advogou publicamente por uma história pa­
triot ;ea e conservadora dc:ntro do estilo do hisitoricismo prussiano.

* "Nesses dias memorãvei:; fez-se uma grande luz <:•divisei a França. Tinha
ai tais e não uma história. .Homens eminentes a tinham estudado, sobretu­
d o , desde aponto de vista político. Nenhum havia penetrado nos infinitos
di; talhes dos desenvolvimentos diversos da sua ath /idade (religiosa, econô-
rt lica, artística, etc.). Nenh um a havia abraçado coi n a atenção na unidade
vi va dos elementos naturais e geográficos que a'constituíam. Eu fu io p ri-
n: íeiro a vê-la como um ah na c como uma pessoa" Q, Michelet, Histoire de
Fi <nnce, A Lacrobc, Paris, H876,1, p.-l). - .- _ V-
capítulo 6

Em A cidac ie antiga a evolução da sociedade explica-se a partir da,


religião, o c [ue lhe serve, de pass;igem, para cumprir oom p objetivo
vital de dei fender a propriedade privada comó algo eterno, e com­
bater aos q\ae supõem que tenha existido em algum lu gär e momen­
to um con tunismo. A religião primitiva baseava-se nò culto dos
mortos e es >te exigia que a família possuísse a perpetuidade da ter­
ra que con servava.as tumbas d'osseus: família e religião nasciam
.s. desde o iní cio em estreita associação com a propriedade.A verda­
de é que es ;sa inversão do pensamento ilustrado - ést e ir das' idéias
às realidad es sociais - acaba,conduzindo a simples trivialidades,
como a de afirmar: "como o homem não pensa hoje como há vin­
te e cinco séculos, tampouco s e governa como se (governava na­
queles tem pos remotos". Porém, Fustel não só será o ]historiador fa­
vorito da e xtrema direita maumssiana, como também influirá for­
temente er n Dürkheim e em Maiuss, a quem transmit iu a sua preo­
cupação p< :lo religioso.'0
■_ Outi a. das correntes que deveria conduzir as ciências sociais -,
por caminl íos seguros era o pos itivismõ, herdeiro direto dos "ideó-
logos". Aut giste Comte (1798-1 S357), que foi secretário e colabora*
dor de Sair it-Simon, e que rompeu profundámehte com ele e com
qualquer-v< deidade socialista, dedicaria o resto da sua vida, em meio
de-umas re lações familiares tum ultuadas e com algun s períodos de
loucura, à i imdação de uma no va ciência da sociedade, que reco­
lhia elemei ítos de Condorcet e de Destutt, e os adornava com ou­
tros tomad os dos teóricos da contra-revolução, com o Bonald e de
Maistre. De Saint-Simon não lhe restou mais que a fé- na proximida­
de de uma era de progresso ind ustrial, que requeria i tovas concep­
ções, mais "científicas" da sociedade, porém a intenção das suas
idéias era s emelhante à dos ideólogos, teóricos da harmonia social.
Como disst; Gouldner:

\ A bu rguesia necessitava,por um lado,completar a s u i revolução e,


por <)utro, precisava protegí :r a sua posição e as siuus propriedades
J da diesordem urbana e da inquietação proletária ( . A sociologia
J prof< ;tica e evolucionista de Comte sustentava que o que se neces-
sitav a para completar a nor a sociedade não era a revolução, mas
sim, melhor, a pacífica aplic ação da ciência e do c< jnhecimento: o
positivism o.“

Na Ijase teórica do pensíimento de Comte há umã concep­


ção históri« 23 parecida à de Condorcet, da qual extraiu toda referên-

124
histó ria e contra-revolução:: 1814-1917

cia às formas dc organiza ção social, para deixar só "a marcha pro-
- gress iiva do espírito huma nó", como álgo autor íomo que basta para
explicar a mudança lústóirica. Essa evolução iri dependente do pen­
samento ilustra-se com "u ma grande lei fimdarnental" do desenvõl-
vimé nto intelectual da humanidade, que cons iste em afirmar que
,cada ramò do conhecime nto passou_sucessiva mente por três esta-
dõs 1Teóricos" diferentes: "o-estado teológico ou fictício, o estado
metafísico ou abstrato e o estado científico ou ]positivo". No primei-
rõ7bl uscam-se as explicações na "açãò direta e contínua deagentes
‘sobrt maturais"; no metafís ico - plenamenté idei itificado" com a Eus-
tração - os agentes sobrenaturais são substituídos por forças abstra--
tas, S ó o terceiro é autenticamente científico: o espírito humano re-
nunc ia erido a 'co nhecei: as causas. íntimas d<asJenômenos" òu a
tratai: de averiguar "a, orig em e-destino do iinfr verso", para concen-
trar-s e "em descobrir,.pejo. jisQ.bõm,cpmbinadá dá jazão e da obser-
v a ç ã t a s suas leis efetivas Claro que esta êxpi asição, de aparência
• tão nrcionalista, acabaria incompleta seorhitíssomos as suas contra-
■ partidas: como.que "as mulheres e os proletários. (...) não podem
- nem devem converter-se e:m doutores", mas sirti que a boa nova en-
sina-1 hes nã forma de catec :ismo de uma religião nova, com o seu ca-
lendáirio, os seus santos e o seu sacerdócio. O que tampouco deve
surpreender tanto num homem para quem o soberano mais ilustre
do se u tempo, notável por1seu "judicioso empirismo", era o czar de
todas as Russias, defensoir de um sistema social que conservava
comc) peça fundamental a servidão camponesa.“ —
Sc aceitamos a construção de Comte, e a sua hierarquização
das c iências, temos outro jiogo de regras - seme lhante ao da econo­
mia smithiana, porém nrais diretamente preocupado com a ação
cpiiti a-revolucionária - p aia fazer-funcionar á r nãquina da socieda­
de, se:m nos metermos em maiores profundidaidês. Ao historiador. -
uma 'vez que lhe tenham sàdo dadas as leis da «solu ção.social, não
lhe n.-sta mais que ãplicá-üis à investigação con creta, usando meto-
. dos "icientíficos" - pelo qu<e se entende "semelf lantes aos das ciên-
çiasmaturais".A história po sitivista dara, por isso mesmo, pouco que
~resen har. O melhor reside nas intenções de liga: r os fenômenos cul­
turais ao conjunto da sociedade, como faraTaiine (1828-1893)- Po*
rém a. obra mais ambiciosa deste, As origens da França contempo-
rârieci, aparecida entre 1876 è 1893, é pouco mais que uma.reação
de teirror ante os acontecimentos da Comuna, que o leva a um in-
tento de desmontar a história da Revolução fra tricèsa, antecedente

125
capítulo 6

remoto da queTaine acabava de viver. As pretenções d e cientifids-


mo do autor: são.pura verborragia i; por debaixo dos protestos de ob­
jetividade e assepsia emerge a on d ha do. medo da revc dução. Enten­
demos, assir n, que esse livro passi tsse a formar parte dc t conjunto de
textos básicos-com que se educavam os europeus reacionários dc
fins do século XIX.11 ,
Com] preender a forma qut: tomou na Alemanha a reação aos
avanços rev oludonários.dos quai s uma das conseqüên cias fiai o nas­
cimento do historicismo,exige-se: ter presentes as peculiaridades da
sua socieda de e a forma na quai a revolução chegou a ela, unida à
derrota mili tar pelas mãos de Na poleão.AAlcmanha não só era um
mosaico de Estados, quanto ao p olítíco, como também apresentava
traços sociais muito diferenciado s, que iam desde os dias regiões do
Oeste,onde: predominava uma agrícultura de pequenas proprieda­
des familiar es, que pagavam din :itos e rendas aos se nhores, atg_o
Leste prussiã5õTde grandes lat i fúndios senhoriais cultivados por
cTámponesés súbmetidos a servidão. É a diferença tradicional entre
düãsforinãij do regime feudal -<G rundbetrschaft do Oeste contra
Gutbetrscb a ft do Leste -, que se refletia ainda em ple.no século XX
na geografiu do latifundismo - em 1925, mais de uns quarenta por
cento da ánea agrícola pertencia a explorações dc mais de 100 hec­
tares na zona ao leste do Elba, etuquanto que só abranjgiam uns oito
por cento mo resto do país -, trad uzindo as diferenças na dissolução
do feudalisi no cm umas e outras zonas,
A ameaça revolucionária ensinou aos políticos prussianos
que "vale miais ceder algo voluntariamente, que ver-se forçado a sa­
crificar tud< a", e a derrota diante d e Napoleão significo u o início efe­
tivo das ref òrmas. Estas conduzir *iam à abolição do fe udalismo, por
obra de hói tnens como Stein ou como Hardenberg, qtue, no Memo­
rial de Rigt i (1807), propunha lucidamente a necessi dade de "assi­
milar essa i revolução, no bom sentido da palavra" e "introduzir os
princípios democráticos num Es tado monárquico". Só que, uma vez
derrotado Napoleão, a reação do«s Ju nk ers prussianos brecou as re­
formas pro jetadas e desvirtuou ;as que estavam em curso - dificul­
tando, por <stemplo, o acesso do s camponeses à terra, com o que, a
sua libertaç ão tornava-se ilusória . E o fracasso da revoli ação de 1848,
que não conseguiu tampouco emeamar as aspirações cámponesas,
deu lugar a que a Alemanha do «Oeste continuasse nvovendo-sé pe­
los caminhos da reforma agrária. liberal, enquanto-qu e no Leste, os
senhores, p russianos fundavam <i capitalismo àgrário sobre os seus

126
históma e contra-revolução: .1814-1917 . .

velhos domínios feudais e conseguiam, inctusiv e, que sc lhes devol­


vesse m direitos, como o d e manter a sua jprópiria polícia rural, que
consi ;rvariam até o final d<>sécuió XIX. Num c o nário tão complexo,
iria desenvolver-se a indus trialização alemã.11
Nessa sociedade quiê trata de assimilar u m mínimo He «vfon
mas|?araçonsgguir um crescimento sem revolu ç ã ó -e sobretudo na
Prússia, onde ó problema’«coiocava-sc com mak>r nitidez o Estado
aprerícleu logordesde a dt-trota de Napoleão, at necessidade:de fei
cbar as portasàsjdéias subversivas e de criar, um novo c onsenso
: ’.que promovesse a coesão da sodedade.qüe pe rmitisse, corno diria'
Fedei ico Guilherme DL "preencher com.fprçgs espirituais o quese.
perdem em força material'. A açãò iniciou-se coim a reforma educati­
va de Hümboldt e continuou por meio da universidade prussiana,-'
. que oferecia aos intelcctu; ús Satisfação éconômiica e promoção so­
cial, e iécébia deles, em frç >ca, às armas ideológl cas para enfrentar a
revolução, na forma de uniá K ultur que se pretendia iriteiramehte.
dissociada do terreno da p olítica: Ó que signific ava que renunciava
- ãs funções críticas do Esta ido, assuniidas pelos intelectuais-dâ Ilus­
tração, e preparava os hom eris para reverenciar <í Estado, próporcio-
nándo-Ihes uma sanção espiriríial.15
O historicismo parti a dos traços conserv: «dotes da Dustração
- ou d e uma leitura distorci 3ã c parcial daquilo q ue tirava dela - para
negar as suas conseqüênchis. Combatia o univer salismo racionalista .
de~Kã.nt, assim' conio a fiítêrpretaçaofiêgeliana da história, não só
pelo «que tinha de "história filosófica", na tradi<;ão ilustrada, como
tamb(-m~pêlis~suãs possibi lidades de transmuta ção numa interpre­
tação revolucionária.p mito do Hçgel (1770-18;>1) reacionário,filó:
sofo clò Estado prussiano, clesvaneceu-se hoje, qmando sabemos das
suãs simpatias pela Revolu«;ão francesa, mantidas até o fim, e-apren-
demo s a conhecer um "Hejgél clandestino", revel lado pelos arquivos
da pol!ícia.A visão da histór ia de Hegel conservava uma série de ele­
mentos tipicamente ilustrai dos, como o universa lismo, a concepção
filosófica da lei e uma certa visão do progresso ! Estes elementos es­
tavam situados hum contes sto idealista e puderam ser usados num
sentíd q conservador, numa sodedadé como a fi ancesa, que aceita­
va um a parte da herança às t Revolução. Porém a ámbigükiade hege-
iiana i ião era suficiente pa ra uma Alemanha qu e necessitava criar
um nãicionalisrúo qüe promovesse a coesão sociial, sem dãr cm tro
ca ma is que o~rmmmo de n riormas que as classe s dominantes prus­
sianas pudessem tolerar.111 ~ T - . ■ ' ’

127
-capítulo 6

A re alização dessa tarefa foi encomendada ao historicismo.


Para se compreender plenamenite o que esse moviimento significa;
não podenuos contentar-nos com definições mistifica'doías e apolo­
géticas com o a de Meinecke,quc o caracteriza como '"a substituição
de uma visão generalizadora dias forças humanas n a historia por
um proces:so de observação incMviduaUzadora", nern sequer limi­
tar-nos a sua vertente estritameiite historiográfica. Para entendcrjp
historicism o, hã que se vê-lo a partir de Niebuhr (17 76-1831). que
pensa na hi istória como numa foi m a de ensinamento i patriótico, que
pode ajudar a freiar o avanço das idéias da aborrecida revolução:*
segui-lo no momento decisivo que significa a forma ção da escola
Histórica di o direito, com homer is como Savigny. Hua o e Eichhom,
quê combsitem as propostas iusnaturalistas e defendiem. contra-us
leõri&?da] Qustraçãoqi peculiãri dade individual e his tórica das leis
“dê"êãdã~põ vo (o que lhes .permiite escamotear o fato elementar de
que as leis "não . são feitas pelo " povo", mas sim pelas classes domi­
nantes); vejr o papel que.tem no seu desenvolvimento a publicação
dos M onur nerita Gennanicte Hi 'storica, por iniciativa, de Stein, afas­
tado da po lítica depois do fracasso dos seus intento *s de reforma;
perceber com o se integram no naovimento geral o "descobrimento"
do populai ■- poesia, cantos, con tos - , ou entender ern que medida
forma taml pém parte do historie :ismo o "sistema de e conomia polí­
tica naclon ai" de Fricdrich List, encaminhado para dar uma funda­
mentação "teórica" à política jprussiana de união aduaneira - o
Zottverein -, que August Hoffimann von Failerslettcn, autor do
"Deutschlajnd, Deutschland über alies", cantaria entusáamado: "Arti­
gos de consumo doméstico, dar nos graças a eles. Conseguiste mo-
destamentt; o que nenhum intelecto alcançou: fizeste que a nação
alemã se uirilssè, dando-se as mãios". Só ao término de uma visão de
conjunto semelhante, e entendendo que todas essas Correntes con­
vergem num objetivo comum 'de luta contra-revoluicionária e fo­
mento de tuna consciência nacional alemã, em torno da monarquia

* Barthol d G. Niebuhr, nascido eir i Copenhaguem, convcrt cu-sc em funcio­


nário pnassiano, foi amigo de Sa vigny e colaborou em H:oma com Hum-
boldt, qu ando este era embaixador da Prússia, naquela ckfaide (1802-1808).
Contrário desde o princípio à Revolução fiancesa, o es tampido de um
novo movimento, em 1830, prod tiziu nele ura tal terror que precipitou a
sua mort e.Tal era o olímpico distanciamento que, a respei to das coisas hu­
manas, e: tperfmencavam esses san tos patronos da erudição acadêmica mais
pura. -

128
Yyt-a -
CrO4 j. - w
çu s& x -
história e contra-revolução: 1814-19X7

pruissiana, podemos compreender na sua exata dimensão o signifl-


cad o da obra dé Leopold von Banke.17 - ' ; ...
■- Ranke (1795-1881: i), que procedia de ur na família de pastores;
iutciranos, publicou o seu primeiro livro, Riste h ia 'dos povos m m â -
nicas e germ ânicos, em 1824, e conquistou com ele a estima das
classes dirigentesprussiamas, que lhe abriram as portas da universi-
dad e de Berlim, de onde partiria paia combate £_as idéias hegelianas.
Sen livro continha em apêndice uma "Crítica aos historiadores mo­
dernos", dirigida contra a filosofia histórica-da !Ilustração, quèsignifí-
cav: i o início da cruzada r netodojógica que iria desenvolver ao longo
de t odaa sua vida. Üma frase do prólogo engendraria,entretanto,um
equívoco que ainda subsi ste. O jovem historiad or, nuni alarde de mo- -
dést ia, declarava que, ainda ^ue a história tentia "a missão de julgar
- o paissado e de instruir o ]presente em bènefido db futuro", seti livro
hão aspirava a tanto, aper las se contentava em "mostrar as coisas tal
coimo sucederam". Quis-st :.tòmar essa fiase - "Er will bloss zeigen wie
IgentUch gewesen" / c iomo uma declaração metodológica e, aco­
lhida com entusiasmo pelas legiões de historiadores acadêmicos,
que acreditaram que legiti imavam a sua incapac idade de pensar, con­
verti tu-sè numa bandeira. O engano chegou ao extremo de que
Goo ch assjnal4s.se como o primeiro dos méritos de Ranke o de "di-
- vote iar o estudo do passa do, tanto quanto pos síyel, das paixões do
presente, e escrevei-as coisas tal como foram;'. Deixando dc lado-o
que o próprio Ranke cansou-se de repetir; que a missão da história
"não consiste tanto em rei mir e interligar fatos, 1;omo em compreen­
dê-lo s e explicá-.ios", pouc o teria servido ao Eslado prussiano, se se
tives se limitado a "éscrevt :r as coisas tal como foram". A sua biogra­
fia e ásua.doutriná bastariam para desenganar-iaos.'8 -
... Depois da revolução de 1830, o governo prussiano decidiu
publiicar uma revista para combater as idéias progressistas: foi a Re­
vista Histórico-Política, c uj^direçgo. qõnfi.ouj 1 Rankê7n~ã~quaLSa-
- vigny colaborou ativamente. Que, em poucos anos tivesse de.sus-
pend é-la, pòr causa da sua. pequena difusão, nã o rleven-v ao apniu .
ticiscao de Ranke, mas simi a seus escassos dott :s para interessar ao
publico. Em 1834; passou :à situação de catedrávico em Berlim, eno-
breCt:u-se em 1865 e inic iou, nesse mesmo an ò, a publicação das.
suas 1abras completas, cm ; 54 volumes; ganhou ai amizade de Federi-
co Gi filhei 1jie da Prússia e de Maximiliano da B aviera, e viveu o su-
7 ficien.te para contemplar a. universalização da siiafamae, o que não

129
J

capítulo 6

era menos importante, para ver os seus discípulos à frente de qua-'


se todas a;s cátedras de História da Alemanha. Ránkt: merecia essa
confiança ie esse prêmio.Toda a sua obra esteve desti nada a fustigar
a revolução , a atacar os ilustrados que "ainda que pel o momento ti-
vessem Iirr ipado a atmosfcra~dos seus miasmas, levara ma. humanida-
de a desditas imensas", e a sustentar.que a finalidade suprema da
História é "a de abrir o caminho ã uma política sã e c erta, dissipan-
dÓ^as sõmbras e os enganos qu e.-aestes tempos em quejgivemos,
obscurecem e fascinam as mentes dos melhores ho mens".19 Nada
—it) que justifique o "contar as coisas tal como foram", e nnuito menos ó
„ ^ " divórcio d as paixões do presen te". Ranke foi um furucionário ideo­
lógico do listado prussiano, útil, serviçal e plenametite consciente
_do papel q ue lhe cabia. O que tsucede é que os cãef i guardiães do
sistema acstbam acreditando qu<: a casa que defendem é sua, é não
. do seú don.o,que lhes alimenta ttodó dla^y '
- A origem mesma da concepção dá história de: Ránke, como
o motor primeiro que inove.e articula as peças de ú ma; sociedade '
dissolvida cm individualidades c de um universo fra gmentado em
povos, está em Deus, que vem suibstituir o progresso <ios ilustrados.
Nos mome ntos decisivos da hls tória aparece em cer ia aquele que
costumamos chamar de destino, porém que é em realidade "o dedo
de Deus". C omo escreve a seu filho Õtto,em 1873: "Sobre tudo pai­
ra a ordem divina das coisas, muito difícil, certamente, de demons­
trar, porém, que sempre se pode intuir. Dentro dessa ordem divina,
idêntica à s ucessão dos tempos, ocupam o seu posto òs indivíduos
importante: s: assim é como tem q ue concebê-los o hist oriador".A ati­
vidade dos homens se canaliza sitravés das nações, quie são o ente -ó
fundartientíd da sociedade. Cada uma é distinta e peculiar, e não vá-,
lem pára eiis as generalizações:' 'cada país tem a sua ]arópria políti-
ca".s Por is:so os livros de Rankt: nos falam sempre d a história_das
nações e das relações entre elas, posto que os únicos _iobjetos que o
historiador prussiano parece eriicontrar para justificar a existência
do Itefadqsiãq>a diplomacia e a guerra* '

* "A atenç ão do historiador deverá dirigir-se (...) aos povos jmesmos que re­
presentai) 1 um papel ativo na cenai da história, às influências quê exercem
um sobre o outrò, às lutas que susi tentam entre si, âs trájetc irias que desen­
volvem d<;ntro dessas relações pac íficas ou guerreiras" (L. v'on Ranke, Pue-
blósy estudos ert la biitórla m od erna, Fondo de Cultura 1Econômica, Mé­
xico, 197í>,pp. 518-319). •■

130
-C >

lústt M ae contra-revolução>: 1814-Í917 '

Tomemos, por exemplo, a visão qüe'nos oferece da monar­


quia i espanholados séculos XVI e XVIIA ãnálúie começa com os re­
tratos pessoais deC arlos^FU ipelIeFilipein - já vimos quê, "na or­
dem i divina das coisas" eincoritram-se antes de: tudo "os indivíduos
- imp ortantes", e nçnhum c>é mais que um réi.A baixo dos monarcas,
a cO rtee os ministros, a o j rganização do goyenv o e da administração,
a fjn :enda e os tributos, e , em quinto lugar, "a : situação pública", ex-
pliciida de tal inodo, que a pobreza de Castc.iá. para citar só um
exei nplo, é apresentada c :omo causada pelo ca tolicismo. a "concede
ção hierárquica do rnundlo" e o gosto de "pasmar a sua vida aleerê-
m men te e sem esforço" dos >espanhóis. "Carecian ii dó sentido dá labo1 -
riosi dade que exige uma í tplicação lucrativa”, c oncluirá, e assim não
se pi odia conseguir nada. Torque "o que não-p<“netra vitalmente no
espíi rito de uma nação, tiião pode chegar' à fló resrer éfírazmenró."
Dêp bis dessa trivialidade, a análise do Estado c: stá concluída e pode
_ pass ar.à segunda-parte, dedicada à ação da "monarquia espanhola .,
nò naundo", quê sè resumre,como era de se es|pcrar,às guerras que
tfrèram com outros listados.*1 ^
A identificação emtre os conceitos de '"Estado" e "Nação" é
cons iciente e deliberada. 1íankc nos diz que o_ acòhtecimm m mais.
impt jrtante do seu tempo foi "a renovação e o novo desenvolvimen­
t o ^ crrracíõnãlidades" e a sua integração no ma irco dos Estados, que V
não ipodiam doravante sul isistir sem elas. Quebi tado o velho rnnsen-
so, o s Estados devem apo iar-se agora na consc iência de identidade
' naci< anal dos súditos, o qiue exige que se lhes eduque numa nova
Histç iria, que não falará de: sociedade, Estados ou progresso, de mo- \
dos <ie subsistência ou de jutas de classes - argumentos que condu­
zem a uma visão crítica e >debilitam a coesão so çial -, mas sim de po- / n'
vos, <ie unidades interclass lstas cimentadas numi sêntimento rnmiim ,
da n acionaUdade. A própria Revolução francosa é reinterpretada
nestes termos. Ranke nos diz que todo arando povo reclama uma_
posij ^ão internacional de acordo com a sua dig nidade. Os governos^
franc :eses da segunda met; ide do sécukTXVIII fi acassaram em Ofere­
cer e ssa satisfação a seus s üditos e, quando quis eram tomar medidas
de re forma intèrnã~para c o rrigir ãs còís5s,sg_eqií5vocarani e abriram'
cami nho para a revolução. A fórmula correta ei a a dé outros países,
que "tinham sabido pôr érn tensão as suas forçais nacionais, com ex-
traor dinários sacrifícios, piara chegar a desenvolver um grande po­
der r io, exterior". Não sem problemas, já que "huvia sido necessário,
- para isso, eliminar en ítod a parte muitos obstáculos nascidos da si-

131
0- v: 5. ! . X •Y '< S c í v ú k ^ . 1&&Z- É7r\L* ■-\íu~^Lçç^>

jfXUsZ* .uCL c©>vjíki'-‘-^v1' '■DTr?--a. '~íírisLL^*vuG^tk 'M


1 capítulo 6
f 9V j 3^
A ' £U a k * ' A/vií: ■:Jís'-'~t-- F
t5
v£l/0£ h o & - tuação anterioi •e, em não poucos ca sos, atentar contra os antigos di­
pç:.. .-
reitos e privilé] gios".2 É o que, ao fini, irá fazer a monarquiia prussia­
. 0> V ^ F , na,e,mais tard'e, o segundo império alemão, cada vez que se encon­
; ... « tra com uma grave crise interna: dirigir as energias nacionais para
r/p-É^. um inimigo ex temo - que pode incllusive ser, ao mesmo tempo, ex­
terno ao "p o v < p o ré m interno num sentido, geográfico 1, como os
comunistas o u . os judeus - e unir a sociedade em tomo do Estado,
usando na me< lida a repressão e a fabricação do consêns;q.
Para coi atribuir a essà identif icação.de povo e Estado, Ranke
mostrará sem pre reverência com relação ao poder,* é falará com
■tgs»
todo respeito <dos dirigentes,atribuindo os mais elevados: motivos a
seus atos.O h istoriador preparou aissim n caminho para a submis­
são absoluta d os cidadãos ao poder, sem discussões nern argumeu-
laçõ êgrpõsto t ]ue n Estado encarna a nação e esta não fie zoutra coi-
sã que contini uar as pautas fixadas pelo dedo de Deus.. Como dirá
Tfaylór; e s s « í tomens "viam o Esta ido, quem quer que o regesse,
como parte ds lordem divina das co isas e acreditavam qu ie era o seu
devér aceitar essa ordem". Não sê ■opuseram a ele, raras vézès pro1
testaram e acnbaram justificando todos os seus atos: "Ríinke 'expli­
cou1 a revogai ção do edito de Nant:es; seus sucessores 'explicaram'
as câmaras de gás".23
Esses sucessores", como Trf átsclikc (1834-1896), não teriam
outra coisa a fazer que prosseguir na obra de sacralização do Esta­
do, identifica« io com "o povo uniclo-pela lei e considerado como
uma potência independente", que t em o direito de "fazer prevalecer
■pelas armas a . sua vontade contra toda vontade estrangeira". O fim
das naçôes-es tado c a guerra:

A guen á não é só uma necessi idade prática: é tam bém uma 'neces­
sidade i teórica, uma exigência da lógica. O conceito c le Estado im­
L plica o conceito de guerra,poisto que a essência do Estado c a po­
tência. O Estado é o povo organizado em potência soberana.Tem
com o prim eira missão a de ansegurar-se a sua própriia existência,
de prot :eger-se contra os Inimigos interiores e exteriores,22

A necí :ssidade de eliminar o s obstáculos nascidos :da situação


interior, prop osta por Ranke, converteu-se agora na cori sagração do

* "O poder por si não é outra coisa quê a forma dc manifesi iar-se üm ente
espiritual; 1 im gênio próprio dotado de vida própria, que se 1ajusta a condi­
ções m'ais c >umenós peculiares e qi ie cria a sua órbita própr ia de ação” (L
von Ranke, Publos.y estados, p. 520). .. -

132
história é contra-revolução: 1814-1917“ - ^ *. ü ,-r-, . i U
-—,—, ............................................. .................. ... ^ Urt-VL£t'V-t-C--i_ 0jLf''Ai q\_
■>L-vj -y ^a - ip--j
direito do Estado desproteger-se contra os inimigos interiores", do
_Tã tAc>^c^*,s
qtie os governos alemães fariam - e continuam fazendo na atualida­
(j>Uj
de - um amplo, porém mttito discriminado, em prego. v ■"
No começo do séc ifio XX, a crise dio historicismo era eviden- p|
te, o quéexplica que surçfissem uma.série de tentativas.de superar £
suas limitações'no terren o concreto dá histótiia.áo mesmo tempo
que resultava completam'enté escanteado ãò~c la teoria econômica,
depois de uma "disputa dle métodos", que conduziu a reivindicar a '
primiazia do teórico.” As correntes filosóficas que propunham a rc-
- visão do historicismo, o f áziam com o fim de legitimá-lo, c omo se
perc ebe no fato de que ní io se interessavam en 1 absoluto pelos pro­
blemas concretos da investigação - nos quais atceitavam as propôs-
tas hiistoricistas -, mas sim úniça_e. exclusivarm ;nte pelos da funda­
m entação filosófica dos métodos. Devolviam, assim, a sua abalada
confiança ao historiador acadêmico, que se limitava a desempoeirar -
■; e reruiir "fatos históricos", éxplicando-lhe qúc o que rsfiívá fiiTcnHn
. não só era "científicoli.aj inda que fosse dentro de uma ciência de
orde tn inferior ^ como tar nbém a única forma 1ícita de"trabalhar no '
camjjo da História. Porém -o resultado final, dif icílmente previsível,
foi q ue minaratffós cimen tos mesmos do histoi -icismo e ajudaram a .
abrir o caminho pelo quál se imporiam novas tendências nas ciên­
cias ;soeials -o complexo integrado.pelo marginalismo,funcionalis­
mo «e estruturaiismo que agibariam transformando a própria
histó ria acadêmica.
Nessa linha se situ a o neo-kantismo da escola de Marburg,
cujo teórico mais representativo, é Heinrich f Ückcrt (1863-1936).
Para ltickcrt, a realidade empírica é múltipla e inabarcável na sua to
V; talidí ide.A forma na qual a; »diversas ciências eni rèntam-na é difêren-
te.As ciências da natureza o fàzém.còm um mét òdo "generalizador",
que usa os conceitos de lei, gênero e espécie, com o que conse­
guem um conhecimento f;eral da realidade, enquanto que o indiví­
duo, com tudo o que tem de único e de irrepe tívei, deles se afasta.
Isto lé, em contrapartida, 'O qtie recolhem na cua conceituação as
ciências da cultura, entre tis quais figura a História, auè incorporam .
além disso a noção de "valòr",ausenteinas ciências da natureza, fsso
hãcTqiier dizer que a Hisitória prescinda totalr ndnte dp geral, que
reaptirece de duas maneiras distintas: situando o individual em seu
meio (no seu complexo liiistórico) ou estruturando-o no tempò (nó •>
seu desenvolvimento). Só que,nume noutro caiso, "meio" e "desen-
! volvi mento" são examinac los de forma individittãl; não há "leis" na

133
, capítulo 6

história que se assemelhem-às das ciências da natureza. Há causali­


dade, porém: esta se refere sempre à relação entre acontecimentos
Inçfiyíduais e: jamais permite uma gêneraliz.áçao.A seleção dos fetos
com os quai s o historiador constrói a história^faz-se e m função de
"valores" transcendentes, que esltão mais além do ob jeto e do su­
jeito. AHistc iria se.converte assh n tiuma construção mental erigi­
da pelo honaem, e a concepção de-um progresso hi;itórico e um
engodo. "Só podemos qualificar de progresso o dese nvolvimehtp
'qú^cõnduz a uma determinada iformação, se esta foi estabelecida
prev ia m ent e como valiosa em fmnção de umá escala idç valores".“
Com o que não denunciava, em realidade, nenhuma inferioridade
da História, mãs sim o escamotes unento com que os Jtistorieistas -
e seus coleg as, acadêmicos, seja qjualfor a denominação da sua sei­
ta í- tinham t ratado.de ocultar qqe erigiam o presente, a ordem so­
cial estabelecida, no póhto de chegada da evolução histórica dá’-.'
'humanidade:.' y . ■■ -
. Ainda Lque anterior no tem: po a alguns neo-kahtianòs.Dilthey
(1833-1911) influiu com atraso na filosofia da históiia.* Para Wi­
lhelm Dilthe;y não são dois camp'os distintos o que estabelece a di­
ferença entre as ciências da natureza e as do espírito, mas sim o
comportamento distinto dessas ciências.O que é físico .inclusive no
. homem, é a cessível ao conhecimento científico-natuinl, enquanto
que aquilo que constitui o objeto das ciências do espi [rito. só pode
ser "compre endido"; os estados humanos se viveni, sito manifesta­
ções da vidai.A vida, tão complex a, só pode ser apreendida através—
das nossas próprias experiências de vida: de nossas vivências..

Se traia do feto de compreeriider mediante o quai a vida se esclare­


ce a s i mesma na sua profundidade c, por outra parte, nos cotn-í*'
preen demos a nós mesmos c: compreendemos a ou tros à medida
' que vi unos colocando nossa própria vida "vivida" po r nós em toda
classe de expressão de vida p rópria e alheia. Assim, p ois, temos que
a conintão de vivência, expte: >são c compreensão constitui o méto­
do próprio pelo qual se nos dá o humano com o o b jeto das ciên­
cias dio espírito.”

•Assim, Ortega y Gasset descobria simultaneamente, lá pelos anps 30, o


pensamen to de Dilthcy e o feto de que a Segunda RcpúbUa i espanhola era
demasiado radicai para o seu gosto: duas coisas pcrfcltam entc coerentes
entre si. (Veja-se ps artigos sobre Dilthcy, publicados origjmlmcnte nos
anos 1933 -1934, in José Ortega y ( iasset, Kanl, Hegel, Dtitbey, Revista de
Òcddcntc , Madri, 1973, pp. 129-20 1).

134
história e contra-revolução: 1814-1917

Porém, ainda que muitos desses utópico s tenhamsobrevivido


nes sa mescla de materiais filosóficos de entulho em que o historia­
dor1 acadêmico costuma, cimentar a sua prática cotidiana, pu são
por nposamente redescõlbertos de quando em quando por alguma
dessas mentes generosas, que sempre estão dispostas a iluminar
con n a sua ciência aos pínbres historiadores pe rdidos no bosque daS
suas dúvidas filosóficas, nãõ sérâo os cohtinuadores do neo-kantis-
mo e da "filosofia da vidu" os que marcam a rota a seguir depois de
191 7. Por então necessitava-se muito mais que ò velho historicismo,
renovado ou não nos seus fundamentos filosóiãcos.Novas correntes ,
conitra-revolucionárias st: apresentarão como antídotos às concep- \
çõe s históricas marxista; >, que até então não <inham preocupado a \
um: rcfflturã^cadêmicã7 que podia dar-se. ao l uxo de ignorar a sua ,
exiírtência. Rickért ou D.iltfièy não serão malíTque os precursores ■\
dos novos profetas; a su: 1 tarefe se limitará a limpar o terreno para
abriIr-lhes çaminho__' 7 7 ~ _ ■
l. 7" . ■ ' . -s. *7 ’*•

capíítulo7
__*

o materialismo
. - '

histórico e a
; ■ __ - - ' . criítica do -
capitalismo

. revolução de. 1830 levava em seu :;eio muitas esperan­


ças qiue acabou frustrando por completo. Com o seu firri, não sé ti­
nha conseguido na França grande coisa além dçjjiudar^de^iastia,
retocar a "carta" e assegu rar o poder à btirguc :sia. Na Inglaterra, o
conjunto de agitações que tiveram lugar nos anoá de 1830-1832, du­
rante a chamada "crise da reforma", não só obedeceram áo mal-es-
tár tí imponês, que desemb iocou na grande revol ta do Sul, como tam­
bém a motivações políticas.Porém as revoltas j oram esmagadas e a
agitaição não deixou atrás de si mais que a refo rma parlamentar de .
Tf i j f t j j n ã o satisfaria à s -demandas populares Na Alemanha, as
modi jradas conquistas libe :rais .alcançadas_em aj Iguns estados desya-
necc ram-se milito rapidanaente-e-os cárceres t mcheram-se conuas
vítim as da repressão .JJaJtália, a revolução .de 1 8 31 fcii sangrcnta-_
ment e liquidada pela Áusti ria, deixando latentes as_asDÍracões nacio­
nalistas revolucionárias.1 - -
~ Porém,há outro fato dominante nesses amos, além do fracas­
so dai revolução, e é a crescente consciência d e que as promessas
smltllianas de que o capitalismo fraria a felicidlade.para todos não
iriam se cumprir. O debate acerca das conseqü ências sociais da in­
dustrialização britânica de:u lugar a autênticas : filigranas na arte de
disformara realidade; porém a evidência do pauperismo dos anos de
1837 a 1842 fica difícil de ocultar_e, comtxdiria um testemunho da
época,-depois de oferecer-nos os resultados dt: uma pesquisa que
abarcava um terço da pop ulaçãõ de Mancheste r, não sé viam remé­
dios üocais è temporais que pudessem remediar o mal: "A desordem

137
A capítulo 7

é orgânica e o remédio deve ser ig.ualmente orgânico", gasta ler as


comoventes impressões que Mayhtew publicou em 1849-1850 paia
dar-se conta d c que o fenômeno nã o era transitório e qu e não sc so­
lucionou comi a volta de uma maior atividade industrial depois de
1842, como querem os historiadores acadêmicos; basta estudar
qualquer dos aspectos relacionado s com a vida da classe operária
alimentação, jmoradia,' saúde - para perceber que o. trai nstorno era .
profundo e die alcance global.2 .
Como na Grã-Bretanha, na Alemanha os anos quarenta foram
anos de fome, com a crise das exp ortações têxteis da Si lésia, fracas-
so^da colhcita de batatas, errT 1845, e além desta a de cereais, em
1846. O custo da alimentação aumentou uns 50 por cento, entre
1844 e 1847; a fome e as graves dificuldades de todo gcnero ajuda­
ram à radicalizar a popuiãçãoõperária. Porém, se no cas.o dos traba-~
lhadores fabris, à curva dos salários não parece terçoinpçnsado a
do custo de=»rida, até os anos da crise de 1845-1847,nc> salário dós
artesãos, muito mais numerosos, a. piora da situação ha via começa­
do antes e ch egou a extremos mui to mais graves, o que explica a re­
volta dos téc elões da. Silésia, em 1 844, estendida a ou tiras zonas de
produção art esanal.*
Na Fmnça. a aguda ariãlise de labrousse nos mostra que a
tendência dei salário real foi a dé baixa entre 1815 e 1B51, enquap-
to a burguês ia estava enriquecem lo. "Uma classe_de_tic imén§_se_en-
riquêce. Pori ím a maior parte rüT população-vaLempol arecendo-se.
O salário abaixa e em algirnslmornentos desaba". Será, precisamen­
te, o desabamento de 1847-1848, «guando o salário induistrial cai em
uns 30 por c ento e o preço do pã o dobra, ò que explic a a forte car- .
ga social qut; terá aqui a revolução de 1848.J
Encontramos assim um novò traço que acrescentar ao do
empobrecimento geral da classe operária, um traço que nãò Éilta
tampouco n;a Inglaterra e na Alem anha: o processo de c Uferenciacão
crescente das fortunas; o fato de que, ao mesmo temp o em que os
pobres se-to mam cada vez mais pobres, os ricos se eru aquecem. Da
consciência de que.os dois fenômenos guardavam unna estreita re­
lação, nascei rá a receptividade do s operários e artesão: s à crítica do
capitalismo. Dá percepção de quie os dois fatos - o em pobrecimen-
to .e a tomaria de consciência - significam um graveTÍíco para a es-
lãbilidade. di i orderiTburgiãesã, su rgirá o novo tratamei íto da pobre­
za, identificada eni boa parte coitn a delinqüência, de modo que a
nòva lei bri tânica dos pobres, de: 1834, criará autênti cqs cárceres,
onde os polbres são forçados a trabalhar, não tanto p elo benefício
o nu iterialismo histórico e ã crítica do capitalism'o

que possam produzir, coimo porque a ameaça da u>orkhouse asse-


gurai trabalhadores mais submissos e menos ccinflitivos.'’ ,.
í atitude aos economistas clássicos anté as problemas sociais
caus ados pela industrialização seta bastante amlb.ígua. Os que sentem
a no stalgia da velha order n social varrida pela t evolução, mostrar-se-.
- ■- -ioxnaiscontundentes na denúncia. O pessimismo que Sismondi ha­
via c xpressadò, em 1815, i eaparece, matizadam« :nte, nos críticos con-
serv;adores da'industrialização, comó Villermé o u Eugène BureqqUe
- expí íem a situação de mi séria dos trabalhadon a , porém íiãò. crêem
necí issário propor outra c oisa que reformas hui nanitárias dc alcance
limií ado. Outros homens i rão mais além, pra bus car a raiz do mal, não -
n os1’abusos" remediáveis, mas no fundamento mesmo do sistema: na
sua <tconomid política, En tre essas vozes, encomtraremos-desde ope-
^ ráric is, que pedem que o salário seja todo nó pi eçodasmercadorias .
- no tugar de pesar pele "renda, impostos, dízimiõs eÍ5enéüciosl,:rãte
x ' . J-íli utn‘i ndustrial como Robeirt Owen, que,ante o fato dé que a-enorme
H capa cidade de progresso que a técnica colocoi unas mãos da socie-
11 dade: industrial não é cap; tz de evitar a greve e a miséria, pensa que ~ ■
[ ' isso: se deve a que nem toc ia a população' partici pa dos benefícios do
■nove rSistema - com o q u e a incapacidade de cnnsnmir dos pobres
redu z o mercado - e pxrip õe, para soluciortá-lo, que"o padrão de va­
lor d eixe de ser o ouro e a prata, para fixar m a eu lugar'a medida do
trabsilho humano. Oweh não se limitou a téori; tar, mas quis pôr ém
práti ca as suas idéias, fundando comunidades industriais ordenadas
de acordo com os seus \princípios, das quais haveria de surgir o
exen íplo que expandisse o "Novo mundo morai!” - aquele em que os
bene ficios da industrializai ção se dariam sem os males da exploração '
capit alista -, e estará tambe :m, com a sua ação oi ganizadòra e as suas -
idéia s, na fase expansiva d o movimento sindica 1 britânico. Mais lon­
ge que ele irão ainda outros críticos do capitalismo, comoThomas
Hodf ;skin, para quem o cajpitalista não tinha dináto "a nenhuma par­
te dm produto do trabalhador", ou William Thom pson, que propunha j
uma distribuição da riqueza que engendrasse "a maior igualdade
comjoatréel com ã maior produção",6 . -
Da derrota das aspii rações revolucionária s de lá30 e da cons­
ciência do fracasso social d o capitalismo - a consciência de que não
é um sistema para a prospi :ri3ã3cgeral,mas sim. uma nova forma de
, expk jração - nascerá uma ixansformação das prt ipostas revolucionà-
rias. <Ds anos que decorrer n entrel83Q je.l848r sãenosranos-enrqtlê'
o radlicalismo operário briitânico engendra o cí irtismo - a demanda ^ ■

>■ .
capítulo 7

I. maneira, ; ,do. fundamentalmen te, por uma


visão da histò ria que nega a da esc ola escocesa, uma critica da eco­
nomia política clássica e um programa de construção do futuro ra-
dicilmente oposto ao da burguesia
O fato deque a tarefa de desmontar a lógica do capitalismo
tenha ocupad o boa parte do tempo do Marx da maturidade.e a apa­
rente abunda ncia <los seus escrito >s econômicos - que, na hora da
verdade, redu zem-se a pouco mais que O capital, com ps seus ante­
cedentes, mai tenais e rascunhos - têm levado ao erro >de supor-se
que o matent dismo histórico é fon damentaimente ecomomia - ou a
sustentar o dlisparate de que introduziu a economia ma História,
quando o que : realmente fez foi vol tar a historiar uma ec onomia po­
lítica que se I lavia fossilizado no jogo de pretendidas a ifegorias jn-
temporais, co mo o demonstra, poi: exemplo, o que Vila r chamou a
“história implícita" nas obras econômicas de Maix. Não é válido
operar uma «ieparação radical entre História, economia e política
marxistas (en tre análises do passai do, crítica do present e e propos­
tas para o futi aro), porque, quando se tenta isolar essas p eças, empo­
brece-as notaivelmente, o que vajie tanto para determ inados “ma­
nuais de Èconomia marxista", com o para os intentos de: explicar "a
teoria da histi ária de Marx“, por bei n intencionados que sejam uns e
outros.* Se nãió se aceitam os corte s verticais, tampouco pode^sè ad--
mitir os horiz ontais, que tratam de distinguir entre um "j ovem" e um
"velho" Marx,, entre uma concepçã o humanista e outra 'economlcis-
ta da história, ou entre duas liipót eses‘socialistas difere :ntes. Desde
' que o matenialismo histórico aparece completamente- elaborado,
por volta de 1845, há progressos <: modificações nos conhecimen-

* Pelo que s e refere aos estudos sobr e uma suposta "teoria da história" - que
: nunca foi ft irmulada isoladamente o amo tal a reprovação va üe para todos,
desde o Ensaio sobre o desenvolvimento da concepção monista da
história, de: Plekanov, publicado em 1895, até as recentes e c :stimávcis ten­
tativas, com io sãoWilliam H. Shaw, M ãrx‘s'theory ofbistory, S tanford, 1978,
onde a com cepção mandana da histi ária nos é apresentada cc imo um deter­
minismo que foz o progresso hum ano depender da evolução das forças
produtivas, ou GA. Cohen, Karl Me irx ‘s tbcory o f histoiy. A, defence, Cla-
rendon Pre ss, Oxford, 1978, que fo;: um meritório esforço para analisar e
definir cads i elemento da terminolof ;ia marxista, sem que ess a operação de
dissecação complete-se com a adeq uada visão dinâmica do conjunto (por
mais que uj m cidadão norueguês,}. I iister, tenha se revelado dlizendo que “é
sem dúvida 4 o melhor livro jamais e scrito sobre o materialis: mo histórico",
in Annales,, 3 6 ,198T, no. 5, p. 746). , . .
- .’ , , ^vssaieu

o materialismo histórico e a critica do capitalisnvo . çxrpH Aw sl A


■' • ‘ . ' ... .
toslhistóricos concretos ide Marx e Engels ou na süa compreensão ;
doí mecanismos do funcionamento econômico capitalista - corrió õ.
proí ri. o desenvolvimento do conceito de msds-valia porém não.:
"cor tes" radicais no seu p ensamento. Moitas ca ntradições aparentes
se ri esolvem quando recoirdamos que a intençã o básica desse pensa-
mer ito é de natureza política e que a evolução real do mundo em
qiie vivem os obriga a co ntínuas adaptações d e detalhe.1“
Conhecemos quais foram as etapas dã elaboração do mate­
rialismo histórico.O próprio Maux relatou que, em 1842-1843,quart;
do e ra um jovem hegeliar iode esquerda que es crevia na Gazeta Re­
nan a, coübe-lhe ocupar-s e, numa série de quatro artigos, dò proble­
ma dos roubos de lenha, que haviam se co nvertido num delito
müitto frequente. Assusta idos com o aumento desses roubos, q s
membros da dieta rénana decidiram-se converl :ê-los em "roubo qua­
lificado", ó que implicavii penas de uma dureza desproporcionai.
Para um homem educado nos princípios hej?elianòs, segundo os
qíjai s a função do Estado era a de garantir o di reito, a comprovação
de q:ue esse Estado é ãs k:is que publicava esta vãm ao serviço de al­
gum i interesses particula ires - da defesa da .t impriedade privada,
nascida da usurpação do s bens comunais do;> camponeses - teria
que resultar profundamente perturbadora:

Minhas investigações; deram este resultado: q ue ás relações jurídicas,


assim com o as form as de Estado, não podem i explicar-se nem por si
mesmas nem pela pretendida evolução gem i do espírito humano,
mas sim que se originam nas condições materiais de existência, que
Hegel, seguindo o exi emplo dos ingleses e fia nceses do século XVm,
compreendia sob o-i tome de "sociedade dviU", e que a anatomia da
sociedade civil tem-s e que buscá:la ná econc unia política.

Não pensava ainda "estender essa comp rovação ao conjunto


das ileis", porém, no verão de 1843, pouco dep ois de que desapare-
cess e a Gazeta R enana, t :mpreendeu uma revi isão crítica da Filoso­
fia cio dii-eito de Hegel, <ia qual só se publicaria a introdução nos
A nuáríos Franco-alem ães." /-
No mesmo, e únic o número dòs Anuái iios publicava-se um
Esboço de ctitica da econom ia nacional, d e Fríedrich Engels, •v
onde, partindo de pressupostos muito distintos, se chegáVa a con-
clusi 5es ipuito próximas das dè Mane Engels dcenunciava "o sistema
de fsíbrica e a escravidão moderna'1e prometia: "não demorarei em ,
ter c ícasião de expor amp lamente arepugnanfi; imoralidade de dito .
• - __ capítulo 7

sistema e de pôr de manifesto sein nenhuma concessão a hipocri­


sia dos economistas, que brilha aq ui em todo o séu esplendor". Era
o trabalho qtie efetuaria no seu estudo sobre i situação da classe
operária na Inglaterra, aparecido em 1845. Enquanto isso, e esti­
mulado pelo artigo de Engels, Mar s pôs-se a estudar economia e re­
•1..-2S
digiu os rascunhos que conhecemos com o M anuscritos de 1844.
Foi nesse me smo .ano que deu o passo que o levou do liberalismo
aq socialismo. Para Mehring resultava já visível em À questão jud ia ,
onde a sociedade socialista se_yisl umbra, ainda que seja "ém rascu­
nho". Na CrU\ica à filosofia do dirt 'ito de H egel, publicada nos Anuá­
rios franco-ai emães, esboça-se a revolução que deverá, ter lugar na
Alemanha, com o obra conjunta d a filosofia e do proletariado, mais
radical que nienhtuna anterior, já qtie deve "acabar com todas as clas­
ses de escrav idão". E nas Notas crí ticas ao artigo "O rei da Prússia
e a reform a tmciaV.Por u m p russ ia n o ,escritasem fins de julho de
1844,poucas semanas depois da insurreição dos tecelões da Siíésiá,
toma partido decididamente pelos sublevados, pelos que "o prussia­
no" Ruge har ia desenganado por lâlta de "almà política", sustentan­
do que essa revolução, "ainda que só se realize num distrito fabril, é
um ato de protesto do‘ homem contra a vida desumanizada". O mes­
mo caminho que levava Marx a es: ias formulações raciicais, o levaria
'a militar nas .filas da Liga dos Justos.11 ' í$ 1
Em ag osto de 1844 encontraram-se Marx e Engels em Paris,
no seu primeiro contato duradouro, e escreveram conjuntamente
sua primeira obra em-colaboração ,A sagrada fam ília, crítica a .Bru­ \vSè«
no Bauer, que representa uma tentativa de definir a sua posição a
respeito da filosofia alemã. Engels data o nascimento do materialis­ ■ ^
mo histórico - quer dizer, o mome nto em- que, aquilo que até então
tinha sido critica parcial e observação isolada, çonverteu-se em sis­
tema - ernjjíátáre-nos diz que M arx o formulou pela primeira vez,
na súa Teses sobre Feuerbach. Nesse contexto encontramos-a cha­
ve panTresolver um dos problemas fundamentais que ambos ti­
nham delineado - o da incongruência da filosofia do direito e da
economia pq lítica com a realidade social^, expressa numa breve fór-
muE: "A vitfc i social é èisênciãlm ente prática. Todos os mistérios
que desencar ninham a teoria para o misticismo, encontram a sua so­
lução raclõhail na pratica humana <e na compreensão dessa prátic
Ui.
E, ao mesmo tempo que se denuncia assim uma teoria quê serve
para mascara r a realidade, propõe-: se como objetivo a elaboração de
um gênero di e teoria que, contrari; imente, se laça de maneira aberta

144
o rruiterialismo histórico e a critica do capitaUsih o

e consciente, explicita, em função de uma pi-ática revolucionaria,


"Ós filósofos não fizeram mais que interpretar de diversos modos n
mundo, porém do que se: trata é de t ransforma- l o " . .
' Porém, é sobretudo em-ri ideologia alemã, fruto de um
loneio trabalho rie-rnlahoi tacão que Mafxe Enaels efetuarão, em Bfu-
xela s^entirç_o verão de l í 345 e o outono d e líi4 6 : onde nos enco iú ,
.trair tos com as primeiras Formulaçõe extensas é coerentes dò mate-
. rialli irno histórico e da su; i concepção da histõi ranEram dois grossos ^
vSíu iftes, çoneiuídojrsó à s meias, que mais adi ante, áQ ver que não.
irian a publicá-lo nò’ mome aito, decidiram de coi mum acordo abando-~
n ar1'a roedora crítica dos ratos" (que parecem 1:er levadò muito a sé--
rio a sua função, segundo se deduz pelo estado do manuscrito), ri
ideologia aleniã, publicada erri 1932, começa com um capítulo em
que. se explicam bs, conceitos básicos dd~ ma iterialismò histórico,
partindo de ura marco materialista trazido por Marx e de uma con­
cepção dos estados liistõ ricos, que constitui a contribuição de En-
gels, e que é muito distini tá daquela da escola escocesa, já nué defi-
ne a s etapas'peiã~nature z a das relações entre o s homens Co "modo
de p rodução") e não peia forma que obtêm a sua subsist€ncia_fo_
"modo de subsistência"). Engels dirá, em 188ÍJ, que a obra "só de-
monstra quão incompletiDS eram ainda nossos conhecimentos da
historia econômica", porc:m a afirmação è injusta, e o desconheci­
mento que se teve .desse texto, âté 193.2, impediu que os fossiliza-
dore s do marxismo pudesisèm refletir a tempo sobre palavras como
estai», com que Marx c Eiiigels indicam o uso que deve fazer-se dos
seus esquemas gerais de interpretação histórica: "Estas abstrações,
por si só, separadas da história real, carecem d e todo valor. Só po­
dem servir para"facilitar a ordenação do material histórico, para in­
dicai c a sucessão em série: dos seus diferentes estratps. Porém, não -
oferecem de modo algum , como ã filosofia, urma receita ou modelo
com apoio no qual pbssaim fantasiar as épocas históricas. Pelo con­
trario, a dificuldade com eça ali onde se aborda a consideração e or­
dena ção do material, seja o de uma época passa da ou o do presente,
para a exposição real das eóisas".14
Se o fundamental e:ra "transfòrmar 6 mundo", era lógico aue
esse método de investigação do passado se pus esse aserviçó de um
prog rama de açãodestina do a mudar o preseni te. Por isso, a primei­
ra ve z qué Marx e Engèls ideram ao público, um a exposição relativa-
meni te completa da forma que viam o desenvol’pimento histórico da
humanidade foi no M anifesto do partido com unista, em 1848r
j* o 'f / ~ Cs -V-J.
Ü
capítulo 7

onde tal expiosição tem a missão de constituir á baise sobre a qual


possam asse;ntar-se uma análise do presente e um projt :to para-o fu-
turo. Daí que o texto comece propriamente, depois d e um breve
exórdio, con 1 a afirmação de que "a. história de todas a s sociedades '
existentes at é o presente é a histe iria da luta de classes e concluís-
se.com um chamado à revolução: "Proletários de todos os países.
uni-vos!". Estes dois pontos representam duas chaves seguras para
reconhecer :i função que Marx e Engels assinalavam à História --ao,
tipo de Historia que queriam.15 ” .>
A nec essidade de analisar presente -istò é: a realidade do
capitalismo - levará Marx a trabalhiar na sua projetada ciática da eco­
nomia política. Isso era necessário i para preparar a éstraitégia da luta .
e para dotar o proletariado de um . programa próprio, e nâcTtoinado
de empréstir no da burguesia’libêrí y^cóínó havia suçgdjc io.até então.
Essa tárefa te :tá uma primeira clnc rompleta expressão n a Contríbui-
ção à crítícii, da econom ia polúties-e culminará em O^capiUil, a
obra que, ccü ntra o qué Marx hávi; i previsto, iria absorví ;-lo pelo res­
to da sua vida. Porém, como análif;e do presente e visãc) do passado
estão necessariamente integrados no materialismo histórico, a
história reap arece com frequência em meio da análise econômica -
como fica evidente em O capital- e o seu papel no con junto da teo­
ria é recordado explicitamente pior Marx no prefácio a Contribui-
ção à criticei da econom ia políti ca, num texto que convém trans­
crever por c ompleto, não tanto p orque vá acrescentar demasiados
enriqueeime ntos ao que até aqui nos têm revelado as suas obras an­
teriores, cotr 10 pelo fato de que fo i utilizado como cano ne doutrinal
do marxismo e tem sido invocado em infinitas nrasiõe:; para ampa­
rar coisas qu e nada têm a ver com ele.'.

O resu Itado geral a que chegue ri e que, uma vez obtido , serviu-me de
guia p:ara os meus estudos, pode formular-se brevemisnte assim: na
produição social da sua existência os homens entram em relações
determinadas, necessárias, ind ependentes da sua von tade; essas re­
lações de produção correspondem a um grau determiimdo de de­
senvolvimento das. suas forças produtivas materiais. O conjunto des­
sas relações de produção constituem a estrutura eco nômica da sò-
ciedad e, a base real sobre a quial se eleva uma superes trutura jurídi­
ca e pt >lítica, e à qual còrrespo ndem formas socials dei :erminadas de
consci ência. O modo de produção da vida material condiciona o_
proccj an da vida social, politic a e intelectual em gerai. Não é a cons-'
cienci: i dos homens a que det :ennina o seu ser pelo icontrario, seu
ser social é o que determina a sua consciência. Durante o curso do

146
o mi iterialismo.histórico e a crítica do capitalism o •■ ■- -

■ _■ seu desenvolvimento, as forças produtivas d i sociedade entram cm


contradição cont as ,relações de produção e xistentes, ou, o qtie não.
~ é mais que a sua esq tressão jurídica, com as relações'de proprieda­
de em cujo interior tinham-se movido até c:ntão_. De formas de de­
senvolvimento das Jbrças produtivas que <:ram, essas relações se
convertem em entra vës a essas forças. Entãc ) se abre uina era de re­
volução social. A_ m udança que'se produziu na base econômica
transtorna mais ou rnenos rapidamente toda á colossal superestru­
tura. Ao considerar e ssés transtornos, iinport a sempre distinguir en­
tre a mudança material das condições de produção - que‘se deve
comprovar fielmentficom a ajuda das ciências físicas e naturais - é
as normas jurídicas, políticas, religiosas, artú,tiras ou filosóficas; em
uma palavra, os fomias ideológicas sob ás cpuais os homens adqui-
rem consciência des: se conflito e o.resolvem .Assim como não se jul­
ga a um indivíduo pela ideia que ele tenha (lesUnesjno, tampouco
se pode julgar tal época de transtorno pela consciência de si
mesma; é preciso, p do contrário, explicar essa consciência pelas
contradições-da yidà. materiaVpelo conflito que existefentie as for­
ças produtivas social s e as relações deprodi ição. Uma formação so- -
ciai não desaparece :nunca antes de qiie sej; un desenvolvidas todas .
as-forças produtivas que possam conter, e u mas rèlaçõcs dc produ-
Ção hovas e superior es nló substituem jama is a outras antps dê que
as condições matéria is de existência dessas r elações tenham sido in­
cubadas no seio da velha sodedadc. Por isso a humanidade não se
propõe nunca mais que òs problemas qu e possa resolver, pois,
. olhando mais de per to, se verá sempre que <j problemaJmesmo não
se apresenta mais quie quando as condições materiais para resolvc-
lò existem ou se enc ontram em estadó-de existir. Esboçado em tra-
ços largos,-os modos de produto asiático, antigo,feudal e burguês
moderno podem sar designados_çgmo oulxas tantas épocas pro-
gre^]yás_dajformaçâ o .social econômica. As relações burguesa^ dc
produção râp a últin ia forma antagônica do processo de produção
social, nãqngjentidc j de um antagonismo in dividuai, mas sim no de
um antagonismo que : nasce das condições s( sciais de existênciajdos
indivíduos; as forças produtivas que se dese nvolvem nn sein da_st>.
; dedade,hureuj^._í;r iam acumesino.tempo as condições materiais
para resolvei ess_é_an tagonlsmo. Com essa fo rmação sociaLtérmina,
pois, a pré-história di t sociedade humana.16

' Esse texto resumidio deu íugar a uma sé rie de interpretações


esco ilásticas. No lugar de esforçar-se- para comp ireendef P papel que
desempenhava np prólogo a uma crítica do capitalismo - que é ò
que -verdadeiramenté importava tem-se desen gajado desse contex­
to p ara pesar e medir ca<da uma das suis pala vrqs e escrever yplu-
mes inteiros sobre os con ceitos de "modo.de produção", "estrutura",
"basie", etc. Assim se erigi u em cânone de umH filosofia da história
capítulo 7
1
que dava tod as as respostas, sem t tecessidade de-recorrer à investi-
gação concre:ta, pelo menos para iTerificar a sua exatidão, e,fcz nas­
cer uma teriininologia e uma lin;guagenTritüãrque caracterizam
mande parte Ha História que se p retende marxista, e que não~tem
nS~cTa que ver coníãi~que Marx e Hrigels empregavam nas suas aná­
lises liistóricíis. Não importa que M arx protestasse, em 1877, contra h
'qualquer temtativa de extrapolar o s resultados da sua análise do cá-1
pitallsmo ocidental, para conyertê-los em "uma teoria geral de filo-/
sofia da historia, cuja maior vantagem reside precisaménte no lato/
de ser uma te oria supra-histórica", o u que as suas cartas demonstras­
sem que, dlfe rentemente de tantos marxistas acadêmicos, mantinha
sempre desperta a sua atenção à realidade estudada, detendo-se ém
cada fase da crise ou auge econômico para aprender com essa ob­
servação, Ao fim da.sua vida, em a bril de 1879, Marx escrevia, a Da-
hielson que rião podia publicar o segundo volume de O capital an­
tes que tivesse chegado ao fim a c rise econômica que se fazia sen­
tir, na Inglatíura. "É preciso observar o curso atuái dós aconteci­
mentos ate que amadureçam, antes de poder 'consumi-los produti- -
vamente',com o que quero dizer 'teoricamente"'.17 '
També:m 'Engels se veria obrigado, nos últimosanos da sua __
existência, a combater as interpn :taçÕgsjnecanicistas, advertindo
q ue"o métcH io materialista tomar 'a-se contraproducente se, no lu-
gar de adotá-Ho como fio condutor do estudo, histórico. fosse usaçiq
como esquema fixo e mamovávell para classificar .os fktos históri-
Icôs" ôü que' 1'í nossa concepção tia história não é nenhum instru­
mento de comstrução de forma heigeliana, mas sim, que é. antes de
tudo, uma ins trução nó e por meio' do estudo", E combatia o econo-
nficismó^panirecordãrqiié

os honuens levam a cabo pessoalm ente a sua história, ainda que o


façam inum meio que lhes foi dado e que os condiciona, sobre a
base d<: algumas circunstâncias reais e preestabelecidas, entre as
quais si io, em última instância, as econômicas - e tanto mais quan­
to m ais suscetíveis sejam de :ser influenciadas pelas políticas ou
ideológicas - as decisivas e as q ue configuram o único fio condutor
que leva à compreensão do fairo histórico.1* "

Pouco:5 anos depois da morte de Engels, Kautsky insistiria:

A exati dão mais ou menos absoluta da concepção materialista da


história^ não depende das carta is e dos artigos de Marx e Engels; só
pode p fovar-se pelo estudo da história mesma (...), Eu compartilho
o maiteriaBsrnp histórico e st critica do capitalismo

absolutamente da qpiinião.de Lafarguc. quc qualifica de escolástico


o feto de discutir a c latidão da co n cep ção t natèrialista da história
cm si, no lugar de comprová-la pelo estudo dia história mesma.Esta
era, também, 'a qpini; to de Marx e Engels; o sei por conversações
privadas com 1este ult imo, e encontro a prova disso no fato/qué pa­
recerá estranho a miuitos, dè que ambos n ã o falavam senãorara c
brevemente da sua te oría e empregavam a m lelhor parte da sua ati­
vidade em aplicar essia teoria no estudodos fetos,1’ . . : I; . Ç

Porém esses textos correspondem a umai época eni que, ten­


do ét ítrado a social-democ racia alemã numa prá tíca política que não
previ a a revolução e contei mplava o socialismo c òmo. um objetivo re*
moto , havia se dissociado o cotpo teórico do ma tériaiismo histórico.
De modo que se podia faiar de uma "coricej>ção materialista da
históiria" como aJgo independente, désengajado dos programais para'
o futt úo, e podia fazer-se oi ijeto de intetpretaçõe s economicistas - su-
postaLmente radicais -, que nâb'afetavam mais'que â visão.do passan­
do, É o começo dá fossilizã çãò db marxismo, da : sua conversão numa -
fonn; i peculiar deacãclemi cismo, da quai se falará mais adiante -
' Uma vez concluída: essa rápida explora ção da sua gênese,
tentaremos uma çaracteri;tação da concepção marxista da história,
dentro do matérialisnio hi stórico, única forma ian que adquire ple­
no, significado.* A primeira coisa que:podemos observar é qúe o
complexo que agora cohsi dêramos - umã visão do passado,uma ex­
plicarão do presente e um projeto para o futuiro - é o mesmo que
tratamos de revelar ap falstr de outras concepções da história: algo
que a.parecia cláramente eim algumas delas, com o na de Adam Smith
- a hiiitória como geneaJjogia do capitalismo, o funcionamento deste
e umia promessa, de pros peridade geral, com o conseqüência do

* O que hão significa, natu ralmentc, que a investigação histórica concreta


nã o seja legítima, desde o ponto de vista do materialismo histórico. O que
se quer dizer; é que os seus resultados terão que integrar-se depois num
m; urcò mais amplo. Uma vis ;ão semelhante do probk :ma, ainda que enrique­
cida com elementos adicicihais, que áqui não foi piossívd levar em conta,
p o r motivo da simplicidadt:, é a que sustenta Mario Rossi, quando define o
nu iterialisino histórico con 10 "uma estrutura orgãni ca, cujos membros - in-
tei rpretação da história, teo ria das contradições da ; tociedide burguesa, in-
•ve rsãq prática, teoria revol ucionãria e nova concepção cia pesíoa - unem-
se numa conexão tão nece ssária c natural, que a au isência oü inexata con-
sic leração de um deles pod le no mínimo provocar a tergiversação do todo"
(Mi.Rossi, La gênesis de) n laterialismo histórico. 3 ■'La concepción mate-_ -
rinlista cie la história, Cor nunicación, Madrid, 197' í,p . 66).

149
capítulo 7

próprio des«mvólvimento capitalista -; em outras, em que se via o


uso dò passado reduzido como legitimação do presente, como na
de Ranke;.ou em que fica totalme
história acad êmica, que finge prer jcupar-se unicamente ■em esciare-
ce ro gasSEEo (ainda que tembém nela estejam implícitos os outros
elementos, ãté o ponto de conformar a visão histórica i). Assentado
esse ponto, ]podemos proceder d e maneira semelhante a que fize­
mos ánterioirmente, com a vantág;em de que agora operamos com
uma concepi ção em que as três paj rtes, e suas articulaçõj :s, aparecem'
explicitamente.
■ O .materialismo histórico contém uma' con cep ção da
história que nos mostra a evolucão humana através de. algumas eta­
pas de progresso, quenãó são definidas fundamenta Imente pelo
grau dêcíêsí.-nrolvimerito h ã prochição, mas sim pela inatureza das
relações q u eR estab elecem entire os homens çme„o;uticipam h o
processo produtivo. "Quando se iala (...) de produção - dirá Marx -
fala-sc sempire da produção nuin estado determinado do desenvol-.
vimento soc ial - da produção de indivíduos em sociedade".10Ter­
mos como éiscravismo, feudalismo e capitalismo - ou com o socialis­
mo, na proje:ção ao futuro - não sie referem ao caráter predóminan-
temente agrário ou industriai da produção, a que esteja destinada
à subsistênc ia familiar ou ao mer cadp, mas sim ao tip o d çjd a çã o
que existe e; ntre amo e escravo, s enhor e vassalo, emp resário capi­
talista e opeirário assalariado - ou ;a relação de igualpara igual entee
homens livres, numa sociedade que terá eliminado a exploração,
ncTcãso, d o :socialismo..
É certo que o materialismo histórico sustenta itambém qué
existe uma correspondência entr e o grau de desenvol Ivimento das
forças produtivas e a natureza da; s relações que se estubelecem en­
tre os home ns, porém esta não p ode reduzir-se à dete fminação da
mudança social pelo crescimentio econômico. Considerar a inter­
pretação marxista da história copio um economicismcr- que é algo
que se faz freqüentemente - é um. disparate, que se põie çlaramente
de manifeste >,quando a rcintegran ios no materialismo hJstórico e re­
cordamos qiie Marx e Engels esperavam que o trânsito dó capitalis­
mo ao socialismo se efemasse gmeas a uma revolução proletária
não como um resultado espontânieo do desenvolvimento industrial
capitalista. O nexo entre forças p rodutivas e relações de produção
é mais com; plexo e’ deve entender-se em termos de j interação. .Só
que, enquan to o que mais importa ao homem são os h<imens, o que

150
o ma terialismo liistórico e a critica do capitalismo

antes; de tudo conta é a j modificação das relações de produção: a


aboli ção de toda forma d<: exploração. O capitalismo deve Ser des-
truíd o, em primeiro lugar, porque é "uma fornia.de escravidão". O
qué~í acorre é que a sua destruição, liberando algumas capacidades
prod utivas contidas pela irracionalidade, do sisitema, espera-se quç ..
dê p: ãssãgem a uma fase acelerada dc crescirne nto econômico.
. 1' A história, definida por etapas que são a s épocas da explora­
ção <io homem pelo hom^ra, dá luta de classes«, conduz-agora para.
a exi lUcação de um presente de miséria e sujeiqão.O capitalismo, o
"slste :ma mercantil", não é já o ponto de.chegad a de toda a evolução
hum: ma, mas sim uma fes-e a mais, que deve se r destruída como as
antei-iores, para conduzir à plenitude que será uma sociedade sem
dass« és - sem exnloracão.O passado explica o nresente. coníó ocor-
•re ern toda visão da histó:ria,-porém hão o.legi tima.A-intepretação
do”p assado não nos condi jz aqui à uma econoi niá política - que; te-
ria qi jé enquadrar a evolui, ;ãô futura dentro de i im sistema de regras
~ imut Iveis mas sím a um: i critica dessa- ecohoiinia polxticae a Urna
prop osta de. destruição revolucionária da ordem sociai assentada
nela. Numa sequência sen íelhante, a etapa segt tinte - o socialismo -
tem I le ser entendida, sobi *etudo, como a época em que toda explo-
raçãc I será abolida, em que: se irá "acabar com todas as' classes de es-
cravi dão". No contexto do- materialismo histórico, não pode ser de­
finido unicamente como a. substituição da prop ifiedade privada dos
meio s de produção pela piropriedade estatal, è a introdução, em es­
cala- nacional, da planificação centralizada. E muito menos ainda
come 3 uma transformação reformista do capitali smo, tal como a que
prop ôe a social-dem ocracia^ . _ . .
A visão do fljturo d e Marx e Engels acéii a. uma parte da. pro-
mess a smithiana, trocando - os termos em que e;ítá formulada.Asfor-
ças p uodutivas que o capitalismo mobilizou, potenciadas pela ciên-
cia, p iodem assegurar a pr< jspêndãtlê~pãra tõdã-s, sob a condiçfç!jie_J
abolí r o marco sòciaTcapTi tãlÍ5ta_.Ã fé ingênua n o progresso tecnplór.
gico se encontra já no E sb oço de crítica da ec onom ia PolíttcciAo
jóver n Êngels,’ e nãõ pare- ce ter sido abandona da mais tardeAiyen-,
do nuim. mundo que ainda não tinhá experimentado as conseqüên-
cias i íÈTexpansãõ do capioílismo em escala"mui iciíai, não adivinham^
. que ( ista não irá reproduzi Fespontane;imente ç >esquema industriai

* ' 'A capacidade de produç ao de que dispõe a hiunamidade é ilimitada. A in-


v< :rsão dc capital, trabilho e ciência pode potencií ir até o infinito a possi-
capítulo 7

Jjritânico^e m~cada-.país - como> parece estar sucedendo, no seu . .1

tempo, na França c na Alemanha mas sim que pode te r efeitos de- "

predâdores sobre outras partes dio mundo.***Ante a destruição das co-


munidades indígenas da índia, peio exército britânico, Marx lamen­ - ^
tará a brutalidade,dos procedimentos, porém se consolará dizendo V'■***
que tal destruição é necessária e que a Inglaterra está atuando como
"a ferrameh ta‘inconsciente da história". Claro que, ao fim de "alguns
vm
anos, a brutalidade chegará a tal extremo, que acabará se esqueceu- -
. do das conveniênciasjdã "história" e simpatizando com os indianos
que queren i expulsar os seus conquistadores estrangeiros.21 '
Essa supcrvalorização do processo industriallzador capitalis­
- .óü ci
ta obedece a duas razões. A primt tira delas, e a mais elementar, é que
não chegara im a ver os traços mai s negativos dá sua expansão - à des­
-.4
truição dos recursos naturais, a d<Ependênciá.etc.- e que vivem num, ■.~:ci ■£
mundtjond ê ainda é. possível mã ntcr a fé_ nas possibilidades ilimitá-
■. - - i
das dcTpro£«ressoTecnológico- - c:òm o que compartilhavam plena- 1

bilidade d!e rendimento da terra Essa ilimitada capacidade de produ­


ção, manc:jada de um modo consciente e no interesse de todos, não tarda­
ria em rec luzir ao mínimo a massa de trabalho que pesa sobre a humanida­
de" (in.K. MançF. Engels, W erke, Dietz Veriag, Berlim, 1962, vol. 1, p. 517;
adiante ci tado como MEW).
* Um exer nplo da forma na qual M: irx e Engels pensam que podè produzir- '
’ se a expar isão do capitalismo, nós t d temos na sua previsão de que o desco­
brimento das minas de ouro da Oüifomia irá dcslocar.o centro econômi­
co do muindo do Atlântico para o Pacífico - como os metais preciosos des­
cobertos pelos espanfióis tinham a judado a deslocá-lo, antes, do Mediterrâ­
neo ao Atl ântico - e que tal expans. ão afetaria por igual a toda zona geográ­
fica próxima. "O que foram nà An tiguidade Tiro, Cartago e Alexandria, na
Idade Mé( lia Gênova c Veneza, e a té agora Londres e Iiverpool, isto é, os ■dg
Í0
empórios do comércio mundial, o serão a partir de agora Nova York e São
Francisco, San Juan da Nicarágua ir Leão, Chagres e Panamá. O centro de
gravidade do mercado mundial era a Itália, na Idade Média, a Inglaterra, na
Idade Mo< lema, e está agora na par te meridional da península norte-ameri­
cana" ( da "Revista político-econôn lica" de janeiro-fevereiro de 1850 para a
Nova Gax eta Renana, in MEW, vol. 7, p. 221). Só acertavam com NovaYork
e São Fiat ícisco. O erro é significa tivo, porém é que tampouco se davam
conta de çpie, mais próximo deles, o processo industria] europeu estava sa­
•MJ
queando (rs recursos naturais dos países mediterrâneos, destruindo seus
equilíbrio!; naturais c condenando os homens a converter-se em "uma re­
serva de ft >rça de trabalho, destinar la a esforçar-se sobre um solo empobre- ■
eido ou a emigrar às regiões indu striais" (Pasquale Coppola, "Natural Re­
sources ax id Economic Dcvelopm ent in the Mediterraneah Basin", in A.
Maczak y 'WN. Parker, eds., Natiar.il Resources in Européan Histor)\ Re­
sources fb r the future, Washington, 1978, p. £ 17). - .
. p mat etiaUsmo histórico é a crítica dp capitalismo , |

menti e as correntes anarquistas - , porque este mão havia'mostrado


ainda as suãs limitaçõesTPc irém. hã uma segundí i razão, sobre a qual
' cõiivtím refletir, à partir dia perspectiva deUheada nestas, páginas,
í Marx e Engels receberam os conhecimentos. Ihistóricos que lhes,
proporcionavam a ciência do seu tempo, eniriqucceram-nos em
algun s aspectos e, sobrem, do* reinrerpretarani-n ós genialmentc. Po-
rem não podiam"suprir o ( jue não existia. Continuaram os progres­
sos d; ÏTpré-histôria, por cxê mplo, e procuraram i ntegrá-los na sua vi­
são gl obal do passado. Porc :m a investigação hist ófica do seu tempo
~ era dicscaradamente eurotiocêntrica - entre outras razões, porque
neces sitava justificar a sub missão forçada dos "povos sem história".
aos qi ue obrigava a passar t la "barbárie" à "civiliz ação" - e isso tendia
a~favcirecer uma visão do~i passado como a dãescola escocesa, que
condi azia a evolução histór ica para a cuhninânci a representada pelo
capitalismo, pela industrialização é pefi'ciência imoderna. Ainda qué-
tivêss em entrevisto a pòssitbiíidade de outras Unhas evplutivás, não
dispunham de suficientes iconhecimentos sobre: as efipas pré-capi-
talista s;. como para fizer, n<:sse terreno, o-que fl zerám nas suas pro- 7
" posições políticas, quando á experiência da Comuna de Paris os fez
niodilicar as suas idéias sobre a tomada do pode r pelo proletariado.
Teriam podido fizê-lo, sem que o fundamental d o materialismo his­
tórico i tivesse se alterado : a; s afirmações de que a história do homem
c umi i historia de lutãs de classes, que o capital jsmo não é inajsjjp-
que u ma etapa nessa hlstôtrto'da exploração humana é qúé deve ser
destruído por uma révolue;ão sociSlista para construir a sociedade
sem çjassei.”
Como foi que coisas tão elementares chegaram a esqüecer-
se,è c omo o materialismo liistóricó -desintegrado numa concepção
da his tória, numa economi: i "marxista" e numa p rátiça política refor­
mista - acabou fossilizando-se e repetindo mecanicamente umas fór­
mulas; que correspondiam às realidades e aos conhecimentos da
época de Marx e de Engels;, é algo de que se falará mais adiante.

' f -
/
/ • '
153
capítulo 8 ' . ■ .

^destruição da
ciência histórica

. A revolução soviética de 1917 significou uma-mudança


decis iva na história do mu ndo. Pela primeira ve: z organizava-se uma
• socie dade sobre bases que se pretendiam social Lstas e demonstrava-
se qu e era possível o progiréssò econômico à m árgem das regras do
capitalismo. O exemplo sóviético poderia bon verter-se em algo a
ser imitado, num objetivo para as classes tíespos suídas da sociedade
capitalista, muna época.de- crise e de desajuste. A extensão das ten­
tativa s revolúcionárias paia a Hungria e a Alen lanha, a agudização
dos c onflitos trabalhistas t: dos enfrentamentos sociais na Itália, Es­
panha ou Grã-Bretanha mc istravam que o terroí ■das classes dirigen­
tes podia ser exagerado, porém não carecia de : ilgum fundamento.1
O esforço dessas daisses dirigentes se encaminhará, nas déca­
das q ue medeiam entre as duas guerras mundia is, a tratar de estabi­
lizar í I economia - sem nen hum êxito, como o n íostrará a depressão
mundial iniciada em 1929 - e a recobrar o con trôle social, aplican­
do uma tática em que se combinava a repressãto contra os setores
revolucionários do movimiento operário - para destruí-los ou, pelo
menos, isolá-los - e o esfonço para integrar aos niais moderados/São
os ah os em que p governo rnorte-americano esn oagará desãpiedada-
mente o sindicalismo rev olucionário dos uinb blies e executaráa
Saccc >e Vanzetti, do assass inato de Liebknecht (: Rosa Luxemburgo
na Alemanha, do pistoleiriíuno patronal na Espajnha. Porém são tam­
bém os anos da ascensão tio sindicalismo moderado norte-america­
na e da consolidação de i ima opção parlamen tar nos partidos so-
; cial-d emocratas, que' abandonam defirútivamentètoda, tentação ré­
volue ionária. Oncle essa formula - repressão co m integração - fun-
. cionciu, a velha sociedade burguesa recompôs o s seus mecanismos
e rec obrou a estabilidade: Onde a ameaça era demasiado grande, o
íàscis mo conseguiu os mes raids resultados pela f orça, liquidando uni
- movimento operário inas similável e niantendi o baixo. os salários'

155
capítulo 8

reais - para que bs ganhos empresariais pudessem çon tiriuar sendo


altos enquí mto que distraía as ca madas populares e a ] sequena bur­
guesia com programas nacionali; itas dirigidos paia o exterior, quê
implicavam na prom,essa de que a is condições de vida r neLhorariam,
sem a neces sidadê de se recorrer à luta de ciasses, pelo duplo Jogo
do progresso interno - na típica li nha do “producionismõ" fascista -
e da eõnquiísta e sujeição de poV os inferiores.1 ' J
Se a s ociedade mudou depois de 1917, para não voltar mais a
ser o que tinha sido antes, també m o fizeram as ciências sociais e,
mais concreitamente, a História. Bolchevismo e materiaUismo históri­
co apareciam como as duas caras de uma mesma moed a. Para barrar
a passagem de uih na realidade plolítica, era necessário desterrar o
outtp das mentes dos homens. Spfo os discursosde cont eúdo aparen­
temente filo sófico é abstrado veremos crescer, outra vez, a vontade
de combàtér o marxismo,por maid que osseus autores,ie os intérpre- _
tes posteriores do seu pensamento, se esforcem em apresentá-los
como'o resultado natural da evolução interna dá ciência. Não se tra­
ta de supor que os cientistas sociais acadêmicos estives:sem compro­
metidos em alguma espécie de conspiração internacional contra o
marxismo, mas sim de comprovai" que compartilhavam dos valores
fundamentai s da ordem social esta belecida e que estes Impregnavam .
as suas idéiais científicas, fossem ou não conscientes disso. Porque
não basta que os defensores de concepções "imanentiitas" da ciên­
cia nos expli quem de que forma o >s "mestres" chegaram a umas posi­
ções doutrinárias determinadas: <z necessário que nos esclareçam
também por que os seus discípulo s conseguiram que se lhes confias­
sem a maior párte das cátedras uni versitárias, às que não tinham aces­
so os defensores de posturas que não fossem de acordo com ás "ne­
cessidades s<udais", por valiosa qui e fosse a sua obra ciei atífica.
Pelo que se refere à História,veremos um processo que tem
uma dupla vertente.Trata-se, por um lado, de concluir a destruição
da ciência hiistórica que já tinha si ido iniciada pelo neo-kantismo e a
"filosofia da vida". Porém, como não é possível agora deixar o pes­
quisador abí mdonado à vacuidadt; da prática.historicis ta - a difusão
do materialismo histórico exige outro gênero de resposta irá se
proceder a uma reconstrução da ciência histórica sobre outras ba­
ses. Ao mesmo tempo em'que se arrebata ao historiador o seu ins­
trumental teórico 'específico - c ujas perigosas const;qüências ti- '
nham sido demonstradas sobejar nente, ao ensinar a c onsiderar as
sociedades co m o "todos históricos" num processo dè evolução e, -

156
por conseguinte, áperfeiçç lávcis - oferece-lhe ui na saída para o seu
trabai ho cotidiano, fecilitar ido-lhe o emprego do corpo doutrinal de
outra: 5 disciplinas sociais "adjacentes", mais face is de Controlar, e de
yôo n íais curto, como são í i economia neo-clássi ca, a Sodologia 'fiiii?
cionalista ou a antropologia estrutural. ’ *y.,“ ••
Ter-se-á que acõmp: anilar, ainda que seja superficialmentè, a .
dessas outras dis çiplinas, 6 que permi itirá perceber que
elas iniciaram, em fiiüsido século XIX, unia-reação contra os
"excessos" do evolucionisrnq - e, no caso da economiaialém disso,
contr.a concepções do valor potendalmente perigosas. É possível
i
que n as mentes dós homens que iniciaram essa viragem - os Walras,
Durkheím - as coisas se apresentassem com o determinadas
necessidades analíticas das suas próprias disciplinas, e que ne­
nhum i deles tivesse ò propt Ssito consciente de ol "erecer às classes di­
rigem íes um jogo de.instrtunentps ideológicos para a conservação
do se u domínio. Porèife àoohtecia que os seus delineamentos coin-
cidiarn em "apresentar a sociedade em quevivimn comoum^sistema
em êc jüilíbrid estático, e qi ie todos cónsideravai n que q objeto legí­
timo (da ciência era o de in vestigar as regras des se equilíbrio, o qüe --
resultava ser a condição necessária para achar ois métodos com que
restai:lelecê-lq, se fosse perturbado.1
Neste capítulo se J"alará exclusivamente da destruição da.
dêncíik histórica, para passiãr mais adiante a eoinsiderar as diversas
formas, porém paralelas, d e reconstrução, ácrat>rigo da sodologia,
da ani tropologia e da economia, ou de combinaç ões edéticas dessas
influê ncias, como a que nc presenta a escola dos A nnales.K ç consi­
derar as, correntes e os autores do século XX, o panorama resultará
mais (detalhado e menos d aro do que até agòra, É uma conseqüéri- 1

cia'inevitável da proximidade no tempo do objeto estudadoiã pn> ; i


i
ximidade da paisagem fez co m que.as colinas se: pareçam com cor-,
dilheiras e obriga a levar ,a sério autores e obrai i que exerceram in­ i
fluência no nosso tempo,ainda que saibamos quie estejam condena­
dos a o esquecimento. ;. -
Se queremos começ;ar o percurso com ó s continuadores-dq
•historicismo e a neo-kantismo, ter-sé-á que fezê-lo por Bcnedetto
Crpce: Cl866-1952), que iniciou a súã trajetória initelectual dentrò do'-
camp D de influência dó niiirxismo,como discípulo dé Labriola,g q - \
rém logo 0 abandonou, já ejué, como diz Momig liáno, "não tinha in­
tenção alguma de subverter uma ordem social a qual devia a sua for­
tuna ( em consequência, a sua liberdade para estudar b qué lhe.

157
capítulo 8

agradasse“. Votou a favor do fascismo no senado, depoiis do assassi-:


nato de Matteotti.e se afastou dele cm 1925,para permainecercomo
cabeça de urna espécie dé oposição liberal - nada militante - tolera­
da por Mussolini, Partindo dos postulados neiákantíanos e com um
certo regress ;o ao idealismo hegeliano, elaborou a sua'] própria dou­
trina, que pode qualificar-se com o um historicismo absoluto que
Identifica filosofia e história. De bodas as modalidades possíveis da.
História, Cro çe considera que a rnais elevada é a que ele batizou
como '‘história ético-política”: a história da razão humamá e de seus
ideais, "resolvendo e unificando nela tanto a história d a civilização
como a do Estado”.A exigênciá prática é a base do juí;:o histórico:,
por muito distantes que sejam os fatos,à sua história sempre será
contemporânea, posto que a cons triiímos em função d e.nossás ne­
cessidades e idè nossos problemas atuais. "As solicitaçõe s práticas la- -
tentes sob ca da juízo histórico dão a toda História o caráter de 'His1
tória contem porânea1, pòr distantes nò tempo que posi iam parecer
os fatos por ela referidos; a Histó:rfa, na realidade, está em relação
com as necessidades atuais e a situação presente em qu e vibram es­
ses fatos". Com Croce nos enconitramos também, de certo modo,
num terreno de experiências vive meiais, sem causalidaide propria­
mente dita e,! sem leis. Não há nem ! sequer tempo, mas ap enas o fluir.
Não há histói ria; mas apenas tantas histórias como pontos de vista.4
Com Collingwood (1889-1943) estamos ainda próximos de
Croce. Em A l'déia da história ataca p conceito de uma causalidade
histórica que não seja estritamente individual (quer dizer, reduzida
a esclarecer os móveis concreto: s da ação de um homem num
‘momento dado) e defende a tese die que não existem da idos históri­
cos objetivos,, mas sim que os que tomamos por tais "os produzem
o próprio pensamento histórico, d e tal modo que, em relação com
o pensamento histórico na sua totalidade, esses fatos não são de
modo algum ;um ponto de partida, mas sim um resultade ou um re­
sumo". Collin.gwood - que realizou: investigações arqueológicas so­
bre a Bretanha romana, mas que resulta scf um historiador muito
menor - nos dá, além disso, uma pitoresca lista de "historiadores
científicos", d lassificados por países i, que demonstra muit :o pouca sa-
gaddade, fo tralorizar a situação real dos estudos históricos, já qué
faz figurar nc:la Dilthey ou Spengler, que dificilmente pódem ser
considerados como historiadores, enquanto que se esquece de Pi-
renne, Schmo lier ou Marc Bloch. O que não o impede d<; pontificar
e soltar trivia ilidades, como a de que a função do hi storiador é

158
a destnúção da ciência histórica __ ■ ■' > .,>■

"reena.ct the past in his ov ti mind" - trazei de volta à vida no seu


pensa mento os pensament os dos homens^do passado. Ò mais as­
sombroso; no caso de Coílingwood, ë que se tenha chegadd a levar
tão a !sério o que não é mais queuma salada der elementos tirados .
de Dil they, dos nco-kantian os, de Croce e comp; inhia.’
Se Croce e Coílingwood são ainda historia dores, ainda que os
seus trabalhos de investigação-sejam muito menos espetaculares
"que ors seus prbnunciamenuos filosóficos,os homens de qüèm se fa- .
lará a :seguir têm em comui n o fato de negar toda i validade científica
à historia, ou de limitá-la es treitamente, sem ter 'conhecimento sufi­
ciente da prática intelectual que pretendem desqualificar. Em que
pesem as questões de detallhe que possam opô-l os, todos reúnem a
■ heianiça do positivismo, do neô-kantismõe da "filosofia da vida". Em ~
' todos há, além disso, um concepção.conservadora da sociedade e
. - •uma vontadè,mais ou menos ábertamente confessada, de combater
o mar xismo. Destruir a raci onalidade de alguma s interpretações dq
• - passac lo - de qualquer inter pretação do passado - significa privar de
base ais projeções pára o flituro que quiseram construir sobre elas. '
A esporança de uma révolu ção que transforme a sociedade não tem
nenht im apoio nas lições ài t história, porque não existem tais lições. •
O caso mais daro é o do austríaco-britiinico -Karl Popper,
cujo a taque à história proci ;de do terreno da epi stemologia. Popper
nos di z que ocorre haver c<infusão entre tendem cia e lei.Vemos ten-
dênciíís e consideramos ei Toneamente que são' leis, porém" não ò .
são, p orque não são permanentes.A História se ocupa de fatos iso- ■
. lados que não se elevam nuinca a amplas generalizações teóricas. Há
algums juízos gerais na Hist ória, porém são tão triviais que não tem
valor ; algum para o trabalhe »científico. Por outra parte, o historiador r
não te m orientações adequadas para selecionar os pontos de vista
que 11 té permitam distlngu ir o que é essencial <io que é acessório.
Por is so se explica que haja tantas e tão dive rsas interpretações
(centradas no pape! dos grandes homens, na economia, na religião,
etc,), I; que todas elas esteja un marcadas na órige m pela arbitrarieda­
de na seleção dos elementos considerados, o que as.toma inverifi-
caveií ; e incapazes de eleva tr-se à teoria. Não há 1ampouco, por con-
seguii tte, uma História do |»assado, mas sim disti ntas interpretações
históricas, nenhuma das qmais é definitiva: cada t geração escreve a
sua própria visão da história.
A triyíalidadeé má-f é.dos delineamentos popperianos resul­
tam p erfeitamente visíveis neste "esboço de refutação do historieis:
capítulo 8

mo" resumi ido em cinco proposições, que sé encontra m no prólogo


de A m isér ia do historicism o:

1) O curso da história humana está fortemente influenciado pelo.


cresc im ento dos conhecim entos humanos. 2) Não j iodemos predi­
zer, p o r métodos racionais ou científicos, o crescim ento futuro de
nossos conhecim entos científicos. 3) Não podemos:,portanto, pie-
■ ' dizer o futuro da história humana. 4) Isso significa q ue temos de re-
’ - ch açar a possibilidade dc uma história teórica. N ão pode haver
uma teoria cientifica do desenvolvimento historie o que sirva de
base para a predição histórica.-5)A meta fundament ai dós métodos
histo ricistas está, portanto, mal concebida; e o histo. ricismo cai por
suafciase.

■■■ - ’. r i v _ . : - .. -
A to isa é tão grosseira e os engodos tão visívei is, que não re­
quer comei ítãrios. Porém se requer tentar compreend iér ò significa­
do real de sse esquema: seu fundo, político e idéol lógico. E é o
próprio Po] pper quem nos esclarece; na sua Autobio, grafia. Póúco
antes de faaer dezessete anos de idade, numa Viena conturbada pe-
r las-comoçõ es sociais que se produziram no fim da primeira, guerra
mundial, Po pper aproximou-se do marxismo e até, seg undo nos diz,
que "duram :e dois ou três meses considerei-me a mim mesmo como
um comunista".Porém um dia participava numa manifestação de jó-
- vens sociali stas e comunistas, quando a polícia disparou e matou vá­
rios deles. I sso suscitou suã reflexão: por que tinham matado? Por­
que o mnrx lismo afirmava que a luta de classes era necessária para
trazer o. quanto antes o socialismo e-qüe não importava que a revo­
lução custasse algumas vítimas, porque o capitalismo causava mais
ainda. Ou sieja, que haviam morrido por acreditar nurn jogo de leis
da história. E agora se dá conta de qúe ele mesmo estava aceitando
esse "credo" sem crítica. Daí passou imediatamente, co m os seus de­
zessete aniiihos recém-cumpridos, a converter-se num anticomu­
nista. Porén i eram tempos em que manifestar tais idéi as significava
coincidir com os nazistas, o que não parecia demasiad o lógico num .
judeu com o Popper, de modo que calou èssaS reflexiões até 1935,
quando piilblicou A m iséria do historicismo, a que seguiria, em
1-943, A sociedade aberia e os seus inimigos, seus dois livros "so;
bre a filosoifia da política", que nos descreve ele mesimo como "mi­
nha contribuição à guerra", ante a perspectiva de qut: "a liberdade
pudesse volltar a converter-se mim problema central dle novo, espe-
cialménte sub' a renovada influência do marxismo e d a idéia de pia-

160" - • • ' •" . •


a de struição da ciência hiàórica

' .. hificação em grande escala'(ou dirigisme))". E istá/claro, por conse­


guinte, que esses dois livros expressam fund: imentalmcnte as op-
çõe: >políticas pessoais dc Popper - as que lhe valeram para' ser pro­
movido no mimdo acadêmico e enobrecido pi ela sua pátria de ado­
ção, a Grã-Bretanha, como prêmio por seu trab; alho na defesa da "so­
ciedade aberta" e do ganho capitalista - c que o intento de querer
apresentá-los como um exercício desapaixona do e rigoroso no ter-
- ( feno da teoria do conhecimento1 é um etígant • - .-
Como se viu, a disputa centra-se uma e •outra vez em tomo
da v iabiiidade de uma ciência histórica conipa rável às demais ciên­
cias, capaz de formular leis verificáveis ná reali dade. A discussão so­
bre ;as "leis históricas" foi objeto de um amplo debate filosófico no
munido anglo-saxão, que não foi, ao fim, muit< ) mais longe do qüe
um nómar a dar voltas aos tópicos neo-kantian ps oupositiyistás.ou,
de 0 catar de oferecer saídas de óòmpromisso, < jue não deixassem o
historiador inteiramente privado de uma bast ; filosófica com qiie
apoiar a sua prática coticSana de coletor de fatos..
Nas origens desse debate está Hempel, a sustentar que para
uma explicação ser adequada deve incluir ao menos uma referên-*

* Essa mesma ambiguidade, esse jogo de prestldigi tação para misturar pré-
ji 1Í20 político c dedução filosófica, pretendidamen te neutra, pratica-o' Pop-
p er com muita frequência. Veja-se que não nos exj ulica a lógica que reúne
o medo experimentado ao ver morrer aiguns manií estantes com a compro-
vação de que o marxismo é "falso". Noutro lugar ti ios diz que lhe encanta-
rí a viver numa sociedade igualitária, não marxista,: se isso fosse compatível
dom a liberdade, porém que “ã liberdade é mais irr iportante que a igualda-
; d e; o intento de implantai "a igualdade põe em pei rigò a Uberdade,e, se sê
p erde a Uberdade, não haverá sequer igualdade e ntrc os que não são U-
vi res”. Só que esquece-se de dizer-nos a que ciasse de liberdade se refere.
A té que em outro lugar nos explica porque não ci c em sociedades pacífi-
c í i s e igualitárias: “Não pode haver sociedade hum: ana sem conflito: tal so­

ciedade seria .uma sociedlde de formigas e não d< ; amigos. E inclusive se


p udesse alcançar-se, há valores humanos da maior i importância que seriam
ditstruídos peta sua implantação e qúe, conseqüem temente, devem refrear-
nos de qualquer tentativa de estabeíecc-la". Poréór i, que valores humanos
podem perder-se peia eliminação do conflito e di t desigualdade? Não há ;
re:sposta a essa peiguntã no terreno da "ciência",A única resposta é a que
di :riva de uma opção política: Popper luta peia pri :servação de sacrossan­
ta liberdade de empresa, por uma liberdade de e xploiação que, hattual-
roente, é Incompatível com qualquer tentativa.de ç ombater as desigualda-
diis entre os homens. (Textos da Autobiografia pi n EA. Schilpp, cd .,Ih e
pi 'jilosopby o/Karl Popper, Open Court, La Sallé, 1 9 7 4 ,1, pp. 27 e 92).

161
capítulo.8

cia a uma lei geral:"a explicação de um fenômeno çpnsisite em sub­


metê-lo às leisi ou a uma teoria". As explicações dos historiadores
■não incluem e:ssa referência, porém Hempel acredita quie usam, em
troca,.esquemas explicativos que consistem em "uma. indicação
mais òu menos vaga das leis e condições iniciais que u ç conside­
ram relevante s". Na frente dessa postura dos que propugnam uina
interpretação bàseada nas covertng latos ou "leis inclusiivas", origi­
nada em Pop] per e desenvolvida por Hempel e Gafdineir, está a ala
dos seus cohlraditores, encabeçada porWilliam Dray, que sustenta
que esse intemto de trazer ao terreno da História um sentido do ter­
mo "explicação", que só serve para determinados usos, é inadequa­
1.
do .As expJiçaições históricas não são do género das que se realizam
pela mera referência a uma teoria. "Damos explicações teóricas,
quando nosso conhecimento da matéria a que se referem permite
uma interpo!lação_explicativa; consideramó-las- históricas;, quando -
não é possível tal interpolação - quando temos de referir-nos à-
história pecuiliar do que tem de ser explicado". Com a p»retensão de
mediar no d<;bate, Arthur C. Danto sustenta, em A fllos< ófla analíti­
ca da histór ia, que o debate entre Dray e os teóricos cias coveríng
laws é puro verbalismo. Danto vai mais longe ainda, s ustentaque,
ainda que ti véssemos "leis históricas extraordinárias que ligassem
numerosíssimas variáveis e cobrissem imensos espaço s de tempo",
haveria uma. conexão muito vaga entre essas léis e os; "todos tem­
p orais'^ realidade. As predições que faríamos com elias não só se­
riam condic ionais, como tãmbém de índole muito gei al, muito im­
precisa.

A tarefa da História continuaria sendo a de nos o ferecer ò relato do


que p reçisamente aconteceu,'ainda que esse relato caísse sob uma
lei hintórica geral, com o um exem plo dela, e ainda que conhecês-
t 5emo s essa lei. Só a História seria capaz de exibir a surpreendente
variedade dos todos temporais.que caem sob uma única lei histó­
rica. 1Mossa fascinação com os detalhes do passado não faria ntais
que a iiimentár.

Assii n, no fim do caminho, não temos feito rnaiü que voltar às


argumentações de Rickert ou de Dilthey.e até a reivimdicar o "wie
es eigentlic h gewesen" - folha de parreira que serviu p ara cobrir tan­
ta vergonh; i. O ataque de Danto contra as "filosofias sv ibstantivas" da
história - eiatre as quais está, naturalmente, o marxismo - parece re­
petir os teirmos do qtie a reação historicista sustentem contra o ra-
cionalismo da Ilustração. Ambos estavam movidos, ênu última instân-

162
a deistruiçâo da ciência hísitórica

cia, jpela mesma vontade de conservar à orded social c econômica


estabelecidas, e as formas; políticas que ajudam a sua manutenção.7
Filhas do neo-kantiismo e da filosofia da vida são também as
morfologias, que se baseiaim na idéia de qüe aquilo que não pode al-
canç-ar-se em história met liante a formulação tfc leis, pode em troca
„ obter-se recorrendo à contemplação e à comparação, e deduzindo
- delais regularidades, que n os servirão para febricar algumas' pautas
y cíclii cas com as quais se p iode inclusive predizer o íuttiro.
Oswald Spengler (1880-1936) publicou no fim da primeira
guerra mundial um livro «espetacular, qüe se fez rapidamente fámo-
so: A decadência do Ocic lente (D er Untetgang des A bendlahdes).
A obua refletia o estado d e ãnimó dos alemães depois da derrota e
o desmoronamento do im pério - que parecia um anúncio do fim da
"civilização"- e recolhia as influências de uma lérie de correntes ir-
racicmalistas autóctones,’c o m o á dq Nietzsche do "etemò retomo"
ou a ■do vifalismo de Diltl íey. Também Spengler distingue entre na­
ture/ta e espírito, entre ciêtncia e história, e usatambém como criíé-
rio d e classificação a fornia de aproximar-sc o seu objeto de uma e
outra.A ciência usa das lei is; a história, da intuição. À morfologia das
ciências da natureza, *que; estabelece relações causais" e descobre
leis, opõe a morfologia da história, que usa çomo método de traba:
lho "a contemplação, a comparação, a certeza Interior'imediata, a
justa imaginação dos sentidos". Para sobrepor-se aos erros que en­
gendra o espírito de pan ido, a contemplação dirige-se a um hori1
zonte de milênios, desde i im ponto dc vista cekste. Dali contempla
a coexistência e a continuidade das culturas, cada uma das qúais é
úm fenômeno fechado smbre si mesmo, pecular e irrepetível, po­
rém Ique mostra uma evoli lição que não é possível comparar morfo-
logic amente. Examinando as fases de uma cultura do passado, te­
mos a clave para compree nder as da cultura em que vivemos. Assim
podemos entrar num boniito e superficial jogo de analogias - Napo-
leão ie Alexandre são homólogos nos seus respectivos ciclos históri­
cos, com o q são Platão e.Laplace, o jónico e o barroco - é até predi­
zer o futuro, anunciando ai imediata crise do "acidente", que os na-
. zistaí; entenderam como mm.augúrio dò advepto da sua tiova or­
dem. Não importa que, co mo dissera Troeltsçh, o livro estivesse ba­
seado numa literatura see undária é cheio "de dados fiilsos, de afir-
. mações fantásticas e de an alogias equivocadas" Jfondo de lado as ra­
zões políticas de sua acol hida na Alemanha - qüe se distorceram,
porquie para Spengleç moinarquista reacionário^ Hitler nib chegava
capítulo 8

-a agradar eistão outras de caráter mais gerál. Spengler (oferecia uma


visão global da história do mundo,' culturalista e deline ada no terre­
no do espírii :o, c tão fácil, que qualquer um podia marii sjá-la: arreba-
- tava-sc a hist ória dos historiadores - á sua seca erudiçã< o - e entfega-
va-se-a ao ho mem da rua, para que se lançasse a fazer p o r si mesmo
experiências;, comparações c descobrimentos, sem necessidade dè .
apoiar-se na especialização erudita.8
AmqldJ.Toynbee propôs outra morfologia-que e: ncaixa o cur­
so inteiro da história da humanidade numa sucessão de vinte e nove
"sociedades" ou "civilizações", que nascem como conseq[üêrida de al­
gumas incita ções, de alguns fatores adversos a serem su perados, que
estimulam uima resposta por parte dos hómens. Se a in citação é de­
masiado dun i, pode fazer que aborte a resposta; sè'ençç mtra-se no li­
mite justo da tolerância, faráque fique estancada ou deti da. Há, no to­
tal, vinte é unia civilizações plenamente realizadas, três; abortadas e
cinco defifiaí i. Nao se creia, entretanto, què esses procesí >os são dè ín­
dole coletiva. O crescimento das civilizações é obra dos indivíduos e
das pequena s minorias criadoras, que são os que encont ram os cami­
nhos que os demais seguirão por m im esis ou imitação.-O indivíduo
criador se rei tira para receber a sua iluminação pessoal e: regressa de­
pois para iluminar os outros (São Paulo ou São Bento, B uda ou Mao-
mé, Dante ou i Maquiavel, etc.). Quando as sociedades se estancam, as
minorias crLidoras se convertem em simplesmente dominantes e
perdem a adesão. Se se quis substituir a persuasão pela coerção,
perde-se a m im esis e os discípulos convertem-se num proletariado
refratário. Centra o império universal consolidado pela minoria do­
minante, o proletariádo interno cria uma igreja universal. Os povos
vizinhos, que enquanto existia o impulso criador sentian a o seu influ­
xo, agora que este desapareceu, tomam-se hostis. Àssiin se prepara,
desde dentro >e desde fora, a derrocada do império e crií im-se as con­
dições que iãrão vislumbrar uma nova sociedade. O esquema de
Toynbee pôde ser compendiado e inclusive reduzido u algumas ta­
belas esquen iáticas elementares, em que figuram as vin te e nove ci­
vilizações e.íie identificam os momentos que correspondem a cada
fase e a cada elemento do seu ciclo - império universal, i greja univer­
sal, proletária do interno, etcAssim, não só as pautas gera is da história
estão fixadas, como tàmbém todo o fundamental foi já levantado: a
investigação da história pode parar, já qiie Toynbee exp ficou tudo o
que yale a pc:na explicar.9 - .'

164
a de: struição da ciência histórica

A praga dos morfólogos não termina* <entretanto, em Toyn-


bee. Temos, para citar exemplos menores, o'Ci-ane Brinton da "ana­
tomia da revolução", decomposta em etapas 'desde a "revolta dos
privilegiados" ao "bonaparlísmo,’),t e podémo:;'encontrar, em data
mulito mais recente, exemplos,tão estremados como o dp bonito
quac iro que apareceu, em 1979, no voluinê XH1[ da New Çcimbtidge
Moa 'em H istoiy.10 Os professores Galtung, Riideng e Heiestad, da
Universidade de Oslo, rios oferecem nele, não : só uma visão de con­
junto da história "do Ocidente"- dbnorninação que normãlmente.
tem-se que entender como "do capitalisnio" - como também um
diag nóstico sobre o presente c uma profecia so bre o futuro! Em efei­
to, sie tomamos a sua análise sobre o ano 2000, onde se supõe que
- nos iencontramos, e vamos lendo o quadro de <rima a baixo, deduzi­
remos que nosso tempo é: "individualista, expa nsionista, exjplóradof "
numl nível mundial, desmoralizado' e cheio,'de contradições"^É;
, com o se vê; umidiagnóstico, "spengleriano". Se prosseguimos agora
até o futuro, veremos que do ano'2000 a' 2 5 0 0 apròxima-sé.:”uma
nova Idade Média", com uma eontraçãò econômiica, tendências co­
letivistas, centripetismo, etc. Porém, sempre caibe uih consolo. Por-
. que o quadro "demonstra" que até o ano 25Q0 voltará a haver uma
fase de progresso, um novo renascimento com o o de fins da Idade
Média, uma volta ao expansionismo e ao indlividualismo, etc. Ou
seja, que tudo consiste em aguentar quinhentos anos até que che­
gue a nova fase ascendente e as coisas se ajustem por si mesmas. Es­
pecialmente se se tem em conta que tudo quai Ho tentássemos para
ffear a marcha inelutável da história seria em vão. Aos professorçs
noruegueses se lhes deveria conceder o Nob el da Resignação. O

* Um jogo semelhante 'ao de. Brintdn os'soviéticos 1inharri praticado, que fa-
z iam comparações entre as etapas’da sua revolução <t as da.francesa, de 1789,
e o prosseguiram os comunistas espanhóis dos ano s trinta, entregues ao ob-
5' essivo exercício de discernir a repetição na Espar iha das diversas fases da
n evolução russa de 1917, convencidos de que tudo t inha de reproduzir-se pe­
los mesmos passos, Não menos singular resulta a m orfblogiá inventada pelo
g encral Franco em 1943, e a qual deu o nome de "p .rotótipo bienal teórico":
b avia descoberto que as potências do Eixo haviam: se impostona segunda
g uçrta mundial durante os anos de l939-1940, e qu>e os aliados o tinham fei­
to em 1941-1942; agora tocava um novo eido de 'dois anos- de vitórias do
E ixo, que conduziria as potências fascistas ao triunft >final <JJVL Gil Robles, La
nnònarqúia por Ia que yo luché,Taurus, Madrid, 197 6, p. 70); a tal ponto po-
' d iam chegar os estragos da leitura de SpengleeClai-o que a forma com que
a Igtins historiadores jogam com ritmos inexplicado s na história, induindo o
n listeriosp.cido Kondratieí tampouco resulta, muito mais séria. < -
capítulo 8

mau é que o forno não esta hoje para bolos morfologia ds, e é de te­
mer que nin^^iém os tome demasiado a sério. _ t.
Se çorm ãs morfologias chegamos a sair quase p o r completo
do terreno d a racionalidade, e alcançamos o extremo no processo
de destruição de qualquer coisa que se possa Interpretar seriamen­
te como uma teoria própria ã ciência histórica, convém agora que
voltemos atrá s: até o estabelecimento de còrpos teórico s renovados
em outras disciplinas sociais que se ofereceram ao historiador
çomo soluções para a sua própria miséria; ■' .
Uma it liséria do que dá boa idéia a vacuidade e o ■desconcer­
to da outra hi stória acadêmica: a que nem sequer preoc upou-se em'
buscar algo q[ue possa fazer o papel de instrumental tuórico.Aí se
encontrará qmem, como Elton, que se contenta com tlima história
que possa atrair.o público porque é de fãcil aprendizagem - não re­
quer especial izaçâo -. e resultã divertida. Quem, como A. R. Bridbury,
confessa que a história "não tem nenhuma função soei ial útil" ja ce
ãos problema ts dó homeni do nosso tempo. Ha quem afirma que
Hempelfoio seu Euclides e quem reduz os problemas fiJiosõficos do
historiador às: mais elementares regras lógicas, erisinando-Ihe a,evi­
tar as "falácias". Pode-se encontrar mostias do mais irracional dos
ecletismos, como-sucede com Higham, que afirma séri:mientè que
há. historiadores que pensam que o único modelo possível de expli­
cação históriica é "a verificação de leis gerais por sua aplicação a.
açònteciment os específicos", enquanto que outros crêem "que o his­
toriador é ess' encialmente um dramaturgo, cuja lógica na rràtiva nun­
ca pode ser simplificada por teorias gerais de qualquer gênero que
sejam";* poréim que "a maioria dos historiadores ocupara uma posi­
ção em algum ponto no meio desses extremos", o que custa um tan­
to imaginar. O' nervosismo resulta especialmente visível i ios historia­
dores políticas, que, para dissimulá-lo, lançam-se a quan tificar qual­
quer coisa, o que tem a vantagem de parecer científico, é a adicio­
nal, assinalada i por Andreski, de "encontrar um pretexto para omitir
todos os tem; ts desagradáveis ou perigosos" - que dá a casualidade

* Rêcentemi ente, Lawrence Stone acreditou descobrir que és ãste uma ten­
dência a vo! tar de uma história "analítica" a outra simplesmen te "narrativa",
que se limit: i a contar' coisas na ordem cronológica - "nanativ a significa or­
ganização d o material numa ordem cronológica seqücncia], centrando o
conteúdo m im só história coerente, ainda que possa ter deriv; tções"- c pen­
sa que isso s:e deve à quebra dós outros tipos de história, que 1tentavam "cx-
pUcar'1as cc lisas. "Se acerto no meu diagnóstico, o movimento ate a narra­
tiva por parte dos "novos historiadores" marca o fim de uma era: o fim das

166
a. de; Btmiçâo da ciência hisl ;órica

què não se sabe como c< >ntar ou medir. Em semelhante panorama


cãbc: tudo, até a história "jpsicológica" ou "psicanalítica", da que bas­
tará, para amostra, um só exemplo: R.G.L. Waite, chefe do departa-
men to de História do Will iams College, nos explica o antí-semitismò
. de Elitler pela brutalidade doseu pai, com q glorioso argumento de
que "sem exceção, o meio familiar dos anti-semitas tratados, pelos
psiq uiatras mostra um co nfUto entre pai e mãe". Não. nós diz nada,
ém contrapartida, sobre d meio familiar dos historiadores psicanalí-
ticoíi que, sem dúvida, consultam com freqücncia o psiquiatra.11
Uma das conseqüê ncias mais gravés dessa degradação extre­
ma c la'História acadêmica, é que tomou mais fãcil a recepção acríli­
ca das alternativas que se ofereciam a ela. Comparado com isso,
qual quer cóisa podia pasíiaf por ciência social.

1 t<rntatívãs de produzir, um ia explicação científica' coerente da mudatíça no


p assado". O que significa c:ssc renovado gosto pela narração, em todo caso,
é a quebra de üm detem tínndo tipo de tentativa de explicação histórica
c o'm pretensões cientificais, e, em especial, os da social history, da que o
p róprio Stone foi destacado culctiador - recórde-se o. seu modelo "socioió-
g ico’ de explicação da revolução inglesa que citamos anterionnente . Não
h á nenhuma evidencia, p o r exemplo, de que a-história econômica acadê-
n lica, muito mais solidam« :nte assentada numa prática vizinha à dos econo­
mistas, esteja em vias de desaparecer, substituídas por biografias de "capi-.
tiies de empresas" ou alguma outra coisa do estilo.O que aconteceu a boa
p arte dos que se chamavam a si mesmos de "historiadores sociais" é que
o s seus livros resultaram pouco menos que ilegíveis, o que pode chegar a
c onvcrtcr-sc num grave p roblema em momentos de crise de produção de
livros, com ás lógicas repitrcussôes em algumas carreiras acadêmicas, que
c ostumam se apoiar ho jc igo das resenhas e das citações. Claro que Stone
tenta racionalizar isso cona uma pitoresca revisão da relação entre história
e "ciências sociais", onde assegura que a economia influiu sobretudo na
h istória da década de 193 0 a 1940, logo veio a sociologia de 1950 a 1960,
a demografia de 1960 a 1970 e a antropologia em datas mais recentes etç. -
P orem a montagem não te m.sentido algum, além de uma descrição das mo­
ei as dominantes nos meios universitários britânicos, desde 1930 até 1980,
e nem sequer tomado as sim parece sério. (Veja-se Lawrence Stonè, T hè
pa st and tbe present, Routledge and Kegan Paul, Londres, 1980. O da
h istória narrativa procede de "The rcvivaJ ò f narrafive", pp. 74-96 - dtações
li terais das pp. 74 c 91 tqué foi publicado previamente in Past and Pre-
sim í,n° 85, novembro 197 9, pp. 3-24 c recebeu uma sensata réplica 'de R J.
H(obsbawm no n° 86, fevereiro 1980, pp, 3-8. p das ciências sociais de "His-
tc jty and the social Sciences in thc twentieth century", pp. 3 4 4 dessè mes-
n to volume). . . " -

167
capítulo 9 . W Í .' . :

ajréconstrução.
- -ff1 ■■ ‘ . • J. -C I: h is tó ria , ,• • •
sociologia <e ^

•: ' • j ‘ .
antropologia
- :■i -

i processo de destruição das bases teóricas da Históriãf.


devi; i acompanhar o da sua reconstrução sob re nòvos fundamen­
tos. idavia que criar uma "novahistória",de acordo com as exigên­
cias dos tempos; que já não toleravam o velho narrador que se de­
dicai ta a colocar os "fãtps" em ordem cronológica para contar bata­
lhas ou glosar as vidas de princesas.virtuosas.* Já se disse que.a re-

. * Um testemunho pode contribuir para mostrar os nexos entre inquietude


~ sc jdai, no fim da primeira guerra mundial, e .desilüs ãõ dos jovens diante da
cl asse. dê História que se ensinava nas univcrsidad'es.WH.B. Court nos ex-
pllica a inquietude dos estudantes de Cambridge n uma época de agitação
ojperária e de ''dúvida sobre o futuro econômico", quando estes se ofere­
ci am voluntariamente para trabalhar na ferrovia dm rante a greve geral, e um
companheiro seu exclamava: "Tem-se que fúzilár itodos os mirieirosl" Em
st :melhantc contexto, não é difícil entender que sientiia que "o ensino da
História que nos era dado cm Cambridge lançava, pouca luz sóbreestes
p: roblemas cotidianos“, e que "olhassem ão seu reclor em busca de guias".
N o caso de Court, esse guia foiTawney, que, seguindo os ensinamentos de
MaxWcbcr, "lutava uma batalha em duas frentes: c ontra os valores sociais
bi urgueses em que havia sido educado e contra os marxistas, que estavam
1 c ijnyertendo-se nos seus mais poderosos oponentes, na controvérsia so­
ei al" (WH.B. Court, "Growing Up in an Age of An xiety", in Scarcity and-
C,bolse in /físfory, Edward Amold, Londres, 1970, pj D. 1-Ó0). Não é difícil en­
te nder que a luta delhwney era menos contià "os valores sociais burgue- -
st :s", do que contra suajustificação ideológica, ipar iifestada também nessa-
História acadêmicaà laActon,que não UumiriãVà"o:3problemas cotidianos"
dí i pósguena, com o que se corria o grave risco d' e deixar o terreno livre
p;rra os marxistas, que estes sim tinham algo a dize:r. Esse exemplo ilustra,
se :gundo me.párcce, a forma em que era sentida a r íecessidáde de uma "re­
construção" da ciência histórica. i Z. l •

169
'
J- "r. capítulo 9
* I --------

construção s e fez sobre a base de tomar emprestado, o instrumen­


tal teórico die outras disciplinas sociais, essencialmèntt; o da socio­
logia, da antropologia e da economia (ainda que também se desse
tuna mescla ide elementos tomados destas com outros ida geografia,
da climatolo gia, da biologia "etc.) Da economia nos ocuparemos
mais adiante; neste capítulo nos limitaremos a História acolhida no
nicho das inJfluências da sociologia e da antropologia.
Ambas as disciplinas - antropologia e sociologia - têm Uma
complexa evolução, estreitamente relacionadas entre si, que não
nos interess; i aqui mais que na medida em que nos p ode ajudar a
explicar as influências que exerceram sobre a Historiai. Quer se di­
zer com isso, que ã crítica à prática acadêmica dessas d isciplinas, ou
as propostas i para a sua renovação, devem ser feitas ai partir delas
mesmas, e qme não tentaremos introduzir-nõs nesse teirreno.Se, nas
páginas que se seguem, formulam-se críticas a autores òu a propo­
sições, deve-se entendê-las como feitas a um determinado tipo de
- prática, semelhante à dos historiadores acadêmicos, dii qual se feia .
somentè pelo foto de ter influído neles.
Nos fins do século XDÍ, as duas disciplinas abaiidonavam os
esquemas et 'olucionistas - as posições de Spenser, na sc >ciologia, e as
de Morgan cTylor, na antropologia - e propiignavam fioiuções ftin-
cionalistas. 1 ratava-se de analisar os mecanismos de e quilíbrio das
formas sociais existentes, revelando as regras da sua. articulação, .
para justificá-las e mostrar a suá racionalidade, com o antídoto às
proposições, evolucionistas, que se haviam centrado n o estudo da
mudança e Ihaviam chegado à conclusão de que não se podería al­
cançar novas etapas de desenvolvimento sem destruir á velha socie­
dade. O.que: podia conduzir a um antropólogo como Morgan a fe-
zer.ao término de um investigação sobre o passado das sociedades
humanas, profecias como esta: ■ -- . »

Chegará o dia em que o intelecto humano se elevai -á até dominar


a projpriedade e definirá as relações do Estado com a propriedade
que s:alvaguarda e as obrigações e limitações dos diireitos dos seus
dono:;. Os interesses da sociedade são maiores que os dos indiví­
duos c deve colocar-se numa relação justa e harmônica. O destino
final tia humanidade não será uma meta corrida até ;a propriedade,
se é c jue o progresso haverá de ser a lei do futuro, com o o foi do
passado.1 ’

No campo da sociologia a grande virada foi, sõlbretudo, obra


de Durkheim (1858-1917);Tònnies (1855-1936) e, muito especial-
a re iconstruçâo. I: história, sociologia e antropologia

- 1 . ' \ ■«.
- ■ mente, de Max W eber(1864-1920). Durkheim proclamou que a pri -
mè ira regra do método Síociológico era a de "considerar ,os flatos sò -
ciai is como coisas", que devem estudar-se ispladamênte "das suais
manifestações individuais",e estabeleceu a necessidade de se e x a ­
m in ara função que cum pre cada fato social np sèu próprio meio .
Tõi mies destacou a dicoi tomia entre "comunidade" é "sociedade" ou i
"associação" - G em etriscbaft e Geselíscbaft -, que iria dar origem a
tod o um jogo de dicoton nias - "tradicional" e "moderno", etc.: e. abri- -
ria ■os caminhos de análi! ;e das comunidades. Maior seria, ainda, a iti -
fluímeia exercida por M ax Weber, professor de>economià, liberai I
pre ocupado cm encontrar para a política alemã um caminho inter-
- mei diário entre os extremos do conservadorismo prussiano é o re -
volmeiónarismo marxista i. Para enfrentar a crítica neo-kantiaha, que:
- pre tendia reduzir as ciências sociais a um estudo do individual e dc i
cor içreto, Weber propugi iou ó método dos "tipos ideais": os fenôriié -
nòs têm uma multiplicid ade de significados - multiplicidqde.de rela -
. çõ es possíveis entre sl -, dós quais só podemos manejar uns poucos,,
aqueles quê abstraímos da totalidade, de acordo com as nossas;
preocupações e com as necessidade da investigação. Os "tipos;
ide: lis" são conceitòs lim itados que fabricamos nós mesmos, sinteti- •
zàn do traços que extraímos da realidade: de fenômenos individuais;
que; acentuamos unilateralmente. O resultado não é uma simplifica- ■
ção "objetiva" do real, m as sim um instrumento artificial para a in- •
vesitigação. Weber não p ropõe a formação de "tipos ideais" como
um método novo de trab alho, mas o apresenta como a prática habi­
tual! e inconsciente dos c ientistas sociais, e nos diz que são dessa na­
tureza todas as categorias econômicas com que trabalhamos habi
tua]riiente. Por outra parte, o estabelecimento de "tipos ideais" não
é o fim da investigação, mas sim a mera elaboração de alguns instru­
mentos necessários para realizá-la. A sua própria obra de investiga-
ção centrou-se numa pre iposta de método comparativo que isolaria
os «Mementos mais importantes c estudaria a.sua atuação em distin­
tos contextos para poder emitir conclusões acerca dq seu significa­
do izausal: Q elemento,que escolheu foi o papel da "ética religiosa"
no idesenvolvimento eco nôínico, cuja investigação começou a par­
tir c la ação da ética protestante no nascimento do capitalismo, para
-proceder a algo como uima sociologia comparada das religiões.A
verdade é, entretanto, qut: Weber não chegou a formular um"sistema
completo de idéias sobre: a pesquisa social. Na sua obra magna ina-
cab ada, Econom ia e Sociedade, propunha como ponto de partida

171
\

capítulo'9

uma sociologi a definida como "a ciência que tenta a CO: mpreensão
interpretativa da ação social, para chegar a uma explicr ição causai
do seu curso t: dos seus efeitos". Daí partiria o fúncionali sino deTal-
çott Parsons, còm a sua teoria da ação social, que se imporia nas
universidades nòrte-americanas dos anos trinta. Numa sociedade
que enfrentava a dupla crise da grande depressão econ ômica e dò
desafio soviét ico, e à qual os sociólogos académicos tinh iam qúe de-
' volver a confiánça na racionalidade dos mecanismos fundamentais
da süa organirtação, que tinham.de ser reparados para as segurar sua
sobrevivência.1 ■ " ' •.
No tenreno da antropologia, a ruptura com o. evo ilucionismo
costuma datar-se em 189ó, quando Franz Boas (1858-15)42) atacou
. os métodos c omparativos e iniciou o caminho de um positivismo_
sem generalú ações, fôrtemente influenciado por Dilti íey e pelos .
neo-kanfianoíi, que receberia o.riomé de "particulárismc) histórico",
' porém que nsitf rechaçaria também a denominação de " funcionalis­
mo". Para’completar essa: reação viriam os antropólogos da escola
britânica, com o Radcliffe-Brown (1881-1955), qúe parte da influên­
cia de Durkheim para afirmar que o presente não deve se r interpre­
tado pela sua gênese, mas sim pelo sua própria estrutun i, pela inter­
dependência orgânica das partes "funcionando" der itro de um
grande todo,-ou como Bronislaw Malinowski (1884-194 2), que trará
alguns esque mas organizativosfjue devem impedir qu<; o trabalho
do antopólog;o converta-se numa mera compilação de nrdnúcias iso­
ladas, e que ;>e justificam com uma teoria das necessidades huma­
nas. Com a sua sistematização dos aspectos culturais, Malinowski
pretendia combater a influência que tinham exercido st abre a antro­
pologia o evolucionismo, o difúsionismo e "a chamada i concepção
■■materialista dla história". Para ele a teonomiá estava engl obada numa
visão do mundo e "o que verdadeiramente me import a ao estudar
os indígenas é a sua visão das coisas, a sua Weltanschai tung, o alen­
to de vida e 'de realidade que respiram e pelo que vive m". Na Fran­
ça; por outro i lado, a influência de Durkheim conduzia;, pela media-
. ção de Marct :í Mauss (1872-1950); à antropologia estrut Ural de Clau­
de Lévi-Strau ss, para quem o objeto de. análise é o estai belecimento
de um mode lq: de um conjunto formal de relações que permita cal­
cular com exatidão as regras de funcionamento do s isteína. Estu­
dam-se, portanto, sistemas de relações estáticos e busc am-se as "re­
gras de transifomiãção" que permitam .passar de um a outro, igual­
mente estáti co‘. Só que os supostos modelos não pass: im de claves

' 172 - '


a re construção. I: história, sociologia e antropolc igia

mm smotécnicás, que não têm nada que ver co m a pretensão de "re­


pto duzir os fatos no laboratório", enquanto qu e o uso de terminolo­
gia e símbolos algébricos tem sido denunciado como "uma paródia
tosca das matemáticas".5 • '
Já se disse que não é este õ lugar em q üe se deva fazer uma
critiica da sociologia e da antropologia acadêmdcas, mas somente da
História. O qiie mé leva a omitir, igualmente, :as tentativas, de reno­
vação que têm. tratado de constnjir uma socio logia radical, liberada
dos compromissos políticos e ideológicos par sonianos, ou uma an­
tropologia marxista. O que me interessa aqui é o tipo de História
acat iêmiça que se quis fazer sobre a base exch asiva do instrumental
teór ico dessas disciplinas, iia sua versão funde malista e estruturalis-
ta, ainda que também corresponda à denunciar algumas tentativas
de invasão do campo de estudo da História p o r parte de sociólogos
■/ ,. e anitropólogos:'*.. \ •' •.
A denominação de "história social" tem servido para cobrir
as ir tais diferentes mercadorias.Tém-se usado, i mpropriamente, para
desi gnar os estudos' de história dó moviment o operário, porém o
seu emprego mais frequente tem sido paia r íomear uma História
"corn a política fora" ou, para dizê-lo nfáis ped antemente, "uma dis­
ciplina construída ao,redor de um tema central que a vértebra: a
hist<ária da sociedade enqúanto-^ociedade, da é strutura social em to­
das as suas cambiantes manifestações".Aparte do difícil que resulta
entender o que é isto de "a sociedade enquanto sociedade", a verda­
de c que custa conceber uma história que não seja "social", que se
possa permitir o luxo de prescindir "da estrutmra social em todas a
suas diversas e cambiantes manifestações". Como assinalou Hobs-
- baw m: "A historia social não pode ser outra es pecialização, como a
ecoí íôniica ou'como outras historias setoriais, j aorque a matéria que
estu da não pode ser isolada". Podemos imagin ar a possibilidade de
estu dar isoladamente as atividades econômicas ou as idéias escritas,
"por ém os aspectos sociais do ser humano nã o podem ser separa­
dos de outros aspectos do seu ser, senão a cus ta de cair na tautolo­
gia o u em uma extrema trivializãção". Há, entretanto, uma autoric-
' nomiihada "história sociál" que tem um considerável desenvolvi-
men to acadêmico nos países anglp-saxões, e es tá, aõ seu lado, o que
na Alemanha federal recebe o pomposo n oim rd e"historisebe So-
ziahwissertschaft", t que não é mais que.o velho historicismo reju-
vene iscido, com transplantes da sociologia conservadora americana,
-capítulo 9

controlado pe:lo rígido sistema de vigilâncias e censuras ideológicas


herdadas do nazismo, que continuam hoje em plena vig ência.5
Esta "hiistória social" não tem fundamentos teóricos próprios,
proclama-se a si mesma eclética* e define-se pelo instrumiental meto­
dológico que emprega, inspirado na sua maior parte peLi sociologia
funcionalista.; Vsua característica essencial é a omissão - aj parente - de
todo o polític o, em nome da já falada neutralidade. Feud alismo e ca­
pitalismo (paJ lavra çuidadosamente evitada) têm sido substituídos
pelos pré-moderno e moderno, e a história humana converte-se
numa lenta as censãò à modernidade - um longo processi 3 de'moder­
nização. Uma vez definida a ordem capitalista como a re gra, como a
normalidade, tudo o que signifique tuna resistência ou iim protesto
deve examiníir-se como uma anormalidade, uma infcapacidade de
ajustar-se à modernidade, ou seja: como um processo pat;ológico, cu­
jas causas se e 5tudam para ajudar aos médicos sociais - pc ) líticos e s<>
ciòlógos - a pt evenir a repetição de tais males. Prescindir •da política**
permite passa tr por alto as relações que possam existir <mtre confii-

* Uma das t pais deslumbrantes demonstrações de ecletismo que conheço


é a de Arthu ir L Stinchcombe, que sustenta que "a diferença e ntre o marxis­
mo de Trotiiki, o funcionalismo de Smelser e' o desespero cc mservador dé
Tocqueville, não significa no que se refere a qualquer quest: io importante
de teoria soiciológica".E arremata: “Quando.se trata da análise de casos es­
pecíficos e quando. fazem um- bom trabalho de interpreta ção histórica,
Marx, Webt ;r, Parsons,Trotski e Smelser, todos operam do mt :smo modo. O
propósito dleste livro [o de Stinchcombe] é encontrar qual é: esse'modo, t
ignorar deli beradamente toda a grandiosidade das amplas visões do mundo
de cada ura, para concentrar-se nos métodos históricos, nas í ormas de pen­
sar sobre o; : fatos históricos" (Arthur L. Stinchcombe, Tbeore tical methods
in social hi 'story,Acadmic Press, Nova York, 1978, p. 2).
” A pouca í ieriedade de semelhantes intentos de "deixar a p<jlítíca de fora"
pode-se pei-ceber na afirmação de Peter Stearns: "Quando a 1ústória da ida­
de da aparição da menstruação [m enarebe , cm inglês] fbir amplamente
reconhecida como da mesma importância que a história da monarquia
[m onarclsy], teremos conseguido nossos objetivos". O quai pode ser la-
mentavelm>ente certo. E digo, lamentavelmente, porque não está muito cla­
ro para qu<: serve a história da idade em que aparece ame nstruáçâo. Ed­
ward Short er, um dos pontífices da seita, publica,nos Anna,les, 36 .0981),
n° 3, pp. 49 5-511 um documentado artigo sobre "A idade da s primeiras re­
gias na França, 1750-1950", onde se demonstra que a idadle da primeira
menstruaçãto abaixou de 15,9 anos, entre 1750-1799, a 13 ,9 anos, entre
19Q0-1950, c que esse descènsoproduziu-se antes nas jovem; da classe mé­
dia do que nas das fiunílias operárias. Ainda que prescindindo de que isso
já eia sobc:jamente conhecido dos biólogos, (veja-se, por 'exemplo, Alex
Comfort, I Vaturaleza y naturaléza hum ana, Proyccciõh, Buenos Aires',

174 " ' ■ ' V-T'


a «jconstrução. t história, sociologia e antropologia

to t; formas de organizarão da sociedade. Nem as classes nem o se u


enfrentamento têm lugar nesse esquema.As classes, quando apare>;
cern; o lazem ou como categorias socio-proflssionais mecanicamen ­
te ciefinidas pelos seus g: anhos e por elementos impalpáveis, como c)
. sta tus ou o prestígio, ou desvirtuadas pelo conceito dê "classe sócia 1
sufcijétiva", ou seja, da "ac ito-implantação" numa classe, que conduz íi
achádos científicos tão extraordinários,cõmõ o de que há certo grat i
de correlação ;entre "indlicadores objetivos" e a consciência: isto é ,
qut: alguém pode sentir-se pobre, quando é pobre.* -f'~>
Porém o "historiai dor social" mente quando pretende ter dei -
xaclo a política de fora. A sua obra géralmente é inspirada por umíi
vontade dê serviço à ordem estabelecida - a que concede cargos c:
outorga recompensas;Ai nda que o "cientista social" escude-se atrás
de parapeitos de teoria - mais ou ménos legítima - c nos fale do seu
tema com o mesmo distanciamento quê empregaria se estivesse se:
j ocmpãndo de insetos, òs móveis vêm à luz quandó escavamos umi
pouco, como pode-sé ve f num notável exemplo. Charles Tiüy e Ed- ■
waixl Shorter, dois dos síintarrões da social bistoiy, publicaram, emt
19” 4, um estudo sobre as greves na França entre 1830 e 1968, as suas;
- can icteristicas e motivaçí 3es, na base de codificar e ordenar os dados;
de umas 100.000 greves. O seu enfoque era deliberadamente anti--
hist órico e aparentement e apolítico: recusavam-se a falar de casos in- •
dividuais, líderes, doutrinas, tradições, esperanças e frustrações - a.
enumeração é dos próprios autores -,para buscar conclusões gerais
no desapaixonado e obje tivo terreno do que se define como "socio-
logi a política, do conflito industrial". O seu trabalho estava inspirado

■ 19ó9,pp. 82-85) e delxan do deíado a duvidosa confiança nás cifras.de que \


iaos serve sabçr isso? As li inhas finais do artigo de Shorter sugerem uma uti­
lização de tais dados: nSu] ponhamos que na França assim como na Inglater-
' ira a mortalidade tenha ab aixado - no século XIX porque começou-se a co­
mer melhor. Suponhamos i, além disso, que a idade da puberdade seja um ín­
dice pertinente da nutriç ão. Se essas duas afirmações são exatas, investiga­ 1
ções posteriores sobre a mudança da idade da puberdade permitiião se-
jjuir mais predsamente os avanços c retrocessos da pauperização". Ainda
(jue admitindo todas as si aposições de Shorter, parece disparatado ir ao es-
t udo da pauperização pe la menstruação, havendo, montes de indicadores
mais diretos, confiáveis e: conhecidos. Ante semelhantes resultados, fàz-se
difícil compreender as b;ises era que se sustentam pretensões como a de
Stearns, de que ésse conl lecknento do adiantamento cm dois anòs dã data
t la puberdade seja tão im portante para a análise histórica, como o das mu-
tlanças políticas de dois !iéculos. O que acontece é que, comõ poderemos
ver, muita dessa gente nã 0 é sequer medianamente séria.

175
capítulo 9-

-pelo desconcerto produzido pelas greves francesas de maio


- e as demais coisas que ocorreram com as greves -,que deixaram
ridículo as interpretações sociológicas existentes: teorias do
mento, de frustração-agressão etc. Depois de um gtandie esforço de
quantificação, chegavam à concluí são de que as greves tinham
motivação política. Não importa q ue se dirijam aparent emente con­
tra òs empresários e que esgrimam motivos de reivindicação salarial.
Os sindicatos utilizam esse pretext :o para levar òs trabali íadores pelo.
caminho da revolução e estes deixam-se conduzir. Como chegam á
tal conclusão? À resposta nos permite perceber como a] parece a ore­
lha peluda do servidor da ordem estabelecida sob a máscara da quan­
tificação e da "sociologia do conflito":"Sc os participantes delas tives­
sem ido realmente à greve para conseguir aumentos salariais, teriam
se forjado sindicatos do tipo norte-americano, que lhes feriam pro­
porcionado melhores resultados".'*7 . ■
A ausência_de autêntica re flexão teórica é süpr ida na social
history com a fabricação de Úm jiargão, que da a ilusãc ) de uma lin­
guagem técnica, mas que hão é mais que aigot (gíria ) para inicia- "
dos, destinado a manter o terreno a salvo de intrusos -■utilizando o
velhíssimo truque de voltar a nomear as coisas de outra, maneira,
mais pedante que ajuda a fingir ique se está falando enn termos abs-
. tratos, como corresponde a uma ciência.Isso serve para encobrir a
ideologia com um disfarce de obj etividade, com o qual pode-se che­
gar a dizer coisas "tão tremendas oomoJque "a maioria idas coisas fei­
tas pelos que se encbntram a marido de organizações o u sociedades
são necessárias", com o que S.M. Iipset dá uma mostra de deferên­
cia servil do mais puro estilo "ranikeano".Para deslumbrar o público
còm uma modernidade e uma ajmpiitude de visões que não se en­
contram na velha história acadêmica, os historiadores sociais lança-

* A frivolidade mal-intencionada c :om que a social bistoij »costuma tratar


os temas relativos ao movimento operário, tem um bom exemplo em Pe­
ter N. Steans, Lives o f LaboryCrocim Hclm, Londres, 1975, onde sc podem
1er coisas como que "o aborrccim iento que muitos jovens sentiam no seu
trabalho aumentou o seu Interesse - pela .diversão militar" - o que sé supõe,
explica boa parte do apoio popular à primeira guerra mundial na Alema­
nha e na Inglaterra -, c diz na conclusão final: "Privados do controle básico
sobre o sistema econômico, e não desejando combater din ctamente contra
esse sistema, a malor parte dos operários as apoiaram com uma mescla de
mau-humor c pequenos prazeres - uma mescla que confu nde aos que ob­
servam isso de fora, porém que sc :guc sendo ainda útil par a a classé operá.-
ria" (citações das pp. 335-353).

176
a re construção. I: história, sociologia e antropolc >gla

; . ram ,-se à conquista de campos novos, mais rei àtáveis pm termos de


ven das de exemplares dos seus livros, como sã o os sobrç sexo, ianií-
. lia, !loucura ou crime. Temas que se analisam : sempre formalmente,
des] ligados das suas relações básicas corá a on dem social, e que dão
. lugíir a livros pitorescos, onde as transformaçe >és da família são rela-
doiiadas com as mudanças políticas ou expli cadas por fantasiosas
"rev oluções sexuais", oü onde se utiliza a apan ente objetividade'dos
mét odos da demografia, para colar-nos a falsa i. magem de tuna sqdie-
d^de sem classes, Ou çòmo veículo,püra e siinpíesfliente,para um
dtfoirínamento móral reacionário* Bonssão o s contatos foteMsci-

*‘Alguns exemplos ilustrarão o’sentido dessa enun neração. No The m aking


L ' n f the m odem fam lty (Basic Books, Nova York, I:975),Edward Shortèr esc
plicaas mudàhçâsna família por 8uas estupendas "revoluções sexuais'.A
primeira, cm fins do. século XVm; serviu pãra ensinar aos camponeses a
ITiasturbar-se c para pôr fim a-ümTmundo em que os jovens chegavam vir-
í jens ap matrimônio (o que foi desmentido por Fia fidriri).A segunda corres­
ponde a Í950-1970. Tildo'isso ç ilustrado cóm uim encantador gráfico da
■<rvolução da moral sexual dé 1550 a nossos-días, ó ndc o "nível de atividade
ítexual pré-conjugal" mede-se numa escala vertical que diz, simplesmente,
1'baixa", "média" e "elevada", sem que se nos diga que critérios quantitativos
l oram aplicados e como foram feitas as medições. Lawrence Stohe (TBc fa-
m ily sexíind m arriage in Engkirid, 1500-1800^ Vcidenfeld and NicOlson,
1Londres, 1977) joga igualmcntc com gráficos de <rvolução da sexualidade,
porém assinala algumas determinantes da mudan ça que são praticamente
de natureza política. HPeter Laslett no The World we haue lost (Methuen,
1Londres, L979)i.quem pretende que a sociedade i inglesa do antigo regime
i ião tem divisões de classe, a partir de juízos sobre o que a gente devia sen-
t ir e sobre quais podiam ser os "seus símbolos de : statusr". O do "doutrina-
'' ' i nehto reacionário" refere-se a Philippe Ariés, reli idonádo cora i extrema
direita francesa, qué'nos oferece algumas observações corretas sobre a
t norte, a família ou a infinda, numa montagem r neramente literária e ca-
i 'ente de todò rigor, com fontes discutíveis, e set ti nenhuma Intenção de
I aassar dá mera descrição à indicação de causas qi ie possam dar sentido ãs
i nudanças de atitude. Poderíamos acrescentar, con ao um exemplo a mais, o
i ivro de Louise A.Tdly e Joan W. Scott, Women, wo rk and fam ily (Soit, Ri­
nehart andWinston, Nova York, 1978), onde a intenção de acompanhar as
i nudanças no papel da mulher com relato ao tra balho resulta totalmente
- í rustrado, pelo erro de supor que a "mulhcríé um : grupo indiferenciado, cs-
(juccèndo que o trabalho não pode ser "considérât lo, fizendo abstração das
( listinções de classe entre as mulheres: que há, pa ta dizê-lo nos termos da
i inguagem comum - que representa uma cristaliza^ âo das regras do jògò so­
cial -, "mulheres" e "senhoras"Assim, enquanto as " mulheres" britânicas dos
começos do século XIX se incorporavam comó ai ssalâradas à indústria, as
' " senhoras” eram educadas para que.se cònvertessi :m em seres frágeis e dé-
: ' crotativos, absolutamenté incapazes de esforço fisi co: .
Capítulo 9

plinarcs, poré:m devem fazer-se trabalhando cada um coiri o seti ins- ;


trumental nurn problema comum, não tentando hibridac ;ões impos­
síveis, como a dessa história social que se quis construir sobre a
base da teoria, sociológica - uma "sociologia aplicada" ou , como dirá
Abrams, tuna "sociologia histórica" - e que não conduziu mais que
ao ridículo e ao desastre.0 ' .
A influência teórica da antropologia social sobne a história
foi sentida, sobretudo, no estudo das sociedades pré-c apitalistas -
como correspionde à divisão do campo estabelecida en tre sociólo­
gos e antropó logoS o qual explica a sua forte repercus são sobre a
arqueologia pré-histórica e sobre os chamados "estudo;5 campone­
ses". Porém essa influência foi tão variada como as escolas de pen­
samento que se têm enfrentado e sucedido ha antropologia. A ar­
queologia tev e no século XIX uma fase de desenvolvim ento evolu-
cíonista, a par tir da fixação pêlo dinamarquês Thòmsén 1das três eta­
pas- caracteritadas, sucessivameijte, pelo emprego da pedra, do
bronze e do ferro. Experimentou.mais tarde a reação aniti-evoluçiò-
nista de Boas, em especial nos Estados Unidos, e caiu só b a influên­
cia do funcior íalismo - ou foi parar, na Alemanha, em pro] posições ra­
cistas, reladoí tadas com a antropogeografia de Ratzel,* c jue propor-

* A antropog ;eografla de Ratzel, a arqueologia pré-histórica alei cnã e o darwi-


nismo social contribuiram para a configuração íkjs iiuu lamentos da
"história racial" de Rosemberg (veja^se Alfred Rosembcrg,J?fl ce ande race
history and other essays, ed. por R. Pois, Harper and Row, Nov aYork, 1970),
que teye um a extraordinária Importância na formação do pens amentq hitle-
riano. Hitler, por sua parte, reclamava; "É tarefe de um Estado racista cuidar
que ao fim c hegue-se a escrever uma história universal onde o problema ra­
cial ocupe hjgar predominante", e insistia na necessidade de 1'Unia reforma
no método de ensinar a história" (Adolf HitleqAíí lueba, k\-ila, s. 1., s.d.,
[c. 1937]). O mitimos aqui outros determinismos, como òs qi te se referem
aos fetores c limáticos, desde as primitivas elucubrações de Hui itington - que
buscava exp licar o Renascimento pela influência das torment as clctonais e
do ozônio, â tivador da inteligência, produzido como conseqüi incia das des­
cargas elétri cas (E Huntington, Mainsprings o f civilization. Mentor Books,
Nova York, 1959, por exemplo, p. 612) s passando pelas trivia lidades-de Le
Roy Ladurie - que nos mostra as,geleiras das montanhas erapu irrando quase
litcralmenre os homens CHistoire du clim at depttis Van m il,, Flammarion,
Paris, 1967) - até proposições que quiseram explicar as criíies do século
XVn e outro s fenômenos históricos pelos eidos da atividade s olar (D.Justin
Schove, "Tht: sunspot Cyde, 649 B.C. to A.D. 2000", inJournal' o f Geophysi­
cal Research, 60,1955, n° 2,pp. 127-145, cespcdalmenteJohmA. Eddy, "The
‘Maunder M inimurn'; Sunspots and Climate in the Reign of Lot uls XIV1,In G.
Parker e L.M . Smith, The general crisis o f the seventeenth cent fury, Routled-
ge and Kega n Paul, Londres, 1978, pp. 226-268).

178
a rec onstrução. I: história, sociologia è antropoloj ÿa

ciott iriam a justificação para eliminar grandes c [uantidades de mate-.


rial iuimano não-germânico. Do próprio seio d a Pré-História.surgiu
a figura çhave de VGordon Childe (1892-1957'), que transformaria
radie :almente a arqueologia; porém o seú pensa mento deve ser con-
sidetado dentro do quadro do estudo do marxiismo. Na mesma me­
dida em que a antropologia acadêmica sofreu a sua crise, para de-
sembócar no materialismo primitivo de Marvm Harris où nos pos-
tulad los neo-funcionaiistas da ecologia cultural, a arqueologia inspi­
rada por ela foi parar numa tentativa de revalor izar a relação dó ho­
mem i com o seu entorno físico, pondo, o-acen to, pof exemplo; na
preo cupação por compreender a aparição da ; ígricultura. Esta, não
com o um progresso cultural - como o resultado de alguma "revolur
' ção" forjada num lugar dó planeta e difundida logo para toda a sua'
superfície -, mas sim como á resposta a uma situação de crise pro­
voca da pelo desajuste entre ò número dos hóinens e o volumé de
recui rsos naturais dispóníveis.O curioso é que <essa "nova arqueólp-
..gia", nascida de uma suposta revolução ria d ecida de 1965 a 1975,
acréciita estar rompendo còm a antropologia e construindo os seus
pfóp rios "modelos arqueológicos", e resulta ter seguido uma evolu­
ção paralela à daquela. Se excetuarmos a que deriva dadiCrança de
Gordlon Childe, reintegrada plenamente no tro nco coletivo da His­
tória, a "nova arqueologia" anglo-sarâ caracteriza-se ainda pela des­
proporção que existe entre o avanço dos seus métodos de investi­
gação e as simplificações triviais das suas prop osições teóricas.5
Do campo d a economia surgiu a propc >sta da antropologia
econ ômica de Karl Polanyi e seus discípulos, in satisfeitos com a ba-
gagei m que a economia neo-clássica lhes ofereci ia para interpretar as
socie:dades pré-capitalistas. Buscando, porém, ao mesmó tempo,
uma terceira via de evolução, de construção dst sociedade, entre as
prop ostas conservadoras formuladas pela antro pologia e pela socio­
logia ào serviço do capitalismo é as do marxismo,Polanyi chegou a
conc lüsão de que a economia de mercado, ondie as forças econômi­
cas atuam independentemente, era um feto reo mte na Kistóriá, liga­
do QcclUsivamente ao capitalismo, enquanto qu e em etapas anterio­
res d o desenvolvimento, as instituições que produziam e distri-,
buíain os bens estavam imersas em outras ins tituições iodais e a ,
economia era uma parte subordinada das relações de parentesco,
1 - polítilcãs ou religiosas, que funcionava mediant e os mecanismos da
recip rocidade (fevores.e obrigações entre parer ites e amigos) e_a re-
distribuição (pagamentos obrigatórios à autoridade central, que,

179
càpftulo 9

com parte deles, atende a uma stíriè de necessidades :sociais, como


a de assegurar o bem-estar em épocas de catástrofe^. Com seme­
lhante delineamento, Polanyi opuinha-se aos defensore s empederni;
dos do capitalismo, que afirmava m que fora do merca do não havia
salvação possível - a liberdade desaparecia e caía-sè na tirania do Es­
tado totalitário -, e igualmente ao s marxistas, que acus ava de terem
conformado a'sua visão global da sociedade sobre a do capitalismo,
já que a primazia do econômico na estrutura social s ó se dava. nes­
ta etapa do desenvolvimento econôm ico.*10
Nãó há dúvida que a obra de Polanyi representava um inten­
to imaginativo de formular as bases de uma terceira via entre o ca­
pitalismo e d socialismo marxista,, ainda que hotrvessé nela muito de
idealização dos mecànismos organizativos das sociedades primiti­
vas, na mesma linha do Kropotkin de O apoio m útuo. Esse elemen-
to.de utopia é o que lhe faz ver Biirripgtoh Mòorè jr., quando afirma
que o egoísmo e a opressão aco ntecem impor-se fec iproeamente
. em todas as sociedades, desse modo a únlca via de imiplantá-la efe­
tivamente seria a abolição de to da forma de aütoridaide, o que "é
também p u ra especulação". "Até agora na história huniana algumas
formas de autoridade têm sucedido simplesmente a ou tras.As novas
têm substituído eficazmente as que tinham sido historicamente su­
peradas". Porém o campo da antropologia econômica não se limita
hoje aos seguidores de Polanyi. H á desde tendências muito próxi­
mas da sociologia acadêmica, quç se contentam em fazer uma aná­
lise formal que reproduz as categorias do capitalismo, tratando de
sujeitar qualquer época histórica, aos esquemas da economia neo­
clássica,* áté uma antropologia .econômica de-inspirarão marxista,
como a representada por Mauric e Gôdelier. No meio desses extre-
‘ mos, há divulgadores equivocados de Polanyi, como IWârshall Sah-
lins, que reformulou a doutrina em termos mais acessíveis ao

•Thomas C. Patterson, por exemf ilo, aplica as categorias do capitalismo


atual para interpretar os impérios jprc-colombianos, o que o ieva a afirmar
que a ascensão c queda de Teotihu acárt podem explicar-se com um mode­
lo baseado nós efeitos multiplicadores das indústrias de exportação, e aca­
ba generalizando essa interpretaçã o às duas áreas dos And es e da Mesoa-
mérica,para dizer-nos que'o traço idominante da sua história foi "a compe­
tência pelo acesso a recursos escassos". Parece dllidí entender o mundo
prc-colotnbiano còm essa aplicad o mecânica dos manuais de economia
neo-clássica <Amertca‘s pasb a JVrav World arcbeology, Scot t, Foreman and
Co., Glenview, 1973, citado das pp. 78-80 e 116).
I

a reconstrução. I: história, sociologia e antropologia __ 1•

grande público - com expressões como "a so<riédade opulenta pri­


mitiva" - e lhe acrescento u a análise das econc unias camponesas .de
Chaiánov, pâra formar o "modo de produção doméstico"; jogando
com a terminologia marxista, ou propõe fazer ii "sociologia do inter­
câmbio primitivo", recupi srando tódòs os tópic :os do funcionalismo.
Vale tudo para combinar uma mistura que se ; ípresenta a si iiiesma
como uma-teoria econônoica "substantivista" c; prcténdedenúnciaf
a "formalista" ortodoxa c orno etnocêntrica e c :ómò filha das neces­
sidades de justificação idi êológica da burguesia i capitalista; mas que,
na hora da verdade, não t jferece nenhuma saíc Ia em troca.11
Estreitamente relacionadas com a antropologia econômica
estão as áreas do que sé designa como "estudo s camponeses", e dòs
áeus vizinhos, nèm sempr e distinguíveis deles,"estudos sobre comu­
nidades". Confluem aqui, por outra parte, as ir tfluências da sociolo­
gia de Tõnnies e a deAlexander Chaiánov, o'e conomista russo que
formulou observações m uito inteiessantes sobre a lógica da explo­
ração camponesa familiai-, porém montou a sua teorização sobre ãl-
guns éstranhòs esquemàs marginalistas, que mi ;dem as abscissàs èrn
termos monetários de ganho anual,'enquanto c juc nas ordenadas re­
presentam "avaliações subjetivas" da fatiga do trabalho e da utilida­
de acrescentada a cada ur íidade de ganho, qué convertem todo 6 es­
quema numa ficção, resultando impossível fixar valores numéricos
reais a estas "avaliações subjetivas", A partir de Chaiánov pode-se in­
tentar quase qualquer co isa, desde vestir a súa teória cóm a termi­
nologia marxista e falar du "modo de produção camponês", até as vi­
sões sociológicas acadêmicas e p anticomunismo militante de Bar-
rington Moore jr.IJ
Em certas ocasiões, entretartto, os antropólogos não se têm
contentado em proporcionar a utensilhagem teórica, comõ que
também têm pretendido' invadir o terreno nu esmo do historiador,
com resultados nada felizes. Casos como o de Lucy Mair - que estu­
da os reinos africanos globaimente, em qualquer tempo e lugar,
como uma categoria específica,piara chegar a conclusões tão estu­
pendas, como a de qué íis capitais são maiores que "outras povoa­
ções e "havia, por isso, a n ecessidade de fúncioi nários que se ócupas-
. sem especificamente da sua organização e abastecimento"- podem
. deixar-se de lado, como fclobagens sem demasí ada importância. Me­
nos inofensivo resulta o de Alan Macíàriane, que, depois de haver
publicado um artigo "pro gramático" em queproptinha revitalizar a
— história com á aplicação de categorias antropológicas, apareceu

st-
capítulo 9

com The otigins o f english individ ualism, onde punha ;i descober­


to que anteriormente, todo o mundo tinha se equivocado - e conde­
nava explicitamente a Poianyi, Maçs.Weber, Dutkheim.lbcqueville,
etc, - e que a Inglaterra de 1250 era i tão capitalista como a de 1750,
de modo que toda a questão do trâ nsito do feudalismo aio capitalis-'
mo era uma mentira. Com uns estudos sobre umas quantas paró­
quias, uma mediana-bibliografia e nenhum conheclmen to sério de
história econômica, Macfarlane des cobriu que o capitalismo é pou­
co menos que eterno. Porém, talvett o caso mais eloquente, ou mais
sinistro, seja o de Marvin Harris - amtigo chefe do depan tamento de
Antropologia da Universidade de Columbia e autor de biest-sellers -
, cujo economicismo primitivo po de parecer uma burla inocente,
enquanto contenta-se em explicar os sacrifícios de pris iòneiros na
América pré-colombiana* pelas necessidades alimentícias e afirma
que "é legítimo descrever os sacerc lotes aztecas como assassinos ri­
tuais num sistema patrocinado pelo Estado e destinado à produção
(!) e a redistribuição de proteínas animais na forma de c ame huma­
na"; porém deixa de sê-lo quando se põe ã acompánhà r Wittfogel,
para dizer que a luta de classes "érim'luxo das sociedad es abertas",
ou quando fabrica uma morfologia para dar conta da evolução-intei­
ra da história1humana - ainda que destinada, na realidade:, a oferecer
uma versão relativamentc despolitizadora da crise atual <lo capitalis­
mo -, sobre a base de que em cada época houve uma fasie de repro­
dução excessiva dos homens, que conduziu ao esgotamento dos re­
cursos naturais, nas condições dé utilização vigentes, e que isso ori­
ginou uma crise, da qual saiu com novos sistemas’de produção (...),
cada um deles com uma forma característica de violêncl a, trabalhos

* WArens, Uje man-eatíng mytb.Awtbmpolog}’ and anthropopbagy, Ox­


ford University Press, Nora York, 1981, mostrou a fragilidade da evidência
existente sobre a antropofagia azteca i, usada como uma justificação da con­
quista, c a ligeireza com que Hamer <: Harris montaram a sua i Interpretação
"alimentícia" do canibalismo mexicano. O curioso é que.sendlo o canibalis­
mo aigo de que se fida sempre por níferêndas mais ou meno s remotas, ou
atravésde testemunhos diretos nadai dignos de fé, exista tod a uma tipolo­
gia antropológica do canibalismo qt ie o divide segundo doi;; jogos distin­
tos de feitores. Com efeito, pode-se qt iaiificá-lo como endocani íbalismo, exo-
canlbalismo e auto-canibalismo (scfptndo se coma a alguer a do próprio
grupo, de fora do grupo.ou a si mesn io), e corfio gastronômici j, ritual ou de
necessidade.' Esses dois jogos se conabinam, além disso, entrc sl, de modo
que há estudos" sobre o 'endocanibadismo gastronômico". O que não é se­
guro é que haja canibais (citações dis pp. 17-18 e 72-80).

182
-a reconstrução I: história, sociologia e antropologi ia

penoisos, exploração ou crueldade institucional Izados", o que,como'-


' se vc:, nos deixa privados de qualquer esperan ç a do melhora real.
Porq ue, diante desse eido infernal da "pressão reprodutora, da. in­
tensificação e do esgotamento ambiental"- que, opina ihodestarnen-
. te, contém ”a chave da compreensão,da evolu ção das relações de
prop riedade, da economia política e das crença s religiosas" -, não há _
outra i solução que "a expansão da objetmdadg; científica no domí­
nio cios enigmas dos estilos de vida" - isto é ò tipo de engodo que
ele n tesmo pratica á propósitoTdos porcos, das vacais ou dos sacrifí­
cios aztecas -, com o quê, esse falso ilustrado revela-se a nós como
um vulgar vendedor de diõgas adormecedoras ao serviço da causa,
emin entemente conservadora, da despolitlzaçã o.13
■Pelo.que se refere à História,construída com ã ajuda da teo-
; ria antropológica - e estou referindo-mé agora ; a um terreno de co­
laboração, muito distinto daquele das invasões: resenhadas antériór-
' meni :e - , parece claro que a sua validádê depen ide de um problema
de dosificação:.de(sé estarfkzendo "antropolog ia histórica", usando
servi Imente a utensilhagem teórica dessa discip lina para a investiga­
ção cios fatos históricos, ou se fazer "história ant ropológica", utilizan­
do fe rramentas emprestadas para um trabalho eminentemente his­
tórico. Essa diferença parece-me que pode ilus trar-se com dois tra-
. balhos que se referem'a uma temática muito s emelhante e que al-
cançiim resultados muito distintos.
.. " • Exemplo de antropologia histórica é ó de Nathan Wachtel
com o seu estudo sobre os índios do Peru diant c da conquista espa-
r nliolí t. A sua obra pode ser descrita comó um : sanduíche em que a
histó ria proporciona as camadas exteriores - os i fatos da conquista,.
na primeira parte,- e as rebeliões indígenas, na terceira -. enquanto
que £i antropologia põe o substancioso presunt o no centro - o estu-
7 do das mudanças sociais.líido o que seja instrumento de análise'
provém da antropologia: começa com um esqut ;ma da sociedade in­
caica à Polianyi e completa-se cóm outro de c aráter estruturalista,
-- inspirado em Zuidema, para inventar uma orga nização sócio-políti-
ca, que seria "a ideologia que justifica as conce:pções da reciproci­
dade e da redistribuição", e acaba em Marx, ao sustentar qué a so­
ciedade incaica era "um modò de produção asiático" que estava es­
boçando elementos "feudais". O resultado final é uma mescla de
histó ria política tradicional e fanfarronice antri jpológica, sêm nadaL
que j ustifique a pretensão de "descobrir as lógi< :as dá história, geral-
ment e inconscientes, e compreender a práxis que põe em movi-

183
capítulo 9

mento essas lógicas, através das s;uas representações conscientes".


i Um exemplo pode esclarecer o alheamento da realidade a que se
chega com os seus métodos. Wa ditei toma a conhecida obra de
Huamãn Poicna e deduz dela "esquemas teóricos dos reinos dó ■
mundo" e os "permuta” - numa dessas ficções matemáticas ao modo
de Iévi-Strau iss - para acabar conc luindo qüe o cronista "percebe o
mundo colo nial através dá ótica d o sistema espácio-tc mporal indí­
gena", com "ia lógica rigorosa do p ensamento selvagem'porém que
vê ameaçado o resultado por uma "tensão que o leva ao limite da
ruptura", corno conseqüência da " introdução da tempo ralidade Oci­
dental no interior do sistema”. Só que.se temos alguma idéia acerca^
de Huamán IPoma e do seu teifipo', e recorremos sem niais aos seus
esboços, o que descobriremos é algo muito mais singelo, porém
mais pleno d e sentido humano: o que o move é a l uta contra a
opressão ex< ;rcida pelos cólonizãc iores e á chave não eí >ta em como
se distribuena e permutam os reinos do mundo sobre um mapa, mas
sim nessa ilustração que nos moslira no centro uni índi o suplicante
rodeado do 1 nagistrado-serpente, clo encomendero-leão, do ratão-ca­ ■mm
cique, do tig re-espanhol-da-venda, da raposa-padre-da-d outrina e do • --M m te. v ;-
..■■OsSsS SS •"
gato-escrivão, e que diz, nas palavisas do próprio Huamíin Poma: "es­
ses animais que não temem a Dc:us esfolam os pobres dos índios Cy-'-
neste reino. iE não há remédio'1.” .. •. C'.1■írsaã :*•
' O exc :mplo da "etno-história“.de John Murra é i imito distin­
to. Murra pai tiu das fontes historie :as tradicionais - das c rônicas -, po­
rém as enriq ueceu posteriorment e, contrastando-as coim documen­
tos administirativos dos primeiros tempo da colônia, qu e permitiam
captar melhor as articulações eco nôtnlcas e sociais.A isso se acres­
centaram os resultados da investi} »ação arqueológica e um uso pru­
mwn
. i- ■
i ■
dente e medido das técnicas c aditados da antropologia econômica.
Começou p or desembaraçar-se dais estéreis batalhas chassificatórias
sobre se á sociedade inca devia do ser considerada com o socialista,
hidráulica, feaidal, asiática ou escravista, e se concentrou na análise
das relações entre os hopiens - o inca e o aparato centrifi do Estado,
ossenhores étnicos locais, os can íponéses, os yàna ou criados per- -
pétüos - e n o usodè critérios eco lógicos para decifrar a integração ■
de uma economia baseada na exploração simultânea d<e solos verti­
cais de características muito distimtas, O resultado não é um verter
os fetos históricos nos moldes pré-febricados da antropologia aca­
dêmica, mas sim "combinar as táti<ras: o estudo da etnolc jgia cõntein-

184
•' a reconstrução. I: história, s oriologia eantropologja

porânea e da linguística de .-veria corapletar-se co m os.resultados das


' escavações e com o exame: crítico das fontes es< xitas". A história não
v foi substituída pela antrojpologia, mas sim. enriquecida com a súa
ajuda/e os resultados nãó s ió são legítimos, come >também abrem rio-
. vas perspectivas para o hi stpriador; não o aprisionam num sistema
. fechado de estruturas cult uráis, mas o conduzet n ao que é o seu òb-
- -r jetivo básico: o estudo dãs: relações reais que se estabelecementre
os homens no seio de úm: a sociedade.” : r
Esta comparação f l nal deveria servir para esclarecer que o.
que se pretendeu aqui nãc>é condenar, a colaboração e a .intérdisci-
plinaridade, mas sim as te ntatívas de reconstruir uina História que
previamente foi esvaziada do seu.conteúdo específico com, os ins-
; j munentos teóricos que co rrespondema outras disciplinas. No caso-
das que quiseram esconde r-se no aprisco da sociologia ou da antro­
pologia, adotando sèrvUnú :nte os seus métodos, parece claro que o
- resultado foi um híbrido o iréntè dé interesse, qi ie não tràzjiada que
as disciplinas tutelares nãt > póssam elaborar p o r si mesmas, é é in­
capaz, em contrapartida, d e íéfàr á cabo'ò,qüe idfeveria ser a missão
própria da História, funda intentando a critica jjlobal da sociedade
presente, A essas "histórias novas" arrebatou-se-lhes toda a capacida-
. de de converterem-se em í uma para a destruiçã< a da sociedade capi­
talista: são ferramentas trir içadas, projéteis sem carga, simples fogos
de aitifído. •.
c a D Ítu ló 10 ■ . . . . . ; V r i .- - •

'
a rêconstmção.
II: a nova historia
econômica

J T ara entender a g;ênese da chamada "r lovã'História econô- .


mica" tcm se qúe acompanhar umadupla Ijphi evolutiva. Pór um
; lado, á do reencontro da hi stórra econômica é d a teoria econômica,
depois da ruptura desta co m o historicismo, ão produzir-se a "revor
lução maiginalista". Por outro lado, a crise da idstória progressista
norte-americana pos anos de reação que se sieguiram ã Segunda
Guerra Mundial. - . . ’ .• . - \
Na recapitulação finai do seu estudo sobre M ovimentos se-
culares naprodução e no: 9preços, publicado eim 1930,Simon Kuz­
nets propunha ã necessidade de voltar à anãliisê do crescimento
econômico, esquecido, pelos economistas marg inalistas, que se ha­
viam limitado aos problem as que propõe a expllicação de um equi­
líbrio estático. O estudo do ciclo econômico tin ha voltado a pôr na
ordem do dià à necessidade de se superar as limitações de uma con­
sideração semelhante, poré m não na medida req uerida para uma re­
novação profunda. Kuznets í.queria ir mãis àlém e:, eliminando das se­
ries‘a tendência secular, co mprovava qúe não só sobrava còmo resí­
duo o "cicio de negócios", como alguns movimentos mais longos,
que primeiro chamou "vuriações seculares secundárias" e mais
tarde "loríg swings", ondas longas de crescimento.Seus estudos.pos-
teriores .sobre, o crescimen to econômico moder no o levariam, além
disso, a valorizar a importância dos fatores extran econômicos que in- -
tervêrn no processo, em lii /ros nos quais não é <difícil encontrar ca­
pítulos que poderiam figurar numa seleção de: textos de história
econômica, sem que se ncitassem diferenças de: enfoques substan­
ciais. Não que Kuznets fos se o primeiro em re clamar essã volta a

187
capítulo 10

uma análise dinâmica,* porém o que nos interessa, nesse contexto,


é a influência que exerceu nos listados Unidos.1
Foi.ria final da Segunda G uerra Mundial, quand o a preocupa­
ção pelos problemas do crescinuento econômico levou a um novo
casamento de história e teoria, que pode perceber-se nos estudio­
sos do subdesenvolvimento, cqnio Gunnar Myrdal, qu e, no prefácio
do seú Asicin Drama, décíara qiae o seu percurso pessoal levou-o a
üma preoci jpação exdusiva pélí i teoria econômica, à convicção de
que os problemas econômicos devem ser estudados necessaria­
mente "no seu contexto demogyáfico, social e'político", ou como
Celso Furta do,'qué dedica ao "enfoque histórico" uma parte inteira
da sua Teoria epolítica do desenvolvim ento econôm ico. Em geral
pode dizer -se que a maior partis da literatura "sobre o desenvolvi­
mento - eni contraste com a qu e pretendia formular modelos abs­
tratos de cirescuriehto - mostrava uma declarada precicupação pela
integração de dãdos extra-econc )micos nos séus quadros explicati­
vos, o que t raduziu-se numa aten cão considerável à hi stória. O fenô­
meno deu-í>e também nessa inflluehte e insubstanciál tentativa de
defesa da o: rtodoxia capitalista, q ue c As etapas do cre. scimerito eco­
nômico, de W W. Rostow, que prietendeu utilizar'o seu conhecimen­
to da históiria da industrialização britânica para fabrii rar uma espé­
cie de modelo universal de crescimento, como arma <de luta.contra
o marxismo - o subtítulo do livro é "Um manifesto nã,o-comunista"-
e fundamcmto ideológico da fracassada "Aliança parai o Progresso"
Kennediana.1
Mais além dessa utilização' instrumental da historia pelos eco­
nomistas**, tem-se que assinalar um' terreno de coincidência mais

* Num lív To.publlcado pela primeli ta vez ém 1911, porém qi ie se divugou so­
bretudo ai partir da sua tradução ic tglesa, cm 1934, Joseph A Schumpeter ha­
via dito: "iO desenvolvimento econi 5mico constitui simplesm eiite o objeto da
História Hconônüca, que, por sua wez, não é mais que uma parte da história
geral, sep arada do resto por mero s propósitos de exposiçã o. Devido a essa
fimdamei itaf dependência do aspi reto econômico das cois as em relação a
tudo o m ais, não é possível explic ar a mudança econômia i limitando-se às .
condiçõe s econômicas prévias. Poi rque o estado econômico de um povo não
surge simplesmente das condições; econômicas anteriores,i m s sim da situa-1
ção globa 1 anterior" QJc Schumpet :er, The theoiy o f ecQiiom ic developnient,
Oxford 11 niversity Prcss-Galaxy, Nc >vaYotk, 1961, pp. 58-59)- •.
** Na qua I caberia também incluir um livro como o de SirJ< ahn Hicks, Uma
teoria dei história econômica, qu:e representa antes de tudo, como assina­
lou Alfon s Barceló, uma tentativa de "verificar no campo c la História o po­
tencial da teoria econômica con vencionai" (A. Barceló, " História i teoria
cconòmi' ca”, in Recerques, 4,1974 í, p. 94).

188
a reconstrução. H a nova his ítória económica

amplo, do que é um bom <rxémplo o economist a norte-americano,


de origem russa, Alexander : Gerschenkron, proftissor de teoria eco-
hômiçá e homem ao qual se têm confiado alto; 5 cargos rio Federal
Reserve System, que escrer /eu páginas muito apj reciáveis sobre pro­
blemas metodológicos e fil osóficos da História <: fez afirmações ex­
plícitas sobre 0 valor do eiofoque histórico pan 1 o estudo dos pro­
blemas econoinicos. Mais i mportante ainda que -a(súa obra escrita,
. já sendo muito, tem-sido a influência que têm exercido o seu ensi­
no sobre o núcleo de ecori omistas norte-americanos, que iniciaram
ã corrente da new ecanori tic history. Junto à cãitedra dé economia
que Gerschenkron ocupat 'a em Harvard, o seu "Workshop of his­
tory’" foi centro de discussã .0 e elaboração dos pi arneiros estudos de
Conrad e Meyer, Fishlow o- uTemin, que'íecõnhe ceram a divida que
têm para com o seu "semir îàrip para graduados" ,s , ' - ' ; . -
Porém, para compre ender melhor as raze Ses que' explicam o .
auge dessa "noya história e conômica”, tem-se qi 1e voltar para dás è
' seguir-bfevemente a aSçenf são e crise da História progressista norte-
americaná. Àté fins do século XIX a historiografia norte-americana
não tinha sido outra coisa que um reflexo da acadêmica européia:
o passado da sociedade esí adunidense era inter pretado como o re­
sultado da germinação de a jgumas sementes dm ridas pelos imigran­
tes ingleses, que, por sua v< ;z, tinham-nas herdad o dós seus antepas­
sados germânicos, Em 189; (, e entre òs atos com que se celebrava o
quarto centenário dó desc obrimento da Amérk a, um jovenrhisto-
riador de trinta e dois ano s, Frederick Jacksonr.fumer, pronunciou
uma conferência sobre "O i significado da ffonteiira na história norte-
americana", que punha em dúvida a teoria "germ inal". Essa recolocar
ção histórica deve ver-se. h<3 contexto da tomadai de consciência do
Oeste, onde algumas forçris progressistas, com o as representadas
pelo populista La Follette, ] pediam uma política nova, mais de acor­
do com as necessidades d;i pequena burguesia. Segundo Turner, ò
passado norte-americano p o.dia inferprêtar-se em fim çlo da existên­
cia de uma fronteira: de t< ;rras livres, cúja-conq[uista, que punha o
homem em contato com a natureza, tinha forjac lo o caráter especú
fico da democracia norte-ai néricana.Á fronteira t ómoü possível que
os imigrantes se americanh assem rapidamente e forjou o caráter do
pioneiro: independente do resto do inundo, au to-suficiénte, capaz
de criar as suds próprias'in stituições à margem do governo central.
A frpiiteira tinha atuado tai nbérn como uma "váiivulá de segurança"
para os conflitos sociais: o : 5 homens qué se achavam descontentes

189
capítulo 10

com o meio em que viviam, iam «conquistar terras nov as e instalar-


' se nelas, fabricando ali uma soç iedade mais aberta. A terra livre
criou uma sociedade com urna exi traordinária mobilidade e facilitou
o aparecimento de uma democracáa.individualista.No nnomento em
que Turncr felava, em fins do séc ulo XIX, a fronteira jí i se tinha fe­
chado e a energia da nação tinha que buscar novos, cairninhos.'1.
Esse breve ensaio, extrao. rdinariamente sugestivo, era tão
vago que podia-ser enquadrado e:m qualquer postura ideológica, e
Tumer, levado à fema pela sua intenção, não desenvolveu nunca a
" primeira formulação da sua hipó tese, apenas se limita iria a repetir
uma e outra vez os argumentos <que havia exposto ern 1893, sem
matizá-los nem fundamentá-los n uma investigação ad equada. Essa
vagueza explica a sua extraordinájria fortuna.Na sua origem,e- na in­
tenção de Tarner, a hipótese da firúnteira era um canto à democra­
cia'das pradarias contra o cohsen zadorismo afistocratbiante da cos­
ta leste, e uma chamada de atençãio para que os historiadores levas­
sem em conta as massas, abandon ando a preocupação .central pelas
elites e pelos grandes homens.Porém .as possibilidades de encaixá-
la em interpretações de carga íde< riógica muito distinta eram paten­
tes. Serviu para justificar o expans üonismo imperialista - pela neces­
sidade de estender a fronteira no 1 ^acífico -, para fundarr íentar um in­
dividualismo hostil ao socialismo, para apresentar o ho mem de em­
presa como um novo colonizador do Oeste, para sustentar que, uma
vez desaparecida a "válvula de seji quança", era preciso que o Estado
controlasse ferreamente a ordem social ou para batiza r um progra­
ma eleitoral restrito como uma pjroposta de "nova fronteira".5
Na linha do progressismo 1:em-se que situar tam bém a tenta-
riva de construir uma "interpretação econômica da lústória", qué
não teve nada que ver com o socialismo nem aludira à luta de clas­
ses, apta para o consumo da socie dade norte-americana.Tal é o caso
de Edwin R.A. Seligman, que não vai mais além de sust entar "que o
fator econômico foi da maior imp ortância na história", o que o limi-
1 ta a assinalar o jogo dos interesse s dos indivíduos, ou d e pequenos
grupos humanos, na atividade po lítica. O exemplo mais destacado
é, sem dúvida, o de Charles A. Bea rd, de uma rica e influente família
de Indiana - o que lhe permitiu c< Dnhecer os interstícios da política
no seu próprio lugar -, que, em 19 13, publicaria uma das obras mais
discutidas do seu tempo, Uma in terpretaçâo econôm .ica da Cons­
tituição dos Estados Unidos, elaborada, segundo contaria mais
. > -

190
a reconstrução. TI: a nova hi ístória econômica

adiante o próprio au(tor, "em meio ao tumulto da discussão que


acompanhou ò nascimént o do Partido Progressista, a divisão nas fi­
las do Partido Republicano, o conflito sobre a eleição popular dos
senadores, a compensação dos trabalhadorcs c outra legislação so­
cial". Lendo os escritos dos "pais fundadores dá naçãó", Beard des­
cobriu a importância que tinham para eles ds p roblemas de ganhos
e. deu-se conta de que pensavam na .constituição comò num docu­
mento econômico. Mostre m quais eram os mó' veis econômicos de
cada um dos políticos que fizeram a constituiçsió e destacou um es­
crito de Madison, onde se: sustenta explicitam.ente que a primeira
, finalidade do Estaído deve ser._a proteção da "diiversidadé nas facul­
dades dos homens, da qual emanam os direitos de propriedade".
!■Beard concluía que o móv imento em favor da' <tonstituição foi pro­
movido por membros das classes altas, cújos initeresses tinham sido
afetados desfavoravelmente pela forma com que se chegou à Inde- -
pendência, e qúe büscavai n as vantagens imedi atas que lhes produ­
zia o sistema instaurado p o r um textó cònstituicional, que nãò foi
- elaborado nemvotado pela maioria;que não tinha,por conseguin-
te, nada de democrático, i nas sim que eia um documento de defe-
sa da propriedade privada. contra o possível - e temido - assalto das
maiorias populares;6 ,;;r -
A obra de Beard ficí iva numa posição eqi líyoca, entre a socio-
" logia política e uni determiinismo econômico g rosseiro, que susten­
tava que "aquele que deixa as pressões econôm ícas fora da História,
ou fora da discussão das questões públicas, está em perigo mortal
de substituir a realidade pior uma mitologia". Iy1[atizou essas afirma­
ções mais tarde, em termos relativistas, e evoluiu muito longe de
qualquer radicalismo, até converter-se num na cionalista conserva-:
dor, oposto ao Roosevelt d o New Deal. Isso nãio obsta, entretanto,
para que nos anos da Guerra Fria Beard e as sua s interpretações fos­
sem combatidas, já que, dil ferentemente de Turn er, o Beard da inter­
pretação econôm ica da Constituição resultava inassimilável.A in­
terpretação progressista que mostrava a história , dos Estados Unidos
como uma luta entre pobres e ricos foi ferozmente atacada. Os his­
toriadores acadêmicos tra tavam de destacar o que havia unido os
. norte-americaríos, minimizando o que os havia separado,para esta­
belecer a chamada "históriia do consenso". Foi nesse clima ariti-pro-
gresslsta e em meio à vigilância' ideológica inqu isltorial dos anos da -
"guerra fria" que nasceu a "nova história econôirnica".7 - .
capítulo 10".

A prii neira-exposição dos ]princípios que haveri am de servir


de fundameitifo à nova escola produziu-se em 1957, qi uando Alfrcd
H. Conrad e John R. Meyer leram <o seu trabalho "Teoria i econômica,
inferência a itatística e História econômica". Nele atacavam a distin­
ção que prei tendia separar a Histc iria da teoria ecpnôm ica e do que '
pode ser qualificado como ciêndiá, em geral, assim coimo- a tese de -
que o objeto da História é o único e individual, e moistravam que
também o historiador ocupa-se da busca de nexos causais, usando
algumas regiras científicas semelhantes às de outras disciplinas.Ad­
mitiam que não se podia chegar a um determinismo absoluto na
história - o. que seria necessári o para cumprir a tacigência de
Popper, de q ue se produzam predições exatas -, porem,, entre isso e
a renúncia a qualquer tentativa die explicação, propunham a via in-
terinediária de uma interpretação estocástica, isto é, d e íyna expli­
cação' expressa numa equação lin eár que,além das variáveis e parâ­
metros usuai is, levasse uma variáví :1 aleatória, que reprci sentaria o pa­
pel atribuível a todas aquelas caiu;as fortuitas e únicas.que, para um
observador; superficial, parecem constituir a essência mesma do fe­
nômeno hisitórico, quando não slío mais que residuais. O passo se­
guinte os ler ^va a sustentar, que a possibilidade de quai itificação na
História era muito maior dó que cómumente se àcredlitavá, não só
porque exis tiam numerosas fontes pouco ou mal utilizadas, como .
também porque, em muitas ocasiões,pode-se trabalhar sem neces­
sidade de uima medida precisa, ap oiando-se em dados descontínuos
ou na mera possibilidade de afirmar ou negar alguma coisa.8
A primeira investigação que se amparou nesses princípios foi
a desses mesmos autores sobre íl economia do escravismo no Sul
dos Estados Unidos. Conrad e Meyer enfrentavam-se aqui com a opi­
nião habitual de que a agriçuitúra escravista era pouco rentável, que
se conservai/a tão só por razões ideológicas, e que teria desapareci­
do por si mesma com o tempo, sem necessidade de recorrer a uma
guerra civil. Para verificar a validade dessas afirmaçõe;s, estabelece­
ram duas fuj ações de produção dl stintas, uma para as z onas em que
o cultivo do algodão com mão de: obra escrava era rentável, e outra
para as terrais menos férteis, que complementavam os seus ganhos
vendendo escravos para as primeiras^ Utilizando engenhosamente
as fontes estatísticas disponíveis, ]puderam verificar numericamente
quep escravismo tinha sido rentável para o Sul no seu conjunto, e
que o sistema não tendia a destruir-se a si mesmo e a desaparecer,
tuas sim que era estável, porém que a manutenção dos benefícios

192
a reconstrução. II: a nova 1.listória econômica

exigia a expansão da.agr icultura escravista para o Sudoeste, o que


explica o interesse do Sul pela secessão e a inevitabilidade do én-
frentamento civil. Novas investigações matizaram essa tese é enri-
queceram-na,porém as afirmações básicas de Cpnrad e Meycr con­
tinuam se sustentando pl enamente-,9 -v — . •. > •
Não tardara a apar écèr um segundo e es ipetacular estudo his-
tóricô-ecohométricõ, devido ao qual haveria ide converter-se_hum
dos teorizadores da escot a: R o b erto Fõgél. Em 4 $ ferrovias e ò cres­
cim ento econôm ico nort e-am erícano Fogel quis pôr à prova a tese
de que a ferrovia tinha sk lo um elemento indis pensável para o cres­
cimento da economia no: rte-americana. Para is;so propôs uma prova
çontrafactual: construir um modelo dô que tinha sido a economia
norte-aineriçana sem as ferrovias, recorrêndò a oiitras fôrmas de
transporte, e calcular entí io a diferença entre o custo que a socieda-
teve que pagar pelo fcransporte de mercadioriaS num dadò âno,'
contando com ò auxílio da ferrovia, e o que teria tido que pagar
usando os meios altematiivqs, caso" eia não existisse.A diferença se­
ria a "economia social" devido à ferrovia, que Fogel acreditou poder
demonstrar, ao fim de lc-ngos cálculos, que fiavia sidõ pequena*
Assim chegava à cphclusâ io de que o impacto ria ferrovia tinha sido
limitado e que de modo £dgtim podia-se consic lerá-la indispensável.
A investigação tinha requ efido cálculos de gra nde complexidade e
-um considerável desdofc iramento de imagiru ição para levar em

* Fogel expressava a ccon omia social para o ano e legido, 1890, numa cifra
equivalente a 4,7 por cent :o do PN8. Como essa ma gnitude equivalia à raxa
de crescimento anual do PNB nesses’anos, poderi á supor-se que o atraso
<
produzido pela ausência <la ferrovia teria feito cor n que as cifras, de 1890
se alcançassem em l8 9 1 .1 mtretanto, semelhante m edição é bastante discu­
tível, como o será a condi ísãqa que chega VonTOnzelrrian, de que a inexis­
tência da máquina a vapor - de Watt teria significado \em 1800 - quando Ros-
. tow supunha que o "impu Iso"-industrial britânico catava já a ponto de con­
cluir-se - um atraso equhn lente a 0;11 por cento d lo PNB, o que terja fica­
do a industrialização britar lica cm um mês.É difícil tomar-se a sério ésse gê­
nero de medições, que não é o realmente valioso d<rs trabalhos dePogclou
VonTunzelman. Porém, aio ida é mais lamentável tmi tar tais investigações no
que têm de mais trivial, rc petíndo medições seme lhante.s para outros paí­
ses, no lugar de empregar a esforço em algo mais sensato, como seria tra­
tar dc compreender melhr >r as "repercussões adiáni te” da ferrovia, seus efei­
tos reais na tiansibmiaçãc i da economia, qüe São vun dos aspectos menos
satisfatoriamente analisad os pela nova História c conômica. (Sobre isso,
veja-se Patrick O’Brien, Tb< ? new economic History o f the railways, Croom.
Helm, Londies, 1977, pp. 7'2-76). . . Ú ■
<• capítulo 10

'conta todos os fatores necessários: construir hipoteticamente todos,


os canais que teriam sido abertos caso não existissem.;as ferrovias;
calcular a redução da àrea cultivad la, como conscqücnciia da impos­
sibilidade dè se manter a explorarão de terras que ficassem dema­
siado longe dos riós e canais; estimar o custo de armazenamento .
adicionais produzidos pelo fechamento no inverno de; muitos ca­
nais, como conseqüência do gelo <:tc. O livro de Fogel í suscitou dis­
cussões que não terminaram ainda i: debatesèm tomo da validez do
seu conceito "economia social", sobre se os dados numéricos que
havia empregado eram confiáveis, etc. Porém deu lugajr, também, a
uma autêntica fascinação e à-apariç :ão de uma série de ir ivestigações
sobre q papel das ferrovias ria Rús sia; na Inglaterra, na I tália, etc.10,
Desde 1.966 os trabalhos d o história econométriica começa­
ram a proliferar, enchendo as pãgin as de algumas revista; >norte-ame­
ricanas e, epi especial, as àójóiirr, \al o f Econom ie H istoiy , que se ,
converteu em algo como o órgão o ficioso da seita. Porquie a progres­
siva especialização dos cultiyadore s da história eçonom étrica Os foi
separando dò resto dos historiador es, até corivertê-los m im gmpo fe­
chado. Em 1972,RaiphW. Hidy larr ientava-se do desapeg;o dos. histo­
riadores que não haviam recebido uma formação, de economistas, e
que, ou bem não entendiam os traibalhos da escòla historico-ecóno-
métrica, ou não os consideravam si ificientemente intere ssantes para ;
realizar o esforço necessário, para compreendê-los.“
A consciência desse'isolam erito e o desejo de c hegar a um
público mais extenso, inspirou se m dúvida a Robert W Fogel e a
Stanley L. Engerman o projeto de investigação que conduziria, em
1974,à publicação de um livro de stinado a um certo êxito e a um
. considerável escândalo. Tim e on t he a vss voltava ao tema da eco-
nomia da escravidão norte-america ma, para examiná-lo o om uma óti­
ca que ia mais além do problema d la rentabilidade.0 liviro dividia-se
em dois volumes: o primeiro conti nha a exposição dos resultados -
uma série de afirmações sem demonstração - e desttinava-se ao
grande público, que teria que fazer um ato de fé na validlade das evi­
dências e provas contidas no seguindo volume, destinado exclusiya-
mente aos especialistas. Na realida de, nem sequer o primeiro,tomo
resultava legível, de forma que a p opularidade alcançadla limitou-se
aos meios profissionais, onde fez u m autêntico furor, até o ponto de -
poder afirmar-se que "nos círculos universitários não há comida
nem coquetel completos sem algm ma discussão sobre es ;se livro" Os
próprios autores, conscientes do q ue lhes viria em eima, advertiam

194
a reconstrução. II: a nova ■história econômica

já nas páginas: "Este será: um livro de leiturajperturbadora. Requer


tòlÈrânpa por parte do leitor".13
O que era que Fog ;el e Engerrnan previa ní que resultaria "per­
turbador"? As suas condi tsões são expostas tio começo do livro, em
dez "correções à tradicioj nal caracterização da ieconomia escravista“,
das quais bastarão, co m o amostra, as de números 8 e 9: "As condi­
ções materiais (não as psâcotógicas) das vidas dos escravos podiam
comparar-se favoravelme nte com as dos trabalhadores industriais li­
vres" e "Os escravos eratn explorados no sentido de que parte dò
ganho que produziam e ia expropriado por seus proprietários. En­
tretanto, a taxa de exploração era muito máèj baixa do que geral­
mente se tem presumido. No curso da sua vii da, o escravo campo­
nês típico recebia ao redor dê 9Òpor cento do que produzia", Wyiè
in cross recebeii críticas i-quase que ímanime mente desfavoráveis,
tanto pela sua reivindicai jão da escravidão, cot mò pelos erros na in­
terpretação da. evidência usada* ou pela formta com que pretende
reduzir a análise de uma soêiedade ã um jogo de deduções'triviais
a partir de umas curvas cie procura e oferta.13 , t
Ao término dess.i rápida olhada no desenvolvimento da
"nova história econôm ica" convém "resumir o s postulados que de­
finem a sua metodologia. Os seus traços essenciais são; nãs pala­
vras de Fogel, "a sua ênfase sobre a medição e o reconhecimento
_ da íntima relação que racisté entre medição <: teoria". A medição
exige o uso de métodos matemáticos; a asso* dação de medição'e

* Um dos exemplos mais pitorescos é.o que se d:á a respeito da prostitui­


ção. Usando infonnaçõet i censitárias sobre Nash viile, Fogêi é Engerman
chegaram à conclusão de: que não havia prostitui as escravas na ddade. O
mal era, para começar, q u e se. baseavam num cei aso onde não figuravam
mais que as profissões di os habitantes livres, de uaodo que não registrava
escravas dedicadas à prof tituição, não obstante fo rmigassem peias sarjetas
de Nasiivilie. Porém seme flhante erro resulta desci tlpãvel ao lado do dispa­
rate cometido ao prêtend er explicar a suposta aus çncia de escravas prosti­
tutas com um precioso gr ifico de curvas de procu ra e oferta, que partia da
suposição de que as pros titutas, como consequência do muito quê desfru­
tavam na sua atividade de trabalho, aceitaram traba ihar nesse ofício por um
salário que estava abaixo do salário mínimo das o j Vetarias não-qualificadas.
Sendo assim, se explicarL' 1 que os seus donos não as deixassem dedicar-se
a um ofício tão mal pago, já que o que lhes interes :sava era que maximizas­
sem 05 seus ganhos monetários, divertissem-se ou não. Assim a ”mão invi­
ável" teria atuado para & zer da busca do lucro im ia causa de melhora mo,
ral (R.W Fogel e SX. Emg erman, Time on tbe cros s, Iittle, Brown and Cò.,
Boston, 1974, II, pp. 113-1 14).
capítulo 10 v

teoria conduz ào uso de modelos econométricos, de imodo que


uma das defini içõês que deram à es coiá foi feita eiú funç;ãb do uso -
de "modelos explícitos hipotéticcHdedutivos" (o que sif ^úfica, em
termos mais simples: um conjunto'de hipóteses qiie se expõem
previamente c:om clareza e que se: expressam em algumas equa­
ções, às que st: designam valores nuunéricos, dé forma q[ue se pos­
sam fazer ded uções a partir delas). Os "novos" historia dores pre­
tendem que o s seus. predecessores usavam modelos com o eles -
porque sempr e há uma teoria por trás das tentativas d e explica­
ção -, só que esses eram implícitos e estavam mal espec ificados, o
que tomava impossível a sua verifi cação. No caso da história eco­
nométrica os imodelos não constituem simples recursos expositi-
vos, mas estão rigorosamente formulados, para que se ]possam fa­
zer deduções a partir deles.14 , ' ", / .
Não é d ifícil compreender, er itretanto, que uma co isà é calçü-
. lar uma função-de p ro d u to para a economia escravis ta - o que
pode-se fazer co m os preços dós es cravos e do algodão, ó custo de '
manutenção e a produtividade dos escravos, e pouca coi isa mals - e‘
outra muito distinta é coristruir um desses ambiciosos e complexos .
modelos econ ométricos, com os ç[uais se pretende dar conta da
evolução da e conomia japonesa, ollhando para tras, ou como esse
"modelo dè crescimento regional norte-americano dos funs do sécu-
lo XK ", de Williamson,que compreende 58variáveis e 72. equações.
O seu inevitáv el esquematísmo faz co m que essas construções mais
complexas resultem mais discutíveis. Sem esquecer, aléim disso, a
duvidosa validade dos projetos coritrafactuais - quer dizer, a elabo­
ração de modt :los que reproduzem a realidade com algur na das suas
condições modificada-à rpaneira d e Fogel.15 .
Alguns dos seus cultivadores quiseram fazer; da nova história
econômica un ia mera disciplina ate riliar da teoria econô mica. Peter
Temin sustenta que a "ciiometria" - mma das denominaçõ es que têm
reivindicado ms cuituadores da escoia - não é mais que " uma forma
de teoria neo-clássica aplicada". Concebida assim, a missíão dâ.disci­
plina seria battante limitada: a áreai a que podem abran ger as suas
explicações restaria reduzida ao terreno da.econbmia e a sua proje-:
ção sobre a investigação histórica seria mínima, já que de pouco nos
serviria para c ompreender o fenôm eno complexo que é a evolução
de uma sociedade.“
Que a hlistória econométrica não se tenha mostrac lo capaz de
oferecer-nos tuna visão global satisfatória da evolução social, não

' 196
a reconstrução. H: a nova, história econômica

quer dizer que nló tenJia que ter emi conta as suas.contribuições!.
Nó ^fundamental, trata-se: de uma coleção de princípios metodológi­
co!? - não de um corpo cie teoria - ou, se se quer dizer com palavras
mais simples, de uma caixa de ferramentas. í ; nã<? é certo que essa
caixa tenha sido feita para funcionar exclusi vamente hum contes:-
to da teoria econômica neo-clássica. Reduzir ido as coisas aos seu s
termos mais simples.poideriá dizer-se que se trata, da aplicação dü
madelos econométricos; à investigação histórico-económica, e esse
é mm desafio que se có loca ao historiador, s eja qual for a Sua ori ­
entação teórica. Não seria lícito negar, p o r outro lado, que, ao
serem aplicados proced imentos da nova história econômica a pro -
blemas concretos, qué possam ser abarcados satisfatoriamente:
corn um modelo econométrico, as respostas: alcançadas têm sidçi
interessantes,como sucedeu com a investigação de Cohrad e Meyeir
sotire ãescrayidão,em çiuê pese ter-se baseado num;aparato teóri­
co discutível e usar uni conceito tão cóntirpvértido como o~d<:
fun ção de produção.17 - ■V- -
O maior próÉlenia se apresenta, pre dsamente, quando o
"cli ômctra" não se resigna a investigar setore:s limitados da realida ­
de, mas sim que pfetencle aplicar os seus mé todos, sem mals'equi -
pannento teórico que o d a economia nèo-clás sica, a uma sociedade:
intenra, para oferecer-no:? explicações globais. Isso se tem tentado>
pelo caminho do estudo das instituições e das direitos de proprie­
dade, no qual Hartwell denominou a "novíssima" história econômi­
ca, para distingui-la da simplesmente "nova". Distinção necessária,
porque boa parte dos cudtuadores desta rechaçam o empenho dos.
"novíssimos".16
Os seus fundamentos podem resumir- se nas seguintes afir­
mai ;ões metodológicas d e Douglass C. North: ' ^

As regras básicas d o jogo determinam o funcionam ento de qual­


quer sistema econôm ico: capitalista ou sooialista,clássico au mo­
derno, primitivo ou avançado. O que se irií produzir,'quanto e de
que modo se dlstrib uirá □ produto são os asp ecto s básicos que. de­
finem o funcionamento', e o desafio que se ;apresenta ante os histo­
riadores da econom ia é Ô de analisar e expli icar as mudanças em tal
funcionamento ao longo do tempo. Muitas das regras que'definem
esse funcionamento se especificam como <iireltos de.propriedade
que determinam qui em deve tér o direito de ■usar, de alienar é de re-,
ceber pagamentos d le alguns recursos. . -' •-

197
capítulo 10

Colocadas assim as coisas, as duas direções que- se ofereccni'


à investigaç; io são as de estudar o s custos de implantação de um sis­
tema de direitos de propriedade e as razões pelas quaiis os Estados
não cumpre m sempre com acertr >a fiinção de especifl car alguns di­
reitos de propriedade eficazes, já que o.fracasso em conseguir cres­
cimento econômico só se explica como "função de uitn determina-.
do conjunto i de regras do jogo qu e desalentam a ativid; ide econômi­
ca produtiva" - o que vem a ser c omo repetir o Rostow das Etapas
do crescim e nto econôm ico, port :m com um novo jargão.19^ . >
.Arma.dos com essa gazuã, que se pretende válida para todas
as épocas e transcendente, os novíssimos podem explicar tudo: a
pré-história, a queda do Império r omano (que. havia tid o lugar quan­
do os custos sociais da,sua manutenção ficaram excessivos), a as­
censão e qu ieda do feudalismo, e tc. A análise que do f eudalismo fa­
zem Nprth c; Thomas em O nasci m ento dò inundo oc idental oS le­
vara a ver a relação entre senhor e servo como um pacto em .qüé
um.oferece o seu trabalho e o ou tro, em contrapartida, serviços pú-
bÜcos, e em que hão se pode falatr de exploração do servo por par­
te do senho r feudal. Nada de nov o, já que era isso que sustentavam
os senhores, racionalizando a su: i função social, com o modelo da
sociedade ti initária em que algur is, a maioria, trabalha vam, enquan­
to que os dois estamentos superiores lhes propordoittavam prote­
ção no céu (o clerõ) e na terra (ms cavaleiros). Os res ultados de se
fazer funcionarem mecanismos interpretativos tão esquemáticos*
são sempre os mesmos: pode-se explicar com eles- ti ido o que se
queira, se nos resignamos a não e:sclarecer nada.20

■' * O texto de Hartwcll que transen rvemos abaixo não requ er nem comen­
tários: ™At >ase do enfoque econõm icb da lei é a razoável su posição de que
os indivídiuos envoltos no sistema. legai atuam como maxiniizadores racio­
nais. Uma vez que se tenha reconhecido que todos os participantes em
processos legais - criminosos, litig; antes, advogados e juize:; - atuam comó
maximizar iores racionais, consome ra mais ou menos lei segmndo o seu pre­
ço, nos encontramos num modo e:m que a ação legal podle ser analizada
com os m<ttodos formais da econor nia. E assim o sistema leg ai, em qualquer -
situação e para qualquer indivíduo, pode ser tratado como aIgodado.com
custos c b enefídos particulares, e com alguns incentivos d iante dos quais—
reacionará i radonalmcnte; se a lei muda, o conjunto de incentivos múda
também e o sujeito atuará de mam eira diferente.Assim, por exemplo, a ati­
vidade criminal pode ser analizada como um problema not mal de escolha -
de ofiao, com taxas de participaç ão criminal qúe mudam na medida em
que o" faz em gs incentivos e os custos" (R.M. Hartwell, "Iaw, Propérty

198
a reconstrução. II: a no va história econômica

Porém, a Histói ia institucionalista - a "novíssima" - não é 1im


capricho, mas sim qms obedece a uma necessidade social projeta­
da sobre o mundo acadêmico. Se o "novo historiador econômico"
limita-se a investigar aspectos pontuais dlo passado econômico,
pôr cruciais que possí un ser estes, deixa o imareo geral da interp re-
tação histórica era miios dos historiadores; "gerais", o que impliica
que terá que se valer das velhas explicaçíões da História polítiicà
acadêmica - que não se encaixam bem ccun os seus resultados-e
que, por outra parte, cada dia interessam a menos consumidores
de História - ou que c orrerá o risco de dei xar o campo aberto ao
marxismo.A "novíssiri ia" história econômica, com a sua pretens ão
de explicar a totalidade da mudança socúil em termos dé esque­
mas elementares de iteoria econômica nt :o-cIássica, resolveria o
problema, ao pennitiir-se prescindir de contribuições externas à
própria disciplina e oferecer-se, em contrapartida, como explica­
ção universal que resolve todos ps enigmas da evolução humana.
Um panfleto de defesa do capitalismo que teve uma difusão evidem-
temente financiada -A m an hã o capitalism o, de Henri Lepage-, b a­
seia toda a sua montag;em "neo-liberal" e m ; ilguns capítulos iniciais
dedicados à história, onde sustenta que to dos estamos envenena­
dos por uma interpreftação do passado falsificada por historiadlo-
res que ignoravam uos; mecanismos da evolução econômica". P;is-
sa então a explicar trivialménte os sensacionais "achadós"<da
história econométrica - e sobretudo da "novíssima", com a sua in­
sistência nó tema dos idireitos de proprieda de - e acaba confessan­
do o objetivo de toda a maquinação, e ponc lo em evidência os "n o­
víssimos", quando se c onclul que, desenvoi vendo umá visão sinlté-
tica da história "que riívalize com a Históriia marxista, se trará um
' g r a o a mais à verificaçiio científica das dout trinas econômicas libe­
rais1'.31 Trata-se, em sunna, de se oferecerem novas armas ideológi­
cas a um capitalismo q ue se debate na defensiva, encurralado pe la
evidência da sua crise -estrutural e incapaz d e gerar consenso, por-
-■que não tem nenhum: a esperança razoáve l que oferecer aos irü-

Rights, Legal Institutions and the Performance of Economies", in- M. Flln n,


ed., Proceedings o f th<e seventh International Economic Histoiy Con­
gress, University Press, Edimburgo, 1978, p. 213; há trad.'cast. no volume J.
Topolski, C.M. CJpoIla e outros, Historia econí miica. Nuevos'enfoques y
nuevos problemas, Crí tica, Barcelona. 19811.

1919
capítulo 10 Tt

lhões de jovei is que nunca encont rarão trabalho, se nãc j mudarem


as condições ’ vigentes. Se õ avanço do marxismo obrigou a descar­
tar os métqdc is da velha História i tcadêmica - que nãò tinha mais -
recurso que c i de despolitizar tud( 5 e combater o vício de refletir
- para passar a um funcionalismo que privilegiava a análise dp >
equilíbrio estático é justificava a iackmalidade dós sisitemas êxis- .
tentes, ó dese spero da época de ciise em quç vivemos pode aju­
dar a entende r que se tenha recoirrido a uma tentativa t apologéti­
ca tão tosca c elementar. Pudemos; definir a "nova História econô­
mica" como um a caixa de ferramentas metodológicas, ha qual se
podiam encontrar instrumentos úteis; a "novíssima", ern troca, pa­
rece ter pouco que seja aproveitável:Na sua forma extrema, niòs-
■tra-se como o guarda-chuva que o s "novos liberais" - 0:s apanigua­
dos dos "velhos explórádorés" ^Oferecem aos seus donos, para tra­
tar de mantê-los cobertos da inundação que se avizinha. _
Em oca isiões, entretanto, tra< :os da nova ou da not (íssima apa­
recem misturados em construções ecléticas - complementos pseu­
do-marxistas <ia teoria wallersteini ma das "economias-n íundo", por
exemplo - emrgrandes quadros explicativos, que costuimam ter al­
guns traços e m comum, tais com o os de utilizar para ai análise do
passado as caitegorias da economiia capitalista.- de forma qúe fez
aparecer, por exemplo, "o mercado" como uma força renovadora,
em lugar de nesultado de um sistema concreto de relações -.esque­
cer a dimensão social da história o u reconstruir a evpli ãçâo da Eu­
ropa desde a Idade Média, para a mostrar como o resultado do
triunfo da libf :rdade (cojitra a inefi cãcia do despotismo asiático, ge-
rador de atraso economico), com o que, vem a somar-se: a legitima­
ção das forihi is políticas vigentes ique praticam os cult ivadores da
"novíssima H istória econômica". Nessa parte teria que se incluif
The europem i m iracle, de E.L.Jomes - um investigador cujos exce­
lentes trabalh os sobre a agricultura e as origens da industrialização
britânica proí netiam mais - e, sobre :tudo, The huinan co ndition, de
William H. M-eNéill, que abrange 21 história inteira da li mmanidade
num pitoresc o esquema de "microparasitismo" e."maí;roparasitÍs-
mo" - üma dernominação encaminhada a desdramatizar a explora­
ção do home m pelo .homem, assimilando-a aó mundo das ciências v
da natureza com algumas idéias engenhosas e bastante tópicos,
onde os traços que assinalamos amterionnente condiu-.em a resul-

2Õ 0
f
a n sconstrução: IL a nova história econômica

tadlos tão singulares, counò o de definir a R evolução russa com o


üiina revolta contra “a tirania do mercado", o que não parece muito
elu çidatívo, já que, para dar um só exemplo, é difícil admitir que ; a
estrutura da propriedad e da terra na Rússia czarista, contra a qual
se isublevaram as massaj; camponesas, fosse c> resultado dá áçãô do
mercado, entendido ao i nodo que costumam íazê-lo esses apologis­
tas da "liberdade, econômica".0 -
r' -• tlaDÍ tuIo 11 : - •/ T r’

'- -- '• ii recoiistmcão.


, V- [II: a escola dos
m n a ie s

nnales, Èconqi nies Sociétés Civiíisa tions é hoje uma re­


vista de considerável influ ência e o porta-voz dle uma corrente his-
- tòríográficaquè se converteu num dos pilares tia modernização do
acádemicismo, sucedâneo do marxismo, que 1Brige preocupações
progressistas e procura sej aarar òs que trabaihar n no terreno da His­
tória do perigo de penetra r na reflexão teórica, substituída aquipor
rim conjunto de instrumentos metodológicos dá mais reluzènte no-
; vidade e com garantia d e ' 'cientiflcismo". Se nos; atemos ã realidade'
presente, poder-se-ia. defin ir a escola dos A nnal és como um funcio­
nalismo que tratou de rec Obstruir a História cõm o. recurso a rima
mistura, mais ou menos bem condimentada, de elementos tomados
de diversas disciplinas (s Odològia, antrópplqípajecononiia).* Os

* No caso dosAtinales, resi ílta absolutamente impre :scindível distinguir en­


tre as contribuições metod ológicas - que correspon de a estudar dentródo
f campo da história da histò riografia - c a teoria subj acente, que é o que sé
trata de analisar aqui (disti ngúir entre as ferrament as ç ó plano). É impos­
sível negar o resultado que teve o trabalho de divulgação de nòvas técni­
cas de tralialHo efetuada pt :1a revista desde a sua fui ndaçãò, que contribuiu
para uma renovação formal 1da historigrafia acadêmi ca. Porém o mesmo ca­
ráter instrumental da sua.it ífluência toma difícil ass inalar os que se situam
plenamente dentro dos po; stulados dà escola c os que receberam dela, sim-
plesoiente, um impulso atu alizador. Se há quê rcehat jar imeiramente as ten­
tativas efetuadas pelos, integrantes dos Annales para vinçular-se á um La-"
bróiisse, que pertence a o utra corrente historiogriifícá - a do socialismo
francês,:que passa por faut rès e pela plêiade dós grandes historiadores dal
Revolução (Mathiez, Lefeb vre, Soboui...) e toma-s e daramehte mandsta
. edm Vilar -, resulta tambéi n discutível adjudicar-lh es homens como Jean
Meüvret - deTquem, nos se us Études d'histoire éco nomique, Colin, Pa­
ris, 1971, se cnçqntrará uirià relação bibliográfica -, cultuádor de uma His­
tória econômica ortodoxa., ou inclusive a pessoas como Pierre Gõubert, '

203
capítulo Í1

seus traço s mais visíveis são o «ícletismo (característica habitual do


pensamen tò acadêmico), uma vontade globalizadon i, que sé justifi­
ca pela ne cessidade de superar a limitação tradiciòníil dos cultuado-
re^ da História política (porém que é, na realidade, o resultado do
uso de uni instrumento metodológico heterogêneo e nem sempre
coerente),., e um esforço pela modernização formal que cumpre a
função de desviar a atenção paira o meraraente insürumental, enco­
brindo a aiusência de um pensaimento teórico propriamente dito.1
Poiém esse receituário não apareceu cóm a revista em 1929, ,
quando sie chamava A nnales d'Histoire É conom itjue et Sociale,
flertava co m o marxismo e, sob a dupla direção de I.ucien Febvre e
de Marc 131och, parecia aberta às correntes mais progressistas das /
ciências Sociais, separando-se giradualmente de algumas origens tão
conservadoras, como as cpnceipçõés da "síntese hist órica" de Henri.
Berr e da sociologia da escola d e Durkheim.Tudo in udòu com a Se-
günda Guièría Mundial, durantt: ã"qual - na ocupaçãc>alemã da Fran?x
ça - os A nnales continuaram séndo publicados co m diversos títu­
los - A nntdes d'Histoire Sociale, de 1939 a 1941, eiXfélanges d'His-
toire Sociale, de 1942 a 1944.I>reso Marc Bloch, qut; seria assassina­
do pelos alemães, em 1944, at direção ficou exclu slvamente com
Febvre. Sabemos que existe uma carta de Marc Bloch a Febvre, es­
crita em 1941, em que propunha deixar de publicar a revista, en­
quanto d urasse a- ocupação, Ff ibvre opinou de modlo distinto e op­
tou por aicomodar-sc à situação. Data de 1941 prec isamente a vira-

cuja grande monografia "regional" - Beauvais et le Bea uvaisis de 1600 à


1730,.SEVPEN, Paris, 1960 - recolhe a herança da geografia humana de VI-
dal dc lá Blache e Demangeon (um dos elementos conütitutivos da forma­
ção de Bloch e Febvre, o que hc jjfc, curiosamente,"parece m esquecer alguns
dos ati reis membros da escola).. Sem contar com a difici rldade que implica
situar os que trabalham numa estranha zona intermed iãria, como Michel
Vovelli e, que difere claramente 1da escola, pela forma cot u que julga a Revo­
lução '(isto é, como algo fundamentai), porém flerta co m o seu estilo e os
. seus n íétodos de modo .equlvo cado, "one foot in. sea an d onc on shore" (a
melho r visão de conjunto da (fora de Vovellc poderá cfoter-se a partir da
compilação De la cave au grenièr, Serge Fleury, Quebec, 1980). Os juízos
que ac jui serão formulados 'sobre a çscola' dos Annales não devem entén-
dér-se., por conseguinte, como aplicados à prática conc reta dos hlstoriado-
res da sua ampla zona de influencia (podem ser encontradas inclusive sim­
bioses; analítíco-marxistàs, pòr 'exemplo). O que aquj sc quer denunciar é-o
gênero de teoria - e o projeto s>ocial implícito nela - que .se esconde sob as
formulações feitas pelos Febvre (desde 1941), Brande l„Ie Roy Ladqrie e
companhia.
- a reconstrução, ni: a éscola dos annales

gem "teórica" de Febvré, quando minimiza ò alcance do título qiie


se deu à revista em 1929, dizendo que q "econômica" era um "resí­
duo" das discussões suscitadas pelo materialismo histórico - 0 que
aproveita para desfiizer qualquer suspeila de "economicismo sub­
versivo" - tem inclus rve a capacidade de dlizerque o "social" nãò sig­
nificava nada e q u e1'o recolhemos por iss o mesmo". Poderia pensar^
sé que essas afirmaç ões, com o que têm <ie" distanciamento com re­
lação ao marxismo, eram fruto obrigatór io da necessidade de aco­
modar-se à situação vigente numa França i dividida^entrc o governo
de Pétain è os ocupantes alemães. Porémi o realmentè significativo
é que esse texto de revisão e acomodame nto fòi recolhido, por Feb-
vre, em 1953, nos sous Combats p o u r l'histoire, sem matizar.nem
^ corrigir nada, como iexpressão programática do seu pensamento: do
pensamento que ins piraria a nova etapa d!ós Annales, ]k com o seu
nome atual, entre a s;ua reaparição de 194 6 é o falecimento de Feb-
•vre.em 1956.2 ç ,
Dé 1956a 19(>8,a direção foi ostentada por Fernáhd Braudel.
Á reyista acentuou a sua equivocada evoí ução teórica, porém man­
teve, ao mênos, a mú lima exigência forma 1 e erudita. São os anos da
ascensão do seu prestígio que explicam quie, depois da crise univer­
sitária de 1968, com a quebraf do academicismo tradicional, recor­
rer-se-á à escola, prpi ida dé uma mercadoi ria de àspecto modemo e
progressista, que poderia servir para tampiar as brechas por onde, o
marxismo tratava de introduzir-se. Substituído Braudel por uma di­
reção coletiva, a revi sta começará uma ro ta de flutuações e incon-
seqüências, dirigindo-sfc às modas intelectuais do momento, sem
preocupar-se sequer de manter o mínimo rigor que Febyfe e Brau­
del tinham exigido dos textos a que davam acolhida nas suais pági­
nas. Começara, ao me smo tempo, uma ope ração de apagamento dos
sinais da sua origem,1que continuava ainda t à altura do cinquentená­
rio, em 1979, quando Burguièr recordava tão só os componentes
menos conflitivos da sua genealogia, esqu ecendo-se, por exemplo,
de Simiand, que resul tava muito Incômodo.5
Há, por conseg quinte, alguns A nnale; r, de 1929 e 1939, que re­
querem atenção especial, como o requer o pensamento de Marc
Bloch, insuficientemonte refletido nesse texto da Apologie p o u r
- - 1l'histoire, que Febvre: pôde publicar postumamente sem nenhum
; problema, pelo fiito mesmo de que, no final, era "antes de tudo (.!.) -
’um rcexame das formas Insanas de p e n s a r f i z e r História".Porém
iissó forma parte de.uun,argumento que aqui não podemos acoimpa-- .
capítulo 11

nhar:o do dcsc mvolyimento alternat ivo que teria podido cxperimen-


tar, em outras c ircunstândãs, essa rei ilidade ambígua que e ram os An­
nales d'HistoU ^ É conom ique et So* claie. O que reaiment e nos inte­
ressa - o que é na atualidade o pensamento da escola dos; A nnales -
é algo que pan te da viragem de 1941. e que se manifesta n a nova eta­
pa da revista, d esde 1946. Conviria, f )ôr conseguinte, parti r dó pensa­
mento de Luci en Febvre: do Lucien Febvre que escreve a s seus tex­
tos de "combate" por uma "novahistoria" entre 1941 e 11956/
O primieiro traço definidor d o pensamento de Fèljvrè é a re­
cusa da esterilidade do historicismo e da sua erudição ifectual, e o
protesto contia a tentativa de estaibelecer o "fato históiico" como
objetivo supremo, talvez o único, dlo trabalho do historiador. E, so­
bretudo, o coi nbate contra uma História estritainente política, que
só se preocup a em estabelecer "se tal rei determinado liavia nasci­
do em tal lugar, tal ano, e em detenrninada rcgiãotinha conseguido
uma vitória decisiva sobre os seus vizinhos", valendo-nos para isso
dos textos; elegendo e pesando co m cuidado os melhores textos
para "compor um relato exato e preciso". Imagem def ormada da
história acadê :mica dominante na França, que Febvre exagerou,
como assinala Guerreau, "para dar tuna aparência atrativa a sua ’bri­
colage' empiri Lsta" e um ar "de inte ligêntía e de unidade às merca­
dorias deseno antradas dos Annales r",5
A partii ■dessa negação se sui :edem três afirmaçõe s.A primei­
ra é a mais fun damental e, ao mesmi o tempo, a mais equív oca. Refiro-
me à consideiação da História com o ciência e à aceitaç ão de uma
teoria da histó ria, de algumas leis pr óprias desta. Se Bloctii falava sem
vacilação da H[istória como "ciência t dos homens no tem po”, Febvre
lhe nega essa condição e a define como. "o estudo cien tifiçamente-
elaborado das diversas atividades das diversas eriaçeies dos bch
mens de outros tempos". A diferença que haja entre "ciê ncia" e "es­
tudo cientifica mente elaborado" iliu nina-se quando perce bemos que
. Febvre desvia sempre o problema para o da utilização p or parte do
historiador do s métodos de outras c lisciplinas "científicas1'. O que im­
porta é o instrumento, não o projet o em que este será ei npregado.6
Em segundo lugar, ao se rechaçar uma História estritamentè
política, o que : se propõe para sub stituí-la? Guiando-nos pelo título
adotado em 1 929, parecer-nos-ia se r uma História "econômica e so­
cial" . Porém, já. se viu que Febvre rei negou essa definição ioriginal. Em
1941,Febvre opina que a tarefe do historiador consiste en i relacionar
aspectos da vi da humana, sem se importar quais sejám; nenhum tem

206
a reconstrução. Ill: a escola dos annates

uni a importância préclon ninante: dá no mesmo tratar de relacionar o; s


prc iblemas econômicos c le uma sociedade con i a sua organização po >-
lític :a, como sua filosofia <:om as suas idéias relij jiosas. Paia dar coerên
cia a esse caos há dois pi etextos, O primeiro, a alusão ào caráter tota 1
do homem,que leva a um abuso das palavras "homem", “vida" e d<:
*seus derivados, num jogo que tem o seu antecedente imediato na fi -
losofia da vida alemã c q ue, se fosse coerente, teria conduzido de re­
gre sso até Dilthèy. O segt mdo vem representad o por lima fórmula há -
bil, porém não mais clarif icadora, ao definir o ol bjeto da História comc >
"a 1 íarmonia que, perpett ja e espontarieamenti ;, estabelece-se em to -
dás as épocas entre as diversas e sincrônicas condições de existência
dos homens: condições ntiórais, condições técr liças, condições eSpiri -
tuáiis". Frase que quer diZ'er, eiri suma, què tudo está relacionado comi
tudo - o que não era pre cisamente um descotirimento porém que:
não >nos diz como se est£ ibelecé tal relação. Já se disse que essa vira -
gem anunciou-sc èrri momentos em que podia parecer obrigatório ó>
- dist andamento com rela< ;ão ao marxismo, pori :m que Febvre o repê- -
tiu idepois, ao compilar o:; seus escritos ''téóric< as". O realinentc signi- ■
fica tivó é que um texto e scrito para os anos da: ocupação e do petai-
nisrno tenha sido mantido ao fixar o rumo p ara a nova etapa. Em
1946, Febvre dirá, simple: unente, "os Annales nnudam porque ao seu
redor tudo muda". O qui; estava fazendo era oferecer-se para atuar
com o fórmula de resgate do marxismo nos anos da guerra fria.’
Terceira e última afirmação, de nível aiinda mais baixo: ad a
nec essidade de relaciona r a História com as d ências vizinhas e mo­
dernizar os seus métodos de trabalho, rompendo a limitação que
podia significar uma dedicação exclusiva ao documento escrito;ao
texto. O que dará lugar a algumas das págin:is mais sugestivas de
Feb vre, nas que este trata de instigar com as recompensas do méto­
do tio jovem historiador que faça o voto de re nundar à teoria.*

* "Indubitavelmente a His tória se faz com documei atos escritos. Porém tam­
bém pode fazer-se, deve-se fazer, sem documentos escritos se estes não
existem. Com tudo o que o engenho do historiador possa-permiür-lhe uti-
1 izar para fabricar o seu nnel, ha feita das flores us uais. Portanto, com pala­
vras. Com signos. Com p aisagens e com telhas.Com formas de campo e
f leivas daninhas. Com ec lipses da lua e cabresto:;. Com exames periciais
cias pedras realizados por' geólogos e análises de espadas de metái realiza-
clos por químicos. Em umia palavra: com tudo o que sendo do homem, de-
f >ctidé do homem, serve ao homem, expressa o homem, significa á pre-
s ença, a atividade, os gosn ds e as formas do ser dó homem" (Lúcien Febvre,
C.ombats po ur bbistotre,Ànxinnd Colin, Paris, 195:3, p. 428). <■-
capítulo 11

T\ido se reduz, em suma, a- umá-.crítlca das limitações dá in­


vestigação historicista e a uma vo ntade de abrir âs janelas ao pre-.
sente e as po rtas"à colaboração cc im outras disciplinas que possam
trazer ajuda co m as suás técnicas; à ampliação do canrpo.de traba-
. lho e à renpv ação dos métodos. Cc >m isso podia-se alcar tçar uma co­
lheita de trab alhos efetuados de ac :ordo com as técn ica>mais inova­
doras, porém o resultado final seri a uma acumulação in coerente çje
análises parc iais, com os quais seri ia muito difícil chegajr a cphStruir
explicações globais válidas. Uma saída a essá difícil siítuáção veio
proporcioná- la Femand Braüdei, co m o que Aláin Guerr eau chamou
de o seu “m otor de três tempos". ■' •
O "motor" braudeliano foi aiprcsentado pela primeira vez em f
O M editerrâ nèo e o m undo mea Hterrâneo na época de Filipe II,
onde ideou irmã estrutura ém três pisos, caracterizado s pelos seus -
distintos ritmos de evolução. Na fciasé estava o que cha mava a “geo-
históriã" - urna forma de geografi a humana aplicada à. História - à
que. correspc Índia o ritmo mais lento: "unia história quase imóvel, a
história do Homem nas suas relaçcies com o meio que c>rodeia". Por
cima, um estudo estrutural, social, que recebe o tihilq. de "Destinos
coletivos e movimentos de conjunto" e que, por sua vez, subdivide-
■se em cinco planos distintos: 1) áis economias (população, preços e
moeda, comercio, transporte), 2) o s impérios (èstrutimi política), 3)
as civilizações (as formas de pensar), 4) as sociedade:) (burguesia,
reação senhorial,miséria e bandiriagem) e 5) as formas; da guerra. A
terceira parte - que recebe o títul ó de "Os acontecimentos, a políti­
ca e os homens"- era uma exposiição- de História política à maneira
tradicional. O problema maior consiste em que essa <estrutura em
três andares lhe serve para depo sitar tudo ordenadamente, porém
- não há nenhiumá relação efetiva e:htre os diversos estratos que pos­
sa conduzir do armazenamento sistemático - que já era um avanço
com relação à dispersão de outras obras da escola - a uma explica­
ção integrada. Da presença quase imóvel do espaço ou do clima até
os acontecimentos políticos cotidliànos,não há nexos cj[ue nas expli­
quem como os elementos de um dos planos atuam solbre os de ou-
tros,para initegrá-los numa explicação gjobal.8
Aiguris escritos teóricos posteriores tratariam de justificar
essa estrutura. Braudel nos diz neles, para começar, que há na
história divorsos tempos. Os vcílios historiadores só sabiam ver o
tempo curto, o ritmo breve da história dps acontecimentos. E isto
não é tudo. Tem-se que abordar ;as realidades sociais, "todas as for-

208
a r>ecoas trução. HL a escola dos annales

:■ <• mais amplas da vida cole tivEj as economias, as instituções,asarquife-


tuias sociais, as próprias; civilizações, sobretudo estos". O problema
~ coi çisiste em que todas e ssas realidades pareô ein ter, por sua vez, rit­
me >s distintos: há alguns: ciclos econômicos, iuma conjuntura social
~. (?) e "uma história parti icularmente lenta da; ( civilizações". Por bai­
xo , ainda, uni ritmo, de base: !’há além disso, idaais lenta ainda qúea
his tória das civilizações, quase imóvel, uma história dos, homens em
l ' rei ação com a terra que os sustento e os nutre".9
A fórmula de Braudel recolhia numa espécie de prognuna in-
teg jal alguns traços da Uadição dos A nnales: io gosto pela geografia,
a p reocupação pela hist ória econômica (ente ndida.de madeira des­
cri tiva e superficial, e limitada:sempre à circ ulação, sem tocar nòs-
pre folemas da produção ), a consciência-da in iter-relação que existe
' ent :re os diversos extratc iscom que o historiai ior tropeça ao estudar
um ia sociedade e uma éj pòca. Ò resultado foi um livro bem escrito,
ch< do de sugestões e de achados parciais; por ém, em suma, descriti­
vo, sem um fio condutor1que integrasse as tre: s grandes faixas,A pro­
va ■que temos de qúe nã o traz nada ao conhe cimento do problema
fundamental da época d e quê se ocupa:o do (trânsito do feudalismo
ao capitalismo.A inconsiistênda do procedimento, do método brau­
del iano dos "três tempo s", aparece cóm toda çrueza quando com­
pre ivamos que ele .mesimo o abandonou na sua segunda grande
obi a. Que ali adotou utria estrutura trinitária inteiramente distinta,
qu<; se esquece por con ípleto dos tempos. É então quando rios da-
mo s conta de que a arqu litetura de O M editerrâneo era um puro ar-
tifíc ;io literário, e que a teorização dos três tempos não foi mais que
um a tentotiva de raciontilizá-la ã posteiiorí.
Civilização mate rial, econom ia e capitalismo, séculos X V
XV. TU, aparecido em 19"’9, não é propriamen te uma obra de inves­
tiga ição, mas sim algo com o uma soma de le ituras sobre a qual se
cor istrói um edifício de elucubração teórica. .Repete-se aqui um es-
quc:ma trinitário, porém os andares não con respondem agora aos
ten ípps, como em O Me diterrâneo, mas sim à distinto caracteriza­
ção das atividades econômicas. No escalão inferior esto a "civiliza­
ção material" ou "vida imaterial", toda a atividade de base que esca-
. pa*io mercado: "essa infi a-economia, essa outj ta metade informal da
• atividade econômica, a- da auto-suficiência, at do intercâmbio dos
pro dutos e dos serviços num raio muito c u r t e N o segundo plano,
o d a economia propriamentedita, encontram os toda a atividade li-
gad a ao intercâinbio mei cantil, óride se respei tom as regras da.com-;:

209
capítulo 11

- . petição perfeita,tal como aparecem.descritas nos manuais.É "aeco­


nomia chamai ia de mercado, isto é , os mecanismos dá produção e
do Intercâmbio ligados às atividade s rurais, às vendas,ao:s ateliês,às
lojas, às bolsas , aos bancos, Is feiras é, naturalmente, aos 1mercados".
É "o mundo ds t transparência e da regularidade, onde cada um pode
saber antecip: idamente, instruído pela experiência comum, como
se desenvolvei ram os processos de iintercâmbio". Essa é a> economia
que se reflete habitualmente nas estatísticas. Essa é a classe de ecch
nomia de que se ocuparam habituai Imente os homens da escola dos
Annales. Poré m agora Braudel descobriu ainda um terceiro plano:
uma zona opa ca onde atua o jogo das "hierarquias sociaiíi ativas", do
monopólio e ( lo privilégio, que falseiam o intercâmbio em proveito
’ próprio, operi indo "em circuitos e cálculos que o homem comum
:. J ignora". Este é., para Braudel, o verda idéiro capitalismo; qu e escapa às
regras_da concorrência e. do mercado, que se pode :rastrear na
v -história desde a antiguidade, que passa pelos mercadores de
Gênova do séiculo XVI e dos de Anisterdam do século X!Vin e con­
duz em linha reta às multinacionais do século XX, Para ‘dizê-lo bre­
vemente: para Braudel, o capitalism 6 é especulação, com o se perce­
be quando se utilizam como equivalentes as expressões "pequena
especulação" ie ''micrò-capitalismo" .10
Pode-st: explicar o capitalismo com semelhante esquema?
Somente se fo r aceita a sua peculiaríssima e limitada definição, e se
houver resign ação para mover-se cxclusivamente no plano dos in­
tercâmbios. O bserve-se que os três níveis de Braudel poderiam de­
finir-se como economia fora do mercado, economia do mercado
perfeito e eco nomia de um mercac lo deformado pelo m onopólio e
pela especula ição - ou como autci-consumo e troca, intercâmbio
igual e intercí imbio desigual. Os homens só se relaciomam entre si
como compra idores e vendedores. A Braudel lhe escapai n por com­
pleto, em contrapartida, as relações que se estabelecem entre se­
nhores e vassí dos, e entre empresários e assalariados, coin o que eli­
mina de feto <i tema da exploração. Èm três grandes ton ios sobre o
' capitalismo níão há nem sequer unia página inteira ded]içada ao sa­
lário. Não é i sto revelador de qut: o capitalismo de Braudel tem
muito pouco que ver com o que impulsionou a indu: .trialização,
configurou o mundo em que vivemos e domina nossas sociedades?
Não es tranharia muito que t:sse percurso pèlo miíhdo è pela
história acaba sse com a negação d e qualquer esperança de superar
, o capitalismo, afirmando què a crisií iniciada nos anos de 1970 égra-

210
a reconstrução. Ht a escoba dos annales

v e,[ jorém, que "o capital! smo como sistema te m todas as oportuni-
dad< :s dé sobreviver. Ecoi îomicamente (não di go ideologicamente)
; : •pode inclusive sair reforçado"." : \ ".
.•. Braudel representou uma tentativa fruistrada de introduzir
■' coèiênciã nesse funciona Iismo sem base teóric:á própria que é-a es­
cola dos A nnales. Frustra'do, porque foi incapaz de criar uma arma­
ção que pudesse dar sent ido às múltiplas inves tigações parciais dos
- "membros dã escola. As razões desse fracasso se compreendem
quai ido se observa que, e m I960, reivindicarid o para si o mçrito de
ter introduzido nos Antuales o conceito’de estrutura - do que dá
uma definição tão trivial com o "a estrutura é o> que.durá através do
tempo, é a continuidade, ;a permanência"-, rechiaça p cstruturalismo
de Lévi-Strausá porquê’ pretende erigir um método de investigação
soei; ü baseado na análise de estruturas estável s e por causa das re­
gras pelas quais se passa dê umas a outras (ou;, dito à Braudel, por- .
que pensa "que no jogo éísõiro de umä socieda de há relações de or­
dem matemática-pelas qiuais uma situação ccutduz a outra"). Para
Braudel, em troca, as éstiníturas são’, simplesmente, permanências
isoladas como esta; "não h á uma capital sem um arquipélago de ci­
dade :s, não há cidade sem povoados, não há po\ 'oados sem campos".
É evi dente que com essa dissolução do conceit o de estrutura não se
.■podt; construir um esquema interpretativo que chegue a dar uma
expliçação.global da evoliução das sociedadês Itiumánas.12. .
Não se estranhará, por conseguinte, que a escola haja caído
por íuns dois anos - depois que Braudel abandonou a direção efeti­
v ad a revista, fato esse, coi no já se disse, se refle a iria muna queda do
mínimo rigor que se tinha mantido até então - sob o feitiço do es-
truti: iralismo levistraussian 10, que, pelo menos, o ferecia pautas para a
construção dè explicações globais. Nela se publicaram coiSãs tão
incrí veis, como um artigo intitulado- "Realeza; ê ambigüidadê se­
xual' onde se tentava lan<;ar luz sobre a nature za da monarquia em
Bizâncio, explicando-nos que o monarca era ui n personagem ambí­
guo idò ponto d é vista sex ual, que o elemento 1feminino está simbo-
üzad o pelos ritos -de’ coro; ição, que cobrem e e nvolvem, e o mascu­
lino ]pelo ato de levantar-s e no tròno,pela ereção,com frascs como:
"sobi e o trono,o rei-imperador concentra os pa péis masculinos e fe­
mininos numa tensão drainática".’Ou que tenfm.aconipanhado com
I a uruitação mais superficial dos métodos antropológicos, como no
caso do M oniaillóu, village occitan, .dé Emmanuel Lé Roy Ladürié, 1

r •' •' - •’ ■ ' • 2 ii ’


capítulo II -

nm livro picar ite e vazio,* onde tud o se reduz a sexo e rc iligião, com
o que se consc :guiu o feliz resultado >de eliminar da vida dios homens
o trabalho e a exploração, de modo que o lugar que num a monogra­
fia histórica nizoãvel está destinada à análise do funcion amento do
sistema feudal em que esses camponeses viviam, é ocupado aqui.
pela descrição da forma em que se tiram os piolhos uns aos outros
ou pelo relatoi das aventuras amorosas do padre do lugar.15
G seu $ josto pela modernizai ;ão metodológica e a' sua preten­
são globalizad.ora, que se ofereciam como tuna alternativa ao mate­
rialismo histõifico,** fizeram com que, nos últimos anos, 21 escola An-
nales tenha tido uma irradiação considerável no mundo; acadêmico,
em especial n os Estados Unidos. Porém esse florescime nto não fez
mais que pôr em relevo as suas delbilidades: a ausência d e um pen­
samento coerente, que a obriga a contentar-se cóm apiroximações
parciais dos problemas estudados; a insistência no instrumental,
com uma atenção exclusiva no mtitodo, para suprir a fiilta de unia
teoria; a adoçl ío fifvóla e pouco mè ditada de princípios 1lomados de ;
Outras disciplinas; até lazer a revista aparecer como um simples re­
flexo das modas intelectuais vigenrcs na França, adotadíis sem críti-
ca alguma.“

* Porém cssi ; Montafílou tão aplaudido por todos os meios publicitários do


académicien ao e da cultura oficiai resi ulta uma autêntica jóia ao <lado da nova
e grossa brochura do mesmo autor L'argent, l'amour et la m ort en Pays
d'Oc, Seuil, l ’ans, I960, um rolo geon nétrico-literário-estrutura 1 escrito, com
uma erudlçîio precária - ao falar do trovador Bemat de Ventaclour, escrito à
francesa, não se lhe ocorre outra cotia que remeter ao Dicionário de auto­
res de Bomj riani (p. 150) -, e com un 1 capítulo em que se che ga à escanda­
losa conclusão histórico-social de que: os matrimônios costumavam ser con­
traídos entne homens e mulheres de: níveis dc fortuna semelhantes - e se
quantifica com uma correlação de 0 ,8 6 - (pp. 158-174). A segunda parte, in­
titulada "O ! imor, o dinheiro e a morte", é uma incursão de fo lclorista ama­
dor, espécie de caricatura de O mm o dourado, de Frazcr, enn que se dá a
volta a meio>mundo, atrás dc um temia popular, para acabar nàio explicando
nada de útil sobre a sodedade que si e supõe se estar estudam iò.
** O próprio Braudel assume esse curáter de alternativa, quando assegura
que as suas relações com o marxista 0 não são nem boas nem más, mas sim
iguais a zero, e dialoga com Marx d<e igual para igual', a fim ile corrigir os
seus erros t eóricos, com elucubiaçõ es como esta: "Para mim o erro essen­
cial de Mánr é considerar a sociedade plana.Para mim tem uma espessura
e uma geometria no espaço..E creio' que tenho razão: c á únloa diferença
entre ele e eu" OFemand Braudel, entrevista ao cuidado de Marco d’Era-
mo", ln M oi tdóperario, n°. 5, maio, 1 980, pp,133d42).

212
arec:onstruçâo. HI: aescobidosoïiTio/es • .•

Para dissimular a s ua incapacidade de isnunciar um quadro


/ ' d e princípios teóricos, que possa submeter-se ;à discussão, os mem-
brós da escola caíram numa espécie de febre raetodológica, queos
leva a publicar um livro at xás do outro de refler iões sobre a história..
livre rs como Le territoin ; de l'historien, onde : Le Roy Ladurië diz ,
- coisiis ù o sensacionais, c:omo que "o historia dor de amanhã será >
.programador ou não o será", o^qiie vertia ser com o se úm homem
de fins do século XV tivesse dito Íjue."o historiador de amámhâ será r
impi -essor o não o.sérá". C tomo Histoire scienèt i sociale, urn volume",
de mais de quatrocentas páginas de eliicübrãç ões sobre'a religião,
o a n oz, a vida e a morte que Pierre Chaunu se: envaidece de haver .
- escrito em menos de um mês e meio. Ou corno essa enciclopédia
: s o b r e i nova história, òndé os sócios do clube dos A nn ales,além ' -
dc c [ogiarêm-sc uns ao õmtros, exibem toda a sua ferrugem e che-
> gam ao rogozijahte descobrimento de que também a moda históri­
ca é dirigida de Paris, e que eíés são seus artífip es suprtãnos, conclu- -
são <jue se alcança pelo £ Jèmentar prócédime nto de rião. levar em ^
con ta mais qúe o que eles mesmòsfezem (esquecendo que há na i
próp>ria França uma.tradiqão històriográficá "socialista" muito mais i
séria ). Livros, cm Surtia, onde a multiplicidade d os temas abordados,
que pretende ser um reflexo da diversidade e riqueza da investiga­
ção, apenas consegue Ocu iltar a total feita de id éias.15
Ausência de idéias não significa, entretanto, ausência de- in­
tenções. A'função ideolófpca^ política - dos homens dos Annales
não ]pode ser mais clara e a sua posição atual r esulta coerente com
o ru in o iniciado por Febvire em 1941. A nnales dá boa acolhida a to­
dos t ds ataques contra os "mitos do progresso e da revolução". Nas
suas páginas Chaussinand Nogaref sustenta que : a Revolução fiance-
sa nlio surgiu de uma oposição política ou ideológica entre a bur-
■ gués ia é a aristocracia, que pensavam a mesma coisa e tinham os
mesmos objetivos, mas sim do oportutusmo da burguesia, que, ao
deso obrir a ameaça das miassas populares, assu stada, "gritou com o
povc< e desviou para os aristocratas-a tempestade que podia Ievá-
Ia".* 1Um dos.seus diretores >atuais, Marc Ferro, e mpenhou-se por suá . -

•, \ destruição do "mito" da Revolução Francesa converteu-se num. dos ob-


jè tivps centrais do acader nicismo cõnscrvadoqen i esgeejai desde a vira­
gem reacionária da Guerra. Fria. Os Annales haviam se somado a essa causa
co m aparências de objetividade.Uma das suas contribuições mãis notáveis
fc « um artigo de F.Crou2et sobre n crescimento econômico na Frahçâ e na

213
capítulo 1 1 "

parte em destn iir também "o mito d r Rèvqlução nissa". Sc i qué nes­
se caso o empisnho. vai maiç alétn, jporque se trata de d«-struir, aò
mesmo tempo, qualquer concepção, em especial o marxismo, que
tenha participa do da crença no "mi.to do progresso". Não há pro­
gresso mais que; no terreno científico; não nos domínios d o político
ou do social: D essa postura de Ferro custa pouco para p: issar à de
um Braudel, paj ra quem uma das estruturas permanentes clã história
é que toda a so ciedadé é hierarquiza da, e que, depois de rim discur­
so pouco coénmte sobre a .resistência "anti-capitalistá"-d as econo­
mias "submerst is" - depois de uma a|pologia do trabalho negro e da
fraude fiscal a ícaba afirmando qué o capitalismcTé inevit ável.16
No cená rio da reconstrução d a história, a escola do s Anríales
não assumiu o papel de defender explicitamente as excellências do "
capitalismo, co mo o têm feito certos setores da "novíssima história ,.
econômica". Propôs um funcionalis mo: eclético como formula de
troca a qualqórr interpretação evolutiva (ou a funcionalismos de­
masiado limita« ios, por sua dependência do corpò teóric o de uma
só disciplina) c: trabalhou para dissipar as ilusões sobre o s concei­
tos de evolução e progresso.Sua taroía principal tem sido ã de lim­
par o terreno dle soluções altematrvias, demonstrar a inuti Iidade das

Inglaterra no século XVIII (Aimales, SEI, 1966, n”. 2, pp. 254-291), onde se
sustentava qm eo ritmo de progresso c las.duas economias tinha i sido muito
semelhante n o século XVIII e que o al íraso francês do século X 3X só pode­
ria dever-se à "catástrofe nacional" da revolução e aos vinte ar ios de guer­
ra subseqücn tes. Crouzet colocava entre aspas "catástrofe nacional" e o ci­
tava como to: «nado de um Livro de Lév y-Lcboycr (que, por sua vez, remeda
a um artigos Ulterior de Crouzet, dev olvendo-lhe assim uma paternidade
que ainda dei Teria resultar incômoda). Nos últimos anos, entret anto, não há
nem sequer ]preocupação pór guardar as formalidades, e Anraales acolhe
,, qualquer ata« pie anti-rêvolucionário c [ue se .apresente. Um do s seus cére­
bros, Le Roy Laduric,que tem aponta do faz alguns anos esta causa como
sua.fezendo I íonra a uma trajetória política pessoal dá mais equívoca, apre­
senta um pro grama que já nem sequei: ataca frontalmente a rei mlução, mas
que praticatt iente a fez desaparecer. Referindo-se ao campo francês .nos
fins do séculi o XVm, Lc Roy assegura que a contradição entre capitalismo
e feudalismo era um entre muitos out ros conflitos - de modo ; dgum o fún- ■
damehtal -, c que, se a sociedade rural. francesa chegou a ser a íomentaneá-
mente revolu icionária, isso se deve a q ue o seu mesmo crcscira ento a havia
convertido ei «ri "disfúncional" ou "desi equilibrada".A revolução "inscreve-se
na linha dos crescimento do século" e é, ao mesmo tempo, "ruptura" c
"continuidadi e": pouco mais que um Incidente (E.Le Roy Laduri lc in G.Duby
eA.Wallon,F.Hstoire de Ia France rurale, II - de 1340 a 1789 - , Scuil, Paris,
1975, p- 591).

i- f
214 l
a reco nstruçao. EL' a escola dos annales

- revolc ições e desviar a atem jão dos grandes prób lemas ao "jogo obs­
curo" das sociedades. Como nãò há segurança d e progresso a não
ser na ciência, dediquemo-nos â lazer avançar a c riência, a jogar com
microscópios eletrônicos v. computadores, com l pesos atômicos e
, análise ;s de pólen, e desban querriosos velhos mi iíos desacreditados
. . do progresso social, de orij;em irracional e religioso - "a idéia socia­
lista nasceu no seio do idea J religioso0, disse Ferro. Que nó terreno,
de onde o grupo dos Ann^ ües arrancou os "mat os" de mitos e uto­
pias, n ão possa crescer outi a planto que a dó capitalismo não é cul­
pa sua . Esses "homens de esquerda sem empehh q riem pelos spcia-
listás nem. pelos comunistas" - que é como se arito-define Braudel -
limitar-se-ão a recolher a sua modesta participaçíio nos benefícios e
a acormpanliar com a sua trreJa de conduzir os jovens pelos cami-
inhos l uminosos da ciência, onde a palavra "exploração" não tem
"'sentido, porque não é sèniio uma dessas estruturas permaíierites,
. "natupü" e inevitável como a sucessão da chuva e da seca.
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CaDÍtlÜO 12. - r

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o marxismo rio
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)f'C. - * . "-t' ■ I: desnaturalização
V"- -:- ^ e dogmatismo
. evolução do r üaterialismo histõricí j - .e i b prática histo-
riògi áfica nascida dele.- ej ntre a morte de Engel is (1895) e os nossos
dias pode ^considerar-se marcada por urri duplo processo de. desnã-
turalizaçãd e de recuperação. Embòia ambos aspectos, sejam èm
; boa1medida simultâneos, conviria aqui separa Jos é cóméÇar pelo
que se-iniciou primeiro:;a progressiva desnati araiização do pensa­
mento histórico marxista da Segunda Internacional e a fossilização
dngr nática do da Terceira, culminada no stalinis mo é prolongada pe­
las correntes Contemporâneas do estruturalismo marxista.
Para compreender a primeira etapa dè sse processo, ò que
quali ficamos:de desnatunilização.é preciso partir d e um cònjuhto
de m udanças históricas qi ie tiveram uma forte iinfluência na chama­
da "crise do marxismo" dos últimos anos do stículo XIX. O primei­
ro foi a situação objetiva do capitalismo europieu,que viveu então
' um'momento de auge, superando a crise das d écadas precedentes, -
com o qúe, parecia que o seu colapso previsto se atrasãva indefini-
damonte, enquanto viaim-se surgir novos elementos que explica­
vam essa sobrevivência'como o desenvolvimento do capitalismo fi-
nanc eiro e a expansão imjperiaüsta. Por outra p arte, o sistema pare­
cia estar aprendendo a comvivef com um movimento operário cada
vez r nais inclinado ao eco nomicismo sindicalis ta - à obtenção ime­
diata de benefícios pela vila da negqciação - é isso parecia afastar a
iniini ;nciã de um choque £iberto entre a buigue sia e o proletariado. N
O caso mais impressionante dessã desmobilização foi, sem dúvida,
o da Inglaterra, da segunda metade do século 'XIX, onde desaparer
. - ceú I õda perspectiva, de' timeaça revolucionária. Uma atuação que
comi >inava sabiamente as medidas de repressão com as dé integra-

217
capítulo 12

ção - culminada com a política de reformas do partido liberal, nos


começos do sé culo XX : permitiu conseguir que o movimento sin­
dical mais pode :róso do mundo entrasse decididamente p o r uma via
negociadora. Com isso as esperanças socialistas se desfizeiram, a par­
tir de 1895, e o terreno ficou livre p;ira o chamado socialismo fabia-
no, que propujgnava uma visão evo lutiva da história - ccmtra a da
■luta de classes,, do marxismo - com o base racionalizadoi-a.de uma
prática reformi sta, que tinha em. visita alcançar õ socialismo de ma­
neira gradual è pacífica.1
Essas mmdanças tiveram cara cterísticas singulares na Alema­
nha, onde,ao c rescimento econômico se somava a modifiicação das
relações entre ■d governo e o movinu ento operário, ao abol lirem-se as
leis de Bismarcik contratos socialistas e iniciar-se o crescimento na
filiação e nos c utos na sociatdemocxacia. Nesse contexto, com um
partido sodali;stá que havia optado peia luta parlamentar no lugar
da revolução, p >roduziu-se a discussã o sobre o revisiònism o, iniciada
por Bduard Be mstein (1850-1932) 'confa publicação, desde 1896,
de uma série cie artigos sobre "Problemas do socialismo",reunidos
no seu livro Ai ; prem issas do social'ismo e as tarefas da social-de­
m ocracia, em 1899. Bernstein defendia a idéia d e um socialismo
evolucionista ( pue tomasse o Estado pela via parlamentai; "para uti­
lizá-lo como al avança da reforma social até que se alcance: finalmen­
te um caráter ^:ompletamente socialista", e propunha a necessidade
de revisar ou nbandonar determinados conceitos fundamentais do
marxismo, des de a sua teoria do valor até a interpretação materialis­
ta da história, 'O escândalo que proiduzíu o livro de Bernstein, con­
tra o qual se alinhou a maior parte das grandes figuras, d la'Segunda
Internacional, ocultou então que a única coisa que havia feito era
denunciar a necessidade de se reviííar a doutrina revolucionária do
marxismo, para poder ajustá-la coerentemente a uma pratica políti-.
ca reformista. 1Porque o caráter reformista e evolutivo do socialismo
europeu nesses anos não oferece diívida alguma. Contra 1todas as in­
dignações que: suscitou, há que reconhecer-se que Bernstein tinha
razão. A concepção da história de.Marx e a sua análise d o capitalis1
mo correspon diam a um projeto sO'Cial de caráter revolucionário. A
um projeto re formista, como o que; agora tinha-se adotado, corres-'
pondiam uma visão evolutiva do passado - à maneira dai dos fâbia-
nos, que tinha un exercido forte inflluência sobre Bcmstcin - e uma
análise do capitalismo contemporâneo que permitisse alimentar es- .
peranças da s ua,transformação. E liampouco.se pode negar razão,

218
o manrismo no' século XX..I: desnaturalização c do;gmatismo -
■ ------------"■
"» —"■ .............................. .................................................-----------------------—

quando pretendia, apoiar-sc: em alguns dos textos .do Engelsjnadu-


ro, e, <:m especial, nas suas cartas sobre a históri a, qúe estavam des­
tinada s , a princípio, a ataca r certas visões esque máticàs, porém, ne­
las podia-se perceber um cJaro retrocesso a res] peito da insistêriciã
no pa pel da luta de classes ."
•- .■ Bernstein podia têr razão, porém, a sócia l-detnoêracia alemã
e os p artidos da Segunda Initemacional em seu c onjunto, desejavam
contítmat conservando os aspectos revolucionários do marxismo
como um elemento de leg itimação.* A uma còr icepção da história
que n ão se discutia, porém , que tampouçose ennpregava, acrescen-
tava-s<: a ela agora uma visão renovada da crítiica do capitalismo,
adapts ida às mudanças que se haviam registrado nele - capitalismo
imane :eiro e expansão fmpicriálista e a essas dmas peças se agrega­
va um a pratica reformista - uma ação ieal e code liana, nãó teorizada
claran íente, como háviam j ledido Berhstein ou <as fabianòs, porque
result; iva incompatível coin as outras peças do siistema sociaMemo—~
crata - •é uma visão do soei ilismo cotrio algo qüt i havia de alcançar-
se no- fúturo, como fruto de:uma evolução, em que o peso das trans­
formações econômicas e <iò, avanço'da consciência de classe do
prolet ariado haveriam de c onduzir fatalmente à liquidado do capi-
_ talism o. Não é difícil perceber esses traços no caso da‘social-demo- ’
cracia alemã, onde Kautsky Cl 854-1938), depois <lê ter-se erigido em
defen: sor dá ortodoxia mar xista fíehte ao revisit mismo, acabou pu­
blican do um grande estudo sobré o materialismo histórico, cm quê
suster itava que a concepçã« d materialista da histe iria "como doutrina
puraniente científica, não c:stá em absoluto ligada ao proletariado",
e quê., se resultava "simpátí ca" à classe operária, isso se devia unica­
mente ; a que naqueles mon íentos servia aos seus; interesses. O fruto.

■ f — — .■
■ G actano Arfé nos explica que nina'das razoes fundamentais que levaram
os socialistas italianos a op orem-se ao revisionismo de Bernstein - pese a
qui: nesses momentos a sua1 prática política não podl a ser mais reformista e
me nos revolucionária - foi a . de evitar o desconcerto dos fiiiados.."Uma cer-
. ta i ortodoxia formal tem as suas razões de ser, num partido áindà joveni e
ide otogicamente muito diverso". Úma coisa era ir atóalizarido e adaptandoJ
o r narxismó às dreunstânei as contemporâneas - é', e ntre elas, à política de -
um iTUrati, coerente com os seus postulados de "um; i lenta e gradual trans­
fer mação" da sociedade - "p< jrém proclamar dc’imprc iviso a crise, aceitar ofi­
cia Imente a superação do marxismo, equivaleria a albrir no partido um va­
zio perigoso e destruiria aq uclc vínculo fideístico q ue ajuda, mais que ne- ,
nhi um outro, a manter uriid; i a armação organizativá ’ (Gaetano Arfé, Storia
del ' socialismo italiano, 1 8 . 9 2 - Eihaudi,TUrim,’ 1965, pp. 98-99). -
capítulo 12

real da prática política da siocial-dempcracia será o de desmobilizar


as massas trabalhadoras alemãs - uma vez superadas as ameaças re­
volucionárias dos anos que se seguiram ao té rrmino da primeira-
guerra mundial para còncluzi-las à tranqüila colaboração com o ca­
pitalismo, que era o lógico corolário das suas proposições teóricas.*
Quando a social-democrac:ia alemã abandona o marxismo, depois
da sqgunda guerra mundial, não terá feito outrai cõisa que comple-
. taf o. processo iniciado em fins do século XIX, d ando razão a Bems-
tein <: liquidando o que se tinha convertido riu ma mera liturgia. O
programa de Bad Godesbe rg, de 1959,-omite to da referência à evo­
lução social, para felar unic amente dos "valores fundamentais do so-
cialisinrto", que são íiberdad e e justiça. "Deles se deduz a política so­
cialista nas suas diversas esferas de atividade, e no do discernimen­
to de leis'do desenvolvimento histórico supostamente inevitáveis".3
São também esses. anos -de trânsito de um século a outro
aqueles em quç, pela primi eira vez, faz-se um esforço para difundir à ç
escala do movimento ope rário unr pensament o marxista, que até
entãci.só çra conhecido p or muito poucos.- se excetuarmos’o Ma­
nifesto com unista e algumas afirmações usadas como orações jacu-
latóri as.A necessidade de f ixar a ortodoxia diant :e da heresia revisio­
nista reforçará ainda mais essa tendência à codiiicação em compên­
dios d e fácil assimilação.Tail é,em última instãnc ia.o objetivo de tra­
balhos como os de labriola (1843-1904) ou d e Plekánov (1856-
1918), para citar dois únic( )S exemplos, que con tribuíram, sem dúvi­
da, para difundir o conheci Lmento dos elemento: s mais rudimentares
do pensamento marxista, porém, que, ao mesmo tempo, iniciaram
um processo que iria reduzi-lo a um esquema miorto, do qual dificil-
ment e poderia surgir algut n enriquecimento,:en quanto qrie levaram
a sua fragmentação, separa indo a interpretação «la história da crítica
do presente e do projeto político. Com efeito, Labrióla e Plèkánov

* ' 'O conformismo, que de: sdc o princípio achou a- sua comodidade na so­
ei al-democracia, não se refere só às suas táticas políticas, como também às
sinas'idéias econômicas. Esta é uma das razões d o seu fracasso ulterior.
Nada corrompeu tanto à classe trabalhadora alemã como a idéia de nadar
a favor «la corrente. O des< rnvolvimento técnico em o sentido da corrente
com ò qual ele acreditava ifcstar nadando.A partir di isso não havia mais que
«lí ir um passo paia cair na ilusão de que o trabalho nas fábricas, por achar-
se: na direção do progresso técnico, constituia p o r si'uma ação política"
(\ Çalter Benjamin, Teses d e filosofia «la história", in Para una crítica de la
violência, Premiá, México, 1978, p. 126).'

220
o marxismo no século XX, I: desnaturalizaçiãõe dogmatismo

foram os primeiros que tentaram algo gue Marx.e Engels haviam


sempre recusado fetier: oferecer-nos uma interpretação separada da
concepção materialista da história/1 ,
O caso de Ple káriov é do seu Ensai o sobw o desenvolvim en­
to da concepção nvonista da história (1895) - um-estranho título
destinado a burlar a vigilância da censura czàrista - resulta especial­
mente cíaro.A exposição que se faz nessa is páginas das raízes histó­
ricas'do pensamento de Marx fmateriídismo francês do século
XVm, historiadores da restauração, socialistas utópicos e filosofia '
idealista alemã) e da sua concepção mátçjrialista pode-se considerar
bastante correta para o seu tempo - quero dizer, na medida do que
era possível com ocpnhedm ento que se linha dos escritos de Marx
e Engels naqueles te rnpos, quando tantas páginas fundamentais es­
tavam ainda pòr puí rlicar -, porém, o resu itado final tém um aspec­
to catequético e morto. O que em Marx foi concebido, como um
método aberto, indissoluvelmente ligado - a,uni" projeto’político a
longo prazo, apresen ta-se aqüi fechado e s implificãdq, transformado
cm doutrina, porém em doutrina tão elementar, que resulta"difícil
ver que classe de investigação concreta teria podido sustentar-se
nela. O esquematism o dessas codificaçõe;; pode ajudar-nos a enten­
der tanto a incompr eensão de Jaurès, à q ue nos referiremos segui­
•T- damente, como a po breza da investigação marxista, algo que.Hilfer-
-...3
ding pretendeu justiifícar, sem razão, pela desconexão dos marxistas
cótn relação ao munido acadêmico, * esquecendo que era assim que
havia nascido e se desenvolvido o marxis mo.’
Entretanto, o problema das simplificações dogmáticas iria
agravar-se ainda mais com- o .triunfo da revolução bolchevique em
vi
1917. A necessidade de difundir-se os princípios que constituíam a
fcjrr.
base ideológica das novas formas de organização da.sociedade e
,S§i
* "A teoria econômiica nacional pertence com toda segurança às tarefas
científicas mais difít :cis, dada a infinita comj piexidade das suas manifesta­
ções. Agora bem: o naarxista se encontra numa situação muito singular. lix- _
cluído das universid ades, que permitem o teitnpo necessário para as invés-"
tigações cientificas,; :c vê obrigado ã não podi rr realizar o seu trabalho cien­
tífico, a não ser nos 1curtos espaços de tempe 1 de descanso que lhe deixam
as suas horas de luta política. Seria injusto exigir dos combatentes que o"
seu trabalho no edif ício da ciência avançasse: com a mesma rapidez que o
dos tranquilos pedrtâros, se isso não revelass e a confiança que têm na sua
capacidade de rendimento’’ (Rudolf Hilferdir ig,El capitalflhanCiero.Tcc-
nos, Madrid,1963, p|p. 10-11). . .1 " ."V

221
capítulo 12

que justifica’ ram o Estado criado para defendê-las, obrigava a prepa­


rar exposiçõ es pedagógicas do m arxismo, que já nãô bastavam'ser
apenas críticfas da prdem capitálista, mas também legitimadoras do
novo sistem; i aparecido como cor iscqüência da revoluç ;ão. Se nos fi­
xamos no li1,TO O ABC do com unism o, de Bukárin (1888-1937) e
Preobrazhen ski. (1886-1937), e no livro A teoria do m aterialism o
histórico: m, anual popular de sociologia marxista, ide Bukárin -
dois livros quie constituíram, para a geração imèdidatarnente poste­
rior a 1917, " o saber básico dò jov em comunista", pelo qual passava
antes de entirar em Marx e Lênin - compreenderemos o s traços pe-
■culiares de t£ iis intentos. O primeiro deles é, evidentemente, um em-
pobreciment :o teórico que co n du ;à fossilização dogmá tica. É p que
Gramsci den unciou a respeito do M anual bukariano: 'Vi"redução da
filosofia da.{»táxis a umá sociolojpa representou/a cristalização da
tendência dainiriha a (...)redüzir uma concepção do imundo a um
formulário niecânico/que dá.a impressão de ter toda a história no
bolso". Poréoa, havia algo mais. Unaa sociologia é, fundaimentalmen-
te, uma análise das leis de equilíbrio de tuna sociedade e pressupõe
a admissão d esta como marco em que tem lugar o des envolvimen­
to histórico, j Aanálise crítica Continuará reservando paira a socieda­
de anterior - como haviam feito o s cientistas sociais burgueses, ao
destacar a hi storicidade do feudalismo e analisar, em troca, as for­
mas da socie idade capitalista "com o racionais, "naturais" e estáveis: ■‘
permanentes; - enquanto que se durá"por suposto que o jogo inelu­
tável das leis dó desenvolvimento ieconômico acabará configurando
no seio da sociedade soviética o socialismo,Assim reap.arece, curio­
samente, esse: mesmo economicisí no da Segunda Intem acionai, que
então seryia de justificação do reformismo; assim se prepara, tam­
bém; um- dos pilares da análise social do stalinismo, côrn a sua con­
cepção "cien tífico-naturalista" da liistória e a sua fé no jiogo inevitá­
vel das leis econômicas.6
Estes c iois traços - simplifica ição catequética e função conser-
râdora ao sei viço do ordem estabelecida - refletirão especialmente ■
na História, c mde irão adquirir uiri relevo especial, dep ois da crise
de 1927 a 19129, da qual surge o fenômeno que costumai aaos chamar
de stalinismo . Um fenômeno que não deve interpretar- se, como se
fàz habltualm iente, em termos de pisicologia pessoal ou de uma luta
mesquinha p elo poder, mas sim com o crise social. Recentemente,
Michal Reiman propôs uma explicação centrada no fn ícasso - evi­
dente até 19117, no décimo ano da revolução - em conseguir o cres-

222
o maiodsmo no século XX. I : desnaturalização e dogmatismo

cime nto-industriál ambicionado e que sè supumha uma condição


para. a -vitória do socialismo. A própria reyoluçUo,;ao satisfazer uma
série de aspirações popu! lares, havia quebrado 6s mecanismos de
acumulação do capital existentes anteriormente, e as destruições da
guenra mundial e da guerra civil haviam agravado consideravelmen­
te a situação. Em fins de 1 927, resultava éviden te que não se podia
. satisfazer as demandas de produtos industriais da população russa,
o quie invalidava as possibilidades de alcançar 0 desenvolvimento
industrial pela via' da NEP. Então escolheu-se o salto para a frente: a
mpbitlização geral dos re a irsos, ainda qúeàs cinstas do sacrifício de
■ muitas das conquistas po; pulares obtidas pela revolução. A função
do te rror nãp era tánto a c lê liquidar a oposição política, como a de
facilitar essa mudançá de rumo'; era,.nas palavras de Reiman, "um
meio de transformação vi olenta das coridiçõe s de vida e trabalho
de milhões de pessoas", qv lereforçãriaas piores, formas dc opressão
socia 1. Nesse contexto, po de-se entender o uso que se faria da ver­
são codificada dó matériaIlsmõ histórico - essa coisa estranha cha­
mada "marxismò-Ièniriismi o" - como formà de legitimação, é o grau
dc diistorção que introduziria a sua subordinai çãõ às necessidades
polítiicas conjunturais: às diretrizes ”do partido"1.7 «' .
Após o triunfo da revolução, os bolcheviques dispunham de
um só historiador.com pre :stígio acadêmico réc onhecido, Mikail Po-
krovfiki (l 868-1932), que p ós a serviço da Rúss ia soviética a sua va­
lia in télectual e as suas ca pacidades de organizador político.Isso o
induziu a mesclar a tarefa de historiador com ais necessidades con-
jüntu rais do dirigente de p lartido, e fez dele, desi de 1920, um dos pri­
meiros acusadores dos historiadores burgueses, cuja atividade fora
tolerada até entãó. Os grandes, debates internos dos historiadores
marxistas nesses anos foram os.relacionados co m o modo de pro­
dução asiático, com o desenvolvimento do capitalismo na Rússia e
com o papel dos bolcheviques na Segunda Inte macional. Deixando
para mais adiante o prime iro, o de maipr transe endência teórica, os
outre >s dois podem ilustrai -nos sobre a subordir íação progressiva da
investigação histórica às iutàs internas dopartido. Pokrovski havia
apoia ido a idéia de um precoce desenvolvimento capitalista, que ser­
via di e apoio à teoria do so ciàlismo hum só país; porém, uma vez ga­
nha essa batalha, ás necessidades dos anos do primeiro planò qüin-
qiienal.exigiam uma mudança de ótica, para destacai- o atraso da
Rússi a pré-revolucionária, em contraste com as conquistas da plani-
ficaçí ío, o que exigiu desca irtar o precoce cãpitá lismo comercial rus---
capítulo 12

sb. Pior foi o acontecido na djsputa sobre a atuação dos-bblchevi-


ques ria Scgjunda Internacional. Aqui os próprios hisitoriadores se
desqualifica-vam, acusando-se de mencheviques e de p oucb marxis­
tas, e acabai ram pedindo a arbitragem dos políticos, 'Quando, este
chegou, con 1 a, carta de Stalin "Algumas questões da hb rtória do Bol-
chevismo",publicada em outubro de 1931,foi para Ver como se acu­
sava de "aníipartido e semitrotsiustas1' os que se atrevi am a pôr em
dúvida que ILênin tivesse lutado contra o centrismo social-democra­
ta antes de 1 914,* fulminando os "ratos de arquivo" que pretendiam^
argumentar a sua tese com a falta de documentos que demonstras­
sem a postuna politicamente correta. A missão do histo riador acaba­
va reduzida a apoiar as. necessidades políticas conjunturais, ainda
que fosse à custa de desmentir hoje o que havia afirmado ontem.
Ppkiovski m orreu a tempo de evitar de ver como, em 1938, as suas
ínterpretaçõ es da história russa eram desqualificadas o ficialménte - '
acusando-o de "distorção antimarxista" e de "vulgari; ração" -, nos
momentos e in qúe. interessava recuperar uma visão mai s patriótica.8
O. problema do "modo de produção asiático", ai nda què nas­
cido de coo rdenadas políticas semelhantes, iria ter m ais transcen­
dência, já qui e implicava questões fundamentais na com preensãó do
marxismo. N b prefácio à Contribuição à a itica da econom ia p o ­
lítica, Marx 1íavia escrito: "Esboçados em traços largos, o s modos de
produção asiiático, antigo, feudal e burguês moderno pc xjem ser de-

* Um ano antes, um amigo da revolução, Panait Istrati, assina lava o tremen­


do avanço do dogmatismo, partindo da anedota vivida, quando uma meni­
na de se te :anos, interrompendo a conversação que mantinh; a Istrãti com o
seu pai, ha via-ò admoestado: "Lênih não se equivocou jama is". "Cito essas
palavras de: uma menina, só para indicar o.perigo que se ap resenta, desde
o ponto de vista da formação da jovem geração soviética; a c anonização dc
um Lênln íjenlal, infalível, chocante, que fêz sozinho a revoi ução de outu­
bro (nada <■ mais falso), nenhuma de cujas palavras pode sei - posta cm dú­
vida, que b asta citar bem para sc ter iazão, e cuja interpretação, além dis­
so, está rigrarosamente reservada aos dirigentes do partido.'. Todo o ensino
do Estado, t :ada a propaganda do partido, toda a doutrina difu ridida pela im­
prensa funi iam-se nessa doutrina oficial, cujas deformações i itilitárias, com
frequência surpreendentes, puderam continuar no curso dos últimos anos.
As revistas de cinema, de desportos, de ferroviários, de jog adores de xa­
drez, das jo vens mães ou dos tribunais publicam muitas veze s ao ano retra­
tos de Lênin acompanhados dc artigos cid boc. Há aí uma forma de elimi-
nar ps vivo: s j>ara deixar todo o espaço ap morto que convér □ a uma buro-,
cracia mais esperta na arte de comentar os textos do que na busca iutelee- ’
tual” (Panait Istrati,Sovlets 1929,Rieder, Paris, 1929, pp. 16&-170).

224
" o ni; irxismo no século XX. I: desnaturalização e dogmatismo ,

sign ados como outras tan tas épocas progressivas da formação social
ccomômica”. Se a isso sé acrescenta, por um extremo, o comunismo .
primitivo e, por outro, o socialismo, teremos um conjunto de seis
etapas; porém, enquanto cinco delas podem enlaçar-se numa se­
quência (e podem conve rter-se em pauta intàpretativa da história
unit "erial), a sexta, o modi o de produção asiático, fica deslocada, sem
que se veja como encaix ar, por exemplo, na história euíopéia umá
: fase que se tenha cónstrii ído sobre o mpdelo das sociedades hidráu­
licas i dã Ásia. O problema , adquiriu haturçza política com as discus-,
sões; sobre a política a se; pair na China.' Os que interpretavam que a
soei cdade chinesa se enc ontrava numa íase feudal, propugnavam a
aliança dos comunistas co m a burguesia nacional; caso se pensasse
que aquilo que dominava lna China eram já asrelações capitalistas,
com o pensava Trotski; havia então que buscar-se a hegenionia dò-
prol etariado. Pensar em a Igo assim como qué se éstivesse natransi-
■, ção dó modo de prodüçã o-asiático aò capitalismo, em troca, deixa­
va aos fabricantes de receitas teóricas sém argumentos para propor
Uma linha política. O resi dtado, como é bem sabido, é que a políti­
ca clhinésa resultou num itremendo desastre, pígo às custas de mui­
tas vidas humanas.Nas reuniões celebradas emTifilis e Léningrado,
entn s 1930 é 193.1, os hist oriadores russos decidiram desembaraçar-
se di o modo de produção i asiático, * considerado por alguns como
uma forma peculiar, do fei adalismo no Oriente, com o que se desim­
pedi u o caminho para constrüir um esquema fechado de cinco eta­
pas, que foi consagrado p o r Stalin em 1938: "A história conhece dn-
. co ti pos fundamentais de relações de produção: a comunidade pri­
mitiva, acscravidão, o regime feudal, o regime capitalista e o regime
socií dista". Com isso tem< js um "esquema único e necessário pelo
qual passarão todas as sociedades": uma armado qué o historiador

* Uma vítima desse debate: foi, de certo modo, Kari A. Wittfogel, expert em
a: ísuntos asiáticos da Inter nacional comunista, defensor de uma interpreta­
ção baseada na existência de um modo de produção asiático na China, que
ai abo u rompendo com o comunismo e metamorfoseando a sua tese no II-
vj ro,' Ò despotismo orienti tf, aparecido nos Estados Unidos epj 1957, onde
a análise das sociedades as iáticas antigas lhe servia,agora, para fazer um pa­
re delo entre o despotismo oriental das sociedades hidráulicas c p do socia­
lismo atual (caracterizado como um sistema escravista de base industriai),
Vi üttfogcl não se contentou com essa surpreendente utilização das suas vc-
lh ias análises marxistas, c omo também colaborou entusiasticamente na
C aça às bruxas" do hiacca rtismo, até extremos, que os seus próprios,cole­
gas acadêmicos considerai ram excessivos.

\ - 225
capítulo 12

tem que encher com fetos.**O caminho para converter o materialis­


mo histórico numa filosofia da historia - algo contra o que Marx ha­
via lutado exp licitamente - havia cb icgado quase ao seu fim.9
O aparecimento de um açaciemicismo marxista caracteriza-
se por uma séiiie.de traços que recordam processos semelhantes de
fossilização de: um pensamentofev olucionário, em outros momcri-
- tos da história, quando os grupos dominantes consideram que já
completaram a sua revolução e que estabeleceram as condições
para" "evoluir" até as metas fixadas, <j que conduz a pensar que qual­
quer nova temtativa para subverter a ordem estabelecida é contra-
revolucionária l, e freiam a vertente crítica do seu pensamento, que
só se exerce agora para a passado.A História põe-se então a serviço
da consolidaç ãO'do sistema, fossiliíza-se e não conserva mais que
ecòs da velha terminologia revoluc ionãiia.
O prim eiro de tais traços é a separação entre uma teoria e_s-
clerosada e urna prática que, apesair de todo o seu empanturraméh:
to de citações» de Marx, converteu-se em mêraménte positivista, A
maior parte d o que se produz na Ui tião Soviética em'matéria de teo­
ria da história é pura fraseologia de escolasticismo marxista, seja em
elucubrações filosóficas que pouco mudaram do stalinismo para c á ,,
** seja em catecismo que não se distinguem demasiado dos utiliza-

* Um exemplo divertido das conseqmêneias a que pode levar a universali­


zação forço: sa do esquema nos dá Mlanuel Moreno Faiaginals: "O livro de
história que mais se tendeu em Culba - editaram cerca de um milhão dc
exemplares - dizia coisas como estas , já que havia que ajustar,um esquema
marxista a u ma realidade histórica: a etapa da comunidade primitiva já a re­
solvemos, ssio.os índios tainos que.v ivçm em Cuba. Há escravismo: são os
escravos ínc lios e os escravos negro:D epois vinha o feudalismo, e não ti­
nham onde colocá-lo, porque coinci tdia com o escravismo, e o soluciona­
ram de um imodo genial: o patronato correspondia a essa etapa, já que ser­
ve de ponte entre a escravidão e o movimento assalariado. Então há um
feudalismo ique começou no dia 10 dc janeiro de 1883 c terminou em 15
de março d<: 1885. Resolvido o prob lema. Logicamente, depois vinha o ca­
pitalismo e já remos escrita a história de Cuba" (M.Moreno Fraginals, "La
nueva histo ria cubana”, in Queidems dei Centre de Treball i Documenta-
ción, n°. 1 , 119Sl,pp.67-86; citação Literal da p. 74.Transcrição de uma pa-'
lestra dada i:m 26-Dt-f979).
** Veja-se, cc >mo exemplo, a forma ct jm que se resolve o problema da lista
fechada dos modos de produção - oi i "formações socio-econômicas", que é
o-mesmo para os filósofos soviético; i - um autor recente ("doutor em ciên­
cias filosóficas, professor e distinguiído filósofo soviético", segundo reza a
capa do seu i livro). Depois de afirma r que "nos círculos científicos não ter-
o marxismo no século XX. I: desnaturalização e dogmatismo

, doí; cm outros lugares, piara o ensino da religião, e pnde as citações


dos >-santos padres funda dores do marxismo se utilizam para acabajr
concluindo que “os filós ;ofos marxistas unem palavras còm fatos, 1 1
teoria coro a prática, a filosofia com a política do Partido Comunis­
ta e : do Estado Soviético1',. E onde a visão da história se contenta’com i
sim plificações tão elementares, como a de afirmar que “as insurrei ­
çõ es dos escravos levaram à ruína a sociedade escravista e à apari -
çãO' da formação feudal". Por outro lado, as publicações mais com ­
pro metidas, como são ãs histórias oficiais ida Revolução bolçhevi -
qué:, são os "produtos do mais estrito positivismo, nieras relatos de:
fetos, onde a única coisai que importa é calibrar adequadamente ai
importância que se dá a cada protagonista, de acordo com as rçsò-
luçoes "de partido" vigemtes. A subordinação à conjuntura política,
pode chegar a extremos Uão aberrantes como ò que se produz quan­
do dóis sisudos membros.da Academia' de Ciências decidem, em
19Ó 4, que “nos-últimos artos apareceram na esfera da ciênda histó­
rica da República Pópuliir da China algumas tendências equivoca­
das, * que estão estreitamente conectadas ao curso político, geral-
mente incorreto, da direção do Partido Comunista da China", sem
perceber que isso constitui uma confissão de que as "tendências" na
"ciência histórica" costuiuam acomodar-se ao "curso político" que
assinalam os dirigentes d os partidos.10

minaram as discussões referentes ao número das formações sócio-ecoriô-


i nicas", e que o problema do modo de produção asiático "provoca as mais
agudas polêmicas", conclmi: "Sem nos determos dc modo especial sobre es­
ties problemas cm discusuão, exporemos o que foi estabelecido solidamen-
t e pela ciência. Com plen a certeza pode-se folar de cinco formações, sócio-
c:conômicas, que são as c tapas fundamentais da história da humanidade, as
etapas mais importantes do progresso social. Trata-se do regime da comu­
nidade primitiva, da sociedade escravista, da sociedade feudal, da socieda­
de capitalista e da soded ade comunista, cuja primeira fose - o socialismo -
foi construída já em muit os países do mundo" 0- Monáàúán, Etapas de la
historia. Teçtfa m arxlstçi de las fonnaciones socioeconómicas, Progres­
so, Moscou, 1980, pp. 49-150). Para isso nãofozia folta defenestrar Stalin.
* Logo resulta que as ”ten dêndas equivocadas" que se denunciam, concrc-
t izam-se em acusações de racismo e de nacionalismo burguês, bem ilustra­
das pela divertida história: do suposto descobrimento daAmérica, no sécu­
lo Y por um monge budjsita chinês - sensacional achado de quê o maoismo
tratou de tirar partido polUtlcamente.As criticas são perfeitamente válidas,
porém tais "tendências" n cm datam da mudança nas relações políticas en­
tre a China e a União Soviética nem crâm mais graves em Pequim do que
em Moscou. ~

227
capítulo 12

Um dos; fenômenos mais rev eladores temos no lato de que,


enquanto historiadores marxistas réabnente criadores têm de en­
frentar graves idificuldades, como aponteceu naTchecoslováquiã,ãd-
mite-se sem ne:nhum inconveniente ,como acontece na Polônia, que;
renasçam as f ormas mais conservadoras do velho académicismo
burguês, sem mais requisito que o d e adomá-las com um pouco de
terminologia marjdsta. Sustentando'posturas radicalmente opostas
ao marxismo, pouco importa que não induzam a uma análise críti­
ca do presente ;.Tal é ò caso dcWitolld Kiila, que nos seus Problemas
e métodos da história ecònôm ica mostra-se hostil a qualquer pro-
jetó' de "histór ia integral1’ e partidãri o de uma história econômica es­
pecializada, o que é rigorosamente antimarxista, pòr muitas prega­
ções que se in icluarn nq texto (algu mas tão risíveis, como a de asse­
gurar que "a ciência histórica-pola ;ca do pós-guerra leva cada vez
màjs em còntE t á opinião das massas >populares"). Nada tem de estra-
‘ - nho, por còníieguinte, qúe quando' Kuia põe-se a teorizar sobre p>
feudalismo, o produto resultante possa ser criticado tanto pela sua
debilidade, co mo por üm ecletismo teórico que "recolhe nos seus
alforjes um conjunto multo amplo de heranças, que procedem des­
•r lí-
de Adam Smith até o marginalisraio", sem passar pelo marxismo. '■ T ; ií- € £> : -

Mais característica resulta ainda a c hamada "escola de Poznan",cujo


- membro mais conhecido é JerzyTopolski, que publicou uma Meto­
dologia da investigação história i, que fará a felicidade de qual­
quer afiedónado do escolastidsirio verbal. A fúria classificatória
substitui, coimo é usual em tais produtos, a reflexão: a metodologia
se divide em três partes (objetuàl,pragmática e apragmática),as leis
históricas em três categorias (sincrônicas, diacrônicas e sincrônico- - X. -‘. ^ 2
diacrônica), e o conjunto do saber histórico se codifica em dez leis, t '
a última das q uais, a da luta de class es, toma esta formulação, que pa­
rece tirada de; um manual de sociologia funcionaíista: "numa socie­
dade de classes,contrapostas e portadoras, ao mesmo tempo, de in­
teresses contrastantes, desenvolvem-se posições antagônicas, que
consistem, em última análise, no fia to de que uma das classes tende
à conservação do tipo de relações existentes, enquanto que a outra
deseja a sua n íudança; isso significa que as ações de uma classe pro­
vocam contra i-ações da classe opo sta, o que determina o processo
das mudanças sociais", Não surpreenderá que a prática de investiga­
dor deTopolíiki o conduza a resultados paralelos aos da escola dos
Annales, conn-a qual todo o-grupo tem uma considerável afinidade.
Assim chega í i conclusão de que "fc >i preclsamente ó aumento daãti-

228
om arasm o no século XXL I: desnaturalização e dogmatismo
— :..................................- —— ------ ---- -—........................-1—w
. ' •-

vidade econômica da nobreza (observada na.Europa desde os fiiis


da Idade Média) o que c:onstituiu o impulso que-deu início ao pro-
cesiso dé acumulação primitiva e, em conseqücncia, ao nascimento
do capitalismo".“ :
Se, como se viu, r tos países :de cultura, oficial marxista ci aca -
dernicismo sucedeu a si mesmo, sem que se possa dizer que a liqui­
dação do staiinismo implicasse em grandes mudanças na historio-
grafia oficial, no Ociden té europeu a libertação dos férreos esqtje-
n iis dos manuais stalinis tas iniciou úm processo de discussão-feno-
vadlora.Ao mesmo tempo, entretanto, outros esquematismos vieram i
a substituir os descartad os e o fizeram com um êxito considerável,,
já q ue facilitavam um acosso rápido ao trabalho teórico e pennitiami
a redação de catecismos;, com òs quais se podia difundir’o ensinei
do marxismo - dé um certo marxismo reduzido a esquemas míni -
-mos.pelo mènos - c oferecer umas pautas interpretativas da história l
que:, por pobres que fossem, resultavam mais satisfatórias que as do
aca dernicismo dominante. Amparado por itifia cobertürá filosófica,
de ; íparênoia respeitável, o estruturalismo marxista converteu-se na.
forr na dominante de difu são do marxismo na Europa ocidental e ria
América Latina.
A cobertura filosó: fica era dada sobretudo porAlthusser.que,
dep ois de. criticar "a confusão que reina no conceito de historia", or­
ganizou a sua reestrutura ção desde o território da filosofia..O modo
de produção acabou divildido em estruturas regionais (econômiça,
jurídico-política, ideológi ca) e estabeleceu-se todo um jogo de rela­
çõ es entre elas, com o que se pretendia resolver todas as contradi­
çõ es (assim, por exemplo, pódia-se dar satisfação aos setores mais
reacionários do academicismo, dizendo qüe nó feudalismo era a
"ihsitância jurídico-política" a que dominava, etc). Partindo de uma
combinatória de concei tos abstratos, pode-se resolver no plano
"teó rico" todos os problomas. Uma das formas de fazê-lo consiste,
por exemplo, em fabricai: um novo "modo de produção" - domésti­
co, t ribiitário, familiar - ao qual atribuem as características que pare­
cem apreender no caso q ue se está estudando, com o que se cai no
velli o engodo de substitui ir uma autêntica elucidação por,uma refor-
mul ição: de dar uma sólu ção meramente verbal às questões coloca­
das. O segredo consiste ein que a arguínentação se mova sempre ho
plan o da máxima abstraçl ío - da "teoria"- é em que, uma vez concluí­
da a sua operação, recom i à realidade apenas para buscar exemplos
com que ilustrar os result; idos.Acomodada desse modo a uns esque-

229
t

capítulo 12

mas pré-fabricados - encaixada neles -, a realidade não desmente


nunca os resultados da teorização estruturalísta. Os efeitos do al-
thusserianistno podem ser percebidos claramente nos seus deriva­
dos. No terre no "teórico", o catecismo de Marta Hamecker explica
tudo o que st: há de saber sobre te oria da história em 30 páginas de
pequeno fort riato, que baseiam-se exclusivamente em Althusser, Lê-
riin e MaoTsie-tung (nessa ordem), e que não contém riem uma só
alusão a alginm problema histórico concreto ou a algum debate de
método. No t erreno da aplicação cios esquemas ã realidade - não se
pode chamar propriamente "investigação" - as-simplificações mecâ­
nicas de Poulantzas mostram a pobreza dos resultados que se ob­
têm. Levando essa mesma linha de: pensamento a sua conclusão 1<>
gica, dois sociólogos britânicos, Hlindess e Hirst, afirmavam que a
_ história era mero conhecimento eimpírico que não servia para nada
e propunham um materialismo histórico reduzido a "uma teoria ge­
ral-dos modois. de produção" Claro que em dois anós descobriram
que o conceito de modo de produção também não lhes servia; é
que o afastam lentò gradual dos late >s concretos - que Hindess eJíirst
não usam ne m como ilustração - permite aumentar a veiociadade
das elucubrações e multiplicar até o infinito a quantidade de neces­
sidades "teóricas" produzidas.11
Se ao ichegar-se a essas, formas mais extremas, o estruturalis-
mo acaba deístruindo-se a si mesm o, há toda uma gama de posições
mais matizadas que são aceitas haibitualmente como válidas.Todas
coincidem na utilização de uma terminologia marxista, ainda que a
sua relação com o materialismo histórico seja muito distinta. Dife­
rem entre si* pelo contrário, no se u grau de abstração. Entre as for­
mas mais esctremadas encontraríamos as proposições de Samir
Amin, que re<:onstrói toda a históri a da Ãfrica num esquema simplis­
ta e propõe iima nova lista de modos de produção para interpretar
a história mundial: 1) ò modo de jprodução comunitário primitivo,
2) o tributári o (do qual o feudal é uma especialização regional), 3)
o escravista, -4) o mercantil simples e 5) o capitalista. Entre as mais
próximas do trabalho normal dd 1listpriador, está a de Perry Ander­
son, que trata de reinterpretar a história européia à luz do marxis­
mo e forniu] a algumas hipóteses interessantes, mas que procede
igualmente a. partir de alguns esquemas teóricos recheados com
evidências históricas de segunda i d I o . i í ■
■ Teremos que referir-nos também, ão falar das discussões em
tomo da orig era do capitalismo, aos dóis últimos estrutura listasdes-

7
230
. o marxismo no século XX-1: desnaturalização e dogmatismo

sa-irapida revisão. André Gímder Frank, um dos pais das interpreta­


ções que vêem o subdesenvolvimento atual com o um produto na-
turrai e necessário do dc-senvolvimcnto capitalista das metrópoles,
. acrescentou há pouco a sua análise uma tentativa de fundamenta-
çãoi histórica, que não vi ai muito mais além d e uma compilação de
citaições. Partindo dó mesmo esquema gunde rfrankiario, Immanuel
Wállerstein pôs o acento no estudo do desenvolvimento, dó nasci-
riie) nto do capitalismo, ví sto, como fazia" Gundi er Frank, num cenário
geo gráfico, porém convertendo 0 seu esquenna binário num outro
ternário, integrado pelas nações do centro, p< ;las periféricas explo­
radas por aquelas e pelas da semi-periferia, que atuam de,maneira
inte:rmediária Xçomo exploradas pelo centro te exploradoras dá pe­
riferia).* Wállerstein pretende também aplicar esse mesmo esquema
T. ternário à estrutura de classes, e contrapõe, à estrutura binária típi­
ca <ia luta de çlasses, oul ira ternária, com um plano social iriterme-
diái io, que cumpre os ob jetiyos de estabilizaçl io. E o qué é mais: nos
' assegura que as classes dominantes tratam sempre de manter uma
estr utufa em três estrato: 3, que garante a estabi ilidade, enquanto que ,
as exploradas tentam for çar a polarização em duas, para chegar ao
enfi -ehtamento e à ruptiiraA tudo isso acresci snta-se recentemente
um terceiro mecanismo:;a recuperação das on>das dé Kondratieff,fa­
ses cíclicas de meio século de duração, que irüun se alternando des-
de o século XIV, provocíindo sucessivas ascensões e descensos na
pop'ulação, nos preços,n:a produção, na expan são do "sistema mun­
dial" e na "estrutura social da acumulação". Com todos esses ele­
mentos o estruturalismo wallersteiniano apro; úma-se cada vez mais
de uma morfologia. Há q ue dizer, em seu favor, que a operação de
encl her os esquemas com . dados se fez neste cí iso de maneira muito
mais ampla e rigorosa qme em qualquer um dos citados anterior­
mente - de modo que, no pior dos casos, os iivi -os de Wállerstein são
útei s como guias bibliog;ráficos - porém, esse; acréscimo é, como

* A Interpretação de Wall1erstein é muito mais complexa que isso e inclui


tuna elucubração sobre 0'S "sistemas mundiais" (impérios mundiais e eco­
nomias mundiais) c das sinas características, com a qual se pretende expli­
c a r as razões do surgimei ito e triunfo do capitalis mo, cujo segredo resldl-
r ia em haver organizado ; i divisão do trabalho em escala mundial, sem ter
dle pagar os custos burocráticos de um sistema político unificado, etc. A
verdade é que qualquer tcntativa.de explicar ainda que seja só o vocabulá­
rio básico - o jargão - de'Wállerstein requereria vá rias páginas deste livro,
e spaço totalmente desproporcional com a importância real da invenção.
.„ . 1
sempre no íistruturalismo, passivo, sem nenhuma contribuição pes-'
soai: o coiitaitdcom a realidade está sempre mediatizada pelo;traba­
lho de outros investigadores, cuj os resultados se encaixam no es­ i
.'•as
quema teóri co pré-iabricado. P o r muitas razões o lugar de Wallers-
tein não deveria estar num capítulo sobre o marxismo - nem que
seja uín marxismo degradador.nias sim próximo-da social bistory
ou do edeti cismo acadêmico da escola dos Annales.'* . .

" :

* i
■-y% f
|■. I r*
■h
>; •
.cápitulo_13_.

o marxismo no
século XX.
II: desenvolvimento
e renovação
,7 - ■
(• ,
V ^on tra o que piretendem certas interpretações simplistas,
susitcntar-se-á aqui a tese de que a renovação do marxismo não é-
algo que se inicia num p íomento - no fim da segunda guerra mun­
dial, por ocasião dá mortie de Stalih.etc.-, depois de um longo perío­
do 'de fossilização, mas sím que as tendências que haviam de enri­
quecer è de empobrecer, réspectivamente,o marxismo coexistiram
nele desde a morte de Ei ágeis. O terreno da história permite perce­
ber perfeitamente esse É ito.
As duas primeiras obras que abrem perspectivas de renova­
ção na historiografia msirxista aparecem muito cedo, concebidas
pouico depois da morte cie Engels.As duas são de certa maneira atí­
picas - a primeira por te r sido pensada mais como investigação de
economia que de históriia; a segunda por conceber-se nas frontei­
ras <do materialismo histórico porém, deve-se falar aqui das duas,
peb is consequências que terão. A primeira é O desenvolvim ento
do i:apitalism o na R ússia, déLênin (1870-1923), escrita'no dester­
ro d a Sibéria e publicada em 1899, como um argumento para a luta
polí tica contra o popuiis mo.Ainda que não seja exatamente um li­
vro de história, o modo com o Lênin analisava os processos,-como
a de sintegração do camp esinato tradicional ou a formação do mer­
cado nacional, serviram de lição para os historiadores marxistas
positeriores,1
A segunda pertence ao socialista francês Jean Jaurès (1859-
191-4), professor de fUosioffa e bom conhecedor do pensamento,
aleinão, que chegaria áo socialismo moderado a partir do republi­
cam smo burguês. Enfrenitaria os grupos mais radicais e manteria-
capitulo 13

uma postura ambígua diante do pensamento marxista, ainda que.


isso deva e:ntendef-se antes de tudo çomo um distanciamento
com relação aos presumidos he:rdeiros de Marx, com os quais te­
ria de conviver. Em 1894, Jaurès pronunciou em Paris, diante do
Grupo de e studantes coletivistas, uma conferência sobre Idealis­
mo e m aterialism o na concepção. da história, onde manifesta
uma atitude eclética, admitindo que as forças econômicas são o
motor da onudahça histórica, po rém que a direção em que se efe­
tua essa mu dança vem determin; ida pela aspiração permanente do
homem à justiça, que é o que explica que exista um progresso, de
modo que não podem reduzir-st: a mero crescimento econômico.
O argumento é trivial,, porém não se entende se não-se leva em
conta, ao m.esmo tempo, a resposta "ortodoxa" que lhe daria Paul
Lafargue, nuuna réplica pronunciada, em janeiro de 1895, e que > .
cairia no ec onomicismo mais ek mentar, ao fazer afirmações como
esta, de claro sabor reformista: "Somos comunistas porque esta­
mos convencidos de que ás forç;ãs econômicas da produção capi-
talista levaim íatalmente a socied ade para o comunismo", e dar por
suposto qu e bastaria a naciontilização dos meios de produção,
para que "a paz e a felicidade vo item a florescer na terra". Quando
do terreno da teoria passamos a o da prática historiogrãfica, a His­
tória socialista da revolução Jra n cesa , de Jaurès, apresenta-se a
nós como uima obra excepcional, que analisa o pano de fundo eco1
nômico e o> relaciona com os etiffentamentos Üe classe com uma
sagacidade que não se encontrará, em muitos anos, na historiogra­
fia marxistEi mais ortodoxa,’ '
Porém, á melhor forma dt: entender o que significava a con­
tribuição d e Jaurès é examinara sua influência. Discípulo seu e par­
ticipante d e posturas de uma ambiguidade semelhante ao do mes­
tre será Em est Labrousse. Só que:', quando olhamos a sua obra de in­
vestigador i dém das propostas so bre uma espécie de terceira via, en­
tre a "história materialista" e a "id calista", as coisas se aclaram. Na sua
Esquisse diu m ouvem ent des p rix et des revenus en France au
XVUJe sièafe (1933), partiu do e studo dos preços e dos lucros com
' o objetivo ide investigar "a histó ria da condição das pessoas no sé­
culo XVm, na medida em que esta depende do movimento do salá-,
rio e da renda".As suas conclusões ilustram a forma na qual se pro-
/ ' v , •* »
duz o enriquecimento de alguns; setores sociais à custa da paupen- -
zação de oiutros, e ho que se nu trem as tensões que conduziram à

234
o imandsmo no século XX. H: desenvolvimento e renovação

eclosão da Revolução francesa.*^ obra de Labrousse não sóserviu


paira iluminar a gênese <la Revolução, como Uimbém trouxç um com
juníto de instrumentos co m os quais os historiadores puderam pas­
sar do estudo dos dado s básicçs da economiia - produção e preços
- a ò das repercussões q[ue a sua flutuação te:m nas diversas classes
quie integram a sociedade. Não haverá que es tranhar, por conseguin­
te, quê Labrousse tènha influído em Pierre Vi lar, situado já inequivo­
camente dentro do território do.marxismo; e que, por esse cami-
nhio, a corrente iniciada, pór Jaurès, herdeira da tradição do socialis­
m o francês, tenha acabado retomando ao leiito do materialismo his-
tótrico.3
* Depois da primei Ira guerra mundial, a t esistência à desnatura­
lização "economicista" ie "cientificista" do marxismo, que se estava
produzindo tanto na social-democracia alemã íçomo na Rússia sovié­
tica, ainda que-de man eira distinta, inspirai l ó trabalho inicial do
Instituto de Investigaçíio Social de Frankfurt, fundado em 1923,
co mo um centro para ii investigação marxista (embora, posterior­
mente, e nas mãos de H orkheimer, derivou para os terrenos da cha­
mada "sociologia criticai", mais acadêmicos e nada comprometidos
politicamente), assim com o a obra de três pensadores marxistas:
Georg I.ukáes (1885-1971), Karl Kòrsh (1886-1961) e Antonio
Gamsci (1891-1937).As posturas dos dóis primeiros foram conheci­
da*; logo cedo, com a publicação, em 1923, da História e consciên­
cia'. de classe, de Lukács, e do M arxism o e flhysofia, de Kòrsch.A de
Grumsci, em troca, não seria conhecida senão muito mais tarde,
coimo teremos ocasião d.e ver.Lukács explicou assim o seu trabalho:
"Nos anos vinte, Korsclti, Gramsci e eu tratamos, cada um a seu

j * "O esboço do movimei íto dos lucros no século! XYEH apresenta-se em seu •
conjunto com as seguintes características: alta dc longa duração do salário,
acumulação da renda num setor da sociedade, com maior intensidade no
feudal,porém também e m mãos dos outros prop ríctários vendedores, pau-
perização da massa da n ação (...) A grande aristoi irada proprietária (.:.) sa­
boreia as suas últimas h<oras ignorante c aptazívi :1. Muito próximo, dela, os
proprietários burgueses e uma pequena parte do >sproprietários campone- •
ses beneficiam-se, ainda •que em menor medida, d a mesma corrente. Porém
uma corrente oposta dis tancia cada dia mais des: ias margens afortunadas à
massa dos cultivadores, Í1 massa dos trabalhadore: s.Tormentas cíclicas, cada
vez mais violentas, os assaltam. É por.ocasiãó dc uina delas, quando o mo­
vimento de longa duração dos preços dos cereais alcança o seu máximo
(...);quando eclode a revolução" (E. Labrousse,Flutuaciones económicas.
e bistoiia social,Tecnos .Madrid, 1 9 6 2 ,pp. 318-3 19).

•' . 235
capítulo 13

modo, dc enfi :entarmos p problema da necessidade social e da inter­


pretação mec :anicista, que era a heirança da Segunda Iritêrriacional.
Herdamos esse problema, porém,, nenhum de nós - nem sequer
Gramsci, que era talvez o melhor d<e todos - o resolveu". Porém a ver­
dade é que o> seu combate contrai a fossilização marxista.acabaria
exercendo um a forte, ainda què tardia, influência. Desse ponto de
partida, Lukács derivaria, em boa medida.por causa da sua infortu1
nada e compllexa história política, a ocupar-se de questões mais es­
tritamente filosóficas e culturais. Desvinculado de toda militância,
Korsch manteria a luta contra Kau tsky em O m aterialism o históri­
co (1929), tentaria uma lúcida rev alorização da vertente revolucio­
nária do pen samento de Maix, nc» seu Kart M an- (1938), e contf
.miaria delineando os pressupostos de um marxismo revolucioná­
rio, em escrit os como Por que so u m arxista (1935)- A mortc sür-
preendêu-o t rabalfiando numa temtativa de atualização def pensa­
mento marxista, pelo duplo eaminiho da sua extensão do âmbito eu-,
ropeu ao mundial e da necessidade de adaptado às mudanças Ocor­
ridas ria sociedade capitalista e ao' avanço das ciências. "O seu texto
inacabado, M anusalto de aboliçO es,.é uma tentativa de-desenvol­
ver uma teoria marxista do desen volvimento histórico, em termos
da abolição iútura das divisões que constituem nossa sociedade -
tais como a d ivisão entre classes di stintas, èntre campo e cidade, en­
tre trabalho físico e intelectual".4 r
-- Antoniio Gramsci, dirigente do partido comunista italiano, foi
encarcerado, em 1925, pelo regime fascista e viu confirmada a sua
sentença, em 1928, devido a instâncias de um fiscal que desejava "im­
pedir que esse cérebro funcione durante os próximos vinte anos".
Porém se a pirisio acelerou a sua morte, que se deu em 1937, não só
não ò impediu de pensar, como também estimulou a reflexão que
havia de cristalizar-se nos seus C adernos do cárcere, publicados pos­
tumamente, cie 1948 a 1951.0 po nto de partida das suas reflexões
é a recusa do economicismo, do rmecanicismo vulgar que busca uma
explicação in íediata de todos os fat os políticos e ideológicos eni cau­
sas econômk :as. Gramsci assinala ;a necessidade de distinguir entre
aquelas modificações econômicas que afetam profundamente a es­
trutura mesma, que são "relativam ente permanentes" e que têm re­
percussões sc >bre ps interesses de c :lasses sociais inteiras, e as que são
simples variações ocasionais (conjunturais), que não modificam a es­
trutura de maneira decisiva e não afetam mais que aos interesses de
pequenos grupos da sociedade. O determinismo'postulado pelo

236
o marxismo no século XX. II:-desenvolvimento e renovação

marxismo refere-se às vairiaçõeS "orgânicas", duradouras e profundas


quejêm conseqüências importantes para a luta de classes, e não àí
raziães econômicas imed iatas e conjunturais daluta de grupos ou dt
ind ivíduos, cujo estudo cai dentro do terreno da história política tra
diciional. Só a respeito das primeiras pode ter sentido a afirmação de
Maj-x, segundo a:qual, ósí homens tomam.consciência dos conflitoí
que: se manifestam nà esitrütura econômica no plano da ideologia.
Essa estrutura não é, para Gramsci, um simples conceito es
peculativOj mas algo concreto e reaí, 'qúe pode análisar-se com o;
méi todos das ciências na turais. Só que b seu estudo não pode fazer -
see;m separado, já que "ai estrutura e as superestruturas formam urm
bloicò histórico, isto é: o iconjunto complexo, contraditório é discor •
dan te das superestrutura is é ò reflexo do conjunto das relações s a ­
ciais de produção". Sabe, além disso, que a evolução de .uma socié- ^
dad enão é uniforme: "A vida não se desenvolve homogeneamente;
des-envolve-se por avanços parciais, de ponta; desenvolve-se, por ás- ■
'sim dizer, de forma pirai ntdal', Sé o conjunto dais relações sociais
é contraditório; 6 sérá também à consciência dos homens, e essa
con tradição "manifesta-se na totalidade do còipo social, com a exis­
tência de consciências Históricas de grupo (com a existência de es­
tratificações correspondentes a diversas fases dp desenvolvimento
hist óricp da civilização e com a antítese entre os grupos que corres­
pondem a um mesmo nível histórico), e manifesta-se nos indivíduos
isolados, como reflexo d!essa desagregação vertical e horizontal'.
Esse mesmo sentido da complexidade da evolução social, que subs-
tituii a linearidade elementar de tantas proposições marxistas esco-
lásti cas, o leva a dizer: "A realidade é rica nas combinações maises;
tran has, e é o teórico qut :m está obrigado a buscar a prova decisiva
da s ua teoria nessa mesma estranheza, a traduzir em linguagem teó­
rica os elementos da vida. histórica, e não vice-versa, a realidade que
tem de apresentar-se segundo o esquema abstrato",**I

* Gramsci deu uma das su as melhores definições da história, na carta escrita


Eio seu filho DéliOj pouco antes de morrer. Nela cie lhe dirá: 'Queridíssimo
I iéiio: Sinto-me um poucc i cansado e não posso escrever muito.Tb escreve­
nte seraprc e de tudo o. que te interessa na escola. Eu créio que a história te
1 1grada, como me agradava. quando eu tinha a tua idade,porque ocupa-sc dos
f íomens vivos, c tudo o qu ie se refere aos homens, ao maior número possível
c ie homens, a todos os hoi nens do muiido enquanto se unem entre si em so-
c dedade c trabalham, lutan a e se melhoram a si mesmos, não pode deixar de
a.gradar mais qüe qualquer outra coisa. Porém, é assim? Abraço-te.António"
( A. Gramsci, Lettere dal cc ireere, Einaudi,Turim, 1968, p. 895).

237
capítulo 13

Uma das contribuições m ais interessantes de Gramsci é a sua


reflexão so bre os mecanismos p elos quais uma classe pode exercer
a dominaçãio sobre as outras, estabelecendo a suã hegemonia não só
pela coerção, como também m e diante o consenso, transformando a. '
sua ideolojpa de grupo num conjunto de verdades que se supõem
válidas para todos e que as classes subalternas aceitaram. Isso até
que chegue o momento em que, tendo mudado as condições, a he­
gemonia trinca-se, as classes subalternas adquirem consciência dos
seus interesses particulares e d is contradições que,as opõem aos
grupos que: dominam o aparato de Estado, e formulam novos prin­
cípios que permitirão avançar aité uma nova etapa de crescimento,
com outra situação de hegemonia c novas relações de.produção._A
fim de esta belecer um programai de análise para a investigação, des­
ses procès; sos, empenham-se aig punas das páginas mais interessan­
tes dos cadernos grarnscianos.’ -■ _■ > .
A influência do pensamento de Gramsci foi dêcisiva para o
aparecimento e desenvolviment o na Itália, ao término da segunda
guerra mundial, de algumas con entes dè historiografia marxista vi-
" vas e abertas, nada dogmáticas, q[ue contrastam com a vacuidade do
marxismo escolástico. Reexamin ando os temas em que se havia dei­
xado melhor sentir a lição de G ramsci, Renato Zangheri assinala o
esforço'por "repensar criticamentc a formação da sociedade moder­
na g do Estado unitário", o que se manifestou numa fecunda recon­
sideração dias relações entre o morte e o sul, e conduziu ao estudo :
do Risorgii jiento com uma nova ótica ou a analisar as bases do fas­
cismo. A inJ flucncia, porem, vai muito mais além do estritamente te­
mático; da iexperiência desses anos de pós-guerra .

sai consolidada a idéia granisfciana da História com o insmunentó


de an á l i s e e de com preensüo do presente, com o instrumento da
construção de uma prospectiva para as forças que atuam no pré­
sent«: a favor de uma transformação socialista. Assim a crítica do
passado converte-se numa s uperação do passado. Não é a contem-
poraineidade crociana, tautológica, da história, nem uma unidade
dogmática do pensamento e do Inzer que sempre subordinou o
pens ar, à maneira staiinista, ao fazer cotidiano. Um grande empe­
nho revolucionário requer u m grande arejamento histórico e cul­
tural:: riutre-se dele, tira d de o rigor e a perspectiva.6

As E Estórias do pensamento marxista costumam contentar-


se, aõ faiar do período entre 19Î10 e 1939, em dar por suposto que
na União Soviética tudo ficou aíifixiado pelo dogmatismo staiinista

238
o marxismo no século XIS. II: desenvolvimento e reqpvaçao

c que no Ocidente não houve grande coisa ináis que aquilo de quê
fel amos: a escola de Fraj ikfurt, Lukács, Korschi e Gramsci.Tal atitude,
quie deriva de uma in justificada identificarão entre pensamento
m;indsta e filosofia (no sentido mais especializado e acadêmico do
teirmo), chega a ser taci onalizada por Perryájiderson, que assegura
qu e a burocracia dos partidos comunistas reservou-se o direito de.
- opinar sobre os grande s problemas político: 3 e econômicos, e que
iss o explica porque o m larxismo "ocidental" a bandonou nesses anos
tai s problemas, para coi ncentrar-se na filbsofi a. Essa interpretação c
inadimissível. Não se pode, na União Soviétiea, reduzir o panorama
ao dogmatismo dos catecismos teóricos e ao oportunismo das his-
tónas dá revolução e do >partido. De outro modo não há maneira de
explicar .obras, de tan ta valiá, como as . die Victor Dalin, Boris
Pórshnev, Lublinskaya ou Ado, para ditar alguns exemplos. E, pelo
' que se refere ao marxis mó chamado "ocideh tal", é impossível fazer
a s;ua história omitindo a. referência a economistas de tanto valor,
com o Michat Kaleçki (1899-1976), Oskar1 Lange (Í904-1965),
Maiurice Dobb (1900-1'976) e Joan Robinson, ou a historiadores
coimo Gordon Childe,7
Vere Gordon Chillde (1892-1957) tratom de pôr sentido núma
arqueologia reduzida a um positivismo vergo nhoso. Diz-se dele que
"pode considerar-se coimo o primeiro arqueólogo que empregou
■ comjuntamente uma me todologia explícita e uma teoria histórica e
Social claramente definida!', e ele mesmo reconheceria, pòuco antes
da sua morte, que a sua maior contribuição ti arqueologia não resi­
dia nos dados novos ou nos esquemas cronol ógicos que tivesse, po­
dido trazei; ''mas sim-solbretudo nos-conceitcis intepretativos e mé-,
todos dé explicação". Cl tilde propôs uma imagem global do desen-
!. ■ - volvimento da humanidade primitiva^ considerado como uma as­
censão até a revolução neolítica, um estágio que via como "muito
diferente em cada caso",, porém, com alguns t raços comuns: "em to­
das; as partes significou a aglomeração de gr andes populações em
cidades; a diferenciação no seio destas de produtores primários
(pescadores, agricultores etc.), artesãos especialistas com plena
det iicação, mercadores, f uncionártos, sacerdot es e governantes; uma
' concentração efetiva de poder econômico e jpolítico; o uso de sím-
bol os convencicfnais (a e scrita) para registrar e transmitir a informa- ~
rí> çãc» e igualmente de padlrões convencionais cie pesos e medidas de
ten ípo e espaço que con duziram à ciência ma temática". Deu-nos, as-
i " . sinn, uma imagem rica e sugestiva da forma ma qual produziu-se a

‘ . - - 239 ‘
capítulo 13

passagem da jpré-história à história, a ascensão da barbar ie à civilizar


ção, no maree 3 geográfico do Oriente próximo e da Em topa. livros
como M an r. nakes him self (1936) e What hàppened in bistory
(1942) tiveram uma influência universal écdntribmfar trpaia esta­
belecer uma determinada visão da história humana, d e ; tcordo com
o marxismo tradicional. Só que nos últimos anos da su a vida, Chil-
de, que havia rompido com a visão dogmática da pré-hi stória sovié­
tica, orientou-se na direção c(ue estavam tomando aquéít ;s que dese­
javam a renovação do marxismo e reviu as suas concepç :ões de pro­
gresso’' num ; sentido que é necessário levarem cpnta p ara ter uma.
imagem cahall do scú pensamento.“ \
Um dos fatosqúe mais ajudou a combater o dogmatismo es­
colástico foi ai publicação de novos textos de Marx, e enn especial a
dos seus rascunhos dos anos de 1857-58 - Linhas fu n d a m entais da
crítica da econom ia política, ou Gru?id>isse -, que apare teeram pela
primeira vez tem Moscou em 1939-40, porém, permaneceram pirati-
camente igno rados até a edição bèrlinense dé 1953 Foi; sobretudo a
publicação, em 1964, do fragmento dedicado às fomiaçõi es econômi­
cas pré-capita listas, com uma aguda e provocativa introdi tção de Eric
Hobsbàwm - cpie chegava a afirmar que "a teoria do mate. rialismo his­
tórico requer unicamente a existência de uma sucessão d ie modos de*

* Criticandop a afirmação de Banaclough, de que a bolha do progresso ha­


via estouradlo, Chüde dirá: "Porém a bolha que estourou é me ramente uma
concepção superficial do progresso, subjetiva e apriorística. H o "progres­
so" visto coimo uma simples aproximação linear de um objet ivo preconce­
bido e predeterminado, a um "bem" que constitui uipa nori mTabsoluta, à
luz'da qual devem julgar-se os acontecimentos históricos. 1Segei e Bmy,
Wells c alguns marxistas usaram a história para documentar íiina firme,
aproximaçã ó a tal objetivo preconcebido. Esse objetivo mo strava-se-lhes,:
se não à visita, pelo menos a um fácil alcance da sua imagina^ pão - a monar­
quia constit ucional. a democracia plutocrática, o estado de be :m-estar, o sta-
linismo. O próprio Marx escapou a esse prejuízo, não tanto jpor ter deixa­
do muito abstrato e atenuado o conteúdo do' "comunismo", como por ter
afirmado pinídentemente que a sua consecução marcaria o fim, não da
história, ma s sim "do estágio pré-histórico da sociedade hui mana", Foram
concepções: dessa índole as que estouraram em 1946 c 195 6, e com elas
deveria dêscerrar-sé a idéia mesma da história como um proci :55o predeter­
minado que: conduz inevitavelmente a.um fim já fixado.A tarefado histo­
riador não í lonsiste em imaginar um valor absoluto e chamar "progresso" à
aproximaçã o aó mesmo, mas sim, melhor, em descobrir na hi istõria valores
aos que o p processo está sé aproximando" ("The Past, the Po eserit and the
.. Future", in Past andpresent, n° 10, novembro de 1956,p. 4);.
o nu irxismo no século XX. II: desenvolvimento e rènovação

-: pro< iução, porém, hão que hajam de ser um 014 outro em particular,
nem talvez tampouco, predeterminados nã orrlèm de sucessão" - ò
que conduziu a iniciar uma série de fecundas c liscussões, que foram
muilro mais além de livrar ò marxismo dõ cint o de ferro dós cinco
modlos de produção. Aplicam-se,nesse contexto,fetos como a reto­
mada do dcbatnsobre o modo de produção aj;iático, ao qual já-nos
refei imos anteriormente, a proposta de fimdatn entar uma antropolo­
gia r aarxista ou a discussão sobre o conceito de: "formado "econômi­
c o * jcial", com o propósito de recuperar uma <rategoria teórica qué
liberasse o materialismo histórico da sua dependência desses mode­
los abstratos que representam os modos de produção.9
Entretanto, um dos efeitos mais estimulantes da publicação
dos >Grundiisse foi ò de-colocar os marxistas ãínte um pensamento
em- jpleho .fezer-se, não cristalizado, com dúvidas e contradições,
ondí* os termos são empregados-em certas ocasiões coiq impreci­
s ã o .^ que se tinha convertido nurnarevelaçãa> indiscutível, voltava
a ser agora, como quis Marx, num método para investigar o passado
- e o pirésenté, onde nada estava resolvido' de antemão pela mera ope­
ração da teoria, e nenhum resultado era definiiJvo. Os efeitos dessa
libertação do dogma estenderam-se também à investigação que se
realizava naqueles países que tinham 0 marxismo como ideologia
ofieii ai do Estado, como pode ver-se no caso de alguns historiadores
sovit íticos, ou na forma em que, por exemplo, í;e produzia a investi-
gaçã'0 em tomo das revoluções burguesas na República Democráti-
ca Alemã.10 ■ -
Desde 1945, os grandes avanços metod ológicos no terreno
da hiistória marxista surgem em tomo dos det iates coletivos sobre
temas fundamentais, muitp m^is que como eonseqiiência da çlabo-
ração abstrata de alguns princípios, são um re sultado da investiga­
ção Jiistórica concretá e não da especulação f ilosófiça. O mais im­
portante desses debates é, seguramente, o que se refere ao trânsito
do feudalismo ao capitalismo, recolocado, em 1946, por Maurice
Dobb, nos seus Estudos sobre o desenvolvim ento do capitalismo.
Dobb justificava a süa incursão nesse terreno pela sua crença de
. que a "analise econômica só tem sentido, e só pode fender frutos,
se va i unida a um estudo dó desenvolvimento 1 íistórico'’: era heces-
.. sário estudar as origens do capitalismo para compreender melhor a
"V, sua natureza ieaLe poder atuar sobre ele. Combatia a interpretação
habit uai que via o feudalismo como um sisténui de economia nátu-
, ral, fc :chado e estável, que se trincava como co nsequencia do .cres-
capítulo 13

cimento do comércio e da ascensão paralela da burguesia. Rechaça­


va algumas dlefinições de feudalismo e capitalismo baseadas na es­
fera da circul (ação - economia natural contra economia monetária -,'
para propor outras, baseadas nas relações de produção., que contra-,
punha um sistema caracterizado por um campesinato1dependente
a òutro com predomínio do trabalho assalariado. Passa va-se, assim,
de uma concepção fundada no crescimento’das força; 3 produtivas
para outra,que colocava o acento na luta de classes é considerava
que o motor fundamental tinha sido a pugna dos campiohesés con­
tra a exploração feudal, que havia tornado inviável ó sistema. O es­
tímulo proporcionado por essas idéias - e pela interess;ante discus­
são entre Dolbb e Sweezy.com intervenção de Hilton.Takahashi etc.
- abriu novos campos de investigação. Em 1954, Eric- Hobsbawm
abordava o t« :ma da "crise geral do século XVII". O que s;e tratava, na
verdade, era <de se averiguar o seguinte: "Por que a expa nsão de fins
do século XV e dõ século XVI nãoconduziu diretamente à época da
revolução industrial dos séculos XVm e XIX? Quais fo ram, em ou­
tras palavras, os obstáculos no caminho da expansão capitalista?" A
sua resposta era que tais obstáculos haviam surgido da flexão da de­
manda, causa ida, por sua vez, por resistências no marco da socieda­
de feudal. Só que, ao favorecer a concentração d op od er econômi­
co, a própria crise ajudou a criar as condições que liquid lariam o feu­
dalismo em ídguns lugares, através do processo de uma revolução
burguesa. O tema foi amplamente debatido e levou a um acordo
quase unânime sobre a existência dessa crise geral da economia eu­
ropéia do seiscentos - que algumas elucubrações recent es quiseram
estender a urn âmbito mundial, o que lhe tiraria todo o sentido "so­
cial" e obriga ria a relacioná-la com feitores climáticos - e 1da sua trans- -
cendência p;ira explicar a lentidão com que o capitalismo nasceu
no seio de uin feudalismo em decomposição.11
Em 1Ç165, entretanto, a historiadora russa A. D. Lublinskaya
submetia a uma severa crítica o conjunto de evidência;s em que se
apoiava a hipótese da crise geral - crítica a que se somaria, de ma­
neira marcarite e com menos matizes, a do dinamarquês Niels
Steensgaard ■e, sobretudo, a concepção mesma de que tivessem
sido alguns " obstáculos" o que havia impedido uma e closão mais
cedo do capitalismo desenvolvido. O que havia que lã: ter erà estu­
dar a socicda.de do absolutismo, tratar de compreender a natureza
das relações d e classe que se estabelecem nela e as regras econômi­
cas peculiares do seu funcionamento. A era do absollutismq não

242
o ma rxismo no século XX. D: desenvolvimento e renovação -.. __
■ ' . .................. ' 1 -r ■' i ... —----- . . ' ...... ‘ ' ' * r .

deve: ser vista como o cenário da luta entre duas formações sociais
pura s, feudalismo e capita dismó, mas sim como uma etapa cofn ca­
racterísticas próprias, no curso dá qual, ao mesmò.tempo ein que o
capitalismo cresce n o'seio da velha sociedade, produzem-sé uns
conflitos sociais quê alimicntam a formação de. algumas consciên­
cias d e classe é preparam o terreno para o triunfo dá nová socieda­
de. "A revolução burguesa e o grau de maturidade de classe próprio
dela não surgem db nada: vêm-se preparando durante séculos".13
O debate estendeu-se também à crise do scçulò XIY às. con­
sequências dela (transfon nação do feudalismo no Ocidente euro­
peu, reféudalização. do Le!3te) 'e à expansão de fins do século XV e
com< ;ços do século -XVI. A. historiografia acadêmica" - Postan, Le Roy
Ladurie etc. - útUizava expilicáções malthusianas triviais -.cresdinen-'
. to da população, esgotamt :ntd dos,tedursos, peste etCr-,ou aplicava
recei tas do manual rieo-cLássico de economia - Miskimin, Abel -, es-
pecu laudo,com a evolução dos preços e os movimentos da procu­
ra e tia oferta. O mesmo ei;quema,por conta da demanda crescente
da Europa ocidental, pretiendía explicar a reféudalização do teste
com o uma simples conseq üência dc uma maior comercialização do
trigo exportado pelo Báltico. Os-que primeiro-se opuseram a esses
. esquemas de um economicismo vulgar foram seguramente os histo­
riado res checos - Graus, Kalivoda, Macek. -, a quem a .complexa
experiência da revolução hussita ensinou a colocar a questão em
termos dc "primeira crise do feudalismo". Porém os seus trabalhos ~
não foram divulgados sufle :icntemente, e o tópico malthusiano con­
tinua em plena vigência. Em 1976, Guy Bois limita-se a modificá-lo
dando um papel predominante à produtividade - no lugar do volu­
me d<; produção - e preteri de "socializar1! o esquema, introduzindo a
"taxa de desvio" do produ to camponês por parte da classe feudal.
Numa fase de expansão ammeiita a população, também o 'produto,
abaixa a produtividade, aui nenta o volume de desvio, porém abaixa
a suá taxa; quando a produitividade chega a um ponto ião baixo que
não p ermite a reprodução simples' inicia-se uma fase de contração
e o se ntido de todos esies í ridices se Inverte. Mais interessante é um
artigo deRobert Brenner,publicado no mesmo ano,sobre a.estrutu-
- ra da iclasse agrária e o desc :riVòlvimento econômico na Europa pre-
." indusurial, onde se propõe uma reinterpretação de tódo o processo,
incluindo as duas crises do s séculos XTV e XVn,a reféudalização da
Eürop a oriental e os distin tos ritmos de avanço ao capitalismo em
divers os países CFrança e Inglaterra), situando num lugar central a

243
gS

capítulo 13

estrutura de classes e filtrando através.dela os fatores; "objetivos" 01


(demográficos, comerciais etc.).Têm sido muitas as'críti cas dirigidas
a Brermer, e r ião poucas são plenamente justificáveis, pc irem não há >1
-i
dúvida de qu e o seu enfoque conduzltriáis além que o d d circulacio-
. nismo vulgar de Gundcr Frank e Walíerstein, com a'sua s luperestima-
ção do papel do comércio exterior, em épocas em que - só uma pe­
quena fiação do produto das economias implicadas co rria por seu
leito. Porque,, como disse Marx, "a verdadeira ciência d a economia,
política comteça ali onde o estudo teórico se desloca <lp processo "j
de circulação* ao processo de produção".Tem sido uma lástinia que
os historiado res que participaram desses debates não tt ;nham reco­
lhido as sugestões que, a partir de uma perspectiva ne< >ricardiana, -J-;S
fez E J. Néll, e m 19ó7, não só pelo que pudesse tér de úl il a sua pro­ M
posta de um modelo interpretatiyõ dás relações entre campo e ci­ .1
dade _no processo da crise dò feudalismo, como també ;m por suas
valiosas prop ostas metodológicas que poderiam tér evi tado a reite­ 1
ração de expllicações lineares triviais de causa-efeito.13. <f
A Grã-1Bretanha teve"depois da segunda guerra m undial, uma
valiosa historiografia marxista^ na qual se há de apom ar, além do
nome já citado de Gordon Childe, os de Christopher Hill, Rodney
Hilton ou Eri<c J. Hobsbawm. Em todos eles coincide o c aráter aber­
to da sua obra, um certo desinteresse pelo econômico - Hobsbawm
dirá que "o interesse dos historiadores marxistas está naais na rela­ V'
ção entre bas e e superestrutura que nas leik econômica is do desen­
volvimento da base" - e uma preocupação pelo rigor cie ntífico, agu­
dizada pela coação de que foram objeto desde os anos d;aguerra fiia-
- quando, na j aalavras do próprio Hobsbawm, tinham a : sensação de
que "estãòte vigiando e procuram te surpreender" -, q ue acabaria
transformando-se posteriormente em aberta persegúiç ão.* A crise
política de 19*50, entretanto, engendrou, ao mesmo temj jo que uma

* Um editor ial da revista History Worksbop ("H ataque", n°.4,- outono 1977,
pp. l^í) dava notícias da campanha desencadeada cm prínc ípio por uma
instituição dirigida por Brian Crozier (biógrafo de Franco e: acusado em
mais dc une i ocasião de ser um assalariado da CIA norté-amer icana) contra
os intelectu ais "marxistas radicais" e. o seti trabalho no ensin o superior. O ■V
ataque foi aclamado pela imprensa "respeitável“ e secundado i por insignes ■r 'í
mediocridat ies acadêmicas, como Hexteg com violentas inve :ctivas contra
historiádore s como Christopher Hill ou Rodney Hilton, a que m se acusava
de “trair" a dlignidade do ofício, ao tomar explícitas algumas te leias políticas
contrárias às da ordem estabelecida. EIton chegou a desentér rar o cadáver
intelectual cleTawncy, sem respeito pelos serviços que este h avia prestado J

1
244
o marxismo no século XX D: desenvolvimento e renovação

"nova esquerda”, novas correntes de historio grafia mandstar Uma


' delas,o.populismq.socialista dq grupo que publica a revistaHistory,
Wor.kshop, tende á uma desmitificação do trai bailio acadêmico e à
busca de uma nova aproximação do movimento operário de um pú-
blici >popular. Outrã, sobre a cpal a figura de Riiymond Williams tem
exer eido uma poderosa influência, tem como nome mais destacado
o de: E.P. Thompson, que, com o seu The rrm king o f the éríglish
w orfeing class (1963), cpnverter-se-ia num modelo, ao mesifio
. tem] po num elemento desencadeador de mudanças para os jovens
historiadores progressistas do mundo inteiro.“1
Sem entrar aqui nos muitos traços renovadores que podem
encontrar-se ria obra de Thompson - seu esforç o por recolocar a no­
ção ■dé classe como tuna relação ou o séu inte resse pelos mecanis­
mos de formação de Uma consciência coletiva, em que.se reflete â
influ ência de Gramscí, transmitida em parte p o r Raymond Williams
' 1 - bá que sc assinalar, sobretudo, a recusa de uno inarxismo entendi­
do com o "um cotpo auto-suficiente dé dóutrim completa, interna^
men té consistente e plenamérite realizado num conjunto de textos
escriitos11, onde a citação acaba substituindo a smálise da realidade.
M iséria da teoria leva mais adiante ahuda essa colocação. O
ponto de partida e o fio condutor do livro é urna crítica minuciosa
e de vastadora deAlthusser e de algumas formas d ef estruturalismo
. mandsta" aparentadas com ele, que se faz exitensiva ao idealismo
anti-icomunista- dé Popper e ao' dogmatismio staliriista. Porém
Thompson nlo se limita à crítica, já que ò seu p ropósito ao desmon­
tar e ssa versão adulterada do marxismo é o de propor uma recons­
trução muito distinta. A operação inicia-se com o estudo de alguns
problemas fundamentais, como o da lógica da Ihistória, que o' leva a
defender uma concepção segundo a qual: "O discurso da demons­
tração da disciplina histórica consiste num diálogo entre ò concei­
to e o dado empírico, diálogo conduzido por liipóteses sucessivas,

em seu tempo à "boa causa", acusando-o do crim e de haver Introduzido


"í iropósitos morais e sociais" na História.Tudo isso revela a falta de alterna­
tivas de um sistema que já não dispõe nem sequfcr <JeTawneys quê possam
oferecer saídas .respeitáveis c tem dé recorrer ao triste espetáculo das ve­
lhas vestais que acusam de pòlítízaçãp aos que não compartilham das.suas
Idiéias políticas,como se os seus prestígios mal adqiuiridos,e até os seus ga­
tilhos, não dependessem da sua cega fidelidade a uim sistema que os man-
té m como cães de guarda, que se apressam a ladrai r quando creem cheirar
um perigo. . - T' ' ~ ■. "

245
capítulo 13

por um lado, t: investigação empírica, por outro" .Aomes mo tempo,


Thompson caiamina o desenvolvimento do pensamento dé Marx,
para mostrar-nos que acabou preso na penosa tarefa de formular a
crítica da ecomomia política do capitalismo - de.escrever O capital
c os G rundrlsse - e se viu obrigado a deixar descartado o projeto
mais amblciosio de construir õ materialismo histórico, cmja finalida-
' de não é a de dar conta do fuãcionamentó de uma ecomomia, mas
sim de uma sociedade inteira. E uma sociedade <■

com preende muitás atividades e relações ( de poder, d e consciên­


cia, sexuais, culturais, normativas) que não concernem à economia
política e para as quais esta não tem nem sequer o lé x ico necessá­
rio parai a sua análise.. Por conseguinte, a economia política nãó
pode m õsttar o capitalismo comp "o capital na totalidade das siiãs
v _ relaçõèí>"; não tem nem sequer a linguagem e os term os para fazê-
lo. Só u m materialismo histórico que pudesse pôr todas^as ativi­
dades e relações dentro dé uma visão coerentepodéri ia fazê-lo,

TJm ma terialismo histórico que não só deve servir para uma


melhor Investigação do passado,como também para assomaras ba­
ses de um novo socialismo.14
Por caminhos distintos, Pierre VUar formulou também essa
exigência de mma História marxis.tá que fosse uma visão global da
sociedade, tendo a economia como peça fundamental - diferente-
mente do esq[uecimento em que costumam deixá-la oí> marxistas
britânicos -, porém de modo algum como única: "A refle íão sobre a
história permite distinguir o núcleo, que reside na economia. A ela­
boração teórica, porém, deve permitir-nos voltar à realidade históri­
ca. E essa realidade nunca é o econômico 'puro'". A natureza das ela­
borações teóricas de VUar pode expllcar-se á partir da siua própria
obra de investigador. Historiador da economia, dedicado a analisar
o surgimento do capitalismo na Catalunha, iniciou a sua tarefa com
uma ótica que descartava a tentação do economicismo, já que o seu
objetivo era o de averiguar ós fundamentos que tinham, permitido
que surgisse tuna consciência nacional. Isso pode ajudaf-nos a en­
tender como ta sua obra viu-se livre do garroteainento dogmático e
tenha podido formular um programa globalizador para ;a investiga­
ção histórica. Os seus primeiros delineamentos foram expostos, em
1960, no "Crejicimento econômico e análise histórica",omde definia
, um programa para uma história total, centrado èm tom o do estudo
do crescimenito econômico. O programa inicia-se com o exame do

246
o marxismo no século XX. )!L desenvolvimento érenovação

número dos hoiíiens, da d emdgrafia; prossegue com o d a produção


de b ens, considerada com o resultado de alguns fatores e, por suá
-f- .- vez,com o causa de bem-e.star individual ou de desenvolvimento co­
letivo. O terceiro planò oolocado cm jogo é o do movimento das
- rendas(salãrio,ganho emjpresarial, juros, renda da terra etc,), averx-
guando o papel que a estrutura social e institucional desempenha
na siiia distribuição e os el eitos que os movimentos das rendas e as
suas disparidades têm "so bre a; própria economia e sobre o movi­
mento social1!..Õ quarto jplanp apresenta o balanço dos intercâm­
bios, com uma concepção que "ultrapassa em muito à do comér­
cio", para incluir capitais e rendas, migrações de força de trabalho e
técnicos etc.O quinto e último estrato, “equilíbrio social c poderio
pdîiti íco", propõe •a análise :. dos movimentos e tensões que surgem
, das contradições originadas pelo próprio crescimento^ econômico,
seján i conflitos de interess es de pequenos gnipos ou fenômenos de
maio r amplitude, de luta ide classes, e examina, em,último lugar, a
unidiide e o poderio dos gprupbs nacionatè. - : ;
r Nessa primeira formulação, os. componentes estão jã clara-
ment e estabelecidos, poré m, a forma na qual devem reunir-se resul­
ta airida imprecisa.Vilar insistiria em que essa "história tòtaTnâo de­
veria confundir-se "com uirna literatura vagá que trataria defelar de
tudo a propósito de tudo", e nos diria que feita ainda elaborar "o mo­
delo histórico eficiente, q[ue não só léva em conta o econômico, -
cómci também o psico-soc ial, as seqüelas do passado, as reações do
presente e a criação de ho mens novos a partir de realidades novas".
Ao fim, entretanto, essa reJ flexão desembocará numa proposta mais
preci sa e integrada,* em rt ilação ao, qual se estabelece uma çoncep-
ção dia investigação histórica como . < ; . ' . .

*\ como exemplo da v isão global.da. história que propõe Vilar esta defi­
ni' ção sua; "O objeto da dên cia histórica é a dinâmica das sociedades huma­
nas.A matéria histórica a 'Constituem os tipos defatos que é necessário es-
tu dar paca dominar cientific amente esse objeto. Classifiquemo-los rapidamen­
te:: 1) Os fatos de massas: i nassa dos homens (demografia), massa dos bens
r v (economia), massa dos pensamentos e das c/enças (fenômenos dc "rnentali-
da des", lentos e pesados; fei aômenos de "opinião", mais fugazes). 2) Os fatos
instituciOruiis,a\z\s superficiais, porém mais rígidos, que tendem a jlr a r as re­
lações humanas dentro dos marcos existentes: direito civil, constituições po-
líti icas, tratados intemadona iséte.; feros importantes porém não'eternos, sub­
metidos ao dcsgaste.c aõ ata que das contradições sociais internas. 3) Os acon­
tecimentos: aparição e desa parecimento de personalidades, de grupos (eco­
nómicos, políticos), que tornam mcdídas. dccisões, desencadeiam ações, m o
" - capítulo 13

õ estudo dos mecanismos que vinculam a dinâmica tias estruturas


- quer i dizer, as modificações espontâneas dos fatos sociais de mas­
sas - à sucessão dos acontecimentos - nos quais intervêm os indiví­
duos e o azar, porém corp uma eficácia que depen de sempre, a
mais o u menos longo prazo, da adequação entre cs ses impactos
descomtínuos e a s tendências dos.fatos de massas.16' -, -

Assim chegamos ao término,'até esta data, de um processo de


renovação do marxismo.- ou, mais exatamente, de recuperação do
programa global do materialismo .histórico, descaracterizado por al­
gumas deformações empobrecedòras - e poderia parece :r que alcan­
çamos, com isso, o final lógico de uma exposição sobre: a- teoria da
história, que ] partiu das origens e chega até os nossos dií is. Esse seria
o final previsí ivel para um livro de história da História act smodádo a o '
modelo habit uai de exposição, que sé ajusta às paütas do suposto de-.
senvolviment o linear e progressivo da humanidade. Ocorre, porém, -
que este livro >não foi escrito para expor um progresso, n ias sim para
ajudar a desentranhar uma crise - a de um modelo de crescimento
marxista - da quê se costuma falar hoje em termos de denúncia do
industrialismo socialista, e de fracasso dos sistemas políticos estabe- ■
lecidos na União Soviética e nos países do Leste europeu, è que tem
íl
levado a procurar- as respostas nos textos de Marx,-tratando de en­
contrar neles os fundamentos de uma nova teoria das n ecessidades
humanas, co m algumas proposições que costumam estíir lastreadas
por uma inad equada compreensão dá história* - e, conse quentemen-

vimentos de: opinião, que ocasionam "fatos precisos": modificaç ões dos gover­
nos, a diploi nada, mudanças pacíficas ou violentas,profundas o u superficiais.
A história não pode ser um simples retábulo das instituições, nem um sim­
ples relato c los acontecimentos, porém não pode desinteressar“ se desses fatos
que vinculam a vida cotidiana dos homens à dinâmica das sociedades de que
formam pan te"A esses fatos correspondem algumas técnicas e e stas "só adqui­
rem sentido dentro do marco de uma teoria globar (Picnc Vilai; iniciación al
uocabularic i dei anâlisis histórico, Critica, Barcelona, 1980, pp. 43-44).
* Em Harich , por exemplo, não é difícil perceber a incoerência dlc algumas po­
sições histói ricas que vão desde ecos dos piores mecanidsma s reformistas -
os condidoí íamêntos materiais ecológicos e econômicos que ei npurram para
a América d<s Norte õs Estados da CEE e o Jápão em direção a sc tluções comu­
nistas" (p. 1( 53) - a mostras de idealismos tão desconcertantes o omo: "Ò senti­
do da histói 1a mundial, caso tenha algum, consiste na realizaç? to progressiva
do princípio da igualdade de todos os homens" (p. 193). (Citar joes de W Ha­
rich, Comur. listno sein crescimento}, Materiales,Barcelona, 19713). Custa com­
preender com o se pretende estabelecer previsões de futuro sçibre a base de
uma visão' d o passado tão caicnte de rigor. t . . ' i,-

248
■o mai-xismo no Século XX. II: desenvolvimento e renovação

te, dpi progresso humano que acaba restringindo os fundamentos


mesn ios do projeto de futi iro que se pretende renovar O último ca­
pitule >deste livro seíá ded içado, precisamentej à necessidade de se
repensar nossas análises dd passado para que possamos, construir so­
bre ejlàs um novo projeto socialista.17 , -

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para reprojetar ò
■ • : ' - futuro
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No o final dó último capítulo ficou formulado um proble­


ma: o da discordância que existe entre algumastentativas de repro-
por um projeto de futuro socialista e a suá fundamentação numa -
visão da história;- o que equivale a uma concepção do progresso -
que corresponde em boa i medida ao capitalismo. É possível perce­
ber essa mésma discordância a partir do outro extremo dessa
mes ma relação entre o ptissado' e o futurò: considerando uma visão
da h istória que se, encont ra em crise, porque fica evidente que não
nos serve para apoiar nela algumas perspectivas de acordo com as
necessidades sociais do nosso tempo. Não defenderei isto a partir
do que se diz nos livros, porque é um problema que não chegou
até d e s com a suficiente clareza, porém, aqueles que se'dedicam,
de uma forma q u de outra, ao ensino da história, sabem-no por
experiência pessoal. Aqueles que trabalham como"nós nesse terre­
no - e que compartem, ao mesmo tempo, a preocupação pela trans-
forrr ação da saciedade er n que vivemos -* acreditamos sempre que

* Não existe educação "neutra" alguma que transmita os fatos históricos e


a sua interpretação sem passá-los pela peneira de uma concepção da so­
ei íedade que se tem por "normal", o que implica algumas determinadas
ic léias políticas. Um exem pio esclarecerá. Num texto em que sc faz o elo-
gi lo de exames, nos dá um a mostra de "objetividade" como a seguinte. Há
q uatro afirmações sobre ;is relações entre o Estado e a economia que se
, supõem feitas por um noirte-americano, um britânico, um alemão (identi-
fi>cado com as posições fi iscistas) e úm russo (identificado com as posi­
çõ es comunistas). A afim lação que sc atribui ão norte-americano é esta:
"O meu país fiai fundado : sobre o princípio da liberdade e isto inclui a li-
bi erdáde das interferências: do Estado. Nenhum governo tem direito algum
di: dizer aos seus cidadãos; o que devem fazer com as suãs propriedades".

251
, capfafl° 14

a nossa mattéria tinha unia extrat irdinária importância na educação,


tanto pela sua vontade totalizadora ( a* única com a intenção de
abranger g lóbalmente, e nas su as interações, todos os elementos
que se integram na dinâmica cie uma sociedade), como porque
pode ser, qi iando empregada adí :quadamente, como um instrumen­
to valiosíssilmo para. a formação de uma consciência crítica. Só que
começamo s a descobrir que aquilo que espetávamos que fosse
acolhido corno uma ajuda para entendei o mundo, os estudantes
mais jovem; recebem como. mais uma parte da sálmòdia acadêmi­
ca, menos interessante que a bo tânica ou a geologia, que pelo me­
nos servem para conhecer as en^as e as pedras. Isso pôs em evidên­
cia que os inossos esquemas - onde os modos de produção vieram,
a substituir as dinastias - não se ajustavam às demandas reais des­
ses jovens,*; porque não serviam como ponto de partida.de uma al­
ternativa vá ilida paraeles.1 ■ ■ •.

O que n ão nos esclarecem é se o la i norte-americano é: a) um membro da-


família Rockcfeller, b) um porto-ri queriho marginalizado de Novã Iorque ,
c) um ne;gro do gbetto de Chicag o ou d) um desses jovens califbmianos 1
que não encontraram nem encontrarão, previsivelmente, uma ocupação
remunera da CH. G, Macintosh, "Asnessment at Sixteen-plus in History", em
R. Ben Joj :ics, cd., Practical Appro, aebes to the New History, Hutchinson,
Londres, ]L973,pp. 161-165, citado da p. 169). Num jogo "objetivo"sobre a
Revoluçãi J russa, os meninos deve: m identificar-se com alguns dos grupos,
a partir d e descrições prévias do que propunham os partidos em 1917,
tão "desaj raixonadas1' como esta q ue se supõe definir os bolcheviques: "O
seu chefe é Leninc e acreditam r io mesmo programa que os mcnchevi-
ques, poriím estão muito mais Interessados em ocupar o poder através de
uma revol ução armada" (David Bir t e Jon Nichol, Games and simulations
in Historjv., Longrnah, Londres, 19~'5,p. 135).
* Nossos Jlivros de História dão conta, por exemplo, de como cresceu a,
produção industriai é ó proletariado associado a ela; porém o que não
conseguem explicar, em contrapartida, é como chegoivsc a um volume de
desemprego como o atual - tentativas como a de John A. Gaftaty, Unem-
ployment in History, Harper and 1low, Londres, 1978, não passam dè um a
mera descrição superficial. E o qu e um jovem estudante de hojé necessi­
ta que lhe expliquemos não é a gê nese da v-elha industrialização com ple­
no emprej go, mas sim a da crise qt ic em vivemos: a quebra de um sistema
que não lhes oferece já esperança alguma. Enquanto confirmarmos consi­
derando d desemprego como um acidente conjuntural, produfò das flu­
tuações cí clicas, ou como inerente à má oiganlzação da economia de mer­
cado - esq uccendo o. desemprego oculto que existe nas economias com
planificaçí ío centralizada - não esta remos em condições de pensar alterna­
tivas globítis. válidas'para algumas irorinas de organização caducas.

252
rep ensar a história para n »projetar o futuro

Acreditando que utilizávamos um a versâò "socialista" d a


cT hisi tória - isto é, uma visí íõ encaminhada a fimdamentar .ó èstabeíe -
' cüiiepto de uma sociedade socialista-o que temos feito tem sido,
sem.ter' consciência dis so, transmitir uma interpretação da evoiu-
çãci das sociedades humanas - uma concepção do progresso - qu<;
,: é, r:m essência, a que ei aboíou o capitalismo nascente. Á história
liui nana nela se explica <;omo uma ascensão ininterrupta, com doií s
grandes momentos de ruptura, què correspondem a avanços t e c -
nol ógicos que nós perm item dominara natureza: a chamada "revo -
. luçiio neolítica", com a iinvenção da agricultura, da maneira que ai
esb oçoii Gordon Childe, e a "revolução industrial", que se identifi -
ca co m a plena eclosão .do capitaliSmo.Entretantó, ein 1981, Estei:
Boscrup repete que "a história humana pode-ser considerada i
co r ao uma longa série d>e mudanças tecnológicas" é assinala como.
fun damentais: q descob: rimento do uso do fogo (há uns:350.000!
anó s), a produção de alimentos (há'uns dez mil anos), á constru­
ção de centros urbanos (há uns emeo milênios), a invenção da in-'
dústria mecanizada em grande escala ( isto é, a revolução indus­
trial) e, finalmente, a d a enegia nuclear. A conseqüência dessa
forinà de entender o passado é que projetamos para o futuro uma
evolução da mesma-índole: uma continuação da revolução indus-
- triail, na qual, oportunos milagres tecnológicos - até 1945 acredita­
mos, como continua acreditando Ester, Boserup, que a chave do
novo salto à frente resid ia na energia nuclear - permitiriam resol­
ver todos os nossos problemas. O qué caracterizava os que tinham
um<i concepção progressista da história era, fundamentalmente,
que. pensavam que o crescimento só seria possível - ou o seria
co m grandes e decisivas vantagens - etn sociedades com uma eco­
nomia planificada de maneira racional, o qüe exigia uma mudança
substancial nas condiçõe s sociais vigentes; enquanto que os defen­
sores da ordem estabelecida, baseando-se numa leitura da história
em que se via a industrialização como provedora de todo o tipo
de benefícios - para o q u e haveria de se fechar os olhos a muitas
das suas conseqüências -, pensavam que bastava, deixar trabalhar a
tecnologia, sem limitaçõies nem. controles. A primeira dessas ver­
sões ; não. fazia mais, no fü indo, que continuar uma tradição que pu­
dermos ver em Lafargue, mo reformismo da Segúnda Internacional,
. e atié em Lenine, que acircditava qüe a eletricidade era a energia
própria do socialismo.3 . , - ,_ . • .•

- 253
capítulo 14

Muitaí s coisas se frustraram ïnessapaisagem do futuro que ser­


via de legitimação a nossa história..Frustrou-se a própria tecnologia,
que resultou menos eficaz è mais custosa quê o previsto. Nem. os
desertos regados pelos grandes canais escavados.com energia atô­
mica, que prometiam-os "futurólogos" soviétivos, nem ãs "fabricas
lunares" que a Rand Corporation anunciava em 1964,e cujo funcio­
namento estava previsto para 199 0. As "fabricas lunares" são dema­
siadas caras, <ê é impensável que p udessem prodüzir algum tipo de
benefício; a energia atômica pare ce hoje mais próxima de deserti-
ficar as zonas habitadas do planeta - tanto no seu emprego militai;
como em conseqüência dos acidentes que podem derivar do seu
uso pacífico - que de regar os des« atos. E o mais grave não>é que as
esperanças dos países industrializados não se estejam cumprindo,
mas que tenliam falhado as que tínhamos sobre a melhora da situa­
ção dos que' se costumam chamar como países "em vias de desen­
volvimento", e que não está claro que não sejam, melhor, países "em
vias de regr essão". A duzentos anos de 4 riqueza das nações, a
mentira das s uas previsões de úma prosperidade universal é eviden­
te: dois séculos de industrialização não foram capazes nem de garan­
tir a uma grande parte da humanidíade o mínimo de alimentação re­
querido para a sobrevivência. O mapa que aqui se reproduz resulta­
rá mais eloqiiiente que qualquer argumento.3
O prolblema da pobreza de grandes zonas do mundo não é
novo, ainda q ue os fortes desequil íbrios pareçam ser relativamente
recentes. O q ue é novo é a nossa percepção dele, que data dos cen­
sos feitos poir volta de I960. Antes;, os antropólogos limitavam-se a
detifrar a lógica das instituições primitivas, e os economistas nãó se
ocupavam co m os níveis de vida "colonial",-entre outras razões, por­
que ninguém lhes pedia. Fatores p olíticos - o acesso à independên­
cia de muitas? dessas antigas colômias - e uma mudança de orien­
tação do pensamento econômico, que abandonou a sua dedicação
exclusiva ao equilíbrio estático, p ara ocupar-se dos problemas do
crescimento, ajudaram a tomar consciência de úma situação que as
cifras mostrain em toda a sua crueza. Segundo dados do Barico Mun­
dial, em 1977, o PNB p e r capita dos países industrializados era mais
-de quarenta v ezes o dós "países de receita baixa", o que significa que
cerca de uma terça parte da humanidade - a dos países pobres -, ob-
tém-cerca de uns três por cento do conjunto do produto mundial,

254
repen sar a história para rep: rojetar o futuro ...

»r.

"255
capítulo 14

enquanto qu e a sexta parte dos homens - os que hahitíim os países


industrializados - dispõem de mais de sessenta por centro do produ­
to total. E essas cifras têm a sua tradução cm outros indicadores far­
tamente significativos: enquanto que nos países industrializados
estão alfabet izados uns 99 pòr cento dos adultos, nos dle baixa ren­
da estão soir tente uns 36 por cento - o que quer dizer que dois dc
cada três ad ultos, aproximadamente, são analfabetos enquanto
que a esperança de vida ao nascer dos habitantes dos países ricos é
de 74 anos, a dos pobres se reduz a 50 anos, apesar da il usâo, ampla-
mente comp artida,de que a difusão dos conhecimentos médicos te­
nha equilibra ido a situação demográfica em escala .mun dial.J
Para remediar essa situação, iniciaram-se uma série de pla­
nos, Cujo obj<etivo era o.de reproduzir nos países "em vi as de desen- -
volvimento"- e a própria definição implica numa atitude diante do
problema - at; etapas de crescimento pelas quais tinham passado õs
já desenvolv idos. O fracasso da "primeira década de desenvolvi­
mento1' seria reconhecido, em 1968, pelos próprios organismos das
Nações Unid as que a tinham propiciado,e qué pretenderam corri­
gi-la com uma "segunda década". Em 1972, Mahbub ull Haq, chefe
da Comissãoi de planificação do Paquistão, afirmava: "depois dé.
duas décadas de desenvolvimento, os sucessos alcançados são
multo pobre; s". O fosso entre países ricos e pobres estava aumen­
tando c mostrava uma clara tendência a continuar amplliando-se no
futuro, o que poderia ilustrar-se com este exemplo: "O :aumento do
PNBp e r capdta que se obtém em um ano nos Estados Unidos equi­
vale ao que a índia pode chegar a conseguir em um séc :ulo". Os pe­
quenos aunuentos da receita alcançados tinham-se concentrado, ■
além disso, n os setores mais ricos da população, deixando inaltera­
da á situação dos pobres. O dado fundamental da situação atual não
é tanto a dis tância que separa uns países dos outros, icomo a evi­
dência de que tal distância aumenta a cada dia. Isso aparece nas
previsões paira o futuro, que continuam tratando de mostrar-se oti­
mista, porém: percebe-se com toda clareza, quando olhamos para
trás: entre 19 60 e 1976 o PNB p e r capita dos países ricos cresceu
a uma taxa ai tual de 3,4 por cento, enquanto o dos pobires o fez tão
só a taxa de 1,4 por centó. O-problema não se reduz a que estes
possam falha ir na corrida à industrialização, mas sim o que está
acontecendo na que tem por objetivo sair da pobreza e a suã pró­
pria sobreviv ência física podé ver-se ameaçada, porque nos enffen-

256
repei nsar a história para rè[ >rojetar o futuro .'A,

, . íam os com um futuro en iq u e irão faltar os álmcntos necessários


- para manter a população dos países "cm vias de desenvolvimen­
to",* enquanto que os úni cos excedentes disponíveis para a çomer-
. cialútação estarão'jias maios dos países industrializados, que terão
com isso um elemento de -controle político adicional,** Sem contar
que qualquer alteração climática poderia desencadear, numa situa­
ção <|ue chegou muito perto do limite, unja hecatombe humana de
incrí veis proporções, con 10 pôde perceber-se bá pouco no Sahara
africano.5 ,' - '
Apontamos anterio rmeiite que os sonhes de fabricas lunares,
erami inviáveis pejo seu c usto elevado. Não é isso o mais grave. O
pior éq u e o são também as previsões de remediar a tempo essa si-
tuaçí io de pobreza e fome que ameaça a sobrevivência da-humanida-

' * A sangrenta ironia do term o aparece daramente nesta afiriíiaçãó: "Os te r


m ospiiíses em desenvqlvi'meiito, economias de mercado em desenvolvi- ■
» tento, países subdesenvc Uvtdòs e países d,e receitas reduzidas sãó geral-
mlente intercambiáveis"(S. Wortman e R.W Cummings, Jr., Para alimentar
es:te mundo. E l desafio y Ui estratégia, Belgrano, Buenos Aires, 1980, p. 33).
Õ que significa, dito simp] esmente, que "países era desenvolvimento" não
é mais que um eufemismo- para "países pobres"... , '
** Um estudo publicado pe lo Departamento deAgricultüra dos Estados Uni­
dos chegava à condusão cie que "as tendências no comércio de alimentos
m ostram que o mundo menos desenvolvido está perdendo sustentadamen-
te a capacidade de auto-aLimentar-se". Segundo os teus cálculos, ate o ano
2.000 o comércio mundial de cerais terá alcançado um volume considerá-
vc d; porém os dois únicos provedores desse coméido serão a América do
N orte - o que significa ess< rncialmente os Estados Unidos com uns 90 por
ct sito do total, e a Oceania, com os dez por cento restante, A Ásia necessita­
rá da metade desses excedentes para a sua subsistência e p resto terá de re-
pr irtirse entre a Europa, África e América latina. Porém, como poderá a Ásia
pagar as importações líqui das de 5.4 milhões de toneladas de cereais e dis-
p<>r ainda de recursos paia financiar o seu desenvolvimento industrial? (Les­
te r R. Brown, E l bombre, 7. a tienri y los alimentos, Uteha, México, 1967, d-
ta do da p. 217 e cifras das |>p. 198-199). As técnicas destinadas, supostamen­
te "a aumentar a produção agrícola dos países desenvolvidos, como as da
ctiamada "revolução verde", não tem feito mais que incrementar a depen­
dí inda com relação aos Est ados Unidos, que são os provedores de maquina,
rit t c adubos. O paradoxo r naior dessa situação reside em que, poi sua vez,
os. países desenvolvidos, e num iugar muito destacado os pióprios Estados
Ui lidos, são importadores c le alimentos dequalidade que se produzem nos
5u bdescüvoividos c réçebc m deles um volumé de proteínas.muito superior -
aoi que enviam a estes (Michael Pcrelman, "The Grten Revolulion: Ameri­
ca n Agriculture in the Thin 1’Worid", in Slchard MertUi, ed., RadicalÁgrtcul-
tu rc, Harper and Row.rfov.iYorque, 1976’ pp. 111-126),
\
. n
, capítulo 14

de.E não se cneia que esse ceticismo procede dos críticos do mode-,
lo de desenvolvimento irídústrial-capitalista, mas sim que o expres­
sam hoje os próprios dirigentes do !sistema. Não faz muito que Otto
Schoeppler, presidente do Chase Merchant Banking Group,dizia:

Se espetam os resolver o probloma da população'mundial e tirar


. 7 centenati de milhões de seres h umanos da sua abjeta pobreza, ne­
cessitate mos dè muitos trilhões de dólares. Se o Mundo Ocidental
tem de .continuar sendo coinp>etitivo, serão precisos mais alguns
trilhões. Se temos que desénvol ver novas fontes de energia (e isso
'- é crucial), ferâo feita centenas die bilhões (...). Pode-se reunir o ca­
pital req uerido? Não o sei. ;. ,

Ninguém sé teria permitido ; semelhante dúvida - que liquida


defiriitívament e com as esperanças de Adam Smith - hã ápenas vin­
te anos, quand o vivíamos sob a ilusíio do "desenvolvimentismq", da
qual estamos despertando tão amargamente, sem que isso signifi­
que ter alcançí ido a lucidez, Como o demonstram as alternativas que
nos estão propondo em troca. Depois de se dar muitas voltas quan­
to aos tipos d<: desenvolvimento desejado e aos caminhos para al­
cançá-los, costmma-se chegar quase ;sempre à mesma conclusão: um
dos elementos básicos das novas re ceitas é algo que nãò só não fi-,
guiava nas do passado, como também que é, de feto, antagônico
com o modelo de crescimento capitalista: a necessidade de uma
maior igualdadle.

O valor central implícito nas novas estratégias é a igualdade de ri­


queza e poder.Apontam para u m a sociedade sem contrastes pro-
- nunciados entre ricos "e pobres, onde a recompensa do trabalho in-
— telectuai e manual não sejam m uito divergentes, onde as pessoas
não estejíam consumidas pela in-veja e,motivadas pelo desejo de en-^
ganar ou ultrapassar-se uns aos outros.

Somente que a introdução d e doses maiores de igualdade


não é uma téc< íica aplicável numa p olítica reformista; hem sequer é
compatível co m a sobrevivência do capitalismo em escala mundial.
É aí, pois, que a resposta final parece ser a de que a resolução do
problema da p obreza no mundo nãc >depende das velhas receitas in-
dustrializadora s nem dos milagres da nova tecnologia, mas sim da
mudança do mosso sistema social,6 .

258
■ ><;

repensar a história para re projetar o futuro

Fome flòs países " subdesenvolvidos", desemprego nos indus-


trial!lzados.*Ou,'o que da no mesmo, aumenterdas diferenças entre ...
país;ès ricos e países polires, em escala mundial; das diferenças en­
tre :setores sociais ricos te setores sociais pobires, no plano de cada
país ^desenvolvido òu não. Éste é o horizonte clo nosso futuro a cur­
to e: médio prazo, sem que se perceba quando ou como iraprodu-
zir-s:e a reviravolta que nos levará à prosperidade geral, ao ócio e à
felicidade que nos haviarn prometido.Hoje está claro que as,proje­
ções equivocadas do futuiro baseavam-se mumn má compreensão da
realidade presente - da natureza do capitalismo, das possibilidades e
dós custos da tecnologia disponível, etc.Dessa verdade, amargamen­
te aprendida^ surge toda urna literatura crítica - com frcqüênciá par­
cial e quase sempre sem :soluções dé' troca ade qttadas - qüe nos está
ájuclando_a abrir os olhos:. O que essa literatura não costuma perce­
ber, é que o erro dás pretásões "otimistas" não só dependia da supe-
■restimaçãò feita das'-possibilidades do presen te, como também - e -
eu ciiria sobretudo - de u ma má compreensão do passado, que pro­
jetamos erroneamente ao futuro. Pelo que, não parece que baste a
revisão do presente, também necessitamos olhiar pará trás,para des-
cob rir o que estava equiv ocado nas nossas aná lises do passado, cóm *
o fim de redefinir o projjresso humano e ajudar a construir novos
objetivos para o futuro. - ,

■*' Para perceber-se o desconcerto que o fenônreno do desemprego,conver­


tido em algo estrutural e j permanente, causa na ma ior parte dos observado-
i es atuais, servirá este te» to jornalístico: "Fara algui is experts em economia, _ ■
- o desemprego não é uma situação transitória.Aumentará indefinidamente,
I jorque hão se deve à cris e econômica, mas sim ãs circunstâncias do pério-
cló atual de transição ind ustrial. É provável que quando termine 6 século,
SJO por cento do trabalho esteja totaimeme autom atizado.com o que o de­
semprego terá se convertido no normal para os habitantes do mundo in­
dustrial. O conjunto de desempregados adquirirá então proporções imen-
sas.Terá se convertido nu ma nova classe social" ( G jm b t o 1 6 , 13 de abril de
ÍL980, p. 82). Além do incongruente que ressoe o s desempregados como
classe social - explorada ou exploradora com relsição à "classe social" dos
c jue trabalham? -, o intereí ;se maior do texto reside na intenção de legitimar
0 desemprego como algo'"natural" numa etapa de "transição", como o cus-
t o que se tem que pagar jaara alcançar as objetivo.s a que .conduz essa evo-
1 ução, quando se é incap: iz sequer de Imaginar ó <jue pode-se aguardar no
término desse "trânsito": quando não sobra nad;i para prometer O qüe
I lode-nos ajudar a entendi tr a proliferação de anúni rios de apocalipses, mer-
- cadoria bem acolhida pot: uma sociedade sem esperanças.

259
capítulo 14

Não é idifícil perceber que o motor do progresso com que se \


construiu a visão da história que estamos empregando <•'tinia gèrie- •
ralização rio Cetnpo das condições da revolução industrial, que le- '
, , vou-nos a inhstpretar como avariço tudo o que se aproximava, dè
uma ou de outra forma,da tecnologia e das formas de organização
social da industrialização moderna. Isso nos condenou à má com­
preensão de íilgüns processos fundamentais. A revoluçã o neolítica,
com á invenção da agricultura, era uma espécie de antecipação da
./ f

revolução ind ustrial é nos era apresentada como a chav<; de um sal­


to à fíente no desenvolvimento humano, Hoje começantos a perce­
ber que as coisas poderiam ter sido muito diferentes. Que o caça­
dor-coletor vi' reu durante milênios com o conhecimehtc >da agricul­
tura e que foi a necessidade, a crise_ocasionada pela :superpopu­
lação, a que. õbrigou-o ã depender dos alimentos vege tais cultiva-
-v dos, com o qtne isso tinha de condenação a uma aliment ação pior e
mais insegura.7 ' "
-V Entrètanto.não tèmôs sabido aplicar uma crítica .‘semelhante
ao segundo pjrooesso; o da "revolução industrial", que cc mtiriuamos
interpretando Como a culminação do capitalismo, o que: tem o gra­
ve inconveniente de deslocar a atenção do que é.fundarnental para
a definição do sistema - a natureza das relações que se e stabelecem. -
entre os home :ns na produção - para os aspectos tecnolój jicos é con­
tribui para qu e situemos o capitalismo e a industrializarão no alto
de uma escala de progresso, cujas diversas etapas aparecem defini-
■das pelo grau de desenvolvimento das forças profutivas,
Que semelhante concepção de progresso nos leva a uma má
compreensão do capitalismo é algo que podemos ver.por exemplo,
i na nossa errôr iea definição do feudalismo, construída a j partir da vi­
são que nos legou a burguesia que combateu-o, qué.péncebia clara­
mente os traç os essenciais do velho sistema, porém incluía na sua
definição elementos legitim adores do novo, em especial o de consi­
derar como característica básica do feudalismo a existên cia de uma
coerção políti ca - extra-econômica - na obtenção dó excedente
camponês, que contrastaria com o que acontece no capitalismo,
onde tal extra<:ão fez-se por uma via estritamente econôhiica.* Essas_

4 ---------
j *
- ■ ' .■
"Num senti do marxista, a essência do modo de produção feu dal reside na
rclação-de exploração que se dá entre os proprietários da tetra c os çam-
. poneses subordinadosa eles c através dá qual aqueles obtêiurpor coação
o produto ea cedente do trabalho destes, uma vez satisfeitas ai s suas necés-

260
repi snsar'a história para rí iprojctar o futuro

caracterizações de feudalismo e capitalismo baÃiam:senuxna série:


dé i uai-entendidos. O prt meiro deles reside na inteipretação do que:
con isideramos, respectivamiente, político ou econômico. Ligar políti- •
ca í ; coerção implica sujpor que o econômico seja algo meramente
> con ;ttatuai, livremente pa ctadò, sem interferências externas entre os
. que: participam do acordo.Só que o capitalismo tem tantos elemen­
tos coercitivos como o feudalismo, ainda que sejam distintos, cm es­
pecial pelo fato de ser administrado por um Estado centralizado, os
da ■chamada "coerção diara" - a polícia e o soldado cumprem no
novo regime as funções.que o cavaleiro desempenhava no antigo -,
e die achar-se mais sutihnente estendidos os da "coerção branda",
que: no feudalismo eram monopolizados pela Igreja. Nos dois siste-
í- ! mafehtretantò, a coerçã o se desvanece caso se admitam âs "econo­
mia s políticas" elaborada s para -justificá-los. Se, porventura se aceita
- adi visão trinitária da'sociedade feudal, o excedente não é tomado à
for< :a do camponês, mas é este que o entrega, convencido de pagar
com- ele os serviços qme lhe prestam os dois outros estamentos

»idades de subsistência"< Rodney. Hílton, "Nota sobre cl feudalismo", ih La


itransición deifeudalisnvo a l capitalismo, Crítica, Barcelona, 1977, pp. 38-
: 39). Entretanto, os teartos de Marx sobre o feudalismo, ainda que-escassós,
i ião parecem autorizar se :melhante inteipretação. Em O capital, por exem-
j pio, nos diz que "onde, com o ocorreno mundo antígo.e na Idade Média, a
j produção social tem uma extensa base na escravidão ou na servidão: aqui,
i o império das condições de produção sobre o produtor fica oculto atrás da
itelações de domínio e subordinação que aparecem e são visíveis como os
irecursos imediatos do processo de produçãoM (III,cap.43 [MEW.vol. 2 5 ,p.
f339], adoto neste caso a versão castelhana de "WRoces). O quai parece pou-
ico coerente em outorgar à “coaÇão" um papel fiindamentai na definição do
: sistema. Porém a confusa o deriva de ter Lido pfcdpitadamente a caracféri-
; ração que se faz do feud alismo no livro primeiro, onde nos diz que "a de-
Ipendência pessoa] caract :eriza tanto as relações sociais da produção mate-
iriai quanto as esferas da vida construídas sobre esta"(£/ capital, I, cap. I;
iGrijalbo, GME 40, Barcelc ma, 1976, p. 87, trad. de M. Sacristán). O que se há ■
ide fazer é não se deter aí,. continuar umas poucas linhas mais adiante, onde
mos diz que, "precisamenite porque são relações pessoais'de dependência
:i5 que constituem o fun damento social dado, os trabalhos e os produtos
iião necessitam tomar netihuma-figura fantástica diferente da sua realida-
i de" (ibid.'), e pôr esse tes to em relação com a que denuncia "todas as mis-
" 1 ISficações do modo de pi rodúção capitalista, todas as- suas ilusões de liber-
ilade, todas ás futilidade» apologéticas da economia vujgaf"(I, capítulo
Lsvn, seção VI; in' OME 4 1, p.-176), para entender que o que caracteriza-o
i sistema feudal, para Marx, não é a existência de coação, inseparável da exis­
tência de exploração, ma s sim a forma direta.e clara com que aparece.

261
capítulo 14

(pense-se, por exemplo, nas justificações de uma percepçãofeudai


tãò típica com o p dízimo e namesiiJadé consentimento e coação
em que apoiou-se historicamente a sua cobratiça)As relações con­
vertem-se, ém Ial caso,'em estritamei ate econômicas,ainda que se re-
- firam a uma economia distinta da tle Adam Smith. Foi a burguesia
quem, ao combater o antigo regime, denunciou a falácia das suas
justificações e pôs em relevo tudo o quê havia de exploração, no
feudalismo, paira contrapor-lhe o ideal da sociedade burguesa, onde
as relações ent re os produtores seriam meramerite contratuais e sé
desenvolveriam num clima de liberdade. Sõ qúe, conio sabem bèm
os trabalhadores, não são eles os que fixam os termos do contrato e
o que lhes é deixado para pactuar é o de menor importância. No
momento em que tratam dé discuitir os fundamentos básicos do
acordo, os mecanismos repressivos, da, .sociedade capitalista encar­
regam-se dé res ;tabelecer a ordem. Pt :1a existência de traços dé coèr-:
ção caracteriza-se não so o feudálism o, nias todo sistema ein que im­
plique desiguaí Idade, inçiusive o capitalismo. Definir’ 0 feudalism'o
de tal forma nãio é grave porque conduza a uin erro sobre ele - já
que a coação d sistiu realmente na s>ocicdade1feudal -, mas. sim por- 1
que implica suj jor que se trata de ur na característica singular de tal
isistema é que e la hão haja no capita; lismo.®
• _ Propor imeorretamente a natureza dò .capitalismo;neste sen­
tido, é'algo que' combina com o outro erro assinalado - defini-lo
como o momento culminante de um. processo de progresso daá for­
ças produtivas -■e que acaba marcando toda a nossa concepção da.
história.Transportamos para trás esseesquem adeprogressoe reor- '
garúzamos com ele a nossa inteipretação’,dò passado, e o usamos
também para imaginar p futuro, õ qual nos conduz a acreditar que. ,
' o socialismo sui-girá como consequência necessária da própria evo-, . -:í
lução industrial-capitalista: que a economia mundial marcha neces­
sariamente para formas de controle centralizado e que chegará úm
momento em qiue bastará tomar nas mãos as rédeas de um mundo
, que o capitalismo será incapaz de-continuar gerindo. Confundir o
capitalismo con l o desenvolvimento das forças produtivas fez com
que se esqueces se que a sua essência não reside na maximização, do
produto, más siin na do ganho, d e’miodo que a crise da produçãq
não tem por que améaçã-Io, contanto i que consiga manter a ordem .'1
..sociale evitar osi riscos de subversão interior.Èsta foiá grande lição
’ j/S
da crise de 192:9, quando muitos acreditaram que o capitalismo
áchava-se nas sitas horas finais, e tal liipão é perfeitamente válida ain-
'^xepehtsar a história para réprojetar p futuro -

, cia: hoje: para entender quie o desemprego ou a iextehsão dá pobre­


za'não são, por si mesrno:;, um'signo de fracasso do capitalismo, e
'• .. menos aintk o anúncio dci seii fim próximo. Essa visão evoluciònis-
ta ge ca muitos desconsert os quando tem que se enfrentar com as­
pectos que não encaixam na linha dò progresso e que se tende a in­
terpretar como "aberraçõas1.- cuja niesma existência reforça as ilu-
4 sões acercadacrisedosiíitem a -porém queresultam perfeitámen-
te no rmais na lógica inter na do capitalismo como forma de éxplp-
taçãc 1. Isso é o qufc-sucedeu com o fascismo e Walter Benjamin o de-
nunciava certeramente ac> dizer que este tinha a sorte dé que os
"seus adversários o comba tem em nome do progresso como lei his­
tória f.Toda a concepção 1da história do capitalismo que não enten- 1
da qt ie fatos coino a guerr a do Vietnam, o àpariheid, a escalada atô­
mica ou o genocídio cen tro-americano, para; citar só uns poucos
exeiriplos de "aberrações" do nosso tempo, sãó manifestações n ò r-.
mais- e lógicas do sistema, é uma concepção insuficiente, equivoca­
da. Peira dizê-lo nas palavras de Benjamin: "O espanto porque.as coi­
sas quevivémos sejamair.ida possíveis hq século vinte não é nada
filoscifico. Não è o com eço de nenhum conhecimento, salvo do de
que £i idéia da história da'qual provém carece játóe vigência".’
. ^ Urri dos problemas mais gravés a que conduziu esta visão do
capitalism bcòm oreinpdio’’estritamenteecónômico''éadebilida--
dedai análise política marxista e a sua escassa capacidade para com-
preei ider a função do Estado, limitando-se a simplificações triviais,
ou cs lindo no erro de supc >r que tudo sé joga no lugar de trabalho è
que s i análise pode reduzir -se cm téfmós de salário, renda da terra e
ganho.É necessário repolii tizar nosso exame do presente, reintrodu-
.. .. zindo riele a consideração do Estado, qiie desempenha um papel
fundamental np próprio 1Funcionamento da economia, nem- mero
instn rmento'repressivo da burguesia, nem "instância autônoma". Ê é
iguaL mente necessário repolitizar a nossa visão da história para en­
tender exatamento como se estabeleceu a sociedade capitalista.10
A insuficiência das análises economicistas, pór outra parte,
deu 1 ugar a qué seja a hist ortografia acadêmica a que tenha coloca­
do o s problemas qüe oferecem as outras dimensões do homem,
ocup ando-se de temas com o o do sexo, da família, da prisão, da lei
, e do delito, do medo, do iimáginário, da mulher; da loucura... O que
há d«: sêrvir-nos como. juséo recordatório dé graves esquecimentos,
'poréirn resulta errôneo e nriistificador quandp tenta aprescntãr essas
outras histórias setoriais com ò vias que permitirão analisar o ho-

- .../. : . ' ' . ~' ' ”■ 263


c apítulo 14 -

mem autonomamente. É necessário reconstruir a imagem global d a'


sociedade, com o'propôs um dia o materialismo histórico, porém
não para fabric;ir um caleidoscópio de aspectos diversos,, mas sim '
para centrar toda.essa diversidade em tomo do que é fundamental:
os mecanismos que asseguram a exploração de uns homems por ou­
tros, e que não só atuam através das regulamentações do trabalho
ou do salário, ne:m se fundamentam só em elementos coercitivos fí­
sicos, mas que ü npregnam toda a nossa vida, nossas forma«; de com­
preender a sotí< :dadc, a família, o homem e a cultura. E tar nbém, lo­
gicamente, nossa forma de pensar a história, inclusive a suposta­
mente "progress ista".Entenderemos então até que ponto aí; concep-
ções ideológicas que favorecem a continuidade do cajpitalismo
estão ancoradas em nossas mentes e. determinam, sem que.o perce­
bamos, inclusive os nossos valores "morais" ou nossos conceitos do
que é "natural" o u aberrante. Sóyquando sejamos capazes de com­
preender a coetênd a dò sistema inteiro em que vivemos imersos -
poderemos cheg ;ar a repénsá-lo, desmontá-ío peça por.peçs i e plane­
jar a sua substituição põr outro baseado num novo jogo de; valores,
de acordo com ;as características-que haverá de ter a sociudade do
socialismo.' 1
Convém, entretanto, fazer uma advertência sobre a natureza
da tarefa a realizí tr. Não se trata, simplesmente, dç "renovar <5 marxis­
mo", atualizando-o, voltando às suas origens ou praticando «qualquer
outra operação semelhante sobre textos e palavras. Não negarei a
enorme utilidade; que teve um melhor conhecimento dos textos de
Marx para liberfcar o marxismo das sua formas esclerozadas; porém '
seria nefasto que; a destruição dos velhos catecismos se fizesse para
substituí-los por outros, ainda que fosse sobre uma base melhor e
com a ajuda de rnais textos. Do que se trâta é de continuar utilizan­
do: os instrumentos de análise que rios proporcionou o marxismo,
e tudo o que se lhes possa acrescentar,nas tarefes de compreender
corretamente o mundo de hoje para denunciar o que precisa ser
mudado. Nessa tarefa, o papel da história, o papel de uma com­
preensão renova da do passado, há de ser vital, porque sen rirá para -
revelar as legitimações em que se apóia a aceitação do pre sente, e, ✓
sobretudo, porqiue há depermitir-nos reconstruir uma linha de pro­
gresso que possa: projetar-se até o tipo dè futuro que desejamos al­
cançar. Já que, se o què entendemoá por socialismo é essemcialmen*
te a eliminação dias formas de exploração próprias do capitalismo - '
e nãò só uma fes e superior da industrialização a- linha que; condu- ;

2 64
. repens ar a história para reprojetar o futuro

za do presente ao socialismo nãò pode fundame ntar-se numa visão.


do passado eomQ ascensão do- estado do homei n caçado-colctor à
eclosão da industrialização moderna, mas sim q-úe deve agregar a
essa sequência, como linha dominante, umà me Jhor compreensão
das lutas e dâs aspirações dòs homens do passai do em seu esforço
' para li<quidar as diversás formas de exploração e e stabelecer uma so-
'• ciêdad e igualitária. . . ' V '
- Não podemos contentar-nos corn os mapas do futuro traça­
dos qi íando as mudanças iniciadas em Petrograc ió, em outubro de
1917, pareciam oferecer-nos soluções ao álcance 1:1a mão, porém isso
não implica em renunciar a quanto há neles de contribuição positi- -
va à lu ta contra o capitalismo. Nem - muito menos ainda - continuar
os do Annales, quando consideram que o possível fraçasso de tais. '
fórmulas significa que se há de renunciar a qualquer“esperança de.
progre :sso social, e o que toca ao historiador é ah lahdonar a politíza-
ção da . sua disciplina para voltar ã "Êizer ciência" . Nosso objetivo di- „
ficilmemte pode ser o dê convertera história èm uma "ciência"- em
um corpo de conhecimentos e métodos, cerrado e auto-suficiente,
que se cultiva para si mesmo -, mas sim, pelo cont rãrio, o de arrancá-
' la à fo; isiiizaçào cientificista para voltar a converte :-la numa "técnica":
num instrumento para a tarefe da mudança social. v-
O trabalho que nos aguarda, se temos de sair do buraco em
que nos meteram a mentira das promessas do capitalismb e a que­
bra das nossas velhas esperanças de superâ-lq, é bastante dificil.Te­
mos q ue reinventar um futuro, redefinindo os ol jjetivos a alcançar,
de mo do que dêem uma resposta válida aos prol alemãs que enfren­
ta o homem de hoje no mundo inteiro - não só 1 nedidas para a ele-
.. vação do consumò nos países industrializados. Necessitamos re­
com por uma visão crítica'1do presente que explique corretamente
as razoes .da pobreza, a fome e o desemprego, e ique nos ajude a lu­
tar contra a degradação da natureza, o militarism o, a ameaça atômi­
ca, o racismo e tantos outros perigos. Porém essa tarefa não será
1 , possível - tal tem sido'a tese fundamental deste livro - se o historia-
1 - dor nã.o participa também dela, renovando nossa t visão do passado,
de mo do que sirva de base para assentar um nov-p projeto social; O.
que sijínifica,ao mesmo tempo, que tampouco o historiador achará
respòs ta aos seus problemas específicos - ã neceíssidadé de manejar
uma v isão satisfatória do passado - se não trabal ha, por sua vez, hà
crítica do presente e na invenção do futuro; se .mão renuncia, a;set
.especialista no seu campo fechado,para converter-se num partici-

265
capítulo 14.

pante a mais ni una tareia comum, a que acode com a sua própria
ferramenta. ' - ?"
Não há; no final deste livro, uima proposta de novas receitas
em substituição das velhas. O seu proipósito fundamental tem sido o
de chamar a ate nção sobre.um problema e ajudar a assentar as bases
para a sua solução. Nãò é este o momento de oferecer um novo es­
quema para pre encher o das etapas e jcalònadas do progresso - da re­
volução neolítica à industrialização, do comunismo primitivo ao so­
cialismo nem c le substituir com outr as novas, porém do mesmo sig­
no que as velhíis, as esperanças evol ütivas que nos consolavam, fe-
zendo-nos acreditar que estávamos d o lado do irrefreável avanço da
história e que o futuro seria nosso, ainda que fizéssemos mal as coi­
sas òu não fizéssemos nada. A tarefe imediata parece ser antes a de
retirar a história dos esquemas em q ue foi apresada e utilizá-la para
aprender como se formaram os mec;lhismos de exploração e como
organizaram-sc os homens paracombatê-los, buscando novas escalas
que não se estabeleçam em função dos avanços da tecnologia indus­
trial, mas sim d os alcançados na sati sfeção das neces'sidâdes coleti­
vas, incluindo n elas a da liberação de; toda forma de opressão; recu­
perando caminbos cortados - programas fracassados, derrotas e uto­
pias -.porque nada nos garante que o que triunfou foi sempre-o me-
> lhor, o que conduzia na direção do futuro desejável (não,é seguro,
por exemplo, q;ue o melhor que poderia suceder àssociedades da
América pfé-colombiana, ou às africítnas, fosse a sua inclusão força­
da num sistema, capitalista mundial). Só quando tenhamos destruído
o veiho mecani smo de relojoaria poderemos voltar a situar as peças
de outro modo,, explicando a evoluçâio das sociedades humanas sem
fazer de tal expJIrcação um sortilégio sidormecedõr: uma profecia des-
mobÚizadorá.A mais urgente das tarifes parciais, hoje, é a de refazer
a história do capitalismo, não como uma .fase no desenvolvimento
Has forças prod utivas, mas sim como uma etapa no dás formas de ex­
ploração, de modo que nos ajude a r:ntendê-io melhor e a combatê-
lo mais eficazmiente, para substituí-k» por formas de organização so­
cial mais justas >e mais livres, que gara ntam uma melhor satisfação das
necessidades ooletrvas dos homens. Assim a história deixará de ser
conhecimento livresco para recuperar a sua" Legítima função de ins­
trumento para a construção do futur :ò.
' ■1. ‘ r _"'
re:flexões sobre a
história, do além
do fím da história

AL história de um : grupo humano é a sua memória coletiva


jíj
e cumpre a respeito dele a mesma função que a memória pessoal
num indivíduo: a de dar-lh e um sentido de identidade que o faz ser
. ele mlesmo e não outro ; D í iÍ à sua importância. Porém convém com-
.. prcendcr qüal é a natureza da memória. As nossas recordações não
são <os restos descolorido s de uma imagem fotográfica que repro­
duz fielmente a realidade, mas sim uma construção que fazèmos a
partir de fragmentos de conhecimento que já eram, na sua origem,
interpretações da realidad e e que, ao voltarmos a reuni-los, reiriter-
■preta mó-lo à luz de hovos pontos de vista. Os que estüdam os pro­
cessos de conhecimento rnostram-nos a complexidade disso que é
aparemtemente tão simples, como a evocação de uma recordação, e
insistem em que não tem nada que ver com o.ató de tirá-la por in­
teiro do lugar do cérebro ein que está alojada, mas sim.que a com­
pomos com fragmentos d e recordação tirados de registros muito
distintos.1 • ' . •'
Algo parecido acon tece com essa forma de memória coleti­
va qu e é a história, que é a. que dá sua identidade às sociedades hu-
-7 manas.Referindo-se à inevi tável contaminação dos.dados que mane­
jamos com a nossa experiência vivida, Raphaël Samuel escreveu:
"estar nos reinterpretando >constantemente o passado à luz do pre­
sente (...); inclusive quand o reproduzimos literalmcnte as palavras
r e as frases, as ressonâncias são as do nosso tempo (...). Por mais ze-
losam iente que protejamos a integridade do nossõ tema dè estudo,
não piodemos isolá-lo de n ós mesmos".2 Porque, comó se diz num
•\ ■ estud o sobre a memória social, "não podemos experimentar as nos-
epílogo

sas recordações se antes não ‘pensamos’ e no momento em que as


'pensamos1, evocando-as e articulando-as, deixam de ser o bjetos e se
' convertem em'parte do nós mesmos".* ,V
O historiador reflete o tempo em que vive, ainda qué nem:
sempre se dê conta disso. O que chamamos a crise.da ciência histó-
-rica do nosso tempo é um reflexo de outra crise mais profunda: a
das expectativas de futuro que baseávamos numa concepção da
história que ps irecia'permitir-nos fazer previsões sobre o porvir. .
O modelo interprctativo falido nasceu com a visão dà
história elaborada pela ilustração escocesa, no século com a
teoria dos "quatro estados", que situava as distintas sociedades co­
nhecidas num esquema único e ordenado de desenvolvi mento, cu­
jas etapas teritun que percorrer sucessivamente todos Ois povos’ e
convertia uma noção de progresso baseada no desenv olvimento
tecnológico n o motor da história: <-'.7
Esse modelo foi também o ponto de partida de Marx, que
aceitou inicialrnentejD esquema único e linear de progres so, dó qual
só se libertou nos últimos anós dá sua vida, com a triste c onseqüên-
cia de que os sícus seguidores preferiram conservar ás formulações -
esquemáticas do primeiro Marx - as receitas fáceis que davam as
chaves para initerpretar o mundo sem a necessidade de investigá-lo
- e foram tncap azes de corrigi-las e enriquecê-ias com as n étificações
doS seus anos d e maturidade. * . "
Porém i ião se trata apenas dõ marxismo, porque essa con­
cepção linear acabou sendo a base das mais diversas escolas histó-
ricas,reforçada, por uma visão determinista da ciência,que partia dc
Newton e Lapi ace, e pela transposição desse mecanicism o ao terre-
no humano,.o que explica que, em 1872, um cientista allemão afir­
masse que quçm pudesse conhecer, por alguns moment os, a posi­
ção, a direção <; a velocidade de todos os átomos do universo pode­
ria prever todos os acontecimentos futuros da história humana. O
objetivo da çiê ncia histórica era precisamente o de chega ir a um co­
nhecimento perfeito do mundo social, como sustentava o anarquis­
ta francês Char Les Malato.que queria uma ciência histórica capaz de
"deduzir com precisão matemática as causas dós movim entos pro­
fundos que agi tam as moléculas humanas".5
Esse esq uema permitia-nos predizer; por outra parteque num
futuro talvez mio muito distante - ó ano 2000 parecia um a boa data
para o cumprimento da maior parte das profecias - seria possível
conséguir que 10 crescimento econômico se generalizasse ao mundo '

268
refle xões sobre a história, do além do fim da história'

subdesenvolvido - fóssè num modelo de mercado capitalista, fosse


no cia chamada planificarão centralizada -, e que as sociedades dè-
senvolvidas conseguiriam â elimrnação da pobreza: Coisas que pare-
ciarr Lao alcance da mão di riante a longa e excepcional etapa de pros­
peridade que se viveu depois da Segunda Guerra Mundial.
Havia duas versões distintas dessa mesma prõspectiva. Uma
delas, a quç supunha que o desenvolvimento se produziria no mar­
co cie uma-economia capitalista, formulou-se nõ chamado 'ponto
quarto' do discurso sobre o estado da União do presidenteTruman,
de jameiro de 1949-Nele, apresentava um programa para proporcio­
nar aos países subdesenvolvidos - e convém assinalar que esta pare­
ce sier a primeira, vez que surge tal denominação para designar os
paísos economicamente atrasados - ajuda técnica, de modo que,,
com ã colaboração dos m eios de negócios e do capital privado dós
países adiantados, é,-em j primeiro lugár, dos próprios Estados Uni­
dos, pudessem, não só obi ter mais alimentos e melhorar o seu riivel
de vida, como.também, diz llteralmente, 'aumentar em grande medi­
da a sua atividade industrial'. ~
As coisas, entretanl :o, não foram como se havia previsto. Des­
de meados dos anos setenta, os países desenvolvidos estão descen­
do piara os abismos, que pareciam esquecidos para"sempre, do de­
semprego e do que acostumou-se chamar de 'a nova pobreza', que
tem. pouco que invejar da vélha (nos Estados Unidos, ô número dos
indivíduos quese consideram "pobres" passou de 23 a 35 milhões,'
entre 1975 e 1991). Ë o que é mais, não só abandonou-se a ilusão
do pleno emprégo.coino também que se tem teorizado sobre a ne-
cessiidade do desempregei, da taxà natural de desemprego ou, mais
elaboradamente,da taxa cie desemprego que evita que se acèlere.a
inflação. '
Tampouco ós países pobres (é sangrento continuar chaman­
do-os ainda hoje 'em vias <de desenvolvimento1) viram cumprir-se as
promessas. Pelo contrariei, nas últimas décadas, na mesma medida
em que iam ficando marg inalizados dos tráficos internacionais (dos
anos oitenta a 1995, a participação da África no comércio mundial
caiu de 4 a cerca de 2 poir cento), aumentava a distância que os se­
para-va dos ricos, ou seja, que, em relação a eles, estão mais subde­
senvolvidos hpje do que :uites que se inventasse o désenvolviirien-'
to. Urm informe recente cias Nações Unidas revela que, de i9 6 0 a
1995', a diferença entre a renda per capita dos países industrializa­
dos <; a dos países pobres triplicou. O mais grave é, além disso, que

269
epílogo

esse empobrecimento não é apenas reiatíyo (não se trata apenas de


que os ricos ten ham se enriquecido), mas sim que em muitos casos
tem também utn. caráter absoluto: ern setenta países diferentes os
' rendimentos mçdios são hoje inferioms aos de trinta anos atrás.
Uma das i razões fundamentais clesse empobrecimento é o en­
dividamento progressivo a que os condena o pagamento das suas
velhas dívidas: d e 1982'a 1.990, os países devedores pagaram 1,3 bi­
lhões de dólares aos países credores, com o resultado de que, em
, 199o,as suas dívidas globais tinham aiuméntado em uns 61% em re­
lação às cifras d<e 1982. Essa situação obrigou a muitos a aceitar os
programas de aj uste estrutural proposto pelo Banco Mundial e o
Fundo Monetário Internacional, que implicavam normalmente num
aumento da sua dependência e da pobreza do conjunto dà popula­
ção, ao' potência r a produção para a exportação às expensas da de
alimento para o próprio consumo. O resultado global, no fim-de
vmeio século depiois qüè, com o'fim d a Segunda Guerra Mundial,'se
' iniciasse o que pretendia ser uma no ra época de Iiberdadee pros-
. peridade para ò mundo inteiro, é que 20% da população mais,rica
do mundo tem'p>erto de 85% da riqueza total,enquanto que os 20%
máis pobre só tiem aproximadamente 1,4%. E se investigações re­
centes mostram que as taxas de crescimento de uma economia
estão em relação inversa com o grau .de acumulação dà riqueza, no
quinto superior da sua população, emi fortuna, por qué não-transfe­
rir essa observaç ão a uma escala glob: il e investigar se não ocorre o
mesmo cm escala planetária, isto é,se a progressiva acumulação de
riqueza em mãos da pequena fração dós mais ricos não obstacúliza
,0 crescimento imteiro do planeta?
A demonstração evidente de q[ue as profecias dos anos cin­
quenta falharam; obrigou-nos a reajust ar as teorias para formular no­
vas previsões. Do 'desehvolvimentismio1temos passado à globaliza­
ção ou mundialização, da velha religiíio a outra nova, com dogmas
irracionais, com o o da 'competitividade' - um grande, economista,
Paul Rrugman, m lostrou a inconsistênc :ia das tentativas de sc equipa­
rar uma economia nacional a uma em presa, o que não impede que
se use a descuipia da 'competitividád e' para justificar a desmonta­
gem do Estado d e berti-estari - e com um novo código moral que in­
clui a santificação da livre iniciativa e ò retomo à luta peia sobrevi­
vência, na que, desgraçadamente, nem todos entfarri com ànnas
iguais, de modo - que nada garante que o que irá sobreviver seja o
mais apto. r ; , ;

2 70 .
reflexões sobre a hisÈória, cio.alem dó fim da história

Era lógico qué o fracasso das profecias obrigasse a revisar as


regrais da evolução das sociedades humanas nas quais estas se assen­
tavam. A decadência das correntes de pensamento histórico que do­
minaram nas décadas quo se seguiram ao fim da Segunda Guerra..
1Mun dial já estava se anun ciando desde os anos setenta, porém açe-
lerou-se com a crise de Í!?89:um ano que viu, ao mesmo tempo, ó
início do desmoronáment o dos regimes do leste europeu, a contra-’
ofensiva conservadora exm tomo db segürido centenário da Revolu­
ção 1Francesa e a-aparição ■do artigo de Fukuyama, que proclamava
que <o tempo das revoluções e contra-revoluções havia terminado,
porq ue, sensivelmente, tínhamos chegado ao fim da história.
Não me ocuparei-com o desthoronamento do que'havia se
acositunCtdo a chamar de “o socialismo real", porque é um tema de­
masiado complexo pára ti ratá-lo rapidamente. O debate sobre a Re-
voluição Francesa tinha cc imo' objetivo demolir a chamada interpre­
tação ''jacobino-marxista11, que analisava a revolução era termos de
caus as sociais e a via com o ura mpmento de progresso. O mais re­
velador da nossa situação atual é que os revisionistas ganharam ã
parti da sem terem, contri! buído com nada no terreno da investiga­
ção concreta. A facilidade do seu triunfo tem-se que atribui rsobre-
tudo à desmoralização geral dos velhos quadros da historiografia
progressista e ao fatò dè que a nova vislo está de acordo com o cli­
ma ideológico do momen to.7 . " - -
Que haveriam dé fiizer os historiadores, quando sé lhes nega­
vam a validade dos modelos globalizadores, de um ou outro signo,
que íhaviam utilizado até e ntão? A maioria optou por continuar os ca­
minhos abertos pelo pós-estruturalismo a partir de Foucault, Deleuze
oü therrida e lançaram-se no cultivo do üpó de história.pós-moderría
que rechaça as periodizações e as interpretações globais,e que pede
a sut (Stituição da História, icom maiuscula, pelas histórias, com minús­
cula, e a das afirmações so bre a realidade por metáforas.9 Em função
disso entende-se a aparição da micro-história, à italiana, da Alltagsges-,
chiclEite (ou "história do cotidiano") alemã? ou da "história das menta-
lidadles" francesa, assim coimo a preocupação pelo retomo à narrativa
cont ra a análise, a obsessã o pelo discurso que está levandò muitos a
dissolver os problemas resiis em palavras e símbolos,15e as novas for­
mas dos "cultural-studies’1 norte-americanos, até opós-colorúalismó",
que viria a ser a última moda, já um pouco envelhecida e a espera de
substituição,porque tem c[iiatro ou cinco anos de vida, e isto é muito
ness e mercado de novidades culturais.11

epílogo

Não se trata, entretanto, de depreciar essas correntes, nem,


menos ainda, d e rechaçar facilmente as.respostas que nois propõem.
Em todas elas misturam-se propostas metodológicas qut; procuram
superar os defeitos e insuficiências das velhas concepções globaliza-
doras, com uir 1 fundo político complexo, que vai desde afi preocupa­
ções dos que «desejam conservar os velhòs valores éticos da luta pro-.
gressista (com p ós integrantes da "flistory workshop", na t Inglaterra,
ou da "Alltagsj {eschlchte", na Alemanha) até as que utilizam a desqua-
lificação da m<odémidade com- uma finalidade contra-revi: úucionária,
passando por uma grande massa, talvez majoritária, que 1limitou-se a
ajustar-se às movas modas, para sobreviver profissiqnalnnente, num
meio acadêmi co cada vez mais duro e mais competitiva.
. Porém tampouco podemos aceitar nenhuma oleias como.
uma solução s átisfetória.A superação da crise não pode basear-se na
negação globí d do anterior e a sua apressada substituiçã o por acha­
dos pontuais, que só respondem a üriia pequena parte dos nossos
problemas coimo historiadores,mas sim que exige um eíiforço sério
para recuperatr, ao mesmo tempo, alguns fundamentos teóricos e
metodológicos sólidos, e, sobretudo, o contato com os problemas
reais dos hom ens e mulheres do nosso tempo, dos quais: as tendên­
cias pós-modernas nos distanciaram. Ocupar-me-ei do primeiro des­
ses problemas:,qué é, por oútrO lado, o mais complexo,e: que repre­
senta uma condição prévia para se enfrentar o segundo de maneira
responsável, s<e se quer ir mais além das simples postura s morais, já
que não basta tomar partido ante os grandes problemas do mundo
em que vivemos, mas sim que o que convém, é que ajudemos aos
demais a ente ndê-los e, com isso, a resolvê-los.
A reconstrução dos fundamentos do nosso trabalho-parece-
me que deveria atender a três grandes pontos em que o nosso ins­
trumental falh .ou (três pontos, por outro lado, estréitame nte relacio­
nados entre si). Em primeiro lugar, a superação do mode lo único da
evolução humana com as suas concepções mecanicisiias sobre p
progresso; em segundo lugar, a busca de uma nova forma de aproxi­
mação do estudo do acontecimento - a relação entre o fato concre­
to e o context o teórico em que o situamos - e, finalment e, a uma re-
proposição «las explicações habituais dos atos humanos:, que peca­
ram por uma sobrevalorização da sua racionalidade.
-À priíT íeira das propostas, a de abandonar o esquema evolu­
tivo único e o determinismo que o animava, deveria-nos estimular a
consideração do que sucèdeu no século XX com ás ou tiras ciências

272
reflexões sobre a história, do além do fim da história .

rígidas que tomávamos como modelo inatingível, deslumbrados!


' corri as suas supostas capiacidades de prever, que nos havia ensinado-
que; era o critério fundamental para identificar a autêntica ciência.
_ Pois acontece queenquanto os cientistas sociais, e com eles;
miritos historiadores, estavam-obceeados comi essa concepção me--
can icista, a ciência havia abandonado as velhas ilusões e havia des--
cob erto que o Úniverso era múito mais complexo que ô relógio
cós; mico de Newton e de; Laplace, e que o determinismo e a capaci-
dade de previsão corres pondiam á um mundo de abstrações, po­
rém i, não ao da realidade. Para dizê-lo com as palavras do prêmio No-
bel de química Dya Prigo gine: "Tanto na dinâmica clássica como na
física quântica, as leis fundamentais expressam hoje possibilidades
- e j á não certezas, Não só temos leis, como também acontecimentos
, _ que pão podem deduzir-! se das leis1'.12 :
A ciência-do século X5Í, uma ciência quantitativa e de ,inde-
temiiinação, que vê a aparição' do homem como um acidente da
evollução, qüê criou algumas "matemáticas experimentais" e que
está desenvolvendo todo um campo de estudo sobre a complexida­
de, foi por caminhos distintos dos que havíamos previsto, enquanto
as ciências sociais cohtimuavam com a-ilusão de construir explica-
çÕe<; totais e ós historiadores éncontravám-se, nesse contexto, òu
conu a idéia de ser os par entes pobres, ou, o que é pior, esforçando-
se e m fazer-se mimetican lente científicos, a ponto de renunciar ao
que é próprio e caracterí stico do seu trabalho, que era o que pode­
ria permitir-lhes fazer um a investigação válida e útil.
Os cientistas da na tureza abandonaram hoje a velha tentação
do dleterminismo - de um a explicação do mundo! por algumas pou­
cas lieis fundamentais - para pôr hum lugar central as relações não
lineares, muito mais abundantes na natureza, c sobretudo na vjda,
que as que nos ciavam en cadeamentos seguros de causas e efeitos,
e fazem afirmações que a té há pouco nos teriam parecido escanda­
losas;, como que .“não existe algo que possa chamar-se prova mate­
mática", mas sim que "as provas são (...) argumentos retóricos des­
tinados a afetar a psicoloífía".13
Dá-se hoje o paradbxo de que, enquanto muitos historiado­
res continuam buscando ilegitimações externas para o seu trabalho
- o qi ue chega a extremos iquase patéticos no campo da história eco-
nôm ica -, são os cientistas da natureza os que têm recuperado os va­
lores; da historicidade e afirmam,por exemplo,"que: "a natureza está
_. epílogo

como por substâncias e partículas separadas.A historicidade é uma


característica importante da ciência" de maneira que um biólogo
molecular nos a ssegura que a sua disciplina está abandonando "a fú­
til busca de leis'1e fazendo-se cada ve :z mais "histórica": "Muitos bió­
logos moleculares - conclui - estão convertendo-se em historiadores
a contragosto"."5 ' _ V
Y Por que, pois, em vez de continuarmos nos guiando pelos
modelos do pensamento científico do século XIX,não começámos
também, os hist oriadores, a "convert érmo-nos em mais historiado- •
res", como os biólogos moleculares e a inspirar-nos na ciência de
■ fins do século X X? Conviria-nos, por exempio; começar a buscar ins­
piração nos estmdos atuais sobre a c:omplexidade e auto-organiza­
ção, dos quais podemos aprender unna nova e mais fecunda forma
de examinar a a rcjuitétura da vida so<fiai,16.
Os defeitios do velho modelo único de cvoluçãõ social, basea-
■do numa concej jção do progrcsso qii e considerava a energia e a má-
quina como os íseus motores csscncLiis e quevia a industrialização
como o ponto culminante da' evolução humana, são'tãò evidentes
que parece necessário que os substit uamos por uma reformulação
profunda. Ao propor as formas de desenvolvimento econômico e
social atuais com o o ponto culminante do progresso : em qúe
- pesem as suas deficiências e irrador lalidades - selecionamos entre
todas as possibilidades abertas aos homens do passado apenas
aquelas que conduziam a este presente e menosprezamos as alter­
nativas que algu ns propuseram. Ensin aram-nos, por exemplo, a acre­
ditar que a destruição das formas de agricultura camponesa de base
comunitária foi iconseqüência da necessidade de eliminar um obstá-
_ cuio ao crescimento da produção, quando sabemos que havia uma
lógica da econo:rnia camponesa que estava conseguindo crescimen­
to por uma linha distinta dá que projpunham os grandes proprietá­
rios, cujo objeti vo não era a maxim ização do bem-estar coletivo,
mas sim a dos seus ganhos. Estamos aiprendendo, além disso, a valo­
rizar a riqueza cultural que se perdem com esta opção frustrada. O
século XVIII foi sempre, para a história tradicional, o da Ilustração, -
e tudo o que n:io é ilustrado se menospreza como retrógrado. Po­
rém E.P.Thompüon ensiriõu-nos a fazer Uma leitura mais complexa
rias coisas, ao m ostrar-nos: a vitalidade e a autonomia de uma cultu-
rapopular que mão tinha nada que ver com ã'da Ilustração, poréiri
que havia conseguido aliviar a situação dos pobres e a preservar a
sua dignidade, q uerião são precisamenté objetivos desprezíyeis.1.7

274 ' ; ' ; ' - " '


reflexões sobre a história, do,além do fim da história

O ponto de: partida dessa revisão deveria sér a recusa da vi­


são I inear da história que serviu para justificar, áo mesmo tempo, o
impnrialismo e as fbrrriâs de desenvolvimento com distribuição de­
sigual, e a tentativa de construir, no seu lugar,'algumas interpreta-
. ções mais realistas, capazes de mostrar-nos não só a evolução simul­
tânea de linhas distintas, inãs o fato de que em cada uma delas; in­
cluindo a que acabará sen do a dominante, não há um avanço contí­
nuo numa direção, mas siim uma suçessão de rupturas.de bifurca­
ções em que se pode escolher entre diversos caminhos possíveis, e,
nem sempre se elegeu o que era melhor' em termos do benriestar
do niaior número possívol de homens e mulheres, mas sim o que
convinha'- ou,pelo menos, o que parecia convir - a aqueles grupos
que dispunham da capacidade de persuasão c da força repressiya
necessárias para decidir ' v- -r- • ~.
Temos de elaborar uma visão da história que nos ajude a en­
tender. que cada momento do passado não contém apenas a semen­
te dt: um futuro pré-determinado e inescapável, mas sim a de toda
unia diversidade de futuros: posSívcis, um dos. quais podé acabar
conv ertendo-se enrdomin ante, por razões complexas, sem que isso
signifique que d o melhor, nem, por outra parte, que os outros este­
jam Uotalmente descartad os. Robert Gildea explica-nos, por exem­
plo, que nos dois séculos que passaram desde a Revolução, os firan-
ceseíi não tiveram soment e umayisão histórica, mas sim uma diver­
sidade delas, inspiradas pordiferentes comunidades políticas - revo
lucio nários e contra-revolucionários, católicos e laicos, partidários
ou inimigos do centralismo etc. - que usaram versões diversas do
passado para definir as su as identidades e legitimar os seus progra­
mas. Não há que pensar n essés visões alternativas tão somente em
termos de invenção discursiva: o seu fundamento reside rio feto de
que, em alguma encruzilhada do passado, diversificaram-se os cami­
nhos que levavam às varia.das direções, que propunham.esses cole­
tivos e que os seus membros continuam acreditando que a história
não t erminou e que a projeção desses caminhos ao futuro é ainda
possivei." ’ d .. . . .. . '
Essa história não limear deveria permitir-nos recuperar mui1
tas oóisas que deixamos e squecidas pelo cámlnho da mitologia do
progresso: o peso real dasi contribuições culturais dos povos euro-
peús, o papel da mulher, a racionalidade de projetos de futuro alter-
nativos que não consiguin im impor-sc, a importância da cultura das
cama dás.populares... E de veria ajudar-nos a escapar, com esse enri-

275
quëcimento do nosso horizonte, da resignação a que pretf -nde çon-_
denar-nos o disc :urso atual da mundialização, filho legítimo do velho
discurso do pro gresso, ainda que tenha renegado á seu pai.
Durante a guerra civil espanhola, Antonio Machado escreveu
■qué ao examina ir o passado para ver o que levava dentro , era fácil
encontrar nele um acúmulo de esperanças, nem alcançada s nëïn fa­
lidas, isto é, um futuro.19 O tipo de história qiie escrevemos e ensi­
namos hà duzentos anos eliminou este núcleo de esperam ças laten­
tes do seu relato, onde tudo se produz fetalmente, mecani camehte,
numa ascensão ininterrupta que leva o homem das cave
históricas até a g;lória da pós-modemidade. Tudo o que fica fora des­
se esquema é menosprezado como uma aberração'que nãc ) poderia
manter-se ante a marcha irresistível das forças- dp progresso òu
como uma utopia inviável. ~ : 7
Outro fugfitivo do fascismo como Machado Walter B efíjàmin,
que morreu um ano depois, muito próximo do lugar
tíriguiu o poeta andaluz, chamoü-nos a
produzia essa vi: são linear e -os ilustrou com o
que se tendia a ver como uma aberração retrógrada ou c<
excepcional, e, pior isso, de sobrevivência difícil, em vez de entendêr
lo como um fruto lógico e natural de um tempo e de algiumas cir­
cunstâncias (com o podemos ver hoje, quando renasce sei n produ­
zir muito escândalo).E completava o quadro denunciando aquele
outro erro paralelo em que haviam caído a esquerda e o n íoyimen-
to operário: o die acreditar que tinham as forças da históriia ao seu
lado, o que acab: iria dando-lhes a vitória. E assim estão agon i os dois.
Parece insensato manter hoje semelhantes erros. O p »rograma
módemizador que iniciou-se há duzentos e cinquenta anò s,no “sé­
culo' das luzes", está' esgotado hoje, não só no que se refe re a suas
promessas de crescimento econômico, cómo também emquanto
projeto de civilização, ou, pelo menos, assim parece no fü ial deste
nosso século, de não muitas luzes, que, viu produzir-se mai s mortes
por guerra, pers eguição e genóddiõ que em toda a histór ia huma­
na anterior (e qme parece disposto.a continuar na tarefe.no: 5 poucos
anos que lhe feltiam). . > ■ .
Còntra a Ihistória que pretendia explicar as coisas '1tal como
se passaram1- isto é, da única maneira em que podiam pas: sar^Wal­
ter-Benjamin pr opunha ao historiador que trabalhasse cc imo o fí­
sico na desintegração dó átomo, com o fim deliberar as 1snormes
forças que ficaram presas na explicação linear da histí iria, quê

276
refle? :ões sobre a historia, do além do fim da histe ria

teria sido, segundo as suas palavras "ó narcótic o mais. poderoso do


nosso século1'.“ . ‘ "■-" •€- ; 7 £
Abandonadas nas bifurcações cm que s e fez umà escolha
nas encruzilhadas em que se escolheu um ou outro caminho -,ou
entre: a bafagem dos que foram derrotados pelos vencedores qüe
depois reesefevéram a história para legitimar o seu triunfo,há.mui-
tas coisas que vale a pena recuperar. Não é lit ato pensar, para dar
um só exemplojque o fracasso dos régimes da ]Europa oriental con­
verte em desdenháveis as esperanças e osesfoirçosde to d o so sh o
meníi e mulheres que lutaram há centenas de :anos para conseguir
uma sociedade mais igualitária. O seu lcgado. forma parte, com "
muitos outros, dessas "enormes forças" esquecidas nos rincões de
uma narração linear do passado: de uma preteri dida história de pro­
gresso que, apesar disso, termina mal. - ú ‘ ' • Ç'
" O segundo dos problemas que mention éi, q que sé refere à
forma de tèladonar7as fetos concretos com o c ontexto teórico que
terá d e explicá-los, sofre tainbérii ás conseqüêmçias dá miopia a q u e'
rios c :ondénou o inodelo linear. Temös de supe rar á prática que vai
dá an lálise abstrata áo dado pôntual: que colecio na fetos'quê possam
encaiíxar-se no lugar que lhes tenha sido designado previamente no
modt :1o interpretativo. Necessitamos, pelo cqnitrárío, partir do feto
concreto, dò acontecimento com tudo o que nein de complexo e
pecü liar, não para isolá-lo como algo único, ma: s sim para colocar à
prova o marco interprétative» e eririquecê-lo áo-mtsmõ tempò.
Gostaria de explicá-lo com uma imagem ejuc talvez contribua
para esdarecê-lo. Ò historiador costuma atuar com o aquele que re-
soivè um quebra-çabeça, um/»usaíè, valendo-se dc um modelo que
lhe niostra as linhas gerais da solução, e vai bu scando o lugar con­
creto em que as linhas da peça, isto é, do áconti eciínento ou o dado
encaiixam com exatidão, o que lhe serve para confirmar a validade
da solução. Porém um acontecimento não é uima peça que possa
expli car-se por completo a partir desse ajuste, ir ias sim um poliedro,
um c oipo dc três dimensões, com um grande mimero de feces. uma
das C[uais encaixa riò modelo de nosso quebira-cabeça, enquanto
que as outras o situam num feixe de diversas i elações em que po-
. dem encaixár-se em outros tantos modelos: Se jpartimos da solução
- pré-estabélecida, só veremos essa dimensão plana dos fetos; se par-
timo:; do acontecimento, poderemos distinguir a diversidade dos
planos que se entrecruzam nele e escolher aqu des-que nos tragam
perspectivas1mais interessantes.' .-: - : .
' epílogo-

Isto é o que implica a incitação ide Edward Thompson, a que


ribs afundemos no arquivo onde se encontra "a realidade ambígua e
ambivalente"-o u a de Walter Benjamin, que pedia um método de tra­
balho capaz die associar o rigor da teoria com a "visibilidade" da
história:um motodo que permitisse "descobrir na análise do peque­
no momento s ipgular o cristal do acontecimento total".-1
Resta o tèrceiro dos problemas, que só posso con siderar de
maneira esquemática. Refiro-me à forma pela qual o histoiriador cos­
tuma explicar íis ações dos homens do passado, racionalizando-ãs e
atualizando-as .À atualização manifesta-se, geralmente, no anacronis­
mo que implica dotar as palavras do passado de sentidos do pre­
sente, que é uma das justificações que legitimam a prttocupação
péla análise d o discurso. Porém esse anacronismo é, p o r sua vez,
conseqüência 'de outro mais. geral e mais grave, Ao esquecer que
muitas çois.as qjue para nós são daras; uma.vez conhecido ò seu de­
senlace, eram e nigmáticas ou duvidosas para os que as viv eram,pro­
cedemos, inadv'ertidamente, a uma clarificação retrospectiva dó pas­
sado: a ler para trás o curso da história que conduz a suia falsifica­
ção. Necessitamos averiguar o que os homens e mulheres;'do passa­
do pensavam irealmente, as esperanças e os temores quie os mo- :
viam, incluindo sobretudo aquelas que, não tendo-se realizado, per­
demos de vista (porém que se conservam em muitos dos textos
mais diretos e pessoais que nos legaram, como podem ser os diários
e as cartas). Só assim poderemos entender as razões que o s levaram
a tomar as suas decisões, no lugar de convertê-los em títeres que
atuam num rot eiro pré-determinado, cujo desenlace fetal só nós o
conhecemos.
E há ain da outro motivo de erro, talvez mais gra ve. Os ho--
mens costumajcn racionalizar a posteriori as suas ações para con­
vencer aos deniais, e convencer-se a si mesmos, de que os; seus atos
são lógicos e racionais. Porém nas suas motivações reais iiá um fun­
do de p reconceitos, medos ou aspirações inconfessadas (que com'
frequência não se atrevem sequer a confessar-se a si mesmos), que,
ou bem se ocultam dos demais, ou se integram forçadamiente num
contexto pretendidamente racional (acaso o racismo, para dar um
só exemplo, nãio se apresenta por parte dos,que o manlêm como
um produto da ciência?).O homem é,mais que um animal racional,
um animal racionalizador, que justifica a posteriori com razões ima­
ginárias muitas decisões que surgiram de zonas obscuras da mente.

278
reflexões sobre a história, do além do fim da-história

Isso explica que os homens reais sejani por naturèza contraditórios


- yist os à luz da razão - e <jue as suas ações nãó se ajustem hõ. geral
à imiagem coerente que qiuerem dar de si mesmos. Se rios acostuma­
mos a vê-los assim, e não n a visão plana dòs retratos sem sombras que
cosnimam oferecer-nos ò s seus biógrafos - que eles nos dão numas
meiriórias em que reconsti ruíram cuidadosamente as suas vidas -, con-,
seguiremos entendê-los mielhor.A isso pode ajudar-nos a elaboração
de uma espécie de antnpj jologia histórica, tal como a propõe Arpn
Gurievich, que a define com o o método que permite compreender
de que modo "uma corre;nte caótica e heterogênea de percepções
e de impressões se transforma, por obra da consciência, numa visão
do mundo ordenada que |põe a sua pegada sobre qualquer conduta
humana". ' _ * _• ~ ••’
Áté aqui falei unica imente de teoria, sem ocupar-me do valor
práti co do trabalho do his toriador. Recentemente publicou-se um li­
vro cie Harvey Kaye22 que: ms tenta que as.classes dominantes temem
a his tória porque esta é, em última instancia, o relato da luta dos ho­
mens e da mulheres pela. liberdade e pela justiça. OrweU já havia
dito, na sua visão de um m undo totalitário, que 'quem controla o pas­
sado controla o futuro e q uem controla o presente controla o passa­
do'. I sso explica a necessi dade de dominar a história, ou seja, a ihe-
mórja coletiva. Não se haverá de estranhai; por conseguinte, que
Khn ischev manifestasse n o seu tempo: 'Os historiadores são pessoas -
perigosas, capazes de colo car tudo.de cabeça para baixo. Gonvém vi­
giá-los'. E que a senhora Thatcher se preocupasse por sua parte em
controlar o tipo de história que se havia de ensinar nas escolas.
Isso explica tamb ém a preocupação para convencer-nos
hoje de que não há mais íúturos a explorar, porque estamos nõ fim
da hi istória. O que nãò é v erdade. Porque nunca é o fim dà história,
somente que sempre nos encontramos no fim de uma história e no
com eço de outra ou de outras cujo curso não podemos predizer
com nenhum método, p or refinado e científico que seja, não só pela
comjplexidade da previsão, como também porque a trajetória do
porvir dependerá do que. entre todos nós queiramos e saibamos fa­
zer. Hsse caráter imprevis ível do futuro tem sido, como já disse, a
origf :m de boa parte do nosso desânimo e do nosso desconserto.
Não deve ser assim, mas sim que temos de íprendef~a construir
com ele uma esperança q ue nós anime, neste tempo em que se ge­
neralizou uma nova série de profecias, negativas e sombrias, com o
epílogo

objetivo de mcobrar a confiançaem. que, como disse um poeta da


minha terra, "tudo está por fazer e tudo. é possível"
Há maiis de duzentos anos um homem que continuou sendo
uma referênciia.para todos quantos lutam pela liberdade,,Tom Paine,
escreveu um panfleto com o título de Commórí sense, o sentido Co­
mum. Esse pequeno livro apareceu num anò crucial: o ano da inde­
pendência dos Estados Unidos da América e o da_ publicação de
duas obras básicas da cultura contemporânea: D ecadência e queda
do Im pétio roiriano, de Gibbon, a obfã que renovava a nossa com­
preensão dá liistória, e A riqueza das nações, de Adam Smith, que
fixava as regrus de funcionamento do desenvolvimento capitalista.
O pequeno lrvro de Paine nunca teve um.prestígio semelhante na
nossa cultura, porém não só. foi a inspiração'fundámentirl dos revo­
lucionários norte-amerícanós - não é só uma relíquia do passado - ,
' como também é o texfo que formulou pela primeira vçz; princípios
carregados de futuro, e ainda vigentes, como a distinção entre a so­
ciedade civil t: o Estado ou a defesa dp direito das coletividades hu­
manas de dar-ise a forma de governo quedeseja a maioria, ou seja, a
sua autodeterimlnação. Porém o que agora gostaria de destacar des­
se livro é uma frase concreta que deveríamos recordar sem pre: 'Está'
nas nossas mãos voltar a começar o mundo de novo1.
Na medida em que o historiador é quem melhor conhéce o
mapa da evolução das sociedades humanas, quem sabe: a mentira
dos signos inclicadores que marcam uma direção única e'quem re­
corda os outros caminhos que conduziam a outros destinos distin­
tos e talvez melhores, é a ele a quem toca, mais que a ninguém, de­
nunciar os enganos e reanimar as; esperanças para 'com eçar o
mundo de novo'.
Falo dt: enganos, porque a história, praticada por mãos
inábeis, pode se r uma ^rma destrutiva muito temível. Os grupos ra­
cistas dos Estados Unidos têm hoje como livro de"cabece ira uma es­
tranha combinação de novela de ficção-política e de manual de ter­
rorismo, que se chama The T um er diaiies, onde se pinta um futu­
ro em que gruipos terroristas acabam com o "sistema" numa "revo­
lução" que produz muitos milhões de mortos nos Estados Unidos
(todos os negr os e judeus, e supõe-se quê também todos o s latinos),
que logo se es fende à Europa e que acaba liquidando a toda a po­
pulação asiátic a, com uma combinação de métodos químicos,biokv.
gicos e radiativos que "esteriliza" uma superfície que vai "dos Urais
ao Pacífico, e d o Oceano Ártico ao índico", com o que c onsegue o
•refl<jxões sobre á história, do além do fim da his<»ria

seu sonho de lazer umahumanidadc branca (n ão se diz o que fazem


eon i a África e com a América Latina, porém 1lãó é difícil de imagi­
nar; I, O pior desse livro é que baseia-se numa cconcepção totalizado­
ra dia história. Quando os menibros da organização tratam de edu­
car a uma nova recruta, o primeiro que fazem é dar-lhe parai ler "al­
guns Imos sobre a raça-e a história".3 '- v '■ ■
Livres daquelas ilusões de que muitos de nós compartilha­
mos! e que fizeram da história, como lhes recçirdei quedisse Benja-
min „"o narcótico mais poderoso do nosso século", nós historiádo-
res devemos combater, armados de ratões, as profecias paralisàdo-
ras (la mundialização, com que se pretende sub >stituir àquelas e, com
maior empenho ainda, todas as aberrações que servem para justifi­
car, em nome de pfecpnceitbs assentados na d eformação da memó­
ria coletiva, ,as mais-diversas,formas de opres são e de extermínio,
conn o pretexto de superioridades raciais ou dle civilização, seja laj­
ea C'U religiosa. Desse modo contribuiremos parâ.limpar das ervas
danilnhas a.encruzilhada.em qüé nos encontnunòs.e ajudareraos a
que sejam vistos mais claros òs diversos camihlios que se nos abrem
adia nte e a que entre todos elejamos os melhores.
Não é uma tarefa fácil, porém vale a pem i dedicar-se a ela. Pos­
so d izê-Io por experiência pessoal. Já faz mais d e quarenta anos que
com ecei a trabalhar como historiador. Nem sei npre foi um trabalho
fácil, porém valeu a pena, O meu ofício preencheu-me estes anos e
deu sentido à-minha vida. Porque não é só uni trabalho, ainda que
também e antes de tildo seja um trabalho, pomo também o meu
modlo de estar neste mundo e de lutar com as armas do meu ofício
contra todas as coisas que impedem que se realize uma.sociedade
onde haja, como disse um historiador hoje den iàsiado esquecido, "a
maic >r igualdade possível dentro de maior liben dade possíveí".

Josep Fontana
■Outubro de 1997

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