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Cahiers du monde hispanique et

luso-brésilien

Klaxon e Lumière
Cecília de Lara

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de Lara Cecília. Klaxon e Lumière. In: Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien, n°25, 1975. pp. 77-102;

doi : https://doi.org/10.3406/carav.1975.1988

https://www.persee.fr/doc/carav_0008-0152_1975_num_25_1_1988

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Klaxon e Lumière

PAR

Cecilia de LARA
Université de São Paulo

Ao estudarmos a revista literária Klaxon (*)» primeiro periódico


do Movimento Modernista Brasileiro, encontramos várias alusões a
publicações europeias congéneres. Entre outras é citada com
frequência a revista belga Lumière (2). Isso nos levou a pensar que o seu
exame seria importante para completar o estudo de Klaxon,
esclarecendo alguns dos seus aspectos — no caso as relações com
grupos europeus. Mas, paradoxalmente, na Coleção Mário de Andrade,
do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo,
que reúne o mais importante conjunto de material para o estudo do

(1) Klaxon, mensário de arte moderna — Foi o primeiro periódico modernista


brasileiro, editado em São Paulo, logo após a Semana de Arte Moderna, dando
continuidade à fase de implantação do movimento. Publicada a partir de março
de 1922 se extingue em Janeiro de 1923, após uma trajetória de divulgação de
produções e ideias modernistas, que frequentemente agitavam os meios
literários, provocando polémicas. Eclética, dinâmica, escapa às tentativas de
classificação ou enquadramento em esquemas fechados. Publicou prosa, poesia, ensaio,
noticiário, gravuras, sempre atenta às renovações artísticas e de ideias. Dizendo-
se « internacionalista » abrigava colaborações em francês, italiano e espanhol —
além do português. Foi realizado pelo grupo modernista que já participava da
Semana, tendo à frente Mário de Andrade — líder incontestável do
Modernismo no Brasil.
(2) Lumière, revista belga, editada em Anvers, Bélgica, de 1919 a 1923,
dirigida por Roger Avermaete.
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Modernismo Brasileiro — apenas um número de Lumière se


conserva. No entanto, o recebimento contínuo e ininterrupto dessa
publicação foi registrado na Secção « Livros e Revistas », durante
todo o período de duração de Klaxon, de março de 1922 a janeiro
de 1923.
Tomando como ponto de partida as referências à Lumière feitas
em Klaxon, examinamos alguns números avulsos de Lumière (3), a
obra escrita pelo seu diretor Roger Avermaete V Aventure de
Lumière (4), e a obra crítica e memorialista de Sergio Milliet (5), para
chegarmos à definição das relações entre os dois periódicos, que
se realizam em diferentes níveis :
1. Registro de recebimento dos exemplares de Lumière no
noticiário de Klaxon, « Livros e Revistas ».
2. Presença de colaborações em Klaxon de autores ligados ao
grupo Lumière, belgas ou não.
3. Resenhas e criticas em Klaxon, de obras editadas por Lumière.
4. Referências esparsas em Klaxon a obras, autores ou ideias
ligadas ao grupo Lumière.
5. Colaborações de klaxistas em Lumière traduzidas por Sergio
Milliet, e ainda colaborações de sua própria autoria.
Mas, vejamos um pouco da história da revista e do grupo
Lumière.
Segundo ños relata Roger Avermaete, diretor da revista e chefe
du grupo Lumière, em agosto de 1919 iniciou-se a publicação do
periódico, mas o grupo vinha se articulando a partir de 1914, na
Bélgica ocupada pelos alemães. Lumière será, então, um pulmão pelo
qual alguns jovens idealistas procuram haurir um sopro novo.
Inicialmente são sete : dois que se dedicam às artes plásticas : Alice
Frey e Jóris Minne. E cinco voltados à literatura : Bob Claessens,

(3) Um exemplar original, de junho-julho de 1922, da Coleção Mário de


Andrade, do Instituto de Estudos Brasileiro da Universidade de S. Paulo. Três
exemplares completos, em xerox, de março e abril de 1922 e fevereiro de 1923.
Colaborações avulsas, de autores brasileiros, em xerox :
15 de novembro de 1922, sumário e artigo de Sérgio Milliet « La jeune
littérature brésilienne » e ainda sumário e manifesto do primeiro número, de agosto de
1919.
(4) Avermaete, Roger, L'Aventure de Lumière, Arcade, Bruxeles, 1969.
(5) Milliet, Sérgio, Poeta e critico de arte brasileiro, que viveu na Suiça 9
anos, ai completando sua formação e iniciando sua carreira literária. De volta
ao Brasil participou das atividades do grupo modernista, tais como a Semana de
Arte Moderna — que desencadeou oficialmente o Movimento — e a revista
Klaxon, primeiro periódico modernista brasileiro. Autor de extensa obra
memorialista e critica, Sérgio Milliet refere-se muitas vezes aos companheiros das
rodas literárias europeias, a fatos, obras e nomes da época da primeira Grande
Guerra — periodo marcante em sua formação como homem e escritor.
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Willy Kornickx, Georges Marlier, René Vaes, Roger Avermaete. Logo,


algumas deserções e novos membros, que irão até o fim : Henri Van
S traten, Armand Henneuse, Frans Buyle, Wilfred Hallemans, Frank
Van Der Wyngaert.
O problema da manutenção será para Lumière uma sombra
constante, à espreita. Angariar assinaturas e mantê-las foi preocupação
contínua. E havia, ainda, a atitude orgulhosa de tentar sobreviver
por si. Uma das saídas, visto que só assinantes não garantiam os
fundos, era a realização de outras atividades que possibilitassem a
sobrevivência da publicação. Conferências, exposições, edições,
saraus de poesia, representações de teatro de marionetes — com
altos e baixos quanto às rendas — não evitavam que os membros do
grupo gastassem dinheiro do próprio bolso para prover os fundos de
Lumière.
Tais problemas acarretaram oscilações na publicação, e as datas
das revistas mostram irregularidades que trazem inquietação a ai*
guns. Charles Plissier, que colabora na fase inicial de Lumière,
perguntará mais tarde : « Comment va Lumière ? Est-il vrai qu'elle
ne paraîtra plus comme le bruit en court avec persistance ?
Pourquoi, en tous cas, paraît-elle si irrégulièrement ? Eventuellement, à
quand le prochain numéro ? » (6).
Dificuldades, como se observa, semelhantes às que Klaxon
conheceu.
Mas, apesar disso, a publicação continua, e o grupo Lumière passa
a expandir-se, realizando outras atividades : exposições,
conferências, edições, criando, mesmo, mais tarde, uma sociedade
cooperativa, tendo por fim a edição e venda de livros próprios e de outras
publicações, organização de manifestações de arte tais como
exposições, representações, conferências e comércio de objetos de arte (7).
A sociedade dá sequência às atividades editoriais e artísticas
empreendidas pela revista Lumière, mantendo sempre a
preocupação com edições cuidadas, a ponto de se fazer necessária uma
tipografia própria, de arte, para manter o nível das publicações.
O grupo Lumière, primeiramente através da revista e depois
através da sociedade, promoveu uma quantidade realmente
notória de atividades artísticas, de alto nível, como as três exposições
internacionais de gravura, contando a primeira com dezesseis
artistas, a segunda com vinte e cinco e a terceira com vinte e sete de
vários países.

(6) Avermaete, Roger, idem, p. 64.


(7) Idem, ibidem, p. 168.
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Realizou também exposições de pintura e desenho; conferiu três


prémios : prosa, poesia, gravura; promoveu saraus de música e
poesia; palestras de nomes famosos como Duhamel, René Arcos, Jules
Romains e outros; palestras sobre arte : teatro, música, cinema,
dança, arquitetura, enfatizando-se o critério de uma posição
modernista; edições de obras variadas e a revista. Tudo isso conflui para
um momento que nos parece o supremo na vida do grupo, pelo que
significa em termos de equipe e de síntese : o teatro de marionetes.
Roger Avermaete contará num livro (8) a meticulosa pesquisa, a
cuidadosa e artística criação e elaboração dos bonecos, de total
originalidade, a procurada e obtida adequação do cenário e
iluminação às figuras, e os demais detalhes necessários à realização do
espetáculo, além da questão dos atores, escolha de peças e locais,
com os problemas inerentes. « Nous sommes partis pour une
croisade théâtrale et nous avons fait un théâtre tout court. L'idée, je
crois, n'est pas mauvaise en soi et pourrait servir encore : faire un
théâtre de marionnettes pour le théâtre poétique, pour les pièces soi-
disant injouables > (9).
Os três artistas plásticos do grupo, Van Straten, Joris Minne,
Jan Cantré, serão mobilizados para a façanha. E Van Straten criará
os bonecos dentro de uma concepção nova e original que só será
reconhecida em 1958, quando merecerão o prémio internacional de
Bruxelas.
Toda uma teoria apoia a criação de cada detalhe : « Selon nos
vues, la primauté devait aller au texte. Pour la souligner, le geste.
D'où la nécessité de présenter des figures stables, sans vaines
gesticulations, pour laisser toute sa valeur à messire le Mot » (10) .
Na época da extinção da revista, em 1923, faz-se o balanço da vida
de Lumière e de suas atividades : « Fondé en août 1919, le groupe
« Lumière » a organisé : 18 conférences (Anvers, Bruxelles), 8
expositions (Anvers, Amsterdam, Rotterdam), 1 soirée de declamation
(Anvers).
« II a participé à 7 expositions (Amsterdam, Paris, Berlin, La Haye,
Remscheid).
« II a fondé un théâtre de marionnettes qui monta quatre pièces.
« II a publié : 9 albums graphiques, 7 recueils de vers, 7 livres de
prose, 3 pièces de théâtre, une revue mensuelle (40 numéros parus,
644 pages in 4°) » (»).

(8) Idem, Les Marionnettes de Lumière, Ed. Henneuse, Lyon, 1954, apud,
L'Aventure de Lumière.
(9) Idem, L'Aventure de Lumière, p. 158.
(10) Idem, ibidem, p. 164.
(11) Idem, ibidem, p. 164.
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Em 20 de dezembro de 1922 saiu o penúltimo número e em


fevereiro de 1923, o último.
Como parece ser comum, há certa relutância no grupo em aceitar
o fim de Lumière. Propõe-se a substituição da revista por um
caderno, sob diferentes direções, acompanhados de uma folha de crítica.
Mas, a folha de crítica só saiu uma vez e nenhum caderno apareceu.
A sociedade continuou por mais tempo e na 2a. guerra, por
ocasião da ocupação alemã, ficou inativa, passando a ser extensão
francesa das edições Manteau em Bruxelas. Mas, resta todo o acervo de
publicações, e o balanço das atividades revela um saldo precioso,
notadamente num campo, que Lumière estimou sobremaneira : o da
gravura. Lança e impõe nomes que ultrapassarão fronteiras, como o
de Masereel.
O contato direto com exemplares, em cópias xerografadas, e um
original, da Coleção Mario de Andrade do I.E.B., permite-nos
caracterizar alguns*ãspectos materiais da publicação, bem como examinar
diretamente, ainda que apenas em parte, o seu conteúdo (12).
De tamanho 21,5 por 28 cm, com ilustrações na capa e no interior,
Lumière parece não ter se modificado quanto à apresentação
material no decorrer de sua publicação. O nome Lumière, em letras
grandes encima a capa, numa faixa horizontal. A capa don" 1, idealizada
por Juan Cocks, pintor e ceramista, provocou reações de desagrado.
Reproduções de capas de números de outras épocas, no livro de Aver-
maete (13), bem como as cópias que examinamos, revelam alguma
variação, segundo dois esquemas : o primeiro, que repete o da
revista I, é constituído por gravuras que ladeiam o sumário, colocado
no centro. Um símbolo, com um movimento em hélice ou espiral se
repete nesse tipo de capa e estará presente em convites e catálogos
de exposições promovidos por Lumière. Uma ampliação dessa figura,
ou outra de tipo diferente, cobrindo toda a extensão da capa
constitui a segunda modalidade de ilustração, servindo de fundo ao
sumário, colocado na faixa central, horizontalmente. Local, data, número
da revista aparecem acima ou abaixo do título, sem rigidez. Na contra
capa repete-se o sumário — completo, com os artigos
distribuidos em secções. O corpo de direção aí registrado é constituído por
Avermaete, director; Joris Minne, secretário (e substituto eventual de
Avermaete) e Henri Van Straten que se encarregava da c Secção
Gráfica ». Vários são os representantes no exterior : na França,
Marcel Millet, que colaborará em Lumière e em Klaxon. L. Charles Bau-

(12) Ver nota (3).


(13) Avermaete, R., op. cit. d).
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douin, na Suiça, e que teria sido o intermediário entre Sergio Milliet


e o grupo belga. Da Itália, Lionello Fiume; da Alemanha, Ivan Goll,
que será citado em Klaxon. Leight Henry, da Inglaterra, Raphael
Lasso De La Vega, da Espanha, Sergio Milliet, do Brasil e Viking
Dahl da Suécia. Os contactos foram mais por carta que diretos,
segundo Avermaete « Nous n'avons jamais rencontré aucun d'eux
mais nous avons entretenu avec plusieurs une correspondance
suivi » (14) A redaçâo era em Anvers, 160, Avenue de l'Amérique.
A revista apresenta estrutura interna clara, segundo as secções
que constam do sumário : « La Société » tratava de aspectos político-
ideológicos, quase sempre de autoria do diretor e desaparecerá no
quarto ano. « Les Lettres » contém prosa e poesia, ensaio, bem como
resenhas nas Notas Críticas. « Les Arts Plastiques », com
noticiário e comentário das realizações do grupo : exposições internacionais
de gravura, exposições de pintura ou desenho, catálogos, notas sobre
obras relativas à música. « Les Sciences », suprimida logo após os
primeiros números. « Illustrations », junto aos textos ou ocupando
páginas inteiras, sempre presente em Lumière, que enfatizou
sobretudo a gravura. No sumário de novembro de 1922 aparece a secção
de cinema, com o nome de Bob Claessens. Catálogo de edições
Lumière, realizadas ou projetadas, propaganda de livros, livraria,
galeria de arte, completam o conteúdo. O número de março de 1922
reproduz o catálogo das edições Lumière, encabeçado por uma obra
de Guilherme de Almeida : « Messidor — poèmes traduits du
portugais par Serge Milliet, avec des bois gravés de Henri Van Straten — à
paraître ». Mas, não chegou a ser publicado, embora entre os
anúncios de Kaxon apareça a propaganda : « Messidor, poemas de
Guilherme de Almeida, tradução francesa de Sergio Milliet, edição
Lumière, Anvers, Bélgica ».
O número de colaboradores foi muito grande e variado, no
conjunto dos 40 números da revista, sempre acolhidos sem
preconceitos, quanto à origem e posição. Essa variedade decorre dos
próprios princípios que norteiam Lumière, presentes no manifesto e em
vários artigos da secção « La Société ».
Avermaete refere-se a 175 colaboradores, de países diversos :
Alemanha, Armenia, Austria, Brasil, Espanha, Estados Unidos, França,
Grã-Bretanha, Indonésia, Itália, Países Baixos, Rumania, Rússia,
Suécia, Suiça, Tchesccoslováquia, Yugoslavia, além da própria
Bélgica (15).

(14) Idem, ibidem, p. 73.


(15) Idem, ibidem, p. 74.
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. Em carta recente (16) reafirmará a mesma posição, referindo-se ao


Brasil : « La fraternisation des peuples, par le truchement des
artistes, était notre grand souci. C'est-à-dire que nous étions très
fiers d'avoir établi des contacts avec un pays sud-américain ».
Logo, ao considerarmos o número e a variedade dos
colaboradores já tocamos num outro aspecto, mais amplo, que trataremos
a seguir : o da posição de Lumière no contexto político-ideológico da
época, bem como os motivos que determinam sua criação, expressos
no manifesto, em artigos de La Société e em depoimento do
director.
A criação de Lumière e sua expansão se explicam dentro do
clima que vive a Europa e particularmente a Bélgica, por volta de
1914. *;^p$

:
;
O ultimatum da Alemanha à Bélgica gera inicialmente um clima
de entusiasmo, principalmente entre os jovens, ávidos de assumir
funções militares. Tal atitude explica-se em parte pela situação
especial da Bélgica no contexto europeu, que nessa época se sente
afirmar-se como nação, e vê despertar seu sentimento patriótico. Com
isso a face real da guerra se oculta. O isolamento, com a
ocupação alemã, que não permite contactos com a Franca, mantém
por algum tempo certa inconsciência. Mas, não era muito diferente
o panorama europeu, em geral, segundo Sergio Millet : « A voz
de Romain Rolland ainda não clamara no deserto do bom senso. A
luta entusiasmava as multidões e diariamente novas levas de
voluntários e recrutas partiam para a frente, entre flores de retórica e
canções militares » (17).
A obra de Barbusse, Le Feu, que consegue ultrapassar as
fronteiras francesas e belgas, será para aquela geração o instrumento que
levará a uma atitude realista em relação à guerra.
Este livro, citado como marco por Roger Avermaete, será também
mencionado por Sergio Milliet, que relata o efeito semelhante
experimentado pelos seus companheiros suíços : c Foi quando surgiu
Barbusse. Vinha da frente, em linha reta, seu livro corajoso — Le
Feu. No meio do otimismo quase inconsciente do momento jogava,
cinematográficamente, aspectos ainda desconhecidos do grande
drama, cuja representação apenas se iniciava. Era uma desilusão
e uma revelação : os homens não faziam trocadilho na hora H, mas
falavam a rude linguagem da revolta e do desespero. As paisagens

(16) Carta de Roger Avermaete à Professora Marlyse Meyer, datada de 14 de


abril de 1973, acompanhando as cópias em xerox que utilizamos neste trabalho,
relacionados na nota (3).
(17) Milliet, Sérgio, Marcha a Ré, José Olimpio, S. Paulo, 1936.
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expostas eram de lama, fumaça, estilhaços, envenenados e


irreparáveis. A vida das trincheiras, descrita num tom pesado de
exaustiva emoção, de heróico apresentava tão somente o tremendo
fatalismo dos soldados. Nenhum « panache » mas uma paciência
dolorida, um surdo rancor, uma aceitação conformada do destino, em que
brilha por momentos, a esperança de não ser tanto sacrifício
inútil » ('8).
Diante da real face da guerra modifica-se a atitude anterior. E
foi então que uma nova visão nasceu, entre jovens belgas, que
sentem a revolta brotar : « Lentement, devant la stupidité de ce drame
sans issue, la révolte nous gagna aussi : nous n'étions pas les
seuls » (19).
Da tomada de consciência, da revolta contra os responsáveis, à
busca de um caminho, pouco medeou. « Pour les jeunes, avides de
se vouer aux arts et lettres, elle (la révolte) détermine des prises
de positions brutales. Les aînés étaient récusés en bloc. Il fallait
tout recommencer, refaire un monde nouveau. Et c'est pourquoi
toute cette jeunesse se lança dans un modernisme éperdu » (20).
Faltava só a definição do meio, já que a tarefa estava clara — a
de construir um mundo novo. « Seule une revue nous offrait la
possibilité de nous faire entendre. Donc, nous fondâmes une revue
et elle fut baptisée Lumière : título tirado de uma frase de Romain
Rolland ». La Lumière ne cesse pas de briller » (21).
O manifesto revela o idealismo quase infantil, utópico, vago, que
virá à tona, como forma de ação ante um mundo em conflito.
Aspirações à beleza, à liberdade, como valores absolutos, anseios de
confraternização numa esfera vagamente espiritualista : « Profession de
foi plutôt vague, mais pour nous d'une clarté decisive », dirá Aver-
maete anos depois (22).
A liberdade de pensamento, o respeito às posições diversificadas,
determinarão, na prática, a feição eclética de Lumière, censurada
por alguns que tinham posição mais fechada, como Paul Colin :
« Un éclectisme assez paradoxal dans le choix des collaborateurs
nuit encore un peu à la tenue du périodique » Í23).

(18) Idem, ibidem, p. 10/12.


(19) Avermaete, Roger, op. cit. (I), p. 14.
(20) Idem, ibidem, p. 14.
(21) Idem, ibidem, p. 22 : < Lumière est l'effort d'une poignée de jeunes
vers des buts de clarté. Lumière lutte pour tout ce qu'elle croit le beau et le vrai.
Elle ne prétend pas avoir découvert la Beauté, ni la Vérité, mais elle croit
simplement être un effort vers la Vérité >. Diz o manifesto em seu início.
(22) Idem, ibidem, p. 24.
(23) Idem, ibidem, p. 28.
KLAXON E LUMIÈRE 85

Mas, a acolhida de grandes nomes encoraja o grupo. Romain


Rolland, Henri Barbusse e Duhamel, que receberam o Io número de
Lumière acompanhado de uma carta, não deixaram de enviar
resposta de estímulo e congratulação à nova publicação.
Não tarda, porém, a acontecer um fato que levará Lumière a uma
definição mais precisa de posição : a ruptura entre Barbusse e
Rolland. Roger Avermaete na secção La Société, se pronunciará
retomando ideias que já havia defendido, em artigo publicado
anteriormente (24) . A questão entres os dois grandes nomes nascera da
aproximação, até o engajamento, do grupo Clarté, ao Partido Comunista.
Romain Rolland não aceita a filiação a partidos e dessa divergência
participam muitos intelectuais da época. Romain Rolland defende a
posição de independência do artista, que deverá manter-se livre
para opinar. Esta opinião será endossada por Lumière : « Penseurs
et artistes ont une mission plus haute à remplir » (25).
Referindo-se as idéias de Romain Rolland em YIndépendance de
l'esprit, Avermaete tenta explicar a posição dos « rollandistas »
atacada por Barbusse. Afirma que não se recusam a apoiar a nova
ordem, porém, mantendo-se atentos à conservação da liberdade,
enquanto Barbusse crê que a insurreição contra a ordem
tradicional, fora de uma nova ordem, é estéril. Avermaete defende uma
posição de construção, contra a violência.
Outros artigos em Lumière reafirmam a posição esolhida : René
Edmé fala contra os partidos, num artigo em que analisa o
Socialismo apoiado em atitudes brotadas do sentimento e Philéas Lebés-
gue defende, contra as associações, a posição individual,
reservando a cada um a liberdade de consciência, a obrigação de
trabalho, repousando o funcionamento social na confiança mútua (26).
Fiel à sua origem Lumière não abrirá mão de seus princípios,
fortemente apoiados na visão de Romain Rolland, que polarizará
toda uma geração. A reverência, o respeito a sua figura marca não
só o grupo Lumière : « Romain Rolland fut, pour les hommes de ma
génération, Tun des maitres de qui la pensée s'imposait à nos
méditations » <27), dirá Avermaete.
Mas, confessa certa relutância a continuar aceitando a posição
idealista utópica, de Romain Rolland, que evolui para a não
violência, à maneira de Gandhi : « La pensée de Rolland me semblait

(24) Avermaete, Roger, « En marge d'un différend *, 15 de março de 1922.


(25) Idem, ibidem.
(26) Edmé, René, « Le Social Romantisme », Lumière, 15 de março de 1922 e
Lebesgue, Philéas, « L'individu et l'état, idem.
(27) Avermaete, Roger, op. cit. (I), p. 37.
86 C. de CARAVELLE

indécise. Il acclamait la révolution russe, tout en désapprouvant les


excès du régime. J'aimais beaucoup Romain Rolland, mais les
fluctuations de sa pensée me désorientait. Quand après avoir
découvert Gandhi, il se mit à prôner la non-violence, je ne pus m'empê-
cher de lui faire part de mon trouble. Cette attitude, possible aux
Indes me semblait en Europe d'une efficacité douteuse » (28).
A filiação de Lumière ao pensamento de Romain Rolland enqua-
dra-se numa linha pacifista, que se desenvolveu na Europa, como
uma das respostas à violência da guerra. Sem condições de criar
soluções, os que participam da primeira Grande Guerra submergem
no ceticismo ou na utopia, como forma de reação à crueza de um
espetáculo demasiodo chocante para ser aceito ou explicado. É
preciso considerar que na Europa um sopro diferente surge no após-
guerra, como decorrência natural do conflito. A consciência de que
as coisas tinham se modificado gerou reações diversas, como se pode
observar.
A consciência da ruptura levou, por um lato ao nihilismo, que
gera atitudes como a dos dadaístas, que tentam demolir sem nada
propor; por outro, faz irromper um idealismo que tenta suprir com
aspirações utópicas de confraternização universal os dilaceramentos
físicos, psicológicos e morais, que resultam da Primeira Grande
Guerra. Os homens se arregimentam em grupos politicos, em
associações, em grupos literários, com a aspiração de encontrar soluções
para os problemas da humanidade. Ê preciso lembrar que quando
Tristan Tzara lança os manifestos do Dadaísmo, polarizando os
aspectos caóticos e nihilistas da época, por outro Romain Rolland
pontifica ante adeptos não menos convictos, defendendo o pacifismo, a
construção, através da não violência, do amor entre os povos, da
confraternização universal. Já, outros embora descrentes, contudo
consideram valida a expressão do pessimismo em tons violentos ou
sombrios, que transtornam a face aparente dos objetos e seres.
A exaltação das vitórias, os falsos ideais que mascaravam as
consequências reais da luta se quebram para dar lugar à revolta, à busca
de caminhos que levarão os homens à constituição de grupos, à
filiação a partidos, ao engajamento ideológico e político. Barbusse funda
Clarté em 1919, grupo que se encaminharia para a filiação ao partido
comunista. Sergio Milliet refere-se aos objetivos da revista Le
Carmel i30) dirigida por Ch. Baudouin, na época em repouso, por ter

(28) Avermaete Roger, op. cit., p. S3.


(29) Le Carmel, revista editada na Suiça, em 1917, dirigida por Charles
Baudouin, na qual colaborou Sérgio Milliet.
KLAXON E LUMIÈRE 87

sido ferido na guerra. < Tinha por fim servir de porta voz aos
intelectuais de ambas as facções para que isentos de paixão pudessem
com franqueza e lealdade expor seu verdadeiro pensamento » C30).
Recordando essa época, dirá, no Diário Crítico : « Éramos pacifistas
e a nosso lado se achavam Stefan Zweig, Karl Spitteler, René Arcos,
Guilbeaux, boa parte dos escritores que mais tarde fundaram
« Europe > (31). Essa mesma atitude é que inflama Stephan Zweig
levando-o a fazer uma verdadeira peregrinação europeia (32.)
A figura de Romain Rolland era o centro difusor das idéias
pacifistas que alimentavam o idealismo de muitos. Sergio Milliet também
fala do « respeito religioso » que lhe votava (33) e sempre
reverenciará a imagem que lhe ficou das reuniões em Saconnex D'Arve,
perto de Genebra, onde residia Baudouin. Anos mais tarde, lendo o
livro de René Arcos sobre Romain Rolland, recordará o seu papel na
época da guerra : < A posição de Rolland, sereno e humano, no
momento de ódio e obnubilação, de 1914 a 1918, eu a apreciei de
perto » <34). E manterá sempre fidelidade a essa visão que guardou
da época da revista Le Carmel.
Logo, é compreensível a posição assumida por Lumière, bem como
o teor do seu manifesto. O ecletismo que a caracteriza é, pois,
visceral, por traduzir um anseio de confraternização que impedia a
imposição de um programa. E não é sem certo orgulho que Aver-
maete confirmará, anos depois, essa atitude : .« Nous ne nous
sommes jamais départis de la même ligne de conduite : nous avons
toujours accueilli sans les juger ceux qui venaient à nous, en adeptes
fidèles d'une doctrine dont on parle beaucoup mais que l'on
n'applique guère : la liberté de penser > C35).
Este espírito se refletirá em consequência, no conteúdo de
Lumière. Não percebemos unidade ou linha comum na colaboração
literária, além de certa coincidência temática, por um lado, bem
como a relativa liberdade formal, bem longe, no entanto, de uma
posição radical.
Reminiscências de tons simbolistas, o amor às paisagens
nebulosas, os climas outonais, ainda estarão presentes entre outros
colaborações mais realistas que tratam da guerra e suas consequências para

(30) Milliet, Sérgio, Ensaios, S. Paulo, 1938, p. 188.


(31) Idem, Diário Crítico, v. 8. S. Paulo, Ed. Martins, 1955, p. 166.
(32) Idem, ibidem, p. 50.
(33) Idem, Ensaios, p. 188.
(34) Idem Diário Critico, v. 8, p. 155.
(35) Avermaete, R. op. cit., p. 93.
88 C. de CARAVELLE

o homem, no plano físico e psicológico. Reações de oposição e


rebeldia, que conduzem à descrença, à marginalização, ao nihilismo, se
mesclam à aspiração de construção, um clima de fraternidade e
amor, à maneira de Rolland.
Significativo, é o poema de Marcel Milliet, « Les camarades » (36),
dedicado a Romain Rolland, que reflete a posição idealista, de
fraternidade e ' fé, porém sem definição ideológica. É mais um apelo
sentimental, com laivos de socialismo e vagas intenções universais,
recorrendo a W. Whitman e citando Jean-Christophe, de Rolland.
A atitude de rebeldia correspondem poemas longos, narrativos,
presos aos fatos recentes. Porém, a posição assumida ante
à realidade e as propostas de soluções não são as mesmas. Outras
contribuições, sem compromisso com a realidade objetiva, de caráter
intimista, mais pessoais, escolhem forma mais sintética e às vezes se
distraem na burilação virtuosística do ritmo e da palavra. O poema
« La danse des heures », de Guilherme de Almeida pertence a este
tipo.
Pelo que podemos constatar, a prosa parece menos significativa,
qualitativa e quantitativamente. Em geral fragmentária, passando
de um número a outro, oferece mais dificuldade para uma
avaliação. Mas, se esboça como menos renovadora, quanto à forma,
repetindo, às vezes, temas relativos às experiências da guerra.
Completando a secção de literatura, notas criticas de Avermaete
e de Armand Henneuse resenham obras publicadas na época.
Muitas delas repisam a temática da guerra, como a prefaciada por
Romain Rolland, de F.J. Bonjean Une histoire de douze heures,
que retrata um dia de vida de um grupo de homens numa prisão.
Segundo o autor da nota, esta obra ultrapassa as demais, de
assuntos semelhantes, por ir além dos fatos, mergulhando na vida
interior dos personagens exacerbada pelas circunstâncias (37). Outra
obra comentada é Voyage de Bob Claessens assim como Miracle de
Vivre, de Charles Baudouin, igualmente comentadas em Klaxon.
Ensaios sobre literatura, entre eles os de Sérgio Milliet, completam
a contribuição literária.
A ênfase que se deu às Artes Plásticas, notadamente à gravura, se
explica, segundo Avermaete, dentro do mesmo universo no qual se
articulam as atividades do grupo : « Pour les doctrinaires, que nous
étions, la gravure sur bois était à nos yeux, le seul moyen
d'expression admissible, parce que, contrairement aux autres procédés gra-

(36) Milliet, Marcel, « Les camarades », Lumière, março de 1922.


(37) « Notes Critiques », Lumière, março de 1922.
KLAXON E LUMIÈRE 89

phiques, tels que la lithographie et toutes les formes de gravures en


creux, elle faisait corps avec la typographie, imprimées l'une et
l'autre en relief > <38).
Na revista, a ilustração é frequente, desde a capa até as páginas
inteiras, no interior, além de outras menores, junto aos textos.
Colaborações de Henri Van Straten, Jean Cantré, Masereel, Louis
Bouquet, Joris Minne, na gravura, e reproduções da pintura de Le
Fauconnier ilustram os exemplares de Lumière que examinamos. Mas
houve cerca de trinta colaboradores ao todo, sendo vinte e três
gravadores — belgas, franceses, alemães e holandeses. O interesse
do grupo, no entanto, ia além da mera inclusão de ilustração na
revista. Daí a realização de exposições como forma de satisfazer a
um desejo de universalidade no campo da arte.
Uma primeira exposição internacional de gravuras, realizada
praticamente sem nenhum recurso financeiro, reuniu um bom número
de expositores. A respeito da segunda, uma longa notícia é publicada
em Lumière (39). Três grupos se distinguiram. Os alemães, que usam
a deformação para expressar o pessimismo, sugerindo força. Os
franceses, mais próximos da tradição, que tendem mais para a
ilustração, enquanto os flamengos revelam uma preocupação decorativa
e, independentes do desenho e da pintura, são os pioneiros da
xilogravura moderna. Nomes, citados individualmente, coincidem com
os que aparecerão na revista : Louis Bouquet, Henri Van Straten,
Joris Minne, Jan Cantré, Frank Martelmans, Franz Van Hover.
Lumière saberá aproveitar muitos deles para ilustrar suas edições.
Segundo o catálogo, Van Straten deveria ilustrar sete obras e Joris
Minne, nove. Uma seria ilustrada por Franz Van Hover, e uma por
Jan Cantré. Mas nem todas as publicações previstas foram
concretizadas, como foi o caso de Messidor, de Guilherme de Almeida.
Álbuns individuais foram publicados, de Masereel e Van Straten, por
exemplo.
Por ocasião da segunda exposição internacional, esboçou-se um
clima de escândalo, provocado pela crítica de jornalistas que
consideravam ofensivas à moral certas produções expostas. A reação
aparece na revista : « On peut être journaliste pour gagner sa vie, c'est
un métier comme un autre, mais quand on touche à l'art, on doit
éviter de raisonner comme un petit bourgeois d'arrière province.
J'en appelle à M. René Sancy qui fut compréhensif et lucide dans

(38) Avermaete, R., op. cit., p. 93.


(39) c 2' Exposition Internationale de Gravures sur bois organisée par
Lumière », Les Arts Plastiques, Lumière, março de 1922.
90 C. de CARAVELLE

le même journal où vous, M. Sivry lanciez si imprudemment


l'insulte » (40).
Fatos como este confirmam a reputação que goza o grupo junto
à opinião pública. Por ocasião de escolha de pessoas para o teatro
de marionetes, este conceito negativo influenciará. < Dans ce
milieu, le groupe « Lumière » avait une réputation déplorable et
aucune jeune personne appartenant à la bonne société n'entendait
se compromettre avec cette bande d'énergumènes, révolutionnaires
de surcroît, adeptes de toutes les extravagances modernistes,
bolcheviks pour tout dire » (41).
Na segunda exposição internacional (42), da qual fazem parte
Alemanha, Áustria, Hungria, Holanda, Yugoslavia, França, Bélgica, o
melhor apontado é Masereel, seguido de Van Straten, Joris Minne e
Jan Cantré.
Masereel é o artista plástico mais prestigiado em Lumière e quando
realiza exposição individual na Galerie Joseph Billiet et Cie., a
crítica enumera suas várias facetas artísticas, confirmando os elogios
de outras ocasiões.
Além dessas atividades, a secção de Artes Plásticas de Lumière
registra outras exposições, catálogos e convites, bem como
comentários sobre álbuns de gravuras das edições Lumière. E foi nessa
secção que aparecen o artigo de Sérgio Milliet sobre a Semana de Arte
Moderna de São Paulo C43).
A música não encontra a mesma ressonância no grupo. Um só
ensaio aparece nos exemplares que examinamos : trata de Francis
Poulenc e da música contemporânea. Louis Emié, autor da matéria,
traça o itinerário do músico através de suas obras, analisando o seu
estilo preciso, nu, sem pitoresco, em oposição ao Impressionismo. As
notas críticas da secção tratam de estudos sobre óperas e
composições tradicionais, numa atitude de defesa da música moderna. A
epígrafe, que encima a secção reproduz palavras de Georges Migot,
significativas quanto à posição que Lumière adota : « II y a par le
monde un mouvement musical moderne formidable, par lequel
le XX* siècle prendra une place exceptionnelle dans l'histoire de la
musique » C44).

(40) Idem, ibidem.


(41) Avermaete, R., op. cit., p. 150.
(42) « 3* Exposition Internationale de gravures sur bois organisée par
Lumière > Lumière, fevereiro de 1923.
(43) Milliet, Sérgio, « Une semaine d'art moderne à S. Paulo », Lumière, abril
de 1922.
(44) Epígrafe da secção « La Musique » na qual aparece o artigo de Louis
Emié « La jeune musique actuelle, Francis Poulenc, Lumière, fevereiro de 1923.
KLAXON B LUMIÈRE 91

Feita esta apresentação sumária de Lumière — grupo e revista, na


sua história, objetivos e amostras de algumas realizações práticas,
resta-nos ver como se concretiza a sua presença junto ao grupo de
Klaxon.

O contato entre Klaxon e Lumière se fez através de Sergio Milliet,


brasileiro que estudou durante 9 anos na Suiça e se ligou a grupos
literários europeus da época da primeira Grande Guerra.
Representante de Lumière junto ao Brasil, promoverá o intercâmbio de
colaborações entre o periódico belga e a revista de São Paulo, Klaxon.
Roger Avermaete recorda as relações com Sérgio Milliet : « Quant à
la genèse de nos rapports, je suppose que Charles Baudouin nous a
fait connaître Milliet (dont nous avons publié un recueil de vers
« Œil-de-bœuf ») et c'est lui qui nous a parlé de ses contacts
brésiliens. Il a même été question, comme vous le verrez, sur la liste,
d'une édition de Guilherme de Almeida, mais il n'est rien
advenu » (45).
Na sua permanência europeia Sérgio Milliet ligou-se a vários
intelectuais de renome e viveu toda a atmosfera da guerra e do após
guerra, inflamada pela revolta, ora arrasada pelo ceticismo, ora
escapando pelos ideais utópicos de fraternidade universal. Iniciando sua
produção poética em francês, participou de rodas literárias e
revistas.
Além da figura de Romain Rolland, que Sérgio Milliet sempre
recardará tal como o conheceu em 1917 — envolto na áurea de
respeito quase mistico que os contemporâneos lhe votavam — outros
nomes serão citados, na sua obra crítica e memorialista, que
deixa transparecer sempre a influência dessas convivências em sua
formação intelectual e humana : L. Charles Baudouin será dos
nomes mencionados com maior frequência, seja como participante
das rodas literárias de Genebra, seja através de suas obras, nas quais
aproxima a psicanálise da literatura. André Spire, Charles Reber
(com quem Sérgio Milliet publicou sua primeira obra), Stefan Zweig,
Karl Spitteler, René Arcos, Guilheaux, da revista Le Carmel que
passarão, depois à revista Europe, Eduard Du jardin, Jean Pierre
Jouve, F. Masereel, Ivan Goll, Henri Mugnier são outros nomes com
quem se relacionou Sérgio Milliet na época í46).
De volta ao Brasil se incorpora às realizações modernistas, como
a Semana de Arte Moderna e a revista Klaxon, em 1922, e contribui

(45) Ver nota (16).


(46) Milliet, Sérgio, Diário Critico, v. 8.
92 C. de CARAVELLE

não só com o fruto dessa experiência mas com o estabelecimento de


contato entre o grupo modernista brasileiro e seus companheiros de
rodas literárias europeias.
Dentre os brasileiros de Klaxon, Sérgio Milliet já mantinha
relações com Guilherme de Almeida, antes mesmo de regressar ao
Brasil. Dedica-lhe um poema de Le Départ Sous la Pluie e Guilherme de
Almeida publica tradução de artigo de Sérgio Milliet no Correio
Paulistano (47).
De 1923 a 1925, data a segunda fase europeia de Sérgio Milliet,
agora na Bélgica e França, divulgando a literatura brasileira nos
círculos europeus.
Em Klaxon encontram-se, ainda outras colaborações
estrangeiras, como as de Henri Mugnier, também de relações de Sérgio
Milliet, embora desligado de Lumière.
Talvez também pela mão de Sérgio Milliet tenha sido enviado a
Klaxon um ensaio de Nico Horigoutchi C48) sobre a poesia moderna
japonesa, pois em Lumière é comentada a obra desse autor, Tankas :
poemas japoneses traduzidos para o francês. Há outros autores
estrangeiros em pequeno número — que colaboram em Klaxon, mas
seus nomes não se ligam a este grupo nem a Sérgio Milliet. Logo,
não os incluímos neste estudo, embora o assunto deva merecer
investigação complementar.
No noticiário de Klaxon « Livros e Revistas » o recebimento dos
números de Lumière é registrado e comentado, de março até
dezembro de 1922. Portanto, o contato dos dois periódicos é permanente,
no decorrer da vida efémera de Klaxon. Já na contra capa do
número 1 de Klaxon aparecem os representantes europeus todos
ligados a Lumière : Roger Avermaete, da Bélgica, L. Charles
Baudouin, da Suiça inicialmente e depois da França.
Num exame mais detalhado reconhecemos no indice remissivo de
autores e no índice classificado de colaborações de Klaxon os nomes
ligados ao grupo Lumière. De Roger Avermaete há apenas um ensaio,
no qual o diretor de Lumière escreve longamente sobre a pintura
contemporânea, estudando-a sob três conceitos que abrangem as
diversificações de tendências : Realismo, Interpretação e Abstracio-
nismo (49).

(47) Ramos, Péricles Eugênio da Silva, « Sérgio Milliet e o Modernismo »,


Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, n° 5,
1968, p. 56.
(48) Horigoutchi, Nico, « A poesia japonesa contemporânea », Klaxon n° 1, 15
de junho de 1922, p. 14. Em Lumière de fevereiro de 1922 há uma nota sobre
Tankas, livro de poemas de N. Horigoutchi, prefaciado por Paul Fort.
(49) Avermaete, Roger, « Les tendances actuelles de la peinture », Klaxon n° 1,
15 de maio de 1922, pp. 8-12.
KLAXON E LUMIÈRE 93

De Louis Charles Baudouin (50) , representante suiço de Lumière, ê


o poema inédito de Miracle de Vivre. « A toi qui que tu sois ». A
atmosfera bíblica envolve a figura de peregrino que chega e parte
inesperadamente. « Solitude d'étoiles » dedicado a Verhaeren,
também inédito, é um poema em prosa que nos remete a um clima bem
conhecido, de melancolia e penumbra, que fala da « bruma », « hora
vaga », « falemos de fogo ». No último número de Klaxon,
Baudouin publica um fragmento em prosa « Premiers émois » no qual
afloram reminiscências infantis, que tornam presente no adulto
a experiência longínqua, mediante processos de associação (51). —
Colaboração na qual se manifesta também o psicanalista.
Joseph Billiet, que tinha em Anvers uma galeria de arte com seu
nome, colabora com o poema « Paysage » fundindo processos expres-
sionistas e surrealistas que dão à paisagem dimensões simbólicas e
míticas. Poema significativo, por ser a contribuição belga mais
desligada da tradição. Linha semelhante terá a única colaboração de
Marcel Milliet, representante de Lumière na França, que dedica o
pequeno conto publicado em Klaxon a um dos artistas plásticos
flamengos — Joris Minne. Fantasia e associações com fatos reais se
confundem num clima de conto infantil (52).
Poemas em francês, de Sérgio Milliet, elaborados sobre
experiências europeias, reforçam posições de Lumière. Preocupado com
a exploração de recursos visuais, falando da guerra com certa atitude
de espectador, porém com amargura e até sarcasmo, ou preso a suas
dimensões interiores de homem e de poeta, contribui com a
variedade de suas colaborações para matizar ainda mais a contribuição
poética do grupo de Lumière.
A colaboração dos belgas, franceses, suíços e mesmo a de Sérgio
Milliet, não chegam, como se constata, a ter uma direção definida.
Conservam o ecletismo característico de Lumière, que permitia a
coexistência de várias correntes sem desligamento obrigatório da
tradição, sem voos ousados quanto à libertação formal.
Além dessas colaborações, que assinalam a contribuição direta do
grupo para a revista, outros traços surgem, aqui e ali, demonstrando
um ângulo diferente do relacionamento entre os dois periódicos : a
receptividade que Lumière encontra entre os klaxistas. Isto será

(50) Baudouin, Charles, « A toi qui que tu sois », Klaxon n° 1, p. 4 e <


Solitudes d'étoiles », Klaxon n° 4, p. 89.
(51) Idem, € Reminiscences », Klaxon n° 8-9, pp. 24-26.
(52) Billiet Joseph, c Paysage », Klaxon n° 6, pp. 6-7 e Milliet, Marcel, Conte,
Klaxon, n° 7, p. 8.
(53) Milliet Sérgio, Colaborações em poesia nos números 2, pp. 3, 5 ; 5, pp. 8, 9 ;
6, p. 7; 7, p. 4; 8-9, pp. 2, 3 da revista Klaxon.
94 C. de CARAVELLE

visível de forma clara nos comentários às colaborações que


aparecem nos números de Lumière recebidos por Klaxon, bem como das
resenhas ou críticas das obras editadas por Lumière. Em todos estes
casos Klaxon não se abstém de opinar sobre as atividades de
Lumière, sempre com sinais de simpatia e de admiração.
O primeiro número de Lumière citado em Klaxon, de março de
1922, é definido como « órgão representativo do novo pensamento
belga ». Citando os colaboradores, firmam : « No sumário o que há
de bom » e, concluindo : « Grande espírito de seleção, direção gráfica
notável. Lumière precisa ser lida » (M). Em relação aos números
de abril e maio referem-se a « finos artigos e belos poemas » C55).
E quanto às revistas de setembro e outubro, os elogios também se
dirigem às ilustrações : « Como sempre brilhantes colaborações e
boas xilogravuras » (56).
Mas, os klaxistas não se contentam com meras referências
passageiras de caráter elogioso. Nos comentários às obras editadas por
Lumière, aparece claramente uma posição mais fundamentada e de
caráter crítico. Tais considerações se referem às ilustrações e ao
conteúdo.
Assim, Mário de Andrade criticando a obra Miracle de Vivre
de Charles Baudouin, reclama do autor uma abertura maior à
realidade, à vida, acreditando que essa posição — de quem está mais
preocupado com o reflexo das coisas no seu mundo interior — deva
evoluir para uma temática que se ocupe das coisas em si, fora do
plano subjetivo. Isto evidencia um ponto de vista válido dentro do
momento modernista brasileiro, pois a posição de Baudouin era
ligada a uma outra realidade, europeia, vivida, pois quando começa
a participar da vida literária, em Genebra em 1917 estava em
repouso, por causa de ferimentos de guerra. No fundo, o critério de
Mário de Andrade em relação à modernidade na arte estava ligado a
um conceito de vida moderna, urbana, com sua agitação e
movimento. O que Mário de Andrade rejeita é a linha intimista, sobre a
qual pronunciará juízo semelhante ao fazer a resenha de uma obra
do poeta brasileiro Ronald de Carvalho. Sobre Baudouin, Mário de
Andrade afirma : « Espírito contemplativo e sobremaneira dedicado,
o snr. Baudouin não se voltou ainda resolutamente para a realidade
contemporânea da vida. Os seus versos, embora tristonhos,
quase sempre, ásperos às vezes, respiram sempre a suavidade um pouco
cética duma alma que vê da vida apenas aspectos gerais, filosóficos, e

(54) Notas em « Livros e Revistas », Klaxon n° 2, p. 16.


(55) Notas em « Livros e Revistas », Klaxon n° 3, p. 13.
(56) Notas em « Livros e Revistas », Klaxon n° 4, p. 16.
KLAXON B LUMIÈRE 95

ainda vê esses mesmos aspectos pela reprodução deles nela e não


diretamente na realidade tangível » <57). Atitude compreensível na
etapa inicial do modernismo brasileiro, que rejeitava em bloco uma
linha que em 1922 parecia demasiado « passadista ». A preocupação
em combater traços do sentimentalismo, que no Brasil o Romantismo
acentuara, e que dificilmente seriam apagados, a não ser com esforço
consciente, explica uma valorização maior das manifestações
exteriores de vida moderna. Ainda na própria Klaxon Mário de Andrade
demonstrara, depois, uma visão mais ampla de Modernismo, no
decorrer da análise dos Epigramas Irónicos e Sentimentais, de Ronald de
Carvalho; mesmo considerando que o autor se detém nos reflexos
interiores da vida moderna, não lhe nega finalmente, modernidade,
apesar do clima intimista i58).
De Sérgio Milliet é o comentário a uma obra de Louis Emié :
« Apesar de ser um desses livros como há tantos, sobre a guerra, não
me parece de todo désintéressante » <59). Assinala no autor traços
da « filosofia social », com reminiscências de Jules Romains e
Romain Rolland.
Voyage, de Bob Claessens, também será comentada em Klaxon por
Sérgio Milliet, que percebe na obra a preocupação «
internacionalista » e « a revolta contra tudo o que o impede de comungar com os
outros homens, e com os outros paises ». Quanto à posição literária,
considera-o « independente », « moderno » sem ser « penumbrista
nem utopista » í60).
Outra obra mencionada em Klaxon é a peça de teatro de Romain
Rolland, Les Vaincus : « Publicação tardia do primeiro drama do
magnifico escritor. Já se percebe nessa obra o forte valor literário do
autor e as suas tendências socialistas mais tarde evidenciadas.
Oportunamente estudaremos o livro como merece », dizem em nota que
acusa o recebimento de mais uma edição Lumière (61). Mas tal
propósito não se cumpre.
A preocupação gráfica, também marcante na revista Klaxon, faz
com que se observe sempre o cuidado na elaboração dos livros
editados por Lumière. Se as gravuras e a ilustração em si são sempre

(57) Andrade, Mário de, comentário sobre Le Miracle de vivre, de Ch. Baudouin,
Klaxon n° 5, p. 11.
(58) Idem, Comentário sobre Epigramas Irónicas e Sentimentais de Ronald de
Carvalho, Klaxon n° 7, pp. 14, 15.
(59) Milliet, Sérgio, Comentário sobre « L'abdication des pauvres et le
couronnement des morts, de Louis Emié. Klaxon, n° 7, p .15.
(60) Milliet, Sérgio, Comentário sobre Voyage de Bob Claessens, ilustrado por
Van Staaten, Klaxon n° 1, p. 13.
(61) Nota em < Livros e Revistas », Klaxon n° 3, julho n° 3, julho de 1922,
p. 13.
96 C. de CARAVELLE

elogiadas, a adequação das mesmas aos textos podem merecer


restrições. E o que se dá na mesma resenha de Mário de Andrade sobre
Miracle de Vivre, obra ilustrada por Joris Minne : « A edição de
Miracle de Vivre como todas as edições Lumière é magnífica.
Confessemos, no entanto, que as xilografías do Snr. Joris Minne soam
singularmente chocantes, como um trombone que entrasse em
fortíssimo, no quarteto de cordas dos versos. O snr. Joris Minne, como
comentador que era do poeta, não devia assim sobrepor
ostensivamente a sua personalidade inquieta e tumultuosa à personalidade
regrada e calma do poeta. O desenhista é inegavelmente um artista;
mas como temperamento vibrante e másculo, demasiadamente
moderno e simultâneo, não soube dobrar-se ao papel de comentador;
e tem-se a impressão, se nos permitem uma comparação psicológica,
que as ilustrações são a sensação e o verso a imagem conservada,
sintética mas enfraquecida. Assim, o livro considerado como obra de
arte, saiu desigual » C62).
Sérgio Milliet se pronuncia também sobre a ilustração na citada
resenha da obra de Louis Emié : « As ilustrações de Jan Cantré são
expressivas e originais e de um modernismo moderado que pode
agradar a qualquer paladar. É esse mesmo o maior defeito de Jan
Cantré. Prefiro o humor violento e satírico e a técnica apaixonada
de Félix Tieumermanns, autor des Jours pieux, album de 6
gravuras.
« Esperava encontrar nas ilustrações de Cantré um sofrimento
mais intenso, uma harmonia mais torturada ou então francamente
sarcástica, que se adequasse mais ao texto ». E amplia seus
comentários às edições Lumière : « Chega-me às mãos mais um luxuoso
volume da cuidadosa casa de edições Lumière de Antuerpia ». Na
outra resenha sobre Voyage, também se refere aos livros de
Lumière : « Sempre ilustrados por xilografías de valor, impressos sobre
bom papel e apresentados com simplicidade seus livros devem servir
de modelo para os editores brasileiros tão avaros de bom gosto » C63).
Além destas notas e comentários, também um relato de R. Aver-
maete sobre a experiência do teatro de marionetes, será resumido
e apresentado em Klaxon com a seguinte introdução : « O tempo
que Roger Avermaete e seus companheiros gastaram na sua
montagem, demonstra como é ele capaz de absorver as atividades de
muitos espíritos graves e reflexivos... » C64).

(62) Ver nota (57).


(63) Ver notas (59) e (60).
n° (64)
5, p. «15.
Teatro de bonecos » (resumo de um artigo de Roger Avermaete), Klaxon
KLAXON B LUMIÈRE 97

Estes casos demonstram como os klaxistas não só acompanham


passivamente a trajetória de Lumière, mas se preocupam em
analisar suas produções. Menos marcante, porém é a influência direta das
produções de Lumière nas colaborações de Klaxon. Um só caso é
indiscutível : o de Oswald de Andrade que em « Escolas & Ideias »,
retoma conceitos que Roger Avermaete formula no ensaio sobre
pintura, já mencionado (65).
Aproximando as duas colaborações, notamos que Oswald de
Andrade aplica os conceitos de Avermaete ao campo da literatura,
submetendo-os a uma visão pessoal, bastante arbitrária, de modo
que, finalmente, embora cite as fontes, suas notas quase nada têm
a ver com o ensaio que as motivou. A colaboração de Roger
Avermaete serviu, apenas, de estímulo às ideias de Oswald de Andrade.
Nessas « notas para um possível prefácio », subtítulo do artigo de
Oswald de Andrade, a forma fragmentária não permite distinguir
propriamente uma linha de pensamento a ser aproximada à de Roger
Avermaete.
Roger Avermaete distingue três correntes na pintura : a do
realismo, a da interpretação e a da abstração pura. Define como
realista a pintura que permanece fiel ao aspecto exterior dos objetos e
seres. No segundo caso está a pintura que toma o objeto como ponto
de partida, mas não se contenta com a simples reprodução de
aspectos exteriores : interpreta, seja através de uma visão dinâmica, seja
completando a visão global com novos aspectos que acrescenta, ou
através da contribuição da imaginação, da fantasia, da expressão do
sentimento. Logo, Roger Avermaete reúne, na mesma linha de
interpretação, futuristas, cubistas e expressionistas. Resta a terceira
corrente, a dos abstracionistas, que expressam diretamente o sentimento
ou a sensação, ou partem do objeto, chegando à abstração.
Portanto, o raciocínio de Avermaete claramente agrupa as
correntes de vanguarda sob o conceito de « interpretação » — ou seja
o enriquecimento por caminhos diferentes da representação do real.
Já Oswald de Andrade, ao retomar as ideias de Avermaete,
conceitua € arte interpretativa » como aquela que impregna o objeto de
subjetivismo : « o eu instrumento deve desaparecer ». Condena,
pois, a « interpretação », agora já compreendida de forma diferente.
Defende a arte que se lança para mais além : < metafísica », segundo
a nomenclatura que adota. « A única arte excelente — a que fixa a
realidade em função transcendental ». Coloca a arte de vanguarda

(65) Andrade, Oswald de, « Escola et Ideias (notas para um possível prefácio)
Klaxon, n° 5, p. 15.
98 C. de CARAVELLE

como aquela que reage à « interpretação ». « Três maneiras de arte.


Realista, Interpretativa, Metafísica. Fora a Interpretação : Lei da
Metafísica Experimental : realizar o infinito ».
Portanto, o que chama de « interpretação » nada tem a ver com
o conceito do ensaio de Avermaete. Só mantém a divisão tríplice.
Um outro caso que poderia ser mencionado, porém mais sutil, é o
de Tácito de Almeida, que sob o pseudónimo de Carlos A. de Araújo
escreve « Paz Universal » C66) poema que traduz a visão amarga e
sarcástica de uma pseudo-paz que ainda arca com as consequências
do conflito. O próprio tema e clima denotam a captaçõ indireta de
uma problemática europeia, que um brasileiro só podia seguir
intelectualmente, por não ser fruto de uma experiência vivida
pessoalmente. Diferente é o caso dos poemas de Sérgio Milliet, que viveu na
Europa o período da guerra e do após-guerra.
Considerados os diversos traços de Lumière na vida de Klaxon
resta-nos a direção contrária : a contribuição brasileira, presente nas
páginas de Lumière. Não foi muito numerosa, pois consta de dois
poemas, um de Guilherme de Almeida, e outro de Mário de
Andrade (67), traduzidos para o francês por Sérgio Milliet e dois longos
artigos, largamente informativos, na forma de cartas, nos quais
Sérgio Milliet fala da literatura brasileira. No primeiro (w) trata da
realização da Semana de Arte Moderna, partindo de comentários
gerais sobre a arte no Brasil : < Ah ! mon amie, ce pays est
extraordinaire, les arts se développent avec la même vigueur et la même
rapidité que les grands arbres aux troncs tordus des forêts vierges ».
Descrevendo os festivais de arte, realizados na Semana, refere-se
às reações hostis do público, como assoyios, gritos, vaias,
comparando-as com a estreia de Hernani, de V. Hugo. Cita os nomes de
Mário de Andrade e Ronald de Carvalho, que souberam enfrentar o
público com equilíbrio. Descreve o hall do Teatro Municipal, onde
se realizou a mostra de artes plásticas, reproduzindo os nomes dos
participantes bem como a localização das obras, numa evidente
preocupação em fornecer dados objetivos a leitores europeus.
Conclui a carta dizendo : c Le public hostile et réfractaire, devant
le calme olympique des artistes se sentit, vers la fin, médusé ».
Em novembro de 1922, outra carta, com a mesma preocupação de
divulgação, trata de nomes significativos da literatura modernista

n»(66)
8-9, Araújo,
p. 17-18. Carlos Alberto (Tácito de Almeida), « Paz Universal », Klaxon,
(67) Andrade, Mário de, « Paysage », Lumière, agosto de 1922 e Almeida,
Guilherme de, < La danse des heures », Lumière, abril de 1922.
(68) Milliet, Sérgio, < Une semaine d'art moderne à São Paulo », Lumière,
abril de 1922.
KLAXON E LUMIÈRE 99

brasileira C69), citando-os por ordem alfabética. Falando de Oswald


de Andrade, aproxima a Trilogia do Exilio a Jean Christophe e Aube,
de Romain Rolland. De Graça Aranha, refere-se a Canaã, (traduzido
para o francês) e Estética da Vida, esclarecendo que embora rejeite
a tradição académica o autor não chega a compreender bem os reais
objetivos dos modernistas.
De Guilherme de Almeida considera a concepção às vezes
romántica, como em Narciso, mas, com forma nova. Ou a serenidade
clássica, junto à forma livre e moderna. Tácito de Almeida é
caracterizado pela presença da melancolia, nos cinquenta poemas do
crepúsculo, em forma isenta de virtuosismo. Mário de Andrade é
aproximado a Cendrars, Max Jacob, Jean Cocteau e Louis Aragon. Cita
ainda Ronald de Carvalho d'Os Epigramas, lembrando que o autor
colaborou na Revue de Genève, encarregando-se da secção < Lettres
brésiliennes ». Os nomes de Luiz Aranha, Afonso Schmidt, Agenor
Barbosa, Renato de Almeida também constam de sua relação.
Neste longo ensaio Sérgio Milliet trata de dar um panorama do
Modernismo no Brasil, através de nomes significativos, da prosa e
da poesia. Sempre preocupado em tornar seus juízos acessíveis,
continuamente faz aproximações com realidades europeias — autores e
obras — ou utiliza como exemplo trechos de obras, traduzidos para
o francês. Enfatiza a posição renovadora dessa jovem literatura
brasileira, que foge a uma linha tradicional.

Feitas as aproximações entre os periódicos, nos limites que nos


permitiram as circunstâncias, certas características comuns
ressaltam, como a breve duração, as dificuldades, o idealismo como força
de coesão do grupo realizador, o ecletismo, as intenções
internacionalistas, a busca de renovação, a abertura às artes em geral, que no
fundo podem caracterizar qualquer revista literária daquele
momento. Deixando de lado estes aspectos superficiais, encontramos
traços diferenciadores que nos parecem mais significativos.
Klaxon, como revista de arte, nos parece mais definida, quanto
aos objetivos, pois assume um papel pioneiro de renovação, que no
caso brasileiro é o de autêntica criação de uma arte nacional.
Lumière é bem o fruto de uma situação europeia, derivada da guerra :
é mais atenta ao espírito de fraternidade, de conciliação. Já Klaxon
tem, a partir do próprio manifesto, visão mais precisa quanto a seu
papel. A demolição da tradição, através da polémica, da luta, das

(69) Idem, « La jeune littérature brésilienne >, Lumière, novembro de 1922.


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posições voluntariamente chocantes, dá à revista uma feição bem


própria e, principalmente, uma direção clara — a de projeção para
o futuro. Percebe-se nisso a modalidade brasileira de vanguarda,
pois, embora participante do clima internacional do momento e
acolhendo nomes de autores de vários países, em Klaxon tudo isso
é conscientemente canalizado para fins próprios. Logo, o ecletismo,
em ambas, tem diferente sentido. Em Lumière deriva do espírito de
fraternidade que franqueia a todos suas páginas. Em Klaxon a
contribuição múltipla, diversificada torna-se instrumento útil na
tarefa demolidora, que se impunha na arte e na cultura brasileira de
então. Mas, a preocupação em contribuir com uma parcela original
para a criação de uma arte nacional, que já vinha se processando
lenta e gradativamente desde a época da colonização portuguesa,
está presente nos modernistas de maior visão, como Mário d,e
Andrade, Rubem Borba de Moraes, Cândido Motta Filho e outros.
Logo, o chamado « internacionalismo » de Klaxon, é, na ocasião,
a busca de meios para desencadear a renovação — numa atitude
aparentemente paradoxal, nem sempre compreendida na época pelos
opositores do modernismo brasileiro. Por-se em dia com o que se
fazia na Europa, entre os vários grupos modernistas, fora de uma
tradição cristalizada, era a meta por volta de 1922. Mas, não se
tratava de uma eleição de modelos. Era o acerto de passo com á atuali-
dade do pensamento, da ciência, da arte, para romper a estagnação
que impedia, no Brasil, o avanço normal das ideias e das realizações
artísticas.
Na Europa a primeira Guerra será um divisor de águas natural.
O conflito e suas consequências era demasiado concreto para ser
ignorado. No caso brasileiro, de certa forma, o século XIX se
arrastava sem se extinguir, a ponto de tornar necessária uma ofensiva
consciente por parte daqueles que percebiam o que se passava. Por isso
a tarefa inicial do grupo modernista foi a expulsão dos resquícios
de arte finisseculares, que na Europa vinham sendo varridos pela
guerra, de forma mais natural.
O interesse pelas revistas europeias de vários países, por parte do
grupo de Klaxon, nasce, portanto do conteúdo vivo que abrigavam,
das ideias, em plena efervescência, no livre curso do ecletismo e das
contradições. Esses contatos literários tinham o valor de oferecer
dados aos klaxistas, descobrindo-lhes nomes, obras em voga, nos
movimentos europeus. Imediatamente citados junto à crítica e à
opinião conservadora, eram utilizados, também, para demostrar-lhes,
de certa forma, a dimensão do modernismo brasileiro, inserido num
panorama mais amplo de renovação, de âmbito universal. E tornava
claro também que precisamente o desconhecimento de tudo isso é
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que impedia a crítica conservadora de avaliar a dimensão da tarefa


dos modernistas. E o que afirma, muitas vezes, com veemência e
paixão, Mário de Andrade, combatendo a incompreensão do meio,
ante as posições de Klaxon e dos modernistas. « Houve quem
dissesse que copiamos Papini, Marinetti, Cocteau... entre copiar e seguir
a diferença é grande » e acrescenta em seguida, refutando a
acusação de imitação : « Ora, Klaxon vai mais além. Não se educa so na
escola dum Cocteau francês e dum Papini italiano, mas também lê
a cartilha dum Uidobro espanhol, dum Blox russo, dum Avermaete
belga, (grifo meu), dum Sandburg americano, dum Leigh ». Para
concluir, no fim : Klaxon não copia Papini nem Cocteau, mas
representando às vezes tendências que aparentam às desse grande italiano
e desse interessante francês, prega o espírito da modernidade, que
o Brasil desconhecia » (grifo meu) (70).
A posição de Klaxon é, pois, de buscar reforço e apoio fora, para a
posição de renovação que assume no Brasil. Liderada por gente
jovem, que se inicia na literatura, lança-se numa luta desigual
contra uma arte instalada, defendida por autores renomados,
oficialmente aceitos. Klaxon tem a pressa, o entusiasmo, a irreverência da
juventude — de um grupo e de um país conscientes de seu papel na
construção de uma cultura. O lapso de um ano basta para que o
conteúdo de Klaxon se matize e se diversifique, a ponto de tornar
difícil rastrear no tempo, ou mesmo no conjunto de colaborações de
cada número, a coerência com as linhas defendidas nas proposições
teóricas.
A inserção no clima mundial do após-guerra determina em
Klaxon, por um lado, laivos pacifistas, que já tinham aparecido no
Mário de Andrade da primeira hora, em 1917 (71). Traços do
simbolismo ainda serão visíveis na contribuição de fundo subjetivo, inti-
mista, mais fixada na paisagem interior; mas outras linhas se
mesclam, como o amor à velocidade, à técnica, à vida civilizada, urbana;
as novas preocupações, que os estudos de Freud emprestam à arte,
na trilha da exploração das vias obscuras do homem interior; o
mergulho nas raízes da cultura, em busca do passado dos povos, que os
estudos antropológicos começam a estimular, ambos prenunciando
o primitivismo que se desenvolverá no Brasil em 1928, com a
corrente de Antropofagia. Além do mais, a incorporação das lições da

(70) Andrade, Mário de, Klaxon n° 3, p. 3.


(71) Andrade, Mário de, Há uma gota de sangue em cada poema, obra de
estreia, publicada em 1917, com explicação inicial : « O autor nunca foi aliado.
Chorava pela França que o educara e pela Bélgica que se impusera à admiração
do universo >.
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pintura, esquecida da perspectiva; da música, dissolvendo a linha


melódica; do cinema, erigindo o movimento em arte. Tudo, porém,
a serviço da camada subjacente, que às vezes vem à tona mais
claramente em Klaxon, e entre as diversificações de correntes dará a
tónica do Movimento nos anos seguintes, de 24 e 25 em diante : a
pesquisa da realidade brasileira, em busca do caráter a ser
preservado e desenvolvido, na arte e na cultura nacionais. Tarefa
conduzida no Modernismo sempre com a energia de uma literatura que se
afirma, numa cultura em busca de sua feição particular. Este
espirito combativo traduz o potencial que emana do jovem grupo
modernista e do seu incontestável líder, Mário de Andrade, que imprimem
em Klaxon um selo que a singulariza como revista modernista
brasileira e como revista de vanguarda.

Registramos aqui, o nosso agradecimento à Professora Marlyse


Meger, que tem se dedicado ativamente às pesquisas que interessam
à literatura brasileira, em vários centros europeus, e que nos
possibilitou este estudo, graças aos seus contactos com remanescentes do
grupo Lumière, em Anvers. Agradecemos também ao Professor
José Aderaldo Cast ello, director do Instituto de Estudos
Brasileiros da Universidade de S. Paulo, pelo apoio e orientação constantes.

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