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INTRODUÇÃO

CAPÍTULO I

As :MUDANÇAS SOCIAIS NO BRASIL

o título deste livro foi escolhido por sugestão do editor,


o querido e pranteado amigo Paul-Jean Montei!. Dele também
foi a decisão de manter o título no plural, o que correspondia
à variedade de facetas dos assuntos abrangidos nas três partes
do livro (l)e permitia fugir à ambigüidade do conceito for-
malista de "mudança social", tão em voga entre os sociólogos
norte-americanos. Todavia, na ocasião não me pareceu neces-
sária uma discussão sociológica global dos problemas de mu-
dança social no Brasil (2). O ensaio, que agora passou para o
apêndice, sobre "Atitudes e Motivações Desfavoráveis ao De-
senvolvimento", parecia-me uma introdução teórica suficiente,
aqui e ali adequada à situação histórico-social brasileira, graças
ao debate de alguns exemplos típicos.
Hoje, depois de tanto tempo (é preciso não esquecer que
os trabalhos que constam desta coletânea foram escritos entre
1946 e 1959), é evidente que se impõe a discussão global do

(1) A terceira parte do livro, "Aspectos da Interação com o


Índio e com o Negro" continha cinco ensaios, que foram absorvidos
por dois outros livros (O Negro no Mundo dos Brancos, publicado no
ano passado pela Difusão Européia do Livro; e outro sobre o índio e a
etnologia brasileira, a ser publicado pela mesma editora).
(2) Esses problemas foram retomados, de modo global, em dois
ensaios posteriores do autor. Vejam-se, especialmente: "Reflexões
sobre os Problemas de Mudança Social no Brasil" (A Sociologia numa
Era de Revolução Social, São Paulo, Companhia Editora Nacional,
1963, págs. 201-242); e "A Dinâmica da Mudança Sócio-Cultural no
Brasil" (Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Rio de Janeiro,
Zahar Editores, 1968, págs. 107-133). No entanto, todos os trabalhos
escritos pelo autor, depois de 1960, propõem-se como objeto a inter-
pretação de fenômenos da mudança social na sociedade brasileira,
considerada isoladamente ou no contexto latino-americano.

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lÓpico geral. Não tanto para justificar interpretações ou pon-
As razões que explicam essa mudança de atitudes são de
tos de vista que então pareciam mais certos; e, ainda menos,
natureza psicológica e política. O maior contraste entre a
para colocá-Ios em dia.. Mas, para levar o próprio tema ao
situação do sociólogo em nossos dias e nas décadas de 40 ou
leitor de modo mais direto e ordenado, com a experiência
de 50 está no nível de expectativas. Então, duas coisas pare-
que consegui acumular posteriormente, de 1960 a 1974, anos
ciam certas. Primeiro, que ao sociólogo cabia assumir suas
durante os quais a análise histórico-sociológica atingiu o seu
apogeu, no Brasil, e nos quais sofreu, em conseqüência, uma responsabilidades intelectuais em um nível puramente profis-
perseguição sem quartel. Tudo isso tem muito a ver com a sional. Feita uma descrição ou uma interpretação, suas impli-
cações ou cOilseqüências relevantes acabariam sendo percebidas
maneira pela qual os problemas de mudança social se colocaram,
pelo menos para os sociólogos brasileiros que viam a realidade e se concretizando, de uma forma ou de outra. Segundo, que
de uma perspectiva crítica e participante e). a sociedade brasileira estava caminhando na direção da revolução
burguesa segundo o "modelo" francês, sob aceleração constante
da autonomia nacional e da democratização da renda, do pres-
(3) A problemática teórica da dependência e do subdesenvolvi- tígio social e do poder. Havia, portanto, a presunção de que
mento ganha, eOmmeus escritos posteriores, uma importância que ela o alargamento do horizonte intelectual médio refluiria na área
ainda não adquirira no ensaio que servia de introdução global a Mu- de trabalho do sociólogo, criando para as investigações socioló-
dançasSç,ciais no Brasil. Como ela define a tônica desta nova intro-
gicas de cunho crítico uma ampla base de entendimento, tole-
dução, cbnviriaindicar pelo menos algumas contribuições mais im-
portantes para a discussão dessa problemática com referência à Amé- rância e, mesmo, de utilização prática gradual. Tratava-se de
rica Latina: F. Henrique Cardoso e E. Faletto, Dependeneia y Desarrollo uma "utopia" e, o pior, de uma utopia que se achava redon-
en América Latina, México,Siglo Veintiuno editores, 1969 (trad. damente errada.
portuguesa: Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1970; versão preliminar: Tal utopia pode ser facilmente compreendida se se toma
F. H. Cardoso, Santiago, ILPES, novembro de 1965); F. H. Cardoso:
Mudanças Sociais na América Latina, São Paulo, Difusão Européia
em conta sua origem acadêmica (transferência de ideais de
do Livro, 1969, e Política e Desenvolvimento em Sociedades Depen- trabalho por parte de professores de origem européia e treina-
dentes, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1971; P. González Casanova, dos para trabalhar nas universidades européias) e a falta de
Sociología de Ia Explotación, México, Siglo Veintiuno editores, 1969; concomilância enlre papéis profissionais e oportunidades de
O. Ianni, Imperialismo y Cultura de Ia Violencia en América Latina,
pa 1'1 it'i pa<,)o dos sociólogos no movimento político-social. Um
trad. C. Colombani e J. T. Cintra, México, Sigla Veintiuno editores,
1970; L. Pereira: Estudos sobre o Brasil Contemporâneo, São Paulo, id\·:d 1'I·h IivalllClltc complexo de pesquisa sociológica foi tole-
Livraria Pioneira Editora, 1971 (esp. caps. 1 a 4), e Ensaios de Socio- 1':ldo, dlll'allic cc1'lo lempo; mas, por fim entrou em conflito
I,,/-!ia do Desenvolvimento, São Paulo, Livraria Pioneira Editora, 1970 COIIl as si luações de interesses de classes sociais dominantes,
(,'sp. caps. 2 e 4); A. Gunder Frank; Capitalism and Underdevelopment que não estavam preparadas para conceder reaL autonomia aos
ill I,alill America, Nova Iorque e Londres, Modern Reader, 2.a ed.,
I ~)(i'), " l.fllin America: Underdevelopment 01' Revolution, Nova Iorque sociólogos profissionais. Além 'disso, a inexistência' dê um
(' L,,"drl's, Modern Reader, 1969; T. dos Santos; El Nuevo Caráter de movimento político-social relativamente forte deixou os inte-
Ia f)r/loldo,,;ia, Santiago, CESO, 1968, e Dependencia y Cambio So- lectuais mais ou menos "livres" e "independentes" à merce da
<:ial, Santiago, CESO, 1970; R. Mauro Marini, Sous-DeveloJipement et
Ul'liO/l/lion ''lI. AméTique Latine, Paris, François Maspero, 1972; D.
Rilll'iro, 1'.'1 Dilnna de América Latina. Estructuras de Poder e Jiuer,:as
1IISI/.1'I"'l/le.\',M(xico, Siglo Veintiuno Editores, 1971: A. Cúrdova, Latin America, San FraneÍsco, Ca., Chandler Publishing Co., 1967; A.
AméTiea I.alilla; Intrgración Económica para elDesa1'1'olo o Snbde- García, La Estructura dei Atraso en América Latina, Buenos Aires,
sar/'Olo 1ntcl'rado? ed. mimeo. da Universidade de Rheda, 1970; C. Editorial Pleamar, 1959; e o pequeno ensaio de O. Sunkel, "Política
Delgado, A Revolução Peruana, trad. de M. Urbano Rodrigues, Rio Nacional de DesarroIlo y Dependencia Externa" (ed. mimeo" de uma
de Janeiro, Civilização Brasileira, 1974; J. L. Cecena, México en Ia conferência pronunciada em 17 de novembro de 1966 para o Ciclo
6rbita Imperial, México, Ediciones "ElCasallito", 1970. A essa biblio- de Conferências Inaugurais do Instituto de Estudos Internacionais da
grafia cumpre acrescentar pelo menos dois livros, que levam em cOllta Universidade do Chile), o qual exerceu profundo impacto sobre os
outra problemática, mas são fundamentais para a compreensão wcio- estudiosos do assuntos (reimpreso: Estudios Internacionales, Santiago,
lógica do padrão dependente e subdesenvolvido de capitalismo: R. vaI. 1 n." 1, abril de 1967; e in A Bianchi y otros, América Latina:
N. Adams, The Second Sowing. Power and Secondary Devdo/nnent iu Ensaios de Interpretaciôn Econômica, Santiago, Editorial Universitaire,
1969, págs. 245-278).
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como o demonstram os trabalhos que escrevi recentemente
pressão conservadora. Os mais íntegros protegeram-se através
ele um radicalismo puramente subjetivo (isto é, sem suporte
ou que estou escrevendo. Essa diferença de expectativas e de
orientações impõe, no mínimo, que se considere criticamente
institucional, já que não se poderiam apoiar na estrutura e no
funcionamento da universidade brasileira; e sem suporte de· certas questões. Por que o sociólogo, numa sociedade como a
nossa, volta-se com tanta insistência para os problemas de mu-
massa, já que não existia qualquer movimento político-social su-
dança? Quais são as características da mudança numa socie-
ficientemente forte para servir de contrapeso à pressão con-
dade como a brasileira? Por que o controle da mudança é
servadora). Os que participavam, simultaneamente, da vida
universitária e do movimento socialista tinham de cindir seus tão importante para o poder político das classes sociais domi-
nantes? Essas questões não apareciam ou ficavam apenas im-
papéis intelectuais, como se esses dois eixos de atividades fos-
sem estanques, exclusivos e só se encontrassem no infinito ... plícitas nos ensaios coligidos neste volume. Em nossos dias,
porém, elas não podem ficar encobertas ou meramente pres-
Apenas em algumas esferas mais abstratas, quase sempre de
supostas. Precisam ser consideradas em conjunto e tomadas,
elaboração teórica, ou, no extremo, com referência a questões não como um "foco de referência", mas como o ponto de par-
práticas de alcance limitado, se tornava possível alguma comuni-
tida de qualquer discussão sociológica crítica e realmente
cação frutífera e íntegra desses dois mundos. explicativa.
Durante a década de 60 iria-se assistir uma dupla evolução.
Nos primeiros anos dessa década, fortaleceu-se o impacto da Por que Estudamos a Mudança Social?
condição externa do sociólogo sobre seu labor intelectual.
Abriram-se, então, novas perspectivas, que acarretaram uma Há muitas razões - empíricas, teóricas e práticas, a se-
forte polarização política e ideológica dos papéis intelectuais dos rem consideradas isoladamente ou em conjunto - para que o
sociólogos. Em compensação, produziu-se um aprofundamento sociólogo se interesse pelo estudo da mudança social. As so-
qualitativo e quantitativo da sociologia "crítica" e "participante". ciedades humanas sempre se encontram em permanente trans-
Todavia, esse processo se desenrolou tendo como patamar uma formação, por mais "estáveis" ou "estáticas" que elas pareçam
situação de crise nacional e internacional das estruturas inter- ser. Mesmo uma sociedade tida como "estagnada" só pode so-
nas de dominação de classe. Logo se evidenciou que o grau breviver absorvendo pressões do ambiente físico ou de sua com-
de secularização da sociedade brasileira como um todo e que posição interna, as quais redundam e requerem adaptações sócio-
os ritmos de democratização das relações de poder eram total- -dinâmicas que significam, sempre, alguma mudança incessante,
mente insuficientes para absorver tal desenvolvimento da pes- embora esta seja com freqüência pouco visível (quer à análise
quisa científica. Abriu-se um vácuo, que expôs a sociologia às microssociológica, quer à análise macrossociológica de conjun-
circularidades do obscurantismo intelectual e da repressão con- tura) . De modo que um "estado de equilíbrio" só pode ser ima-
servadora. A resistência à mudançaeclodiu, assim, como uma ginado e obtido, pelo sociólogo, como recurso heurístico e
força especificamente política de alto teor destrutivo, pois ela interpretativo (sob a suposição de que, em dadas condições,
se desencadeou de fora da universidade para dentro, mas en- podem-se observar melhor e, por conseguinte, interpretar me-
contrando, dentro da universidade, um sólido ponto de apoio lhor os dinamismos de uma sociedade determinada, tomando-a
institucional. como se o estado real de funcionamento pudesse ser fixado e
retido como um estado de equilíbrio aproximado). Doutro lado,
Esse rápido bosquejo mostra que não se podem reatar os
vínculos com o passado como se nada tivesse acontecido ou o que alguns descrevem como o "estado de equilíbrio perfeito"
como se a evolução tivesse sido outra, mais favorável à expan- somente se pode imaginar e construir, sociologicamente, como
são da pesquisa científica e das ciências sociais. Os círculos so- recurso puramente heurístico e interpretativo, por via exclu-
vamente abstrata e teórica. Na verdade, o estado normal de
ciais dos quais participo não me proporiam, nos dias que cor-
rem, os temas que me foram propostos nas décadas de 40 qualquer sociedade - o único modo pelo qual as sociedades se
dão à observação e à interpretação dos sociólogos - é um estado
ou de 50. Doutro lado, os temas que me fossem propostos
seriam certamente examinados de um ângulo bem c!ifel-cnte, concreto em que ela se revela em funcionamento e, portanto,
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soh algum,\ combinação de tensões estáticas ede mudança do regime de classes exige que se estude atentamente a pri-
sociais. Por sua' vez, os padrões e os ritmos de mudança va- meira situação, é na segunda e .em seus desdobramentos histó-
riam de um tipo de civilização para outro (o que quer dizer: ricos que se pode descobrir uma explicação sociológica para o
v,ltiam de um tipo de sociedade para outro,) • Os limites den- presente e para o futuro, ou seja, para o que o regime de classes
tro dosquais fundonamênto ,mudànça sodal estática ou di- reserva à periferia do mundo capitalista dependente e subde-
nâmica e equilíbrio relativo instável podem conjugar-se e con- senvolvido.
fundir-se só são determináve1s ccincretamente,em termoS de Ao adotar uma ótica sociológica semelhante, o sujeito-
condições objetivas (inerentes ao tipo de sociedade que se con- -investigador deixa de operar com a "ordem social competitiva"
sidere) e de condições técnicas (posição a partir da qual o como se ela ·.fosse o equivalente de um modelo físico-químico,
sujeito-investigador irá descrever e interpretar os aspectos "esc
táticos'l e "dinâmicos" de tal tipo de sociedade).
Haveria pouco interesse teórico em investigar-se a mudança
I biológico ou matemático, válido da mesma maneira para qual-
quer subtipoda sociedade de classes. Ao estudar o regime de
classes em sociedades nacionais dotadas, ao mesmo tempo, de
social na sociedade de classes brasileiras com o objetivo de es- desenvolvimento capitalista autônomo e de posição hegemô-
clarecerosaspectos estruturais e dinâmicos do próprio regime nica nas relações capitalistas internacionais, os cientistas sociais
de classes. Esses aspectos devem ser naturalmente esclarecidos puderam operar, tanto descritiva quanto interpretativamente,
pela investigação sociológica do regime de classes em sociedades com uma homogeneização máxima dos fatores propriamente es-
nacionais que combinem'ceito grau de. autonomia do desenvol- truturaise dinâmicos da diferenciação social; puderam concen-
vimento interno com um mínimo de projeção hegemônica para trar a observação, a análise e a interpretação em casos extremos,
fora (o que equivale a dizer: com algum controle estratégico considerados como "sistema" de uma perspectiva nacional,
direto e crescenté das estruturas internacionais de poder, nas- como se a economia, a sociedade e a cultura, sob o capitalismo,
cidasdas relações de sociedades nacionais, seminacionais e neo- se determinassem apenas a partir de um núcleo interno em ex-
coloniais ou coloniais entre si). Os sociólogos da chamada "pe- pansão; supuseram que os fatores causais e funcionais da trans-
riferia" dó mundo capitalista desenvolvido devem ' dedicar-se, formação capitalista, tanto ao nível histórico quanto ao nível
através da análisemonográfica e da investigação comparada, estrutural, atuam a partir de dentro (isto é, a partir do núcleo
aÓ estudo do regime de classes: 1.0) ousobêondições tipica- fundamental da relação capitalista e do conflito das classes
mente neocoloniais (nas quaisapenas emerge. um mercado ca~ sociais), e variam, sempre, de um ponto de menor complexi-
pÍtálistaespecificametitémoderno' é' o regime' de classes aparece; dade para outro de maior complexidade quanto ao grau de di-
assim, como uma realidade histórica incipiente); 2.°) ou sob ferenciação das relações de classe. Tal ótica sociológica era
condiçõe~r tipicam~nte de dependência econômica, sacio-cultural adequada de um duplo ponto de vista: a) objetivamente, dadas
e política (nas quais a dominação externa é mediatizada e em as condições de manifestação e de expansão do regime de clas-
que a revolução burguesa, como uma dimensão histórica inter- ses nos países do "centro" do mundo capitalista; b) subjetiva-
na, não se acelera por via autônoma, mas graças a esquemas de mente, dadas as hipóteses que fundamentavam o próprio estudo
articulação da "iniciativa privada 'nacional" com o "interven- sociológico do regime de classes. No que diz respeito à peri-
cionismo estatal", com o "capital estrangeiro" ou com ambos). feria do mundo capitalista, no entanto, impõe-se que se ponha
A primeira situação histórico-social existiu no Brasil na época em prática uma verdadeira rotação ótica do estudo socioló-
da emancipação nacional e da eclosãointerna do capitalismo. gico do regime de classes. Isso não invalida, como muitos
A segunda, já aparece claramente configurada nas últimas quatro supõem, conceitos, métodos e teorias acumulados previamente,
décadas do século dezenove,exprimindo e servindo de suporte pois o regime de classes é o mesmo. Essa herança deve ser
ao ciclo de deslancheda revolução burguesa; mas é soh a ace- aproveitada criticamente e enriquecida. O que varia é o modo
leração do crescimento econômico, portanto soh a "integração pelo qual o regime de classes "nasce" e se "desenvolve", com
do mercado interno" e o industrialismo, que ela iria mostrar o influências dinâmicas externas que afetam tanto a história quan-
que significa dependência sob otapitalisnio mOhopolista eo to as estruturas das sociedades de classes dependentes e subde-
imperiaJismo total. Se o conhecimento sociológico da formação senvolvidas. A diferença entre uma e outra ahordagem pode-

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ria ser enfatizada da seguinte maneira: em um caso, o sujeito- mente e com potencialidades sócio-dinâmicas ao mesmo tempo
-investigador estuda sociologicamente variantes do protótipo tão variadas e contraditórias. E se têm em vista uma descrição
hegemônico da sociedade de classes; no outro, o sujeito-investi- ravoavelmente balanceada e uma interpretação rigorosa dos fa-
gador estuda sociologicamente variantes do protótipo heteronô- tos, o caso nacional só pode ser entendido e explicado se não
mico (ou dependente) da sociedade de classes. O regime de for considerado isoladamente: cumpre reter todas as forças que
classes "transborda" de um para outro, graças às estruturas de são relevantes em termos estruturais e dinâmicos, nos três ní-
poder criadas no plano internacional pelo capitalismo, porém veis mencionados, pois o regime de classes, em tal situação his-
o primeiro "faz a história", enquanto que, o segundo, "a sofre" tórica, exprime a combinação dessas três ordens de influências,
(é claro, mantidas as condições de preservação e crescimento tanto nas transições que são tidas como "graduais", como nas
do capitalismo). Portanto, para não viciar sua capacidade de que possuem "teor revolucionário".
observação, de análise e de interpretação, o sujeito investigador
precisa, para investigar unidades que caem no segundo caso, A principal contribuição do estudo sociológico do regime
ajustar-se criticamente às condições específicas seja do seu obje- de classes, em tais condições, é empírica e teórica, embora muitas
to de estudo, seja de sua investigação. conseqüências práticas possam ser derivadas desse conhecimento.
Isso implica em romper com o resíduo naturalista implí- Trata-se do regime de classes que se desenvolve em conexão
cito na idéia de que o regime de classes surge da mesma maneira, com o capitalismo dependente. A dominação burguesa nele
funciona do mesmo modo e produz os mesmos resultados onde apresenta dois pólos: um interno, representado por classes do-
quer que ele apareça. Para os fins de nossa discussão, isso quer minantes que se beneficiam da extrema concentração da riqueza,
dizer, especialmente, que os sociólogo deixará de considerar o do prestígio social e do poder, bem como do estilo político que
desenvolvimento capitalista como se ele próprio fosse um cien- ela comporta, no qual exterioridades "patrióticas" e "democrá-
tista de laboratório ou um matemático. Ao estudar o regime ticas" ocultam O mais completo particularismo e uma autocracia
de classes em sociedades que se defrontam com O' desenvolvi- sem limites; outro externo, representado pelos setores das na-
mento capitalista induzido e controlado de fora, além disso su- ções capitalistas hegemônicas que intervêm organizada, direta e
jeitas ao impacto negativo das debilidades resultantes de sua continuamente na conquista ou preservação de fronteiras exter-
posições heteronômicas, os cientistas sociais têm de operar, nas, bem como pela forma de articulação atingida, sob o capi-
tanto descritiva quanto interpretativamente, com uma hetero- talismo monopolista, entre os governos dessas nações e a cha-
geneização máxima dos fatores propriamente estruturais e dinâ- mada "comunidade internacional de negócios". O grande erro
micos da diferenciação social. Eles precisam adaptar seus ân- dos cientistas sociais dos países capitalistas dependentes e sub-
gulos de observação, de análise e de interpretação à natureza desenvolvidos consistiu em considerar a dominação burguesa so-
e à variedade das forças que intervêm, concretamente, na con- mente sob o símile fornecido pelos países capitalistas hegemô-
figuração e nos dinamismos do regime de classes das nações nicos. Esqueceram que o imperialismo, visto a partir do padrão
capitalistas heteronômicas: umas, procedentes das sociedades de dominação burguesa existente em seus países, configura um
hegemônicas externas; outras, provenientes de tendências domi- pólo societário específico (mesmo em termos ecológicos, insti-
nantes na evolução das estruturas internacionais de poder, cria- tucionais e humanos, pois as firmas e capitais estrangeiros se
das pela intetação e acomodação, ao nível mundial, das impul- deslocam para o interior dos países dependentes, e operam den-
sões imperialistas das nações capitalistas hegemônicas; e outras, tro deles com pessoal, tecnologia e política próprios). Ou, em
por fim, que nascem "a partir de dentro", das próprias socieda- outras palavras, ignoraram que a dominação burguesa nunca
des de classes dependentes e subdesenvolvidas (às vezes "in- poderá ser descrita e interpretada corretamente, no caso de
duzidas a partir de fora" mas, com freqüência, parte da evo- seus países, sem que suas conexões causais e funcionais com as
lução interna do capitalismo) e que se voltam na direção do sociedades de classes hegemônicas sejam agregadas às conexões
"desenvolvimento capitalista para dentro". Ou seja, os cien- causais e funcionais puramente internas. Além disso, ao con-
tistas sociais perdem parte de seu arbítrio na abstra~'ão do caso trário do que muitos cientistas sociais supuseram (e continuam
nacional do amplo conjunto de forças, que operam simultanea- a supor), seus países não estão diante de lima ordem feudal

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ameaçada e em desagregação. Nestes paises (salvo algumas ex- -populistas ou revoluçÕes socialistas. Em vista disso, o Estado
ceçÕes), o que existe é uma ordem colonial em processo de não é, para as classes dominantes e com o controle do poder
crise e de liquidação (nos casos exceciotlais, essa ordem colo- politico, um mero comitê dos interesses privados da burguesia.
nial se superpÕe à ordem feudal preexistente). O equivalente Ele se torna uma terrivel arma de opressão e de repressão, que
do processo histórico de desagregação do feudalismo é, pois, a deve servir a interesses particularistas (internos e externos, si-
descolonização - e esse fato é de reconhecimento dificil, es- multaneamente), segundo uma complexa estratégia de preser-
pecialmente na América Latina, onde prevalece a presunção vação e ampliação de privilégios econômicos, socio-culturais e
errônea de que a descolonização constitui um episódio do sé- politicos de origem remota (colonial ou neocolonial) ou re-
culo XIX e das lutas pelas emancipação nacional (quando, na cente. Na lógica do uso do Estado como instrumento de dita-
verdade, o capitalismo comercial neocolonial e, em seguida, o dura de classe, seja ela dissimulada (como ocorria sob o regime
capitalismo dependente condicionaram, de várias maneiras, a imperial e sob o presidencialismo), seja ela aberta (como ocor-
persistência de estruturas econômicas, sociais e politicas colo- reu sob o Estado Novo ou no presente), o inimigo principal da
niais ou neocoloniais e sua coexistência com estruturas econô- burguesia vêm a ser os setores despossuidos,na maioria classi-
micas, sociais e politicas criadas pela eclosão de um mercado ficados negativamente em relação ao sistema de classes, embora
capitalista moderno e, em seguida, de um sistema de produ- uma parte deles se classifiquem positivamente, graças à pro-
ção capitalista localizado no "setor novo", predominantemente letarização. Todavia, nessa mesma lógica o "parceiro externo"
urbano-comercial e, mais tarde, urbano-industrial). Na medida não passa de um "perigoso companheiro de rota". É a relação
em que a "burguesia nacional" luta pelo desenvolvimento ca- politica com esse aliado, aliás, que caracteriza a existência do
pitalista em termos de uma politica de associação dependente, capitalismo dependente e define os rumos da revolução burguesa
ela se articula, ativa e solidariamente, aos variados interesses: que ele torna possivel. Sem um Estado suficientemente forte
externos, mais ou menos empenhados na redução dos ritmos e e dócil, seria dificil manter a associação com "os interesses ex-
dos. limites da descolonização. Por ai se vê, portanto, que es- ternos" em condições de autodefesa dos "interesses privados
tamos diante de um subtipo de regime de classes, o qual só pode nacionais'; esse Estado é que engendra o espaço politico de
ser descrito e explicado através da investigação sociológica da que necessita a "burguesia nacional" para ter uma base de bar-
sociedade de classes que se expandiu sob a égide do capitalismo ganha com o exterior e, ao mesmo tempo, poder usar a arti-
dependente.' culação com o "capital externo" como fonte de aceleração do
A segunda contribuição importante do estudo sociológico crescimento econômico ou de transição de uma fase para outra
desse regime de classes diz respeito ao esclarecimento do tipo de do capitalismo. As classes dominantes seriam uma mera "bur-
revolução burguesa a que ele dá origem (ou que ele requer). guesia compradora", destituída de meios politicos para evitar
As classes dominantes internas usam o Estado como uma bas- a regressão a uma condição colonial ou neocolonial, se não dis-
tião de autodefesa e de ataque, impondo assim seus privilégios pusessem dessa faculdade para criar e utilizar o seu próprio
de classe como ((interesses da Nação como um todo", e isso espaço político nas relações com o seu pólo externo. Analisando-
tanto de cima para baixo, como de dentro para fora. Elas -se as conexões apontadas, constata-se que o Estado surge, assim,
precisam de um "excedente de poder" (não só econômico, mas como o instrumento por excelência da dominação burguesa, o
especificamente politico) para fazer face e, se possível, neutra- que explica as limitações de sua eficácia: seus alvos são egoisti-
lizar: 1.0) as pressões internas dos setores marginalizados e cOs e particularistas; e são raras as coincidências que conver-
das classes assalariadas; 2.0) as pressões externas vinculadas tem "o que interessa ao topo" em algo relevante para toda a
aos interesses das nações capitalistas hegemônicas e à atuação da Nação. Em tais circunstâncias, a dominação burguesa não é
"comunidade internacional de negócios"; 3.0) as pressões de útil nem para levar a cabo a revolução nacional (por causa de
um Estado intervencionista, fortemente burocratizado e tecuo- suas conexões estruturais e dinâmicas com as burguesias das na-
cratizado, por isso potencialmente perigoso, especialmen tese as ções capitalistas hegemônicas e com o capitalismo internacional),
relações de classes fomentarem deslocamentos políticos no con- nem para promover a democratização da riqueza, do prestígio
trole societário da maquinaria estatal, transforma.çiks nadonal- social e do poder (por causa da coexistência de vários modos

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de produção pré ou subcapitalistas com o modo de produção (;lS "arcaicas", dele temanescentes, e pata cOhstruir as estrutUtas
capitalista e do temor de que uma liberalização da compressão ,dlt'l"llativas, autenticamente nacionais e democtáticas, típicas de
11111a sociedade de classes. Sem contar com um sistema de pro-
política pudesse conduzir à "anarquia" e à "revolução popular").
.I11~·ão capitalista autônomo e univetsalizado tanto em bases na-
Em conseqüência, temos aí uma revolução burguesa de tipo
especial. Ela tem sido encarada e definida como uma revolu- cionais quanto de classes, a ordem social competitiva só é efi-
ção burguesa "frustrada" ou "abortada". Contudo, esse racio- ciente e aberta pata os "mais iguais" (os quais oscilam, nos
cínio interpretativo só se justifica quando ela é pensada em povos de capitalismo dependente, entre um e cinco pot cento,
confronto com o modelo nacional-democrático de revolução raramente atingindo um quarto da população total). Esse
burguesa ( a comparação implícita ou explícita seria com a pequeno setor realmente constitui toda a sociedade competi-
França, a Inglaterra ou os Estados Unidos). Nos quadros em Iiva da Nação. Não obstante, seria incot1'eto dizer-se que a
que ela ocorre, porêm, a sua eficácia para o "poder burguês" ordem social competitiva não exista, em tais casos, ou que
e o desenvolvimento depende da contenção tanto da revolução ela opete como um "sistema fechado". As influências socio-
nacional, quanto da revolução democrática. Nesse sentido, ela -dinâmicas que ela desencadeia são consideráveis,' comandando
não é nem uma revolução frustrada nem uma revolução aborta- todo o fluxo da reorganização da economia, da sociedade e da
da, pois nem a "democracia burguesa" nem o "nacionalismo re- cultura. Além disso, ela se abre "para baixo": há forte mobi-
volucionário" burguês se inscrevem entre os seus objetivos reais. lidade social vertical, ascendente e descendente, com alguma
"circulação das elites" e intensa absorção dos elementos em
O que ela colima, a criação de condições e meios para o apare-
cimento e a sobrevivência do capitalismo dependente, tem sido ascensão social (nacionais ou estrangeiros). Contudo, tudo se
atingido, às vezes suscitando até a idéia do "milagre econô- passa como um processo típico de socialização pelo tope, o qual
mico" (já aplicada ao México e ao Brasil quanto à América promove uma constante redefinição das lealdades dos grupos
Latina). Sob outros aspectos, ela cai na categoria das trans- em mobilidade ascendente e uma permanente acefalização das
formações capitalistas conseguidas por vias autocráticas (4). classes "baixas" e destituídas. O que explica porque o cres-
Por fim, o estudo do regime de classes, em tais condições cimento quantitativo da otdem social competitiva não acarreta
histórico-sociais, contém outra contribuição empírica e teórica maiores alterações nos padrões de relações de classes ou de
deveras importante. Ele esclarece que muitas transformações consciência de classes: o próprio crescimento da ordem social
ocorridas nas sociedades de classes não são um produto auto- competitiva tende a favotecer unilateralmente os grupos e clas-
mático da ordem social competitiva. Ao contrário do que se ses privilegiados; e, de outro lado, contribui para fortalecer e
acreditava, através de utopias "democrático-burguesas" ou de generalizar expectativas autocrático-conservadoras de utilização
hipóteses específicas (5), por si mesma, a ordem social compe- e controle do poder. Isso quer dizer que, nas condições apon-
titiva não cria dinamismos suficientemente fortes para destruir tadas, a ordem social competitiva se esvazia como fator histórico-
o "antigo regime" ou as estruturas econômicas, sociais e políti- -social, tornando-se rígida ou inerte principalmente para os in-
teresses de classes que não coincidem com os dos "donos do
poder" (os da imensa maioria silenciosa e esquecida). Ela não
(4) Os estudiosos costumam citar a Alemanha e o Japão como se coloca, através de seus dinamismos espontâneos, na fonte das
casos típicos nessa evolução do capitalismo (ver especialmente: B. corteções de tendências antidemocráticas e antinacionais, porque
Moore, Jr., Social Origins of Dictatorship and Democracy, Boston, Bea- ela própria funciona como uma fonte de perpetuação indefinida
com Press, 1970; R. Bendix, Nation Building and Citizenship, Nova Iorque,
Anchor Book, 1969; N. Poulantzas, Poder Político y Classes Saciales en
e de fortalecimento de tais tendências. Correções dessa natu-
el Estado Capitalista, trad. F. M. Torner, Méxieo, Siglo Veintiuno Edi- reza só poderiam surgir se a ordem social competitiva fosse li-
tores, 1969). Veja-se, também: F. Fernandes, "Revolução Burguesa bertada da tutela de uma burguesia autocrática e ultraconser-
e Capitalismo Dependente" (Debate e Crítica, São Paulo, n." 1, vadora. Ou seja, através de pressões anticonformistas de grupos
julho-dezembro de 1973, págs. 48-66). elitistas (isto é, como uma "revolução dentro da ordem") ou
(5) É o caso das hipóteses sugeridas por W. L10yd Warner e através da rebelião das massas (isto é, como uma "revolução
L. Srole (veja-se: The Social Systems af American Ethnic Graups,
New Haven, Vale University Press, 1960, esp. capo X). mntta a ordem"), alternativas que são especificamente repti-

30 31
midas e .postas fora da lei pela burguesia, com base em um 11'111 dc ser, ao mesmo tempo, uma luta contra a dominação
ideal de "Nação" e de "Democracia" que se conforma ao modelo l\ I t'1"lIa- é claro o calibre das exigências práticas, que impõem
existente da ordem social competitiva. .11' 111ovimentodemocrático-nacionalista e ao movimento socia-
Semelhantes contribuições empíricas e teóricas possuem 11.',lauma ruptura total com a ordem existente. Nessa conjun-
alguma significação prática? É claro que a utilidade prática 1I1ra, a contribuição prática do conhecimento sociológico é fun-
das descobertas dos sociólogos depende da existência de. grupos d;lIl1ental, porque ele nos ensina a não termos ilusões. Ou ser-
e de movimentos .dispostos a utilizar. os resultados da investi- vimos ao Deus do capitalismo dependente; ou nos colocamos
gação sociológica na ·esfera da ação. Em países destituídos de ('(ll1traele, pelas formas e meios que conseguirmos articular.
forte participação política popular e de "tradições liberais" muito Na verdade, onde a revolução burguesa se insere em um
débeis, só existem limitados incentivos para que isso possa ocor- contexto histórico-social de apropriação dual do excedente eco-
rer. Ainda assim, os três pontos assinalados contêm evidente nômico (6), de modo a canalizar-se institucionalmente grande
importância para os vários círculos sociais mais ou menos in- parte da expropriação capitalista para fora, a base material para
conformistas da sociedade brasileira. Não tanto em virtude do a formação e a expansão da ordem social competitiva torna-se
"desmascaramento" da revolução burguesa, o qual já se paten- muito fraca e vacilante. Não se poderia esperar, em tais condi-
teara, de múltiplas maneiras, no terreno da ação (já na década ções, que a ordem social competitiva, em suas sucessivas trans-
de dez as greves operárias foram tratadas como ((questão de formações históricas, gerasse forças econômicas, sociais e polí-
polícia)); como essa ótica foi reimplantada de forma ampliada, licas capazes de acelerar e universalizar a descolonização e, por
em 1964, deve-se supor que ela define o horizonte político conseguinte, de subverter a orientação dependente e oscilante
das classes dominantes). A nível prático, só acumulamos expe- da revolução burguesa. Nessa situação, a mudança social é
riências que pressupõem as expectativas autocráticas de uma comprimida, convertendo-se, extensa e profundamente, em um
"tirania esclarecida", o que fez com que o desmascaramento da processo de "modernização dependente" (7), produzido e re-
revolução burguesa entrasse para a rotina. Ninguém, hoje, se gulado graças à absorção de dinamismos socio-econômicos e
ilude com os propósitos de "autonomia nacional", de "nacio- culturais das Nações capitalistas hegemônicas. É claro que
nalismoeconômico" ou de "democracia liberal" da burguesia. este padrão básico de modernização debilita o controle interno
Esses conceitos sofreram tal desgaste, que perderam qualquer da mudança social e do desenvolvimento econômico, de modo
sentido prático (a própria burguesia gravitou para outros con- permanente (quando declina a hegemonia de uma Nação cen-
ceitos, como o de "segurança nacional", "milagre econômico" [tal, surgem outras que ocupam a mesma posição, como su-
e "democracia forte"). Doutro lado, a "revolução institucional" cedeu com as transições neocoloniais, para o capitalismo com-
pôs fim ao próprio mascaramento ideológico, deixando a nu petitivo ou para o capitalismo monopolista), e impede que se
que certas compulsões nacionalistas e democráticas são parte instaure o padrão alternativo de "modernização autônoma",
do folclore político, mero recurso de ritualização do comporta- ainda dentro do capitalismo.
mento de classe. De fato, a dominação burguesa se. apresenta
como ela é: rígida, monolítica e autocrática, anulando ou supri- O que importa aqui, do ponto de vista prático, são as con-
mindo todo o espaço político que não sirva aos interesses eco- seqüências socio-dinâmicas e políticas de tal processo secular.
nômicos, sociais e políticos das classes dominantes .. Tudo isso Os ritmos históricos e estruturais, a continuidade ou descon-
é esssencial do ponto de vista prático: os movimentos de opo- tinuidade e o grau de aceleração da revolução burguesa passam
sição ou de inconformismo militante precisam criar, por seus a depender largamente dos dinamismos imperialistas das Na-
próprios meios, o seu espaço político. A ordem social compe-
titiva não lhes dá caminho; e a repressão conservadora desaba (6) Sobre esse conceito, veja-se F. Fernandes, Capitalismo De-
sobre eles para destruí-Ios, .quaisquer que sejam suas vincula~ pendente e Classes Sociais na AméricaLatina, Rio de Janeiro, Zahar
ções reais com o nacionalismo, com a democracia ou mesmo Editores, 19.J3, pág. 71 e seguintes.
com a intensificação da revolução burguesa. Dada essa situação (7) Quanto ao contraste entre "modernização dependente" e
global - e o fato de que a .luta contra a repressão conservadora "modernização autônoma", conforme a obra citada, capo IH.
3
32 33
}
çôes capitalistas hegemC'>nicase do mercado mundial. A falta i'lllpri:lç:IO colonial, as distinções sociais preexistentes na socie-
de correspondência entre poder econômico e poder político faz II:1de portuguesa. Há evidente ligação entre esse padrão, que
com que a burguesia nacional, mesmo que desejasse o contrá- :lilHla não foi neutralizado pela ordem social competitiva, e a
111,'11 talidade mandonista, exclusivista e particularista das elites
rio, seja impotente para realizar, por conta própria, os seus pa-
péis históricos e tentar, assim, assumir o controle completo, (LIS classes dominantes. Por isso, as relações de classe sofrem
a partir de dentro (embora com recursos materiais e inovações i crferências de padrões de tratamento que são antes estamen-
111

importados), das grandes transformações econômicas, sócio- 1 ais e que reproduzem o passado no presente, a tal ponto que o
Illlt'Ízonte cultural inerente à consciência conservadora de nossos
-culturais e políticas. Isso sugere que a revolução burguesa, à
medida que se transita do capitalismo comercial para o capita- dias, em seu mandonismo, exclusivismo e particularismo agres-
lismo industrial e financeiro, engendra problemas crescentemen- Il's, lembram mais a simetria "colonizador" versus "colonizado"
te mais complexos e insolúveis na esfera da dependência eco- quc a "empresário capitalista" versus "assalariado". Isso evi-
nômica, cultural e política, aparecendo como inevitável a trans- ,lencia o quanto a ordem civil ainda não atingiu mesmo grupos
ferência de decisões vitais para os centros estratégicos das Na- illcorporados ao mercado capitalista de trabalho e ao sistema de
ções capitalistas hegemônicas. Em conseqüência, a autonomia relações de classes, demonstrando que a distância social entre
nacional e a democracia deixam de ser historicamente concretiJ as classes nem sempre é uma mera questão quantitativa. Aque-
záveis, ao nível em que elas se objetivam na consciência con- le padrão compatibiliza a coexistência da tolerância e até da
servadora, pela via da revolução burguesa. Só as classes so- cordialidade com um profundo desdem elitista por quem não
ciais que se oponham a esse tipo de revolução (ou ao caráter possua a mesma condição social. O que faz com que aquilo
que ela assume sob o capitalismo dependente), poderiam romper que parece "democrático', na superfície, seja de fato "autod-
o impasse. A experiência demonstrou que ainda não chega- Iário" e "autocrático", em sua essência. Esse patamar psico-
mos a esse ponto de ruptura e que, de outro lado, o inconfor- -social das relações humanas é a nossa herança mais duradoura
mismo das elites (de classes médias e altas) não é bastante (c, ao mesmo tempo, mais negativa) do passado colonial e
sólido para criar uma alternativa histórica dentro e a partir do mundo escravista. Gostaria que ele fosse mantido na pers-
da ordem social competitiva. O que significa que só as classes pectiva crítica do leitor, qualquer que seja sua dificuldade para
sociais destituídas e o proletariado poderão forjar essa alterna- imaginar como as coisas seriam se o Brasil não tivesse surgido
como uma sociedade colonial e escravocrata.
tiva, mas fora e contra a ~ordem existente, o que exige que
suplantem a dominação burguesa interna e externa, bem como O principal foco dos dinamismos sócio-dinâmicos da mu-
se mostrem aptos para desencadear uma revolução socialista. dança social é a organização da sociedade. No caso brasileiro,
os modelos de organização social sempre contiveram potencia-
lidades sócio-dinâmicas (de diferenciação estrutural e funcional
Quais são as Características da Mudança Social no Brasil? ou de saturação histórica) que. não lograram se concretizar de
modo mais ou menos rápido e intenso (8). O primeiro modelo,
Deixando de lado várias questões fundamentais - algu- que serviu de base para a organização da sociedade colonial,
mas já debatidas em outro§ trabalhos de minha autoria, que envolvia uma superposição do padrão português do regime esta-
cuidam do processo de transplantação cultural propriamente dito mental (em fase de transição incipiente para o regime de clas-
e do esforço criativo inerente à preservação de uma herança ses) à escravidão de estoques raciais indígenas, africanos e mes-
sócio-cultural que transcendia, de modo inevitável, às exigên- tiços. Essa superposição representou uma técnica adaptativa
cias das situações históricas vividas - concentrarei a atenção
sobre certos aspectos sócio-dinâmicos do fluxo da mudança so-
cial e de seu controle societário coercitivo. Impõe-se deixar de (8) Para uma descrição sintética desses modelos, de acordo com
a orientação interpretativa do autor, cL F. Fernandes (org.), Comu-
lado o período colonial. Contudo, não se deve esquecer que uidade e Sociedade no Brasil, São, Paulo, Companhia Editora Nacio-
o padrão brasileiro de gente de prol se constitui nesse período, lIal-Editora da Universidade de São Paulo, 1972, págs, 273-283, 309-315,
em que se agravam, por causa da escravidão e da própria ex- :1~)9-407 e 506-511.

34 35
imposta. pela exploração colonial e deu origem a um sistema
estratificatório misto, cujo duração foi condicionada pela per- Isso, mais que o seu aparecimento relativamente recente, ex-
sistência do regime servil e do sistema de produção escravista. plica as vicissitudes do regime de classes no Brasil e as dificul-
Ele possibilitava a classificação dos elementos da raça domi- dades, tanto estruturais quanto históricas, que vêm embaraçan-
(10 a eficácia da competição e do conflito na coordenação das re-
nante em termos estamentais; a classificação dos elementos das
lações de classe. Basta um exemplo para se ter uma idéia apro-
raças escravizadas (legal ou ilegalmente) em termos de castas;
ximada do que implica esta afirmação. As greves operárias,
e uma ampla gravitação dos elementos mestiços libertos ou li-
enfrentadas como "questão de polícia" na década de dez, fo-
v!:es em torno dessas duas categorias. Bastam dois exemplos tam reiteradamente tratadas de modo repressivo posteriormente
para se ter uma idéia aproximada de como foi lenta a satura- e banidas da ordem legal depois de 1964 (l0). Uma sociedade
ção estrutural-funcional e histórica desse sistema de estratifica-
de classes que submete o sindicalismo a uma regulamentação
ção. No que diz respeito ao senhor, não é no período colonial, corporativistae tolhe as pressões de baixo para cima não está
mas graças à emancipação nacional que ocorre a integração ver- apenas na "infância". É uma sociedade de classes que só fun-
tical dos estamentos senhoriais. Essa transformação operou-se ciona como tal para os "mais iguais") ou seja, para as classes
através da integração desses estamentos em uma ordem civil, altas e médias.
que detinha o monopólio do poder político, o qual conferiu aos O outro foco dos dinamismos sódo-dinâmicos damudan-
senhores a probabilidade de controlar a máquina do Estado sem ça social é a difusão cultural. No caso brasileiro, cumpre re-
qualquer mediação. Enquanto durou o sistema colonial, a conhecer, desde logo, esse foco tem uma importância básica,
Coroa impediu essa evolução, que deslocaria o poder político pois a incorporação aos movimentos de "expansão do mundo
de suas mãos para os estamentos senhoriais. No que diz res- ocidental moderno" tem operado como fator de precipitação
peito ao escravo, somente depois da supressão do tráfico (por- tanto de transições históricas, quanto de diferenciações estru-
tanto, depois que o mundo de produção escravista entra em turais que explicam transformações capitais da sodedade bra-
crise estrutural) e para fazer face às pressões da incorporação sileira (quer sob o regime estamental e de castas, quer sob
de novas áreas à economia de plantação, é que a escravidão como o regime de classes). Em regra, o desenvolvimento interno
"instituição econômica" iria sofrer uma depuração funcional. da economia, da sociedade e da cultura cria, previamente, um
O domus foi separado da plantação e, em conseqüência, muitos novo patamar, o qual condiciona e torna possível a partir de
fatores de desperdício ou subaproveitamento do trabalho es- dentro, uma alteração súbita no enlace com os dinamismos eco-
cravo foram reduzidos ou eliminados, com o objetivo de au- nômicos e culturais com as Nações capitalistas hegemônicas e
mentar seja a sua intensidade, seja a sua produtividade (9). com o mercado mundial. Precipita-se, desse modo, uma fase
O segundo modelo, que se originou, simultaneamente, da desa- mais ou menos intensa de modernização, orientada e regulada
gregação do regime estamentale de castas e do desenvolvimento a partir de fora. Em seguida, a transformação completa-se,
interno do capitalismo, foi amplamente solapado pela coexis- através de vários reajustamentos internos simultâneos ou su-
tência e concorrência do trabalho servil, do trabalho semilivre
e do trabalho livre, provocadas pelacoetaneidade de várias ida-
des históricas distintas e pela articulação, no mesmo sistema (10) Vejam-se, especialmente: E. Dias, História das Lutas So-
ciais no Brasil, São Paulo, Editora Edaglit, 1962; e, para fins de in-
econômico, de modos de produção pre-capitalistas e capitalistas. terpretação sociológica: L. Martins Rodrigues, Conflito Industrial e
Sindicalismo no Brasil, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1966; A.
Simão, Sindicato e Estado, São Paulo, Dominus Editora-Editora da
(9) O melhor exemplo, a respeito, é o do Oeste paulista, onde Universidade de São Paulo, 1966; J. Albertino Rodrigues, Sindicato e
a inovação aparece em conexão com os dois efeitos mencionados (con- Desenvolvimento no Brasil, São Paulo, Difusão Européia do Livro,
sultem-se: S. Buarque de Holanda, prefácio a Thomaz Davatz, Me- 1966; F. C. Weffort, Sindicato e Política, São Paulo, Faculdade de
mórias de um Colono no Brasil (1850), São Paulo, Livraria Martins, Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo,
1941, págs. 13-14; F. Fernandes, "O Negro em São Paulo" (O Negro ('d. mimeo, 1972; J. R. Brandão Lopes, Crise do Brasil Arcaico, São
no Mundo dos Brancos, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972, Paulo, Difusão Européia do Livro, 1967; F. C. Weffort, Participação
capo VI; esp. págs. 142-146). " Conflito Industrial: Contagem e OsascQ.• 1968 .• São Paulo, CEBRAP,
1972.

36
37
\'11,:11a e senhorial ou da ordem social competitiva, seja na di-
cessivos. Quando a transição é substancial, estrutural e histo- 11I1lIiz:lçãodo desenvolvimento capitalista interno, nos desdo-
ricamente (como ocorreu na época da emancipação nacional, I ll:lIl1entos que vão de uma economia neocolonial dotada de
com a passagem do sistema colonial para o neocolonial; do 11111 mercado capitalista moderno ao capitalismo competitivo e
último quartel do século XIX em diante, com a emergência :1'l capitalismo monopolista). Essas duas conclusões também
e a expansão do capitalismo competitivo; e, depois da Segun- ,IIlllportam um corolário: a articulação dos dinamismos eco-
da Guerra Mundial, corn a emergência e expansão do capita- Ilt)micos, sociais e culturais internos e externos, apesar de tudo,
lismo monopolista), ocorre uma substituição do padrão de Iliio é suficiente para produzir a emergência e a consolidação
desenvolvimento econômico, sócio-cultural e político; alteram- ,It: um padrão de desenvolvimento que se pudesse equiparar ao
-se também os ritmos do desenvolvimento econômico, socio- I ladrão de desenvolvimento auto-sustentado das Nações capita-
-cultural e político, que atingem maior velocidade inicial, para listas hegemônicas. Isso faz com que a incorporação e a mo-
decair gradualmente e, com o tempo, retomar uma velocidade dernização surjam à observação em sua verdadeira natureza,
média compatível com a preservação das mudanças ocorridas como uma expansão de fronteiras econômicas, sócio-culturais e
(sem, no entanto, eliminar hiatos e descontinuidades, nascidos políticas externas (de fora para dentro: das Nações capitalistas
da heterogeneidade dos modos de produção articulados no mes- hegemônicas na direção da sociedade brasileira), como uma
mo sistema econômico e da coetaneidade de idades históricas espécie de "conquista", à qual os dinamismos internos não
diversas) ;e, por fim, surge o encadeamento das transformações têm o poder de se oporem e de neutralizar.
ocorridas com a diferenciação da economia, da sociedade e da a fluxo descrito continha, de fato, dois movimentos de
cultura, estabelecendo um patamar novo, que permite ou uma mudança social que se superpunham e, a partir de certo rno-
melhor saturação estrutural-funcional e histórica dos modelos mento, se confundiam e se fundiam. Ambos os movimentos
de organização social vigentes, ou outro "salto" estrutural- operavam "espontaneamente": um, através de processos de di-
-funcional e histórico. Esse esquema, ultra-simplificado, situa ferenciação da ordem socialescravocrata e senhorial (ou, mais
bem a complexidade da vinculação dos dinamismos sócio-dinâ- tarde, da ordem social competitiva) e da saturação histórica
micos internos e externos. A relação não é uma relação de progressiva' de potencialidades dinâmicas de status e papéis
sociais, de relações sociais ou de funções sociais das instituições-
causa e efeito simples. Temos, antes, um modelo dialético de
-chave; outro, através da ampla difusão de novas técnicas, va-
causação, pelo qual podemos localizar múltiplas causas e efeitos lores e instituições sociais, implantados no "setor novo" graças
em influência recíproca e em tempos sucessivos ou simultâneos, à eclosão de um mercado capitalista moderno, à reorganização
todos regulados, nas relações de concomitância e de sucessão, político-administrativa do Estado e à crescente expansão urbano-
pelos vários tipos de contradições que jogam o desenvolvimento comercial (ou, mais tarde, urbano-industrial). No conjunto,
interno contra a modernização e vice-versa. Procurei reter e os dois movimentos é que exprimiam toda a transformação da
pôr em primeiro plano as regularidades que aparecem, aos ní- economia, da sociedade e da cultura. Todavia, eles não opera-
veis estrutural-funcional e histórico, como as tendências carac- vam isoladamente. Tanto a partir de dentro, quanto a par-
terísticas do complexo movimento social resultante. Esse es- tir de fora, havia outros movimentos de sentido oposto,
quema comporta duas afirmações complementares: 1.0) em si que trabalhavam pelo equilíbrio estático da economia, da so-
e por si mesmas, as "transformações internas" não seriam su- ciedade e da cultura. a modo de produção escravista, a es-
ficientes para promovera diferenciação estrutural-funcional e trutura estamental e de casta das relações sociais, e a domi-
as transições históricas conhecidas (a desagregação do sistema nação patrimonialista concorriam para preservar, aos níveis es-
colonial, a plenitude do sistema de castas e de estamentos, a trutural e histórico, as estruturas econômicas, sociais e polí-
desagregação desse sistema e a formação do sistema de classes); ticas herdadas do período colonial, mantendo-as quase intatas.
2.0) porém, em si e por si mesmos, os fluxos da "moderniza- Doutro lado, a influência externa, autenticamente revolucio-
ção dependente" não encontrariam base econômica, socio-cultu- nária aos níveis estrutural e histórico na fase de desagregação
ral e política para transcorrerem e, em particular, para atingirem do antigo sistema colonial, pois incorporava a economia in-
a eficácia que lograram (seja na dinamização da ordem escra-
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38
!
terna diretamente ao mercado mundial e fixava os núcleos ur- importância interpretativa, de que natureza era o fluxo de mu-
banos que iriam servir de fulcro ao crescimento de um mer- dança social descrito. Ele não surgia insopitavelmente, como
cado capitalista moderno, também pressupunha um feedbaek lima torrente volumosa e impetuosa, que abria seu caminho de
negativo. O comércio externo constituía o verdadeiro ponto modo inexorável. Mas uma espécie de afluente, que desaguava
de apoio seja para a manutenção seja para a ampliação de um em um rio velho, sinuoso e lerdo. A medida que se formassem
esquema de exportação e de importação que iria servir de novos afluentes e, em particular, à medida que os homens
eixo para a preservação, o desdobramento e a revitalização drenassem o velho rio e o retificassem, é que a contribuição
de estruturas econômicas, sociais e políticas de origem colonial. da massa de água adquirida iria revelar todo o seu potencial.
É preciso cotejar esses quatro movimentos de estabilida- Essa imagem não é meramente retórica. Lembremo-nos de que
de e de mudança sociais, convergentes em certos aspectos e da vinda da família real, em 1808, da abertura dos portos
divergentes em outros, para se avaliar corretamente o resíduo c da Independência; à Abolição, em 1888, à proclamação da
realmente inovador e construtivo dos influxos internos e ex- República e à "revolução liberal", em 1930, decorrem 122
ternos de transformação econômica, sócio-cultural e política. anos, um processo de longa duração, que atesta claramente
Os movimentos que promoviam a preservação e o fortaleci- como as coisas se passaram.
mento de relações, instituições e estruturas coloniais não eram, Esse quadro sugere, desde logo, a resposta à pergunta: "a
pura e simplesmente, antagônicos à modernização, ao cres- quem beneficia a mudança social?". Embora transformações
cimento do "setor novo" e à expansão interna do capitalismo tão profundas quanto as que ocorreram graças à desagregação
comercial. Bem analisados, eles constituíam antes uma pré- do sistema colonial e à expansão interna do capitalismo comer-
-condição para que tudo isso fosse possível, dadas as vincula- daI afetassem o presente e o futuro de toda a sociedade brasileira,
ções existentes entre a grande lavoura, a continuidade da in- de fato os proventos imediatos dessas transformações conver-
corporação direta ao mercado mundial e o desenvolvimento giram para pequenos grupos de agentes humanos" localizados
capitalista no "setor novo", urbano-comercial (e, mais tarde, em posições estratégicas no exterior ou no interior do país.
urbano-industrial). O antagonismo à mudança, portanto, tem Limitando-nos a estes últimos: os benefícios e os efeitos cons-
de ser interpretado com muito cuidado, porque ele faz parte trutivos .a largo prazo da mudança social foram monopoliza-
da autodefesa do setor arcaico, que funcionava como fonte de dos pelos estamentos médios e altos, os únicos que se se incor-
alimentação indireta das transformações em curso e se bene- poravam à ordem civil com meios e qualificações para impor
ficiava delas no nível menos visível da reorganização e con- sua vontade. A questão não é só, portanto, de "nível de vida"
centração do poder. Doutro lado, os interesses investidos na ou de "estilo de vida", como querem crer muitos historiadores
modernização ou na expansão interna de um mercado capita- e antropólogos. Ela é, também, de "organização da vida".
lista moderno e do setor urbano-comercial, estratégico para tais O fluxo da mudança social trazia em seu bojo novas formas
fins, não lutavam pelo controle do espaço ecológico, econô- de organização institucionaldas atividades econômicas, sócio-
mico, sócio-cultural e político incorporado às estruturas econô- -culturais e políticas, as quais foram amplamente absorvidas e
micas, sócio-culturais e políticas de origem colonial. Na ver- controladas pelos setores senhoriais ou quase-senhoriais que
dade, eles se superpunham e se agregavam, aos níveis estrutu- compunham a referida ordem civil (no campo e nas cidades). Os
ral e histórico, aos interesses investidos neste setor de origem dois núcleos mais importantes de fixação dessas mudanças lo-
colonial, produzindo-se uma articulação dinâmica entre ambos. calizavam-se no Estado emergente e nas firmas comerciais. Como
Por isso, não só as relações de produção coloniais podiam a emancipação nacional constituía uma revolução especificamen-
subsistir: elas se convertiam, de imediato, em fonte do exce- te política, é em torno dessa área que ocorrem as principais
dente econômico que iria financiar tanto a incorporação direta transformações. A saturação histórica dos papéis políticos dos
ao mercado mundial, com seus desdobramentos econômicos e senhores deu uma nova importância à sua participação das ati-
culturais, quanto a eclosão de um mercado capitalista moderno vidades políticas, em escala provincial e nacional. As famílias
e a subseqüente revolução urbano-comercial. Por aí se veri- senhoriais têm de enfrentar, assim, maiores investimentos hu-
fica quão complexo era o quadro global. E, o que tem maior manos e financeiros nos centros de poder político, precisando

40 41
I
deslocar do campo para a cidade, de maneira crescente, sua IIIH)rÍal: a Abolição, a proclamação da República e a "revolu-
esfera de atuação burocrática e política crucial. O mesmo pro- ';:10 liberal" de 30 apenas assinalam que ele entra em crise.
cesso provoca uma reativação das atividades político-burocrá- 1\ destruição do modo de produção escravista leva, pela primeira
ticas dos elementos dos estamentos médios e altos localizados vez, a descolonização ao âmago do sistema econômico, revolu-
nas cidades, com uma intensificação da solidariedade política ciunando as bases da ordem social e do sistema de poder. Ela
estamental acima dos laços de família ou de nobreza (o que exige que se elimine, gradualmente, a articulação dinâmica en-
constituía um requisito da formação da ordem civil como um I re estruturas sócio-econômicas arcaicas e modernas. Todavia,
sistema de poder 'fechado" e do seu funcionamento como um a persistência do esquema de exportação-importação e o fato
mecanismo de monopolização do poder pelos estamentos altos de que a expansão do mercado interno iria revitalizar a grande
e médios da "raça dominante"). No outro plano, encontravam- lavoura, tiveram efeitos especiais. Mantêm-se o trabalho servil
-se as novas firmas comerciais, na maioria ,estrangeiras ou asso- disfarçado e várias formas de trabalho semilivre mUoito tempo
ciadas, em torno das quais iria gravitar, inicialmente, o cresci- depois da universalização do trabalho livre. Portanto, a ordem
mento do mercado moderno e do próprio capitalismo. Malgra- social competitiva atinge um clímax evolutivoexcluindo tanto
do o controle externo direto ou indireto, esse avanço pressupu- os brancos pobres, quanto os remanescentes do trabalho escravo,
nha o início da desagregação gradual do padrão colonial de os negros e os mulatos que não lograram proletarizar-se ou clas-
mercado (que continuava a existir, a funcionar e a dominar sificar-se nos estratos sociais médios e altos. O que surge, muito
as economias locais), uma nova relação com a economia mun- forte, não é o fim do processo que nos preocupa. Mas a pres-
dial e as bases necessárias para a organização institucional das são de baixo para cima, que visa impor a "presença" e as "ne-
atividades econômicas internas segundo padrões especificamente cessidades" da Nação como um todo na esfera da mudança
capitalistas. Tal progresso não era de somenos, já que permi- social, visando acabar com o esmagamento e a sufocação eli-
tia absorver, de imediato, as quotas do excedente econômico tista da mudança social. Este salto não se dá mais sob com-
que eram abocanhadas pela Coroa e pelas companhias comer- pulsão da modernização (inclusive, quando suas potencialidades
ciais metropolitanas; e, de outro lado, criava um ponto de de conflito se tornam claras, os interesses externos se compõem
partida para o novo funcionamento do esquema exportação- com a chamada "consciência conservadora" da oligarquia e com
-importação, que passou a gravitar também para dentro, fo- as técnicas repressivas que esta adota). Ele se processa sob
mentando o aparecimento de um pólo dinâmico para o cresci- a pressão das estruturas nacionais de integração da economia,
mento do mercado interno e, com o tempo, do modo de pro- da sociedade e da cultura. Emerge, assim, uma ideologia refor-
dução capitalista. Aí estavam os germes de uma ordem social mista que empalma, com moderação, os ideais burgueses de
competitiva, que abria seus flanoos dentro do "antigo regime" uma revolução nacional-democrática. A reação de autodefesa
em reelaboração e iria se alimentar de sua destruição paulatina. dos setores que defendiam o monopólio elitista dos efeitos
No que concerne à monopolização dos efeitos construtivos construtivos da mudança social tomou vários rumos, que tra-
da mudança social pelos estamentos dominantes da ordem so- duzem a desorientação criada nas classes médias e altas por essa
, cial escravocrata e senhorial há pouco a acrescentar. O "cida- primeira irrupção histórica dramática das contradições que ope-
dão", na emergente sociedade nacional brasileira, não era apenas ram dentro da ordem social competitiva. Contudo, a consciên-
um componente da ordem civil: era o "nobre" ou o "burguês" cia conservadora prevaleceu, porque ela reunia os principais
com condição senhorial - gente que desfrutava das garantias trunfos das estruturas de poder: a "velha" e a "nova" oligar-
civis, do direito de representação e que dispunha de voz nos me- quias coincidiam, em seus propósitos de "desenvolvimento com
canismos seletivos da "opinião pública", que comandava a segurança", com os setores ascendentes das classes médias e os
democracia restrita imperial. A mudança social não se fazia parceiros estrangeiros. Há mais de um século e meio depois
para a sociedade brasileira, mas para essa gente, ou seja, para da Independência e há mais de três quartos de século da uni-
o pequeno universo estamental que continha os "homens váli- versalização do trabalho livre e da proclamação da República,
dos" da Nação emergente. Esse monopólio não iria desaparecer :1 mudança social ainda não se dá para a sociedade brasileira
juntamente com a desagregação da ordem escravocrata e se- II lIDO um todo, mas para uma minoria privilegiada, a qual pode

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Os mesmós estratos sociais que monopolizam os benefícios
ser estimada, para efeitos de classificação sócial efetiva "no sis- da mudança social tendem a submetê-Ia a controles mais ou me-
tema", no máximo em quarenta por cento, mas que não passa, nos seletivos e coercitivos. Isso ocorreu no Brasil e continua
na realidade, de dez por cento, em termos de concentração de
a ocorrer no presente (nem poderia ser de outra maneira).
renda ou de poder e de renda média compatível com o Os controles visavam garantir a transferência de recursos da
"padrão de vida decente" das elites (11).
comunidade nacional para esses estratos, mediante o subterfúgio
de alocá-Ios à solução dos "problemas de mudança" que são
(11) Há muita controvérsia quanto às implicações da distribuição estratégicos ou vitais para eles. Desse modo, a Nação como
da renda. Mas essa é a melhor referência de que dispomos para um todo financiou ou financia vários desenvolvimentos técni-
avaliar a desigualdade econômica, social e cultural na sociedade bra-
sileira. Langoni indica que os 10% do tope dispõem de uma renda cos, econômicos, culturais e políticos que deviam servir, de
média mensal de Cr$ 1309,87 (em cruzeiros de 1970) e que a eles modo direto ou indireto, a propósitos ou a interesses privados
correspondem 46,470/0 de toda a renda. Pode-se estimar o que isso (internos e externos). Muitas "políticas" foram montadas,
representa quando se considera que os 50% de renda mais baixa só no passado remoto ou recente e no presente, para dotar o país
contam com 15% de toda a renda; e que são precisos 80% de toda
a população que percebe alguma renda para atingir-se 38,38% de toda de uma infra-estrutura econômica, de comunicações, de transpor-
a renda! A renda média mensal nos últimos cinco decÍs oscilava entre tes e de serviços estreitamente moldadas por objetivos privados
Cr$ 32,69 e Cr$ 141,54. Enquanto o 1% de maior renda contava imediatistas. Nos vários momentos, a questão invariavel pre-
com 14,11 % de toda a renda e uma renda média mensal de Cr$ 3976,11; mente sempre foi a de criar espaço ecológico, econômico, so-
e os 5% de maior renda contavam com 34,06% de toda a renda e
uma renda média mensal de Cr$ 1920,17 (ver C. Geraldo Langoni, cial, cultural e político para a "iniciativa privada" (ou seja,
Distribuição da Renda e Desenvolvimento Econômico do Brasil, Rio de para expandir a rede de negócios e de poder dos estratos so-
Janeiro, Editora Expressão e Cultura, 1973, tabela 1.1, pág. 21). Para ciais dominantes). Essa prática não é peculiar ao Brasil e aos
uma análise global crítica do tema, cL P. Singer, "Desenvolvimento e Re- países de capitalismo dependente. Contudo, ela assume nestes
partição da Renda no Brasil" (Debate e Crítica, n.o 1, julho-dezembro
de 1973, págs. 67-94). países um caráter típico. O passado colonial converte a sepa-
São as seguintes as contribuições mais importantes na recente dis- ração entre "minoria privilegiada" e a "grande massa excluída"
cussão dos problemas de distribuição de renda: M. C. Tavares e J. numa realidade pungente, que não chegou a existir mesmo nas
Serra, Mas Alla deI Estancamiento: Una Discussion sobre el Estilo deI sociedades de classes mais rígidas da Europa, que foram des-
Desarrolo Reciente de Brasil, Santiago, Escuela Latioamericana de critas como se fossem "duas nações". A minoria privilegiada
Sociología, 1971; C. Furtado, Análise do "Modelo" Brasileiro, Rio de encara a si própria e a seus interesses como se a Nação real
Janeiro, Civilização Brasileira, 1972 (cap. 1); R. Hoffmann, Contri-
buição à Análise da Distribuição de Renda e da Posse da Terra no começasse e terminasse nela. Por isso, seus interesses parti-
Brasil, Piracicaba, Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", ClLlafÍstas são confundidos com os "interesses da Nação" e
ed. mimeo, 1971; J. C. Duarte, Aspectos da Distribuição da Renda resolvidos desse modo. Enquanto que os interesses da grande
no Brasil em 1970, Piracicaba, ed. mimeo., 1971; L. C. Guedes Pinto,
Contribuição ao Estudo da Distribuição de Renda no Brasil, Piraci-
Lllassaexcluída são simplesmente esquecidos, ignorados ou su-
caba, Escola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", ed. mimeo., I )('stimados. Os assuntos de mudança social" entram, assim,
1972); R. Hoffmann, Tendências da Distribuição da Renda no Brasil lia esfera do controle social e da dominação de classe, com uma
e suas Relações com o Desenvolvimento Econômico, Piracicaba, Es- ,'li ica enviezada, que identifica a Nação com os "donos do poder".
cola Superior de Agricultura "Luiz de Queiroz", ed. mimeo, 1972; R. Duas conseqüências negativas advêm de tal distorção. A
Hoffmann e J. C. Duarte, "A Distribuição da Rehda no Brasil",
Revista de Administração de Empresas, Rio de Janeito, V: 12 n.· 2, primeira, diz respeito à unilateralidade com que "as exigências
abril-junho de 1972, págs. 46-66; J. Serra, "A Reconcentração da Ren-
da" (Estudos CEBRAP, São Paulo, n.· 5 julho-agosto-setembro de '1'1" sejam os argumentos empregados, implica em aceitar que a "saída
1973, págs. 131-155). A defesa mais flexível da "posição oficial", I" ,Isiieira" para o desenvolvimento capitalista acelerado encontra-se
quanto à presente política de desenvolvimento econômico, aparece "111 práticas de acumulação capitalista que intensificam a concentração
no livro acima citado, de C. G. Langoni, e nas seguintes matérias de .1.\ )ruda no tope e aprofundam as margens de expropriação capitalista
imprensa: "Renda Cresce Irregular e População Também" (M. H.
Simonsen; O Estado de S. Paulo, 30-6-72); "Renda Melhora com .I"" assalariados, deixando-se para o futuro indeterminado a correção
""Iin'la dos mais brutais efeitos da extrema desigualdade na distri-
Transição do Desenvolvimento" (C. G. Langoni; O Estado de S. 1," ":;,.0 da renda.
Paulo, 28-11-1972). A defesa dessa política econômica, quaisquer
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44
!!II
11

da situação" se elevam à esfera da consciência social, do com- ;IS posições de poder e as bases de dominaçao política das clásc

portamento social inteligente e da atuação politica. Os "pro- :;('s dominantes, que podem perder facilmente, através delas,
blemas" que ganham prioridade são os problemas que afetam ,I "controle da situação". Como as classes que se identificam
os interesses, a segurança ou a rede de poder da minoria privi- ,"omo tais mudanças nem sempre possuem o que alguns cien-
legiada, insensível aos dramas humanos ou desumanos das I istas políticos designam como poder de barganha, acaba sendo
massas e pouco sensível às "questões de ordem nacional" que lima tentação sedutora e fácil resistir a tais tipos de mudança,
não a ponham em risco visível. A segunda, diz respeito à i,í que as retaliações previstas podem ser comodamente contor-
propensão dessa minoria, instalada nos principais centros estra- Iladas ou reprimidas. Aqui, entra-se no capítulo da resistência
tégicos de decisão e de dominação, a graduar ou a adulterar sociopática à mudança, através da qual as classes sociais domi-
as mudanças assim "filtradas" de acordo com seu código de Il,lntes e suas elites desfrutam a ordem social competitiva, mas
;1 convertem em uma "ordem fechada" às necessidades e às
conveniências. Um Estado "nacional" e "democrático", por
exemplo, pode ser montado para servir aos interesses econô- aspirações das demais classes. Ê lugar-comum na interpretação
micose às necessidades de dominação de proprietários de es- sociológica que esse comportamento político das classes domi-
cravos. Ou todo um aparelho policial ou policial-militar, em lIantes e de suas elites decorre da falta de socialização adequada
outros exemplos, pode ser posto a serviço da repressão de " da inexistência ou debilidade com que elas compartilham al-
vos coletivos "nacionais" e "democráticos". Por conservan-
greves operárias ou do sufocamento da inquietação popular.
Olhando-se tais exemplos pelo reverso da medalha, pode-se I ismo, por oportunismo ou por uma combinação de ambos, essas
constatar que o controle coercitivo da mudança social visa a ,lasses e suas elites seriam compelidas a enfrentar os "proble-
compatibilizar a ordem social competitiva com privilégios eco- Illas da mudança" sem a disposição de resolvê-los segundo cri-
nômicos, sociais e politioos herdados do sistema colonial. Ê I,:rios efetivamente "nacionais" e "democráticos", isto é, de
como se, na França, se pretendesse justapor, durante a {{grande ;Il'ordo com as exigências estruturais e dinâmicas da ordem so-
revolução", os móveis da dominação feudal aos móveis da do- ,ial competitiva em dada fase de seu desenvolvimento histórico.
minação burguesa. Isso traz à baila mais uma evidência de I':ssa interpretação é, sem dúvida, correta. Mas, implica em um
Iligar-comum, que além do mais ignora que, na raiz do com-
que a ordem social competitiva, sob o capitalismo dependente,
portamento das classes dominantes e de suas elites, se acha outro
não produz, por si mesma, as impulsões para a mudança e as
•"l1lpOnente de maior influência condicionante e determinante.
impulsões concomitantes para o "controle democrático" da mu-
dança, que são requeridas pelas grandes transformações estru- Nao é só a cegueira, que conta, mas também a certeza (ou quase
turais e históricas que ela mesma acarreta. Institucionaliza-se , ,'r1eza) de que se pode manipular uma ordem social como a com-
a adulteração dessa ordem, o que, por sua vez, engendra a adul- pt"litiva de modo relativamente fácil e impune. Pois uma ordem
teração sistemática do próprio padrão de estabilidade e de :,ocial que se alicerça sobre uma estrutura de poder econômico,
mudança da sociedade competitiva sob o capitalismo. :;,I"ial e político desigual tende a conferir peso diverso às di-
in,'ntes classes. Isso introduz uma vantagem estratégica per-
Contudo, existem mudanças espontâneas que têm origem IIlallente em benefício das classes "mais iguais", que dispõem
estrutural: elas se originam do próprio padrão organizatório da .1,' maior poder econômico, social e político, bem como de
sociedade de classes e não podem ser facilmente adiadas, sufoca- IIlt'ios para empregá-los a favor de seus objetivos coletivos es-
das ou reprimidas. Elas nascem dos dinamismos do mercado e iwt'Íficos (sejam eles particularistas ou não).
do sistema de produção sob o capitalismo, das relações e con- A situação global, portanto, permite compreender a resis-
flitos de classes, ou das impulsões à igualdade civil desenca- I.'lll'ia sociopática à mudança como algo possível (e por vezes
deadas pelas estruturas de poder de uma sociedade nacional. possívc1 de modo recorrente) em uma ordem social que confe-
Tais tipos de mudança constituem o bicho-papão das burgue- I.' a certas classes a probabilidade de desencadear "pressões de
sias das sociedades capitalistas dependentes e subdesenvolvidas ,íllla para baixo" e, ao mesmo tempo, de perverter ou impedir
(e, também, do que se poderia designar, eufemisticamente, como ;1:; Illanifestações compensatórias de "baixo para cima". Isso
burguesia internacional). Elas ameaçam (ou parecem ameaçar) ',lIl',"toe que não é só a "falta de solidariedade na base" que ex-

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plica a inexistência ou a debilidade dos controles sociais reativos ,(111 ido, as orientações egoÍsticas e particularistas das classes
(ou contra-reativos), por parte das classes sociais prejudicadas .I"llIinantes e das suas elites concorrem, a longo termo, não
pela resistência sociopática à mudança. Ê preciso não perder 1';ll'a "conter" ou "congelar" a história, mas para simplificá-Ia
de vista todo este quadro, porque, na verdade, os conflitos entre (' ;Icelerá-Ia. Sua feroz e obstinada resistência às mudanças com-
as classes privilegiadas e as classes destituídas se agravam ainda 1';11 ívds com a democracia burguesa e com o capitalismo acaba
mais quando entram em jogo opções que envolvem a persis- t'llgendrando seja um agravamento fatal das tensões sociais, seja
tência ou a substituição do padrão vigente de civilização (o que ('l'lCntações de comportamento reativas segundo as quais a única
é o caso, quando a alternativa se torna "capitalismo" ou "so- I"ída tem de passar pela destruição da ordem existente.
cialismo" ). Nesse contexto, as classes privilegiadas e suas eli-
tes agravam, por medo histórico, as propensões por ventura
atuantes de resistência sociopática à mudança, enxergando em l/ti Relações entre o Controle de Mudança e o Poder Politico?
qualquer "abertura da ordem" o início de um cataclisma social.
Esse pânico, com freqüência também manipulado e exagerado, Os processos de mudança são, com freqüência, fenômenos
desloca os conservadores e os liberais de suas posições, polari- dl~ poder, na evolução das sociedades. E o controle da mudan-
zando-os no centro ou na direita da reação. ';;1, por sua vez, quase sempre aparece como fenômeno polí-
Doutro lado, na situação cultural da sociedade de classes Iico (ele não diz respeito, somente, ao poder em geral, como
dependente e subdesenvolvida existe outro elemento dinâmico 1'"c1er econômico, social ou cultural, indiretamente político; mas,
a considerar. As classes dominantes e suas elites, pouco pro- Iambém, ao poder especificamente político). Se isso é verda-
pensas e assimilar e a pôr em prática técnicas, valores e institui- ,lciro em teoria, a regra aplica-se melhor a tipos de socieda-
ções sociais que poderiam redundar em "maior abertura" e (lcs nas quais a continuidade depende largamente do equilíbrio
"maior fluidez" da ordem social competitiva, aproveitam com dinâmico da ordem social, como sucede com a sociedade de
avidez as vantagens de sua incorporação às fronteiras culturais classes. Com referência a este tipo de sociedade, é impossível
das Nações capitalistas hegemônicas, para modernizarem sua mnceber-se sociologicamente a continuidade da ordem social
tecnologia de controle repressivo e violento dos conflitos sociais, mmpetitiva independentemente de várias formas de mudança,
aumentando, com isso, a eficácia dos mecanismos de segurança :;imultâneas ou sucessivas e convergentes ou divergentes, atra-
da ordem ou de opressão policial-militar. Como o que prevalece Vl-S das quais o sistema societário global reajusta-se, continua-
nas Nações capitalistas hegemônicas é o empenho em "preser- Illente, às condições externas da vida sócio-econômica, bem como
var o equilíbrio lá em baixo", mantendo-se a periferia como ;'1 composição e às relações das classes sociais, tudo em perpé-
uma reserva de caça, formam-se nesses países programas de lua transformação. Nesse caso, o controle social da mudança
"assistência" e de "ajuda" que facilitam ainda mais a absorção ;Issume importância equivalente à que possui o controle da esta-
de tal tecnologia e do seu emprego sistemático na adulteração I)ilidade em sociedades cujo padrão de equilíbrio é estático.
dos dinamismos de funcionamento ou de desenvolvimento da Nas condições peculiares da sociedade de classes depen-
ordem social competitiva. O que importa ressaltar é que o (lente e subdesenvolvida, a mudança e o controle da mudança
confronto entre classes destituídas e classes privilegiadas torna- silo, com maior razão, fenômenos especificamente políticos. Da
-se ainda mais desigual, já que, na realidade, as primeiras terão mudança e do controle da mudança não depende, apenas, a
de enfrentar as últimas com um acréscimo de poder a que elas continuidade do sistema de produção capitalista e da domina-
nunca poderão ter acesso. Ou se "conformam", submergindo (;ilo burguesa, mas, em especial, a probabilidade de impedir-se
na apatia e nas dúbias vantagens do "desenvolvimento com se- a regressão da dependência propriamente dita à heteronomia
gurança", ou se preparam para movimentos de rebelião alta- colonial ou neocolonial. Na verdade, sob o capitalismo depen-
mente complexos e de longa duração. Ê que o esforço neces- dente a dominação burguesa não deve, apenas, consolidar a
sário para "abrir" ou "reabrir" a ordem social competitiva é continuidade da ordem contra as "pressões internas", que se
tão alto, que se torna mais fácil e racional substituir a "revo- lornam perigosas e até mortais para a burguesia, quando são
lução dentro da ordem" pela "revolução contra a ordem". Nesse pressões do proletariado em aliança com os setores rebeldes
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4 49
das eÍasses médias e das dasses destituídas. EÍa deve, tam6êm, vimento capitalista dependente é incapaz de superar certas rea-
consolidar a continuidade da ordem contra as "pressões exter- lidades, que se reconstituem e se revitalizam de modo perma-
nas", das burguesias das Nações capitalistas hegemônicas, de nente, como: a forte dominação externa; a apropriação dual ou
associada do excedente econômico; a extrema desigualdade na
seus governos e de suas associações internacionais. Para garantir-
-se neste nível, a burguesia dos países capitalistas dependentes distribuição da riqueza, do prestígio saciale do poder; a coe-
e subdesenvolvidos tende para coalizações oligárquicas e com- existência do crescimento capitalista interno com o subdesen-
volvimento "absoluto" ou "relativo", forçando constantes re-
posições autocráticas, o meio mais acessível, ao seu alcance,
para forjar e controlar o espaço político necessário a seus ajus- articulações de setores "arcaicos", "modernos" e "ultramoder-
tamentos com o "sócio maior", a burguesia das Nações capi- nos'; intensa exclusão institucional das classes destituídas etc.
talistas hegemônicas e seus padrões de dominação imperialista. A razão disso já foi indicada acima. O padrão de desenvolvi-
Tudo isso faz com que a dominação burguesa se converta, muito mento capitalista dependente resulta de combinações de dina-
mais clara e duramente que nas Nações capitalistas hegemôni- mismos econômicos, sócio-culturais e políticos internos e exter-
cas, em ditadura de classe. E, de outro lado, tudo isso faz com nos que sempre se revelam, aos níveis estrutural-funcional e his-
que o fenômeno central da mudança seja a permanente revitali- tórico, insuficientes para transformar a modernização dependen-
zação da dominação burguesa através do fortalecimento do Es- te em modernização autônoma. Em outras palavras, eles não
tado e de seus mecanismos de atuação direta sobre os dinamis- são suficientemente fortes para promover "a revolução dentro
mos econômicos, sócio-culturais e políticos da sociedade de classes. da ordem" em termos capitalistas, criando quer a independência
em relação à dominação externa e ao imperialismo, quer real
Essa situação não encontra paralelos nas evoluções das Na- fluidez no funcionamento da ordem social competitiva, com o
ções capitalistas hegemônicas - nem mesmo quando se con- desencadeamento de uma torrente democrático-burguesa e na-
sideram as ligações da emergência e da expansão do capitalismo cionalista nas relações de acomodação e de conflito entre as clas-
monopolista com o aparecimento do "Estado intervencionista" ses. Por paradoxal que pareça, semelhante situação oculta a
e com o fascismo I( 12). Trata-se de uma forma de dominação
existência e o constante agravamento de contradições que não
burguesa e de articulação da dominação burguesa com o uso chegam a se resolver, tanto nas relações com as Nações capi-
sistemático do Estado e do poder político estatal que é deter-
talistas hcgcmônicas e com o capitalismo internacional, quanto
minada e só pode ser compreendida através dos requisitos po- nas relações das classes sociais dominantes com as classes tra-
líticos do capitalismo dependente (13). O padrão de desenvol- halhadoras e destituídas. Isso congestiona e enrigece as exi-
gências políticas do desenvolvimento capitalista. Para que ele
(12) Para uma análise sociológica, que toma em conta as várIas se converta em algo viável e em constante aceleração - apesar
formas de intervencionismo estatal e a especificidade do fascismo, veja-se das realidades permanentes apontadas - e para que possa exis-
N. Poulantzas, Fascismo e Ditadura: a III Internacional face ao Fascismo, tir continuidade seja na absorção das variações em intensidade
Porto, tradução de J. G. P. Quintela e M. Fernanda S. Granado, Por-
tucalense Editora, 1972, 2 vols. ou de qualidade dos dinamismos sócio-econômicos e culturais
(13) Vejam-se, a respeito, do autor: Capitalismo Dependente externos, seja na seleção e controle dos dinamismos econômicos,
e Classes Sociais na América Latina, op. cit., 102 e seg., e, para uma sócio-culturais e políticos internos, impõe-se uma espécie de
ilustração, "The Meaning of Military Dictatorship in Present Day La-
tin America" (in The Latin American in Residence Lectures, Toronto, gigantismo político normal das três áreas típicas em que se des-
Universidade de Toronto, 1969-1970, cap, 2). Com vistas à situação dobra a revolução burguesa: 1.0) uma forte polarização polí-
brasileira, especialmente, vejam-se: F. H. Cardoso, O Modelo Político
Brasileiro, São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1972 (onde são
citados outros estudos de ciência política); O. Ianni: O Colapso do Mendes, "Sistema Político e modelos de poder no Brasil" (Dados, Rio
Populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, e de Janeiro, n.• 1, 1966, págs. 7-41). Doutro lado, para se ter em
Estado e Planejamento Econômico no Brasil (1930 e 1970), Rio de , I
conta a repercussão política da pressão popular, veja-se esp. F. C.
Janeiro, Civilização Brasileira, 19·71; H. Jaguaribe, Desenvolvimento Weffort, Classes populares e Política (Contribuição ao Estudo do "Po-
Econômico e Desenvolvimento Político, Rio de Janeiro, Editora Paz e
pulismo"), São Paulo, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Terra, 2.a ed., 1969; L. C. Bresser Pereira, Desenvolvimento e Crise no U.S.P., ed. mimeo., 1968.
Brasil entre 1930 e 1967, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1968; C. ~,
\,1:",1",\

51
50
tica da própria dominação burguesa; 2.°) a formação e a ex- período, foi a articulação de interesses econômicos internos e
!I!
pensão de um Estado de "democracia restrita", que tem como externos no mesmo padrão histórico de dominação burguesa,
base material a extrema concentração social da riqueza e do o qual se evidencia tanto na emergência de uma "oligarquia
poder nas mãos das classes dominantes e "dirigentes", e, como moderna" (extensamente vinculada aos interesses comerciais,
fonte de legitimidade legal e política a quase total liberdade industriais e financeiros de "parceiros externos"), quantO no
dessas mesmas classes; 3.°) a transferência e a institucionaliza- acordo do café (que só se tornou viável e eficiente graças a
ção de formas autocráticas de dominação econômica, social e essa articulação) e na freqüente associação da emergente "bur-
política da esfera privada para a órbita do Estado. guesia industrial" com interesses externos, principalmente fi-
O congestionamento e a rigidez dos componentes políti- nanceiros. Embora os dinamismos do regime de classes fossem
cos do desenvolvimento capitalista dependente variam, porém, inicialmente muito fracos, a universalização do trabalho livre
de acordo com as fases da revolução burguesa. Na fase inicial, e o aparecimento de um proletariado urbano-industrial intro-
de eclosão do capitalismo como realidade histórica, através da duziram o conflito de classes em bases especificamente políti-
emergência e da expansão do mercado capitalista moderno em cas na sociedade brasileira. Isto deu maior ressonância às pres-
centros urbano-comerciais mais importantes, os riscos decorren- sões "reformistas", de conteudo democrático-nacionalista, das
tes das pressões externas e internas contra a ordem foram, de classes médias, e serviu como elemento de precipitação da pri-
fato, pequenos e fracos. A modernização dependente nunca meira recomposição histórica importante da dominação burguesa.
desencadeou ameaças verdadeiramente sérias à ordem econômica, A "velha" e a "nova" oligarquia articulam-se com os "interesses
social e política emergente. E, de outro lado, o principal efeito novos" dos industriais e da classes médias, contendo seus anta-
desse processo, a modernização institucional do Estado, coinci- gonismos dentro das opções burguesas e convertendo o Estado
dia com a renovação e o reforçamento de técnicas oligárquicas numa verdadeira arena de conciliação dos interesses convergen-
e autocráticas de dominação patrimonialista, elevadas da esfera tes ou divergentes das classes possuidoras e "dirigentes". O
privada à órbita da ação político-burocrática do Estado. Nesse que entrava em jogo, portanto, não era a natureza da transfor-
contexto, as "pressões de baixo para cima" não tinham como mação política almejada, mas o estilo que essa transformação
transformar-se em processos políticos consistentes, em escala deveria assumir (segundo uma linha autocrático-burguesa, que
regional ou nacional. Eles se esgotavam, historicamente, no vinha das oligarquias; ou a linha alternativa democrático-
âmbito local e de categorias sociais limitadas ou serviam de su- -burguesa e nacionalista, sustentada pelos setores "liberais" da
porte de massa a manifestações ambígüas do radicalismo de burguesia, pelas classes médias vinculadas ao setor urbano-
facções dosestamentos social e racialmente dominantes. A tran- -industrial e ao Estado, a qual contava com maior suporte
sição para o capitalismo competitivo, do último quartel do sé- popular). O desfecho desse pseudodrama histórico foi inter-
culo XIX à terceira década do século XX, começou nos mesmos rompido pela irrupção dos dinamismos econômicos e culturais
moldes e segundo os mesmos rumos. No entanto, o envolvi- externos, que impuseram, com extrema rapidez e inesperada
mento externo no seio das transformações internas atingiu cer- vitalidade, uma nova "idade histórica" ao poder burguês, ace-
ta profundidade econômica e cultural, chegando a afetar as ba- lerando de fora para dentro a transição para o capitalismo mo-
ses políticas do poder burguês. A proclamada aliança da "oli- nopolista. Isso acarretou a "necessidade de ir mais longe" na
garquia tradicional" com os "interesses financeiros externos" segunda recomposição histórica importante da dominação bur-
não nos deve fazer ignorar os conflitos desses interesses na eco- guesa: a aglutinação, dentro dela, de todos os agentes ou C\lte-
nomia mundial, suas repercussões nos padrões de solidariedade gorias de agentes internos e externos; e a limitação, através
econômica ou política das classes dominantes e, em particular, a
oscilação dessas repercussões em termos da eficácia setorial da
dominação burguesa (14). O fenômeno político profundo, neste Revolução de 1930" (in C. G. Mota, org., Brasil em Perspectiva, São
Paulo, Difusão Européia do Livro, 1968, capo 7); W. Dean, A Indus-
trialização de São Paulo, São paulo, trad. de O. M. Cajado, São Paulo,
(14-)
História
Vejam-se, especialmente, B. Fausto; Pequenos Ensaios de
da República, 1889-1945, São Paulo, CEBRAP, 1972, e "A
Difusão Européia do Livro, 1971; 1 de Souza Martins, Conde Mata-
rl1zzo; O Empresário e a Empresa, São Paulo, 2.a ed. HUCITEC, 1973.

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do Estado, da esfera de iniciativas e do âmbito de poder polí- ção burguesa em geral. Entretanto, elas procuram resguardar
tico das várias categorias de parceiros e do próprio Estado. a base estatal de sua dominação de classe, impedindo com o
Essa segunda recomposição pôs a revolução burguesa sobre mesmo afã que tanto a articulação com os interesses capitalis-
seus eixos reais e dentro de sua rota histórica sob o capitalis- tas externos, quanto a democratização do poder ou a integra-
mo dependente (se ele se mostra suficientemente dúctil e forte ção das estruturas nacionais de poder, internamente, funcionem
para enfrentar a transição inerente à revolução urbana e in- como focos de erosão do seu poder real. Assim, elas levantam
dustrial sob a tecnologia atual do "capitalismo avançado"), um dique que as protegem contra a internacionalização ou a
deixando patente que a modernização intensiva e o crescimento imperialização do seu poder político estatal. Ainda se conhe-
econômico acelerado contêm exigências políticas que convertem cem maIos processos que explicam, sociologicamente, esse com-
a "democracia burguesa" e o "nacionalismo burguês" em relí- portamento político reativo. Contudo, parece que eles se
quias do folclore canitalista. A dominação hurguesa não só prendem à necessidade que essas burguesias sentem de manter
avançou até o controle total e autocrático do Estado. Ela pas- sob controle as fases e os efeitos do desenvolvimento capita-
sou a irradiar-se, de "dentro para fora" e de "cima para baixo", lista induzido, que poderiam anular qualquer autonomia polí-
através de mecanismos estatais de autoproteção e de auto- tica relativa, e destruir a eficácia do Estado como base do poder
-realização que conferem ao Estado de democracia restrita o político burguês sob o capitalismo dependente. Como elas
caráter de um instrumento de autocracia de classe, com fun- também não podem "criar a partir de dentro" um desen-
ções específicas na esfera da estabilização forçada das condi- volvimento capitalista autônomo, elas necessitam desse espaço
ções políticas do desenvolvimento econômico e de repressão político relativamente seguro, através do qual se podem lançar
sistemática às forças políticas (Hvergentes (mesmo quanc1n re- nas transições Impostas ou resultantes da incorporação aos
fletem alternativas e ipteresses de classes nró-burmJeses). Nesse ritmos e às oscilações do capitalismo mundial.
sentido, ocorre uma efetiva "revolução dentro da ordem", em Portanto, a capacidade de iniciativa assim adquirida re-
termos capitalistas: só que ela transcorre como um aprnfunda- ponta como o verdadeiro eixo político da própria revolução
mento e um salto dentro do capitalismo deoendente. Pura e burguesa sob o capitalismo dependente. Uma burguesia que
simplesmente. deixam de existir. nas condições históricas dessa não pode desencadear, a partir de si mesma, nem a revolução
,transição, quer a viabilidade de uma "revolucão dentro da agrícola, nem a revolução urbano-industrial, nem a revolução
ordem" na direcão do desenvolvimento capitalista autônomo. nacional, percorre, não obstante, todas as etapas desses processos,
auer espaco nolítico nara o "nacionalismo revolucionário" e a como se, na realidade, eles fossem produtos de sua atividade
"democracia burguesa". histórica. De um lado, ela ganha recursos para manter e in-
Essa seqüênci:'1sugere como os desdnbramentos da revolu- tensificar o fluxo de crescimento do capitalismo dependente,
ção burgues}1se refletem na esfera do poder político e de orga- continuamente acelerado e por vezes subvertido "a partir de
nização do Estado. quando ela é extensa e profundamente dina- fora". De outro, ela pode aparecer, no panorama interno da
mizada de "fora para dentro", através dos ritmos e das oscila- "sociedade nacional", como a suposta protagonista final de
cões do canitalismo mundial. Ela permite constatar que as todas as transformações. O crescimento econômico, o aumento
burguesias "nacionais" das sociedades ele classes dependentes de empregos, a modernização tecnológica, a elevação progres-
e subdesenvolvidas não socializam para fora todo o seu poder siva da renda ou dos padrões de consumo etc., só se tornam vi-
político e, especialmente, que elas não cedem à dominação ex- síveis através de símbolos internos, que são, além disso, mani-
terna e à imnerialização as posições que são estratégicas para o pulados para ofuscar a consciência crítica das classes oprimidas
controle político do desenvolvimento capitalista dependente. e ganhar a adesão das classes médias. Ela projeta, desse modo,
Elas aceitam e até incentivam a articulação de interesses bur- a condição burguesa para fora da burguesia e implanta, no co-
gueses internos e externos, que pareçam refundir o poder bur- ração mesmo de seus inimigos de classe, identificações e leal-
guês ao nível econômico, aumentando, em conseqüência. a sua
I dades mais ou menos profundas para com o consumismo, a
flexibilidade e eficácia como fonte de dinamizaçãn da dominfl'
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",
prckm social competitiva e o Estado "democrático" e "nacional".

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Aqui não interessa fazer a análise sociológica de tais evo- vimento capitalista, dependência e subdesenvolvimento de tal
luções do poder burguês sob o capitalismo dependente. O que modo que mesmo o proletariado mais explorado e as classes
interessa é assinalar as duas conexões que são vitais à com- destituídas mais excluídas ou marginalizadas se identifiquem,
preensão sociológica do presente. Primeiro, a conexão posi- de alguma maneira, com a condição burguesa. Os que pro-
tiva. Mantendo ou aumentando sua capacidade de iniciativa curam uma alternativa revolucionária para o capitalismo de-
política, apesar dos efeitos limitativos do padrão dependente pendente e o subdesenvolvimento não podem ignorar tais fatos,
e subdesenvolvido de desenvolvimento capitalista, o poder bur- se quiserem, na verdade, lutar com êxito pela reconstrução so-
guês logra atingir o ponto ótimo possível de controle da mu- cialista do homem, da economia e da sociedade na América
dança nas condições reais de estruturação, de funcionamento Latina.
e de crescimento da ordem social competitiva sob o capitalismo
dependente. Segundo, a conexão negativa. Ao atingir esse
ponto, e para manter-se dentro dele, preservando sua capaci-
dade relativa de iniciativa, o poder burguês procura impedir
que o fluxo da mudança, a partir de pressões internas oul e
externas, transborde aquela ordem social, provocando o deslo-
camento do poder real ou para as classes oprimidas ou para
fora. Isso quer dizer que, ao lado dos requisitos políticos
do desenvolvimento capitalista dependente, deve-se considerar
atentamente a esfera na qual o poder burguês se realiza plena-
mente sob o capitalismo dependente, como um poder polí-
tico de classe que se impõe tanto "de cima para baixo", quanto
"de dentro para fora".
Tem-se dado pouca atenção a essa esfera do poder burguês,
mesmo na literatura socialista concernente à sociedade de clas-
ses dependente e subdesenvolvida. A razão evidente dessa
negligência vem do menosprezo com que é encarada essa "bur-
guesia impotente", ou "frustrada", com freqüência vista como
uma burguesia de "segunda ordem" ou, mesmo, como "lumpen-
-burguesia" (15). Segundo penso, constitui um erro subestimar-
-se politicamente essa burguesia, que logrou manter e fortale-
cer o poder burgues em condições tão adversas, embora o tenha
feito através de artifícios cruéis e mesquinhos. Ela não possui
uma estatura heróica. Todavia, qual é a diferença, se a com-
pararmos com as "burguesias conquistadoras" das sociedades
capitalistas hegemônicas e imperiais? Elas apenas percorrem o
mesmo caminho em sentido inverso, e o seu mérito não estaria
em grandes alvos históricos; mas, em compatibilizar desenvol-

(15) Ê assim que A. Gunder Frank qualifica a bur,!!'IJ~siadas


sociedades capitalistas dependentes e subdesenvolvidas (cf. Lumpen-
-Burguesia: Lumpen-Desenvolvimento> Porto, Portucalense Editora,
1971) .

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