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A psicologia no Brasil e suas relações com o marxismo

Ana Mercês Bahia Bock e Odair Furtado

Antes de discutirmos o marxismo na psicologia brasileira, é preciso


mencionar que o marxismo no Brasil tem uma história peculiar e vamos falar,
inicialmente, um pouco dessa história. As primeiras manifestações de cunho
socialista ocorreram, segundo Boris Fausto (2001: 268), com o surgimento
dos primeiros partidos operários no final do século XIX no Rio de Janeiro e
o próprio autor diz se tratar de um socialismo difuso. Ao mesmo tempo, em
São Paulo, cresce o movimento anarco-sindicalista. Somente a partir de 1922,
com a fundação do Partido Comunista do Brasil (PCB), podemos falar da
presença do marxismo em nosso país, de forma organizada, com a constituição
de quadros militantes e relações internacionais.
Entretanto, se considerarmos que a LUTA DE CLASSES é o principal móvel
da teoria revolucionária de Marx, precisamos
também considerar que há um passado Engels no clássico A origem da
família, da propriedade privada e do Estado
de lutas desde o Brasil colônia. É (1975 [1884]), nos ensina que a passagem do estado
claro que não se tratava de luta primitivo de produção comunal para a propriedade privada
implicou o acúmulo de riquezas e a conseqüente divisão da
de classes strictu senso, mas temos sociedade em classes sociais. As formações econômicas que se
uma cultura de enfrentamento sucederam até os tempos atuais, a sociedade capitalista, foram
e de resistência que é secular. todas baseadas na exploração do homem pelo homem na
forma de subjugação de classes sociais. O confronto
Alguns fatores contribuíram para de interesses dessas classes é conhecido como
que a tradição de enfrentamento fosse “LUTA DE CLASSES”.

aos poucos sendo construída entre nós. Um desses


fatores é a combinação das condições de colonização e formas de fixação dos
portugueses em território brasileiro, criando bases protonacionais e a formação
humanista de parte das elites desse período; um exemplo desse fator foi a
organização do episódio que ficou conhecido como Inconfidência Mineira e
que teve influência do pensamento iluminista e da Revolução Francesa.

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Outro fator foi representado pelos ecos do clima revolucionário que
varre a Europa em 1848 e que repercute no Brasil através da divulgação
de obras de cunho revolucionário e influencia a Revolução Farroupilha,
particularmente com a presença de Giuseppe Garibaldi no Brasil (Markun,
1999). Tais episódios constituem quadros libertários que atuam de forma
isolada ou através de bandeiras de lutas específicas, como foi o caso de Joaquim
Nabuco, representante conservador que, no entanto, foi defensor radical do
abolicionismo no Brasil.
Essa tradição revolucionária que vai se criando de forma incipiente no
Brasil, em parte através do próprio ideário burguês da Revolução Francesa e
do espírito iluminista e em parte pela crítica libertária ao próprio pensamento
burguês, seja de cunho socialista ou anarquista, é que poderia explicar a
radicalidade do pensamento de Manoel Bomfim (1868-1932), médico sergipa-
no, com bastante influência na definição do projeto educacional da nascente
República brasileira, e que dirigiu o primeiro LABORATÓRIO DE PSICOLOGIA
no Pedagogium, no Rio de Janeiro, a partir de 1906.
Não podemos dizer que Bomfim
Na coletânea História da psicologia no Brasil: primeiros
tenha sido o primeiro psicólogo marxis- ensaios (Antunes, 2004), alguns pioneiros da psicologia
ta, em primeiro lugar porque, rigoro- no Brasil como Plínio Olinto, Lourenço Filho e Annita
samente, ele não era. Tratava-se de um Cabral, não definem uma data de fundação da psicologia
brasileira. Entretanto, todos mencionam a inauguração do
médico que estava contribuindo tanto LABORATÓRIO DE PSICOLOGIA criado por Bomfim como um
marco para a psicologia brasileira.
com a construção da psicologia como
das ciências sociais no Brasil e, em segundo
lugar, porque não se tratava de um marxista no sentido exato do termo,
formado nas lutas operárias ou como intelectual socialista. Entretanto, num
cenário tão escasso de idéias radicais, não há como não mencionar Bomfim
como um pioneiro.

De acordo com Antonio Luiz M. C. Costa (revista Carta Capital – 15/6/2005), “O próprio Bomfim não hesitava em
montar sua maquinaria teórica com “moinhos de fora”. Seu livro de 1905 começou a ser escrito em março de 1903,
quando, comissionado pelo Ministério da Educação brasileiro, estudava pedagogia na Sorbonne e estagiava no Laboratório
de Psicologia Experimental de Alfred Binet. Mas o autor não deixou claro quais foram as influências em sua obra política.
Talvez explicitá-las desacreditasse ainda mais uma posição já isolada e polêmica no contexto intelectual brasileiro. Segundo
O rebelde esquecido, biografia por Ronaldo Conde Aguiar (Rio de Janerio: Topbooks), Bomfim não ignorava Marx. Em um
artigo de 1901, criticou a otimista visão do futuro do capitalismo do economista John B. Clark (um dos pioneiros da teoria
neoclássica) em termos dignos do autor de O capital: “Idéias genéricas como liberdade, democracia, igualdade (foram)
utilizadas no passado e no presente pela própria burguesia para justificar o capitalismo […] com o objetivo explícito de negar
os antagonismos entre as classes e as teorias socialistas.” Aguiar complementa que Bomfim também estagiou no laboratório
de George Dumas.

Durante os anos de construção da psicologia no Brasil até a década de


1970, tivemos vários psicólogos ou construtores da psicologia brasileira que

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militavam no campo da ESQUERDA, mas tal militância não chegou a marcar
presença nas obras desses autores. O médico Mira y López (1896-1964), que
participara da Revolução Espanhola em 1936 e se
exila primeiro na França, onde é acolhido por O surgimento do termo “ESQUERDA”
para designar posições críticas surgiu na
Henri Piéron (1939), passa por vários países da revolução francesa, por uma peculiaridade
América do Sul, pelo México e pelos EEUU, da distribuição dos membros da Assembléia
parlamentar, cujos membros mais críticos
se fixa em Buenos Aires em 1939 e depois no sentavam-se à direita do Presidente da
Brasil em 1945. Ele é um deles (Rosas, 1995) (cf. Assembléia. A partir de então todas as
posições políticas mais radicais na defesa
capítulos 16 e 30). Entretanto, somente em 1954, dos interesses populares são denominadas de
com a defesa de O caráter nacional brasileiro, tese de esquerda. O marxismo é assim considerado
uma corrente política de esquerda. Para
doutorado de Dante Moreira Leite, teremos uma maior esclarecimento consultar Giddens
obra com influência claramente marxista. Dante (1996) e Bobbio (1995).
Moreira Leite (1927-1976) fez parte do grupo de
intelectuais que deram novo rumo às ciência sociais, à crítica literária e, no
seu caso, à psicologia social no Brasil, como é o caso de Florestan Fernandes,
Antônio Cândido, Otávio Ianni, entre tantos outros. Mesmo assim, Dante
Moreira Leite, não produziu uma psicologia marxista, stricto sensu, mas
utilizou claramente categorias advindas do campo marxista, como foi o
caso da avaliação da ideologia contida nas teorias do caráter, dominantes na
psicologia na primeira metade do século XX (Leite: 1992).
Foram várias as portas para a entrada do marxismo na psicologia
brasileira e foram vários os momentos dessas entradas. No entanto, é possível
localizarmos nos anos 1970 a época e na psicologia social a sua porta principal.
Os anos 1970 se constituíram como os anos de ditadura militar e da organização
social para seu combate. As forças de esquerda adquiriram um maior espaço
social e, conseqüentemente, as idéias marxistas adquiriram maior interesse
e desenvolvimento. O movimento institucionalista entra no Brasil através de
GEORGES LAPASSADE e de René Lourau, principalmente na UFMG (cf. capítulo
30). Lapassade teve uma passagem memorável que
GEORGES LAPASSADE: de acordo com
deixou marcas indeléveis na construção da via da Elisabeth Bomfim (2003: 138), “Minas
intervenção institucional em Minas Gerais. No Gerais foi também o palco das primeiras
experiências da análise institucional no
Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador formaram- país. Iniciada no ‘Setor de Psicologia
se grupos reichianos que reúnem a via da contra- Social’ da Universidade Federal de Minas
Gerais, a partir da visita de George
cultura e a crítica da psicanálise. Analisamos, a Lapassade...”.
seguir, cada um desses eventos.
Lapassade (1977) apresenta uma leitura marxista e de certa maneira,
como é possível antever em seu famoso prólogo para a terceira edição do livro
Grupos, organizações e instituições, uma posição anti-stalinista que demonstra um

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posicionamento de crítica à nomenclatura soviética, o que era considerado
na época como esquerdismo pelos comunistas. O movimento institucionalista
teve muitos desdobramentos no Brasil e representou (e ainda representa) uma
forma de reunir o marxismo e o neomarximo com a psicanálise, principalmente
a de orientação lacaniana. A criação do IBRAPSI no Rio de Janeiro em
outubro de 1978, com a participação de Gregório BAREMBLIT, representou
a consolidação do movimento institucionalista no Brasil. Esse movimento
tinha clara aliança com o marxismo. O próprio Baremblitt, em um simpósio
do IBRAPSI em 1982, faz uma espécie de autobiografia intelectual dizendo
que “Os pilares de nosso arsenal teórico foram sempre a obra de Marx
e a de Freud” (Baremblitt, 1982: 88). E segue
desfiando uma fieira de nomes importantes da e G REGÓRIO BAREMBLITT, médico
psicanalista argentino, fez parte
esquerda mundial que vai de Trotski a Rosa do Grupo Plataforma Argentino, grupo
de Luxemburgo e Antonio Gramsci, na formado pelos psicanalistas argentinos engajados
renovação crítica da psicanálise argentina e que
de Etienne Balibar e Roger Establet a tinham forte compromisso com a plataforma política de
Niko Poulantzas. Cita a importância de esquerda naquele país. Com o recrudescimento da ditadura
militar argentina, muitos deles foram obrigados a seguir
Louis Althusser e de Georges Politzer, de para o exílio e o Brasil foi um dos destinos. Os fatos
Wilhelm Reich, Erich Fromm e Jean-Paul e análise estão relatados pormenorizadamente
em Questionamos I e II (Langer, 1973 e
Sartre. O fato é que os argentinos estavam 1977).
muito mais posicionados e avançados na discussão
crítica e quando chegaram ao Brasil, exilados, influenciaram aqueles que
aqui iniciavam a jornada crítica da psicologia e da psicanálise no Brasil. Vale
conferir a obra de Cecilia Coimbra (1995) Guardiães da ordem (cf. capítulos 19,
21, 23, 28 e 30).
Os reichianos, por sua vez, primavam pela crítica dos costumes e, a
despeito da militância marxista do próprio Reich, se afinavam mais com a fase
final de seus trabalhos e sua teoria energética. A despeito do claro conteúdo
político de sua obra, ele não foi adotado pelos militantes de esquerda em geral
e nem da psicologia em particular. Foi lido e muito lido, mas não entusiasmava
pela condição de iconoclasta que em última instância colocava em questão a
estrutura burocrática das organizações de esquerda. Os que se organizaram
em torno da leitura de Reich, em geral, não estavam envolvidos com as formas
tradicionais de luta adotadas pelas organizações de esquerda e não viam no
marxismo uma alternativa importante.
Outra influência para a psicologia marxista no Brasil é a publicacão, em
1972, por Gilles Deleuze e Felix Guattari, de O Anti-Édipo, que representa uma
crítica à psicanálise e ao marxismo utilizando tanto categorias freudianas quanto
categorias marxistas. A obra conjunta de Deleuze e Guattari se coaduna com o

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campo neo-estruturalista que rompe tanto com o encarquilhado estruturalismo
francês quanto com a visão stalinista do marxismo, muito em voga na época
no Partido Comunista Francês (PCF). A experiência da revista SOCIALISME OU
BARBARIE, que aglutinou boa parte dos intelectuais franceses que não adeririam
ao stalinismo, também foi importante para essa ruptura com a ORTODOXIA
MARXISTA. Guattari irá depurar SOCIALISME OU BARBARIE: revista fundada e dirigida por Cornelius
sua influência marxista a partir Castoriadis e Claude Lefort em 1948 e que durou até 1966,
é responsável pela crítica ao burocratismo soviético e às posições
do seu contato com Deleuze e a stalinistas do PC francês. http://www.agorainternational.org/
partir da leitura que Deleuze faz sbtabletext.html.
de Nietzsche (Deleuze, 1976), ORTODOXIA MARXISTA: em Revolução molecular: pulsações políticas do desejo,
coletânea de textos reunidos em 1977, Guattari demonstra maior
ele irá construir a tendência virulência contra a psicanálise e contra o lacanismo que propriamente
que depois ficou conhecida contra o marxismo. É violentamente contra o burocratismo e o
stalinismo e práticas stalinistas. Marx, entretanto, é atualizado em
como esquizoanálise e que passou constante diálogo (Guattari, 1981).
a ser muito conhecida entre nós
a partir do final dos anos 1980 (cf. capítulo 30).
Também cresceu a influência da Escola de Frankfurt, com Adorno e
Horkheimer (cf. capítulo 28) que passam a ser estudados sistematicamente.
Aqui e ali escutamos ecos dos estudos de Henri Wallon e, também, do primeiro
estudo sistemático de psicologia e marxismo realizado por Georges Politzer
(Ferreira, 1997). Mas é na psicologia social que o marxismo na psicologia
brasileira encontrará maior desenvolvimento.

A psicologia social nos anos 1970


Depois da institucionalização da psicologia nos anos 1960, e até os anos
1970, a psicologia social, no Brasil, esteve sob forte influência americana, e,
conseqüentemente, sob as orientações metodológicas naturalistas, e por isso
concebeu a realidade social como fruto da presença do outro. Tinha como
objeto, portanto, o estudo do comportamento na presença de outro. Somava-
se a essas concepções o fato de a psicologia em geral, no Brasil, como área
de conhecimento e como fazer, ter uma tradição de controle, categorização e
classificação, apresentando-se como uma profissão e um saber a serviço dos
interesses das elites brasileiras.
A perspectiva marxista compreende que, até então, a visão de fenômeno
psicológico sempre foi a de algo abstrato, universal e natural no homem. Algo
encapsulado no homem que mantinha com a realidade externa uma relação
de estimulação para seu desenvolvimento. A realidade social não tinha, assim,

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qualquer importância para a psicologia. Neste caso, atitudes são possibilidades
da cognição (dadas naturalmente); representações são possibilidades da
cognição (dadas naturalmente); grupos são possibilidades humanas (dadas
por instintos gregários); a liderança é natural de alguns homens ou mulheres;
a sexualidade genital é natural; o confronto com a sociedade é adaptação; a
socialização é integração natural do homem na sociedade; a sociedade é algo
absolutamente estranho ao homem. E por aí se vai, produzindo explicações que
não falam da realidade social; não falam de nossa contribuição na construção
da realidade social; não vêem o homem como um ser ativo, social e histórico;
um ser que projeta sua ação, que conquistou, em seu desenvolvimento histórico,
o futuro. O homem que deve se responsabilizar pela sociedade onde vive e
que pode transformá-la a partir de um projeto coletivo.
Sair desse cenário não era tarefa fácil. A psicologia social crítica teve
um papel fundamental na superação desse quadro.
A presença do marxismo na psicologia social pode parecer óbvia, pelo interesse social que a disciplina apresenta;
entretanto, esse fenômeno ocorre no Brasil de maneira peculiar e, a despeito de o mesmo fenômeno poder se repetir em
outros lugares, nem sempre foi essa a porta da entrada do marxismo na psicologia. Confira o site http://www.marxists.org/
subject/psychology/index.htm para maiores referências de autores e correntes da psicologia.

A psicologia social e a ABRAPSO


A história recente da psicologia social no Brasil se mescla com a da
Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO, na medida em que
esta se constitui como espaço de organização para a construção de uma nova
perspectiva da psicologia no Brasil. É uma história de procura incessante da
compreensão do processo social que engendra os sujeitos e a busca de uma
ciência como práxis. Tudo isso tendo como uma de suas principais perspectivas
o materialismo histórico e dialético, oriundo do marxismo.
Desde o início dos anos 1970, conforme testemunho de Silvia Lane (Bock
e Lane, 2003), já havia sido criada a ALAPSO – Associação Latino-Americana
de Psicologia Social, em um Congresso da SIP – Sociedade Interamericana de
Psicologia, no Uruguai. A criação da ALAPSO respondia a um interesse em
reunir os psicólogos sociais latino-americanos e também fornecer à produção
de conhecimento na área uma direção mais ligada à realidade de cada país.
No entanto, a entidade não se fortaleceu como se desejava e não se mostrou
como possibilidade organizativa para a psicologia social. Em julho de 1979,
em Lima, no Peru, em outro Congresso da SIP, surgiu a idéia de priorizar
a construção de entidades nacionais. Assim, como conseqüência, pensou-se

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em criar a Associação Brasileira de Psicologia Social – ABRAPSO. Era uma
proposta que buscava fortalecer a organização dos psicólogos ligados à área da
psicologia social, criando espaços adequados para o diálogo e o avanço desse
campo. Além disso, caminhava-se para o fortalecimento de um pensamento
latino-americano na psicologia, a partir da psicologia social. Em julho de
1980, no Rio de Janeiro, em uma reunião da SBPC – Sociedade Brasileira
para o Progresso da Ciência, foi aprovado, em assembléia, o estatuto da
ABRAPSO.
A ABRAPSO se apresentou como uma possibilidade de rompimento
com a psicologia social americana e européia. Os problemas de nossa sociedade,
marcada pela desigualdade social e pela miséria, não encontravam soluções na
psicologia social importada como um saber universal dos países do Primeiro
Mundo. Era imperioso rever, criticamente, o conhecimento científico como
práxis, ou seja, a unidade entre saber e fazer. Sentia-se necessidade de uma
psicologia social brasileira, que partisse da realidade social, tal qual estava
sendo vivida pelo povo brasileiro.
A ditadura militar (1964-1985) limitava a atuação dos PARTIDOS POLÍTICOS
e grupos organizados, clandestinamente ou não, que buscavam formas de
trabalho nas intervenções profissionais. PARTIDOS POLÍTICOS: nesse período, através do Ato
Nesse contexto, o pensamento de es- Institucional nº 2, promulgado pelo governo militar
(expressão política da ditadura militar), a representação
querda pressionava as corporações parlamentar se circunscrevia a dois partidos: Aliança
profissionais a desenvolver trabalhos Renovadora Nacional (ARENA) de apoio ao governo
militar, e Movimento Democrático Brasileiro (MDB),
que objetivassem o desenvolvimento que era a oposição consentida. Todas as demais
da consciência política da população. forças políticas foram colocadas na clandestinidade ou
estavam desmobilizadas. Partidos como PCB, PC do B
A psicologia comunitária, como uma e organizações que deles derivaram ou que nasceram
intervenção dos psicólogos nas relações da militância católica como a Ação Popular atuavam na
clandestinidade e muitos dos seus militantes foram presos,
sociais das comunidades e movimentos exilados, mortos e muitos estão desaparecidos até hoje.
sociais, surgia como essa possibilidade. O trabalho clandestino é obrigatoriamente dissimulado
e uma das estratégias era a ocupação de entidades ou
Assim, buscou-se a rua, o bairro, o grupo, organizações que permitiam o trabalho legal. Uma forma
o sindicato, a comunidade. A psicologia de atuação política e ao mesmo tempo de proteção dos
militantes.
comunitária tornava-se uma intervenção
típica dos países da América Latina e se
constituía em uma alternativa profissional para aqueles que pretendiam
uma atuação política junto às camadas populares ou aqueles que, pela sua
consciência política, esperavam trabalhar com camadas da população que
mais necessitavam de seus serviços profissionais, pela própria ausência do
Estado nesse segmento. Toma força então a ABRAPSO, que passa a reunir
os psicólogos e outros profissionais que se dedicavam a essa área de atuação

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profissional na busca de soluções para os problemas sociais e políticos
enfrentados pelos diversos segmentos das camadas populares.
O desenvolvimento da consciência política torna-se tema importante,
mesmo porque a influência de Paulo Freire (1921-1997) é grande nesse
período. Uma pedagogia militante, a liberdade como prática de ensino e
uma pedagogia do oprimido influenciam a prática comunitária da psicologia
e impulsionam uma forma de psicologia do oprimido. Daí para as teorias que
fundamentassem a produção acadêmica foi um pulo e descobrir Vigotski, que
tomava a consciência como objeto de estudo, ajudou consideravelmente nesse
processo de construção de uma psicologia social com base marxista. Como se
tratava de uma ação latino-americana, Martin-Baró, em El Salvador, a partir
do uso e da crítica do referencial da Psicologia Social cognitivista de base
americana, vai construindo a Psicología de la Liberación. Também ele fortemente
influenciado por Paulo Freire (Lane, 1995 e Furtado et al., 1999).
Esse período da história da psicologia no Brasil é caracterizado pela
efervescência de perguntas sobre o papel do psicólogo. Quem somos? O que
buscamos? Qual nossa contribuição social? Críticas duras eram feitas aos
profissionais que serviam ao sistema nas fábricas e nos consultórios particulares.
A quem estamos servindo? – era a pergunta-chave. Começava a cair por
terra a visão de uma ciência neutra e de uma prática descomprometida. A
psicologia começava a superar a ingenuidade que a acometia até então, dada
a influência positivista.
SILVIA LANE trazia o marxismo para a psicologia, entrando pela porta da
S ILVIA L ANE : Banchs Rodriguez (1997: 93)
psicologia social. As contribuições dos russos
descreve assim o trabalho de Lane: “En síntesis, Alexis N. Leontiev (1904-1979), Aleksandr
la propuesta de la Escuela de São Paulo para una
psicologia social marxista plantea la necesidad de
R. Luria (1902-1977) e Lev S. Vigotski
sesarrollar en los seres humanos un pensamiento (1896-1934) se tornaram fundamentais para
crítico que los conduzca a percerbirse a si mismos que a psicologia social encontrasse um novo
como sujetos activos de la historia y a salir de la
alienación que los mantiene em la condición de caminho: o caminho de uma psicologia crítica
objetos pasivos que sufren la historia.” e comprometida com a realidade brasileira (cf.
capítulo 21).
O lançamento do livro O que é a psicologia social por Silvia Lane e depois
o Psicologia social: o homem em movimento organizado por ela e por Wanderley
Codo (que fora seu orientando no doutorado na PUC-SP), representam um
marco na construção da psicologia social de orientação marxista. Orientação
porque não é possível rotular todos os autores nesse campo, mas Silvia Lane e
Wanderley Codo estavam demarcando claramente o campo com a publicação
desse livro. É como se um novo programa, uma nova pauta para a psicologia

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social estivesse sendo lançada naquele momento e isso foi fruto de longos anos
de amadurecimento.
A questão central da proposta estava na definição de uma nova dimensão
para apreender o indivíduo como ser concreto, como manifestação de
totalidade histórico-social. Para tanto, era fundamental rever a psicologia social
concebendo uma nova definição de ser humano, produto de sua materialidade
histórica e ao mesmo tempo produtor dessa mesma história. A própria Silvia
Lane (1984: 15) é quem aponta:
Se o positivismo, ao enfrentar a contradição entre objetividade e subjetivi-
dade, perdeu o ser humano, produto e produtor da História, se tornou
necessário recuperar o subjetivismo enquanto materialidade psicológica.
A dualidade físico versus psíquico implica uma concepção dualista do ser
humano, na velha tradição animística da Psicologia, ou então caímos em
um organicismo, onde homem e computador são imagem e semelhança
um do outro. Nenhuma das duas tendências dá conta de explicar o homem
criativo e transformador.
A autora aponta, ainda, que será dentro do materialismo histórico e da
lógica dialética que se irão encontrar os pressupostos epistemológicos para a
reconstrução de um conhecimento que atenda à realidade social e ao cotidiano
de cada indivíduo e que permita uma intervenção efetiva na rede de relações
sociais, reconstruindo, dessa forma, o objeto da psicologia social.
Hoje, essa visão marca presença em inúmeros programas de pós-
graduação e cursos de psicologia no Brasil. Programas como o da UERJ,
da PUC-SP, da PUC-RS, da UFMG, UFPR, da UFPb, UFSC, para citar
apenas alguns, mantêm disciplinas ou com bibliografia de orientação marxista
ou de base crítica que dialoga com o marxismo e, pode-se dizer, trata-se de
um fenômeno importante para a psicologia social e para a psicologia da
educação e da aprendizagem no Brasil. Em programas de pós-graduação em
Educação também encontraremos essa discussão sobre psicologia e marxismo.
Recentemente, na UNESP de Bauru, a Sociedade Brasileira de Psicologia
Política – SBPP reuniu-se para o III Simpósio Brasileiro de Psicologia Política e
a discussão sobre a psicologia e o marxismo esteve em pauta. Sem procurar ser
extenso o suficiente, são marcas evidentes de que hoje o marxismo é discutido
na psicologia brasileira.
Para concluir, é preciso dizer que o marxismo trouxe uma nova visão de
homem para as ciências humanas: a noção de um homem que se constituiu
historicamente, por meio da transformação da natureza, de forma consciente,
para garantir a produção de sua existência. E, ao produzir bens materiais de

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forma consciente, produz também o campo simbólico – produz idéias. Tais
idéias e conhecimentos produzidos pelo homem em determinado momento
histórico refletem a realidade desse momento histórico e, por sua vez, orientam
a ação dos homens, modificando e desenvolvendo a ação, ao mesmo tempo
em que também estas são modificadas. Trata-se de um processo contínuo de
relação, que ocorre de forma dialética, expressando a unidade contraditória
entre real e racional, numa perspectiva materialista (Gonçalves, 2002: 39).
O homem concebido como ser ativo, social e histórico; e a sociedade,
como produção histórica dos homens que, através da atividade, produzem
sua vida material. As idéias, como representações da realidade material. A
realidade material fundada em contradições que se expressam nas idéias e a
história, como o movimento contraditório constante do fazer humano, no qual,
a partir da base material, deve ser compreendida toda produção de idéias,
incluindo a ciência e, evidentemente, também a psicologia. É este o papel que
vem cumprindo o marxismo na Psicologia brasileira.

Nota
Este capítulo reflete as reflexões da equipe de psicologia sócio-histórica da PUC-SP, sendo sua redação de
responsabilidade de Bock e Furtado.

Indicações estéticas e bibliográficas


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