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HISTÓRIA DA FILOSOFIA NO

BRASIL
AULA 1

Prof. Lucas Lipka Pedron


CONTEXTO HISTÓRICO E PRIMEIROS DEBATES SOBRE FILOSOFIA
BRASILEIRA

CONVERSA INICIAL

Nesta aula, abordaremos os primeiros debates sobre a filosofia no Brasil


ou filosofia brasileira. Para se referir a uma filosofia brasileira, devemos falar da
formação do Brasil como nação, pois, como veremos, os assuntos estão
interligados. É no processo de fundação do povo e da cultura brasileira que se
entrelaçam e se expressam na sistematização dos pensamentos e ideias que
vão delimitar o que podemos chamar de uma filosofia brasileira, ou de um
percurso da filosofia no Brasil.
Acompanharemos os debates suscitados por João da Cruz Costa e
Álvaro Vieira Pinto, dois filósofos brasileiros do século XX, pioneiros (embora
não os primeiros) na proposição de uma filosofia brasileira. Cruz Costa traz em
Contribuição à História das Ideias no Brasil (1956) uma história dessa filosofia,
suas origens, sua vinda, seu desenvolvimento, sua presença e ausência em
território brasileiro. Ele reconta as origens desse pensamento desde sua fonte
ibérica, passando pela presença jesuítica, no diálogo com as gerações
românticas, a Escola de Recife e outros movimentos filosóficos e intelectuais
brasileiros.
Já Vieira Pinto, em Consciência e Realidade Nacional (1960), busca na
polarizada dualidade entre uma consciência ingênua e uma consciência crítica
a constatação de uma realidade dada pela nacionalidade. Ele coloca na
consciência crítica o papel de conhecer a realidade tal como ela de fato é:
realidade objetiva e realidade subjetiva determinada conforme a nação do
indivíduo. Ambos os pensadores, embora de formas diferentes, esboçam na
filosofia brasileira a maneira de um resgate e afirmação de uma identidade
nacional não existente.
Nosso primeiro tema passará pela Escola de Recife, sua importância e
significância para a difusão do positivismo no Brasil; posteriormente,
compreenderemos parte das fontes utilizadas por Cruz Costa em sua obra.
Também veremos os primeiros esforços na constituição de uma filosofia
propriamente brasileira.

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No segundo tema, conheceremos um pouco sobre João da Cruz Costa e
sua contribuição à filosofia no país. Depois, adentraremos o princípio de sua
obra para pensar as origens e os povos constituintes do pensamento nacional.
Passaremos pelas origens ibéricas e pelos traços estereotipados que o autor
reproduz acerca da população indígena e negra brasileira.
No terceiro tema, identificaremos a contribuição dos jesuítas ao
pensamento brasileiro, bem como o papel político deles no contato com os
indígenas, na sua proteção e no desenvolvimento político e econômico de
regiões mais afastadas. Passaremos pelas missões jesuíticas e como elas
moldaram as tensões políticas e o contato com a população ameríndia na
América Ibérica. Para além, compreenderemos como tais tensões resultaram
na dissolução da ordem e na decaída do seu poder em território nacional.
No quarto tema, veremos um pouco dos confrontos que Cruz Costa
estabelece com sua obra e os objetivos que o levam a contestar a falta de
identidade do pensamento nacional. Em parte, trata-se de uma ostensiva
presença europeia; por outra, pelo desmerecimento da filosofia nacional pelo
que ele chama de um filoneísmo, uma paixão inconcebível e injustificável pelo
novo, seja o que for.
No quinto e último tema, abordaremos a vida conturbada de Vieira Pinto,
sua obra e seus objetivos intelectuais e políticos, que, na primeira metade do
século XX, até a década de 60, foram tão influentes quanto imbricados um no
outro. Isso porque Vieira Pinto é de uma tradição política e filosófica muito
próxima do fascismo e do nazismo, na figura da fenomenologia heideggeriana,
o que tem reverberações em sua obra.

TEMA 1 – A ESCOLA DE RECIFE

Começamos nossa aula para falar não da primeira presença da filosofia


no Brasil, mas da primeira escola de pensamento brasileiro. A Escola de Recife
surgiu entre as décadas de 1860 e 1880 na Faculdade de Direito do Recife,
que fora criada pelo então Imperador do Brasil em 1827, Dom Pedro I. Teve
como maior expoente Tobias Barreto, muito embora possamos aqui elencar
autores como Sílvio Romero, Clóvis Beviláqua, Capistrano de Abreu e Joaquim
Nabuco, entre outros.
A Faculdade de Direito do Recife foi a primeira faculdade de direito do
país, juntamente com a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em
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São Paulo – que na década de 1930, como veremos posteriormente, foi uma
das faculdades que fundaram a Universidade de São Paulo. Como o polo da
produção intelectual do norte e nordeste do país, a Faculdade de Direito do
Recife exerceu enorme influência na cultura brasileira (principalmente das
elites formadas e em debate com a faculdade).
Foi Tobias Barreto, juntamente com outros membros da Escola de
Recife, que introduziu no Brasil a corrente positivista de Antonio Comte. Entre
outras influências, na literatura e na filosofia se instaurou uma corrente de
pensamento positivista, em enfrentamento ao romantismo brasileiro. Tobias
Barreto trouxe ao Brasil uma filosofia alemã em diálogo com o kantismo da
época, ao mesmo tempo que resgatando o positivismo francês, principalmente
por intermédio das obras de Ernst Haeckel. Haeckel era um biólogo e
naturalista alemão que, entremeio ao método científico positivista, ajudou a
popularizar a obra e as teorias de Charles Darwin.
Tal influência positivista levou à fundação do Partido Republicano em
1870, cujas ideias eram demarcadas pelo positivismo e tinha na abolição da
escravatura e na proclamação da república as grandes bandeiras. Desse
movimento intelectual também foram fundadas a Sociedade Positivista do
Brasil, em 1876, e a Igreja Positivista do Brasil, em 1881 (cuja sede ainda hoje
existe na Rua Benjamin Constant, n. 74, na zona sul da capital carioca). Essas
instituições, juntamente com os intelectuais da Escola de Recife – assim como
os influenciados por ela –, foram todos integrantes do movimento republicano
que levou ao fim o Brasil-Império.
A corrente positivista da Escola de Recife tinha em sua composição
filosófica um componente fortemente humanista e progressista. A influência
francesa, como legado do positivismo trazido por tal escola, foi sentida por
longos períodos na história do Brasil – não por menos nossa bandeira ainda
ostenta um lema positivista –, mas também se mostrou na importação cultural
que tanto influi na vida nos principais polos urbanos brasileiros.
Nossa capital naquele tempo, o Rio de Janeiro, passou por várias
reformas urbanísticas nas mãos da tríade Pereira Passos, Paulo de Frontin e
Oswaldo Cruz, em um esforço modernizador, civilizatório e higienista durante a
primeira década do século XX. Tal reforma significou a expulsão repentina, e
também paulatina, de um grande contingente de pessoas do centro urbano –
provocada pelo aumento de impostos e aluguéis –, que culminou na criação

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das favelas. Com esse processo de reurbanização, o centro da cidade sofreu
uma espécie de boulevarização, tal qual a realizada pelo Barão Haussmann,
em Paris, cerca de meio século antes. Tratava-se de trazer da capital cultural
do mundo à época a civilização que faltava ao Brasil.
Tal esforço, que se consolidava na ideia de uma formação de uma
identidade e cultura nacionais, passou pela miscigenação e aculturamento de
povos tidos como não civilizados (negros e índios) – quando não o simples e
cruel genocídio dessas populações –, que, conciliado ao enorme contingente
de imigrantes europeus, se constituiu em um processo de embranquecimento
da população brasileira. Seja simplesmente na cor de sua pele, seja nos
próprios elementos constituintes da cultura e identidade do brasileiro, isso foi
sentido, por exemplo, na perseguição aos elementos e expressões artísticas e
culturais de origem afro e indígena, tal qual o samba, a capoeira e o
candomblé, todos perseguidos e reprimidos durante o período da Primeira
República e do Estado Novo.
Esse contraponto é necessário para a compreensão de que foi tal
concepção de identidade nacional e processo civilizatório que demarcou a
produção filosófica, sociológica e antropológica brasileira durante a primeira
metade do século XX. Veremos isso a seguir nas obras de João da Cruz Costa
e de Álvaro Vieira Pinto.

TEMA 2 – JOÃO DA CRUZ COSTA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO


BRASILEIRO

João da Cruz Costa foi o aluno número 1 da então recém-fundada


Faculdade de Filosofia da Universidade São Paulo. Aluno de Jean Maugüé,
professor francês, primeiro enviado da missão francesa, posteriormente se
tornou assistente dele na Faculdade de Filosofia. Um dos principais
responsáveis pela criação do Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências da USP (atualmente FFLCH), assumiu uma cadeira
como professor da instituição somente em 1951; mais tarde, foi ocupada por
um dos seus mais pródigos alunos, José Arthur Giannotti. Durante a ditadura
militar, foi chamado a depor no Departamento de Ordem Política e Social
(Dops) e chegou a ter a prisão declarada preventivamente em 1965, sob
alegação de possuir laços com a Rússia.

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Sua maior obra é Contribuição à História das Ideias no Brasil, que busca
contrapor a filosofia europeia a um pensamento brasileiro que, não ignorando o
diálogo com a história da filosofia, pauta-se na necessidade de pensar o Brasil
criticamente. Tal esforço ainda era envolto a um ensejo nacionalista que,
embora em menor escala do que em Álvaro Vieira Pinto, ainda foi o alvo da
crítica de filósofos posteriores.
Giannotti (1978, p. 7) sintetiza a obra de Cruz Costa da seguinte
maneira:

[a obra] esboça um balanço do movimento de ideias que aportaram e


se enraizaram por aqui, desde a herança portuguesa até as correntes
positivistas e nacionalistas da Primeira República. História mais
descritiva do que tomada pelo vírus de interpretações profundas, nem
por isso, desprovida de um nervo que pretende estar sendo verificado
a cada passo: dos portugueses, os brasileiros herdaram um caráter
prático, anti-especulativo, que orienta o pensamento brasileiro para
os campos da ação política e social. Desanda quando ele cai sob o
fascínio de elucubrações como aquelas sobre o ser. O endereço é
certeiro. João Cruz Costa (1904-1978) passou a vida argumentando e
caçoando contra o germanismo fenomenológico e o historicismo
crociano que alimentaram o pensamento da direita, particularmente
aqui em São Paulo.

Tal esforço começou pela necessidade de traçar as origens de nossas


ideias. A aposta de Cruz Costa foi pensar que as origens do pensamento
brasileiro no Brasil advinham da intersecção dos povos que deram origem à
cultura brasileira. O pensamento brasileiro se moldou a partir da conjunção dos
vários povos e culturas que o compunham. Assim, a filosofia em território
brasileiro foi o resultado do confronto e do diálogo de várias correntes de
pensamento e modos de vida. Vários confrontos demarcaram os primórdios da
colonização: a vinda dos jesuítas e portugueses, o contato com os vários povos
e etnias indígenas ameríndias, os povos sequestrados e escravizados de além-
mar, todos eles compõem o substrato que deram origem ao povo brasileiro.
Da origem europeia, tivemos uma presença marcada pela diversidade
da formação dos povos que colonizaram a América do Sul. Portugueses e
espanhóis, desde sua chegada, já traziam consigo uma bagagem filosófica
diferente da cultura filosófica cristã francesa, inglesa e alemã – para falar das
principais escolas filosóficas da Idade Média e Moderna. A conquista árabe da
Península Ibérica durante o início do século VIII ocasionou um convívio de
séculos entre a cultura latina-europeia de portugueses e espanhóis e a cultura
árabe – a arte e a arquitetura da região, por exemplo, são grandes testamentos
desse convívio.
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Muito embora esse convívio não tenha sido pacífico, não possuía até os
séculos XV e XVI proporções belicosas, como as que resultaram na expulsão
dos diversos califados da península. O contato entre europeus e árabes
representou um grande impacto na formação do pensamento e da filosofia
latina-ibérica; tal influência foi sentida no Brasil e pôde ser vista por meio da
presença da Igreja Católica portuguesa durante o período de colonização.
Para além dos povos europeus, a cultura brasileira possui uma forte
presença de tribos e etnias indígenas originárias do continente americano. No
entanto, o texto de Cruz Costa, tendo como fontes a sociologia e a antropologia
da época, ainda em forte influência do positivismo da Escola de Recife (e, por
consequência, de uma interpretação de miscigenação acrítica), apresenta uma
caricatura dos povos originários e africanos na contribuição trazida ao Brasil
(caricatura demarcada pelo preconceito e pelo racismo):

Do índio subsistem ainda na nossa maneira de ser traços antinômicos


que transparecem talvez no sentimento de rebeldia e de resignação
do nosso caboclo, no deslumbramento e, ao mesmo tempo, na
desconfiança que êle manifesta em relação ao estrangeiro. [...] Na
multidão de negros importados, que veio alicerçar a nossa economia,
mergulha também a contraditória e dramática história de
sensualidade e de abnegação que iria marcar a psicologia do nosso
povo. (Cruz Costa, 1967, p. 15)

Tais afirmações, antes de um prejuízo ao pensamento do autor, dizem


mais sobre as fontes que influenciam sua leitura. Posteriormente, veremos, por
meio de pensadores indígenas e afro-brasileiros contemporâneos, como de
fato a filosofia se relaciona com o índio e com multidão de negros do Brasil. Por
enquanto, terminamos este tema traçando em linhas gerais a origem de todo o
caldeirão que é a identidade e a cultura brasileiras. Passaremos agora à
contribuição dos jesuítas nesse período, segundo a leitura de Cruz Costa.

TEMA 3 – OS JESUÍTAS

A presença jesuíta no Brasil foi sentida desde o início do século XVI,


com a chegada dos portugueses para ocupar o território brasileiro.
Desempenharam um papel político e social importante na defesa dos indígenas
sul-americanos, muito embora com motivações que também eram contrárias
aos interesses e fins próprios dos indígenas que buscavam salvar. O termo
salvar aqui tem um duplo sentido: salvar da escravidão e da opressão dos

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colonizadores portugueses, ao mesmo tempo que buscavam salvar sua alma,
por intermédio da catequese, para o Reino de Deus e para a civilização.
Embora tenha sido a Companhia de Jesus quem ativamente trabalhou
com os nativos, tal demanda pela salvação decorreu da Controvérsia de
Valladolid (1550-1551), na qual, em um debate acalorado da Igreja Católica,
definiu-se se o índio possuía ou não alma. Bartolomeu de Las Casas venceu o
debate, e com a existência da alma do índio comprovada (e ele não mais
considerado um animal aos olhos da Igreja Católica), iniciou-se um trabalho
para a sua salvação, a qual contrariava os interesses que os colonizadores
europeus possuíam, que necessitavam dos corpos dos índios para a mão de
obra escrava: “O jesuíta [...] na ação que se desenvolveu junto ao índio, no
regime de educação a que o submeteu, agia muitas vezes em contradição
manifesta não só com os interesses particulares e imediatos dos colonos, mas
com os da própria metrópole e de sua política colonial” (Cruz Costa, 1967, p.
42).
Esse trabalho de catequese e educação, juntamente com a fundação
das primeiras escolas, trouxe a primeira experiência da filosofia no Brasil, a
qual pôde ser mais bem compreendida pelas missões jesuítas no sul. As
missões ou reduções eram aldeamentos nos quais os padres jesuítas reduziam
(no sentido de redirecionar) as várias tribos e aldeias indígenas de dada região
para a organização da vida sob o regramento da civilização ocidental europeia.
Para atrair as populações indígenas, eles desenvolveram várias técnicas, como
o aprendizado da língua, da cultura e dos valores; isso se refletiu na própria
organização dos aldeamentos, que acabavam por misturar valores sociais
indígenas com os dos europeus.
Para a população indígena, as missões, pelos acordos com as coroas
espanholas e portuguesas, significavam um espaço de proteção contra o
genocídio e a escravidão. Elas eram um reduto no qual as populações locais
poderiam existir sem ser caçadas, exterminadas ou realocadas para as
fazendas de trabalho escravo. A isso se somava a autonomia econômica que o
trabalho das missões gerava para os aldeamentos, que não dependiam em
nada da Colônia ou da Metrópole: nem na alimentação, nem no suprimento de
instrumentos e armas, nem de qualquer outra mercadoria necessária à
manutenção e sobrevivência dos aldeamentos.

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O trabalho educacional e de catequese, a difusão cultural da língua e
dos valores sociais, a proteção da população indígena foram alguns dos
elementos que colocaram os jesuítas em confronto com os interesses da
Metrópole (Portugal) e dos colonos no Brasil. Tal confronto levou à expulsão e
ao banimento da Companhia de Jesus das Américas pelos espanhóis e
portugueses, em um misto de interesses políticos, econômicos e perseguição
religiosa. Em 1759, o Marquês de Pombal, então encarregado da colônia
brasileira, seguido em 1768 pelo Rei Carlos III da Espanha, decretou o
banimento dos jesuítas, a dissolução das missões e o sequestro dos bens. Por
fim, em 1773, atendendo aos interesses das várias coroas (em destaque,
França, Portugal e Espanha), o papa Clemente XIV suprimiu a Companhia de
Jesus. Ela se manteve na clandestinidade na Rússia até ser restaurada
oficialmente por Pio VII, em 1814. No entanto, sua presença em solo brasileiro,
apesar de ainda significativa, não era mais tão influente e poderosa quando da
época do Brasil-Colônia.

TEMA 4 – EUROCENTRISMO, FILONEÍSMO E FILOSOFIA BRASILEIRA

Toda essa reconstrução histórica é necessária, segundo Cruz Costa,


para a reconstrução e a compreensão da formação da nossa identidade
nacional e de como nosso pensamento se atrela a nossa realidade. Demarcado
pela confluência de vários povos, a filosofia não pode ser compreendida no
Brasil sem a consideração das várias influências e dos vários atores sociais
responsáveis pela sua vinda, disseminação e desenvolvimento. E dessa
história desgarrada da Europa que surgiu a filosofia no Brasil. Diz Cruz Costa
(1967, p. 4):

A Europa nos impôs as suas línguas, a sua religião, as suas formas


de vida, em suma, a sua civilização. Nós, da América, não temos o
direito de falar de uma civilização propriamente americana. [...]
Podemos, no entanto, falar de uma multiforme experiência
americana, a que se veio formando lentamente, nestes quatro
séculos de esforço de construção de povos e de adaptação da
civilização ocidental às condições do nosso continente. [...] Nesse
cenário [...] também se fez história e dessa história desprende-se
uma experiência humana, uma filosofia apenas esboçada, mas que,
para nós, é do mais alto valor.

Esse esboço de filosofia é sempre atrelado à realidade nacional


brasileira. A significância da obra de Cruz Costa é a reconstrução de uma
filosofia que tivesse traços autenticamente brasileiros. Não era meramente um

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esforço nacionalista; tratava-se sobretudo da compreensão e do
reconhecimento da produção intelectual brasileira, que não superava em
qualidade a europeia, mas certamente a superava no diálogo com a realidade
brasileira.
Isso se soma ao fato de que Cruz Costa tinha que boa parte da filosofia
trazida de além-mar era mais valorizada pelo prisma da superioridade de uma
civilização ocidental desenvolvida do que pela sua qualidade técnica e rigor
epistemológico:

A filosofia era assim considerada como uma disciplina livresca. Da


Europa ela nos vinha já feita. E era sinal de grande cultura o simples
fato de saber reproduzir as ideias mais recentemente chegadas. A
novidade supria o espírito de análise, a curiosidade supria a crítica. O
filoneísmo é, assim, um velho característico da nossa vida intelectual.
(Cruz Costa, 1967, p. 8)

Ou seja, o estado da filosofia era o de simplesmente consumir um artigo


cultural não compreendido, reproduzido acriticamente; seu valor era dado pela
sua novidade, a qual saciava um desejo pela curiosidade. Tal qual um artigo da
moda, a filosofia era vendida e consumida pelos brasileiros, que tinham na
reprodução de ideias que não compreendiam, mas sabiam ser provenientes de
um local civilizado, o maior prazer de suas vidas. Esse movimento retomava a
dependência da Metrópole, era o polo civilizador que fornecia a cultura para o
povo bárbaro e não civilizado da colônia.
Cruz Costa combatia esse consumo desprezível justamente na
valorização da produção intelectual brasileira. Se, por um lado, sua obra possui
traços genuinamente nacionalistas em um sentido ufanista, ela carregava
consigo um mérito tão grande quanto esta problemática: reconhecia na
produção intelectual dos brasileiros uma veia crítica e um espírito de análise
nutrido pela realidade única do povo brasileiro. Tratava-se, portanto, de
construir uma identidade nacional a partir do pensamento e da filosofia da elite
intelectual do país. Algo semelhante aos esforços de Vieira Pinto, como
veremos a seguir.

TEMA 5 – ÁLVARO VIEIRA PINTO

Álvaro Vieira Pinto, nascido em Campos dos Goytacazes, no Rio de


Janeiro, foi um filósofo brasileiro influenciado por várias correntes de
pensamento alemão, entre as quais destacamos o de Hegel, Marx e

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Heidegger. Formado pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro
em 1932, ingressou na organização fascista Ação Integralista Brasileira, da
qual se afastou mais tarde. Posteriormente focou seus estudos em filosofia,
obtendo título doutoral.
Entre suas várias contribuições aos governos da época, foi um dos
intelectuais mais influentes durante o Estado Novo. No período nacional-
desenvolvimentista, já em 1955, integrou o Instituto Superior de Estudos
Brasileiros (Iseb), uma espécie de escola de administradores públicos criada
por decreto no governo de Café Filho e usada por Juscelino Kubitschek na
formação de quadros políticos e administradores públicos para contribuir com o
Estado brasileiro. Era característico do ISEB uma postura nacionalista e
vanguardista, como direção da cultura e do pensamento nacional. Essa
vocação se refletiu na obra de Vieira Pinto, Consciência e Realidade Nacional,
publicada pelo próprio Instituto em 1960.
Com a instauração da Ditatura Militar no Brasil, Álvaro Vieira Pinto foi
perseguido. Exilado, encontrou refúgio na Iugoslávia em 1964, posteriormente
foi para o Chile, onde ficou a convite de Paulo Freire entre 1965 e 1968. Nesse
ano, voltou ao Brasil e passou a trabalhar sob pseudônimos, traduzindo obras
de vários pensadores internacionais. Morreu em 1987 no Rio de Janeiro.

5.1 A realidade da nação e a dualidade da consciência

Lídia Maria Rodrigo, em O nacionalismo no pensamento filosófico, nos


ajuda a compreender o que Vieira Pinto compreende por realidade:

Para Álvaro Vieira Pinto a realidade é constituída tanto por fatores


materiais (objetivos) como por fatores ideais (subjetivos). Entretanto,
enquanto o crescimento orgânico se produziria segundo
determinismos naturais e nele não interviria nenhum fator subjetivo, o
desenvolvimento social ocorreria de forma inversa. Para ele, o
desenvolvimento da nação não é crescimento natural e sim processo
histórico. (Rodrigo, 1988, p. 31)

Assim, o desenvolvimento da nação deve ser pensado como um


processo determinado por fatores ideais, pela subjetividade dos atores
envolvidos na transformação social. À consciência deve se colocar, então, o
papel de realizar esse processo histórico de desenvolvimento social. Mas não
poderá ser qualquer consciência. Para Vieira Pinto, são justamente o recorte
da realidade nacional e a tarefa de desenvolvimento social que fazem a

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fronteira entre dois tipos polarizados de consciência: a consciência ingênua e a
consciência crítica:

A análise dos comportamentos individuais que decorrem das


diferentes modalidades de consciência nos leva a admitir ser possível
distribui-los em duas grandes classes, que revelam duas formas
fundamentais de consciência da realidade nacional, que chamaremos
respectivamente de consciência ingênua e consciência crítica. [...] a
consciência ingênua é, por essência, aquela que não tem consciência
dos fatores e as condições que a determinam. A consciência crítica é,
por essência, aquela que tem clara consciência dos fatores e
condições que a determinam. (Vieira Pinto, 1960a, p. 82-83, grifo do
original)

É a partir dessa dualidade que se coloca o problema primordial do


processo histórico: quem deve realizar o desenvolvimento social. O caráter
vanguardista, o dirigismo do Iseb, então se manifesta no texto de Vieira Pinto,
pois cabe somente à consciência crítica, justamente por aquilo que a determina
e a separa da consciência ingênua, que deve conduzir esse processo. É
justamente porque a consciência crítica tem consciência da realidade objetiva,
a realidade determinada por fatores objetivos, que pode subjetivamente
desenvolver nação. A pergunta a ser retomada então é: quem possui essa
consciência crítica da sociedade? Obviamente, o Iseb e Vieira Pinto.
Cabe à elite intelectual do país pensar e desenvolver a nação, pois ela
ainda não saiu da consciência ingênua. A nação, como um todo, não consegue
compreender a realidade objetiva que determina sua existência. Como poderia
modificá-la se não a conhece? Não, antes é preciso que a consciência ingênua
tome consciência da realidade objetiva, mas também dos processos que a
mantêm inconsciente da realidade objetiva, para que só então ela possa
despertar de um estado inerte e inconsciente para transformar o meio social.

5.2 Consciência crítica e a realidade nacional

Para além, é preciso que a consciência crítica unifique a realidade


objetiva com a subjetiva, isto é, é preciso que a consciência crítica pense os
fatores materiais que a determinam e determinam o escopo de possibilidades
de desenvolvimento da nação, para, sobre tais fatores materiais, desenvolver
os fatores ideais que possam desenvolver objetiva e subjetivamente a
realidade nacional.

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Para essa teleologia posta à consciência, para esse fim e objetivo com a
qual existe, ela precisa compreender que o âmbito de sua ação é a realidade
nacional. Nas palavras de Vieira Pinto (1960b, p. 554):

Para a consciência crítica, exercendo-se no plano da indagação


política, o real se apresenta como o âmbito da existência nacional.
Dentre deste se configura o que entendemos como realidade, não só
as instituições, mas os acontecimentos, as personalidades, e mesmo
os objetos materiais, as forças e os recursos naturais, tanto quanto
adquirem significação política ao serem tomados como partes da
existência nacional.

Ou seja, os fatores materiais que determinam a realidade da consciência


crítica vão desde as instituições, como entidades abstratas, até as forças e
recursos naturais das quais dispõe uma nação. É o Estado, são os sujeitos, a
história e os bens naturais de uma nação que servem como o pano de fundo, a
realidade na qual operará nossa consciência crítica vanguardista, pois esses
são os fatores materiais da realidade na qual opera a consciência:

A objetividade, para o pensamento político da existência social, se


encontra na nacionalidade. Na consideração desta última reúnem-se
todas as noções categoriais anteriores, e aqui vem dar fruto. A
própria conjunção dos conceitos extremos indica-nos que, se
perguntarmos pelo que é a nacionalidade, teremos de defini-la, em
primeiro lugar, como a realidade objetiva. A nação constitui o mundo,
para quem indaga concretamente do que este é. (Vieira Pinto, 1960b,
p. 554)

Assim, Vieira Pinto coloca como fator primordial para a consciência


crítica conhecer a própria nação. No entanto, o século XX nos mostra, por meio
de experiências catastróficas, o quanto o conceito de nação pode alienar um
povo, o tornando inerte e inapto a agir e reagir contra atrocidades comandadas
por seus líderes. A Segunda Guerra Mundial nos deu os maiores exemplos
disso.
E é pensando na enorme experiência de morte do início do século que
autores como Lebrun, Prado Júnior e Arantes vão responder a essa tentativa
de reduzir a realidade à nação. Não somente questionando os limites práticos e
epistemológicos de tal conceituação, mas fazendo a pergunta mais prática
(práxis) e resoluta: se a realidade é a nação, onde vivem aqueles que a nação
não contempla? O século XX nos mostra que a estes não foi permitido viver.

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NA PRÁTICA

O nacionalismo é um conceito que deve ser trabalhado em suas


minúcias, tomando atenção para as consequências políticas e sociais. Vieira
Pinto e Cruz Costa foram dois grandes intelectuais brasileiros, e suas obras
caíram no ostracismo durante as décadas seguintes justamente pela
reprodução não crítica de um conceito problemático. O conceito de
nacionalismo evocava para a elite intelectual do país as experiências mórbidas
que a Segunda Guerra Mundial trouxe, algo que em meio ao ufanismo
nacionalista do período ditatorial também não ressoou bem.
Em nossa prática de pesquisa, precisamos lidar cotidianamente com a
leitura contextual das obras. Trata-se de saber, reconhecer e demarcar na
interpretação de um texto filosófico que um texto é produzido em dado período,
sociedade e cultura; que tais determinações, além de outras, também se
desvelam na recepção, na crítica e mesmo na leitura dessas obras. Em outras
palavras, é preciso saber que na leitura dos textos filosóficos é necessário um
cuidado com as determinações histórico-sociais, que fornecem também sua
limitação de fontes e interpretações sociais.
Assim, saber o contexto de produção intelectual dessas obras, o esforço
da criação da identidade nacional e emancipação econômica e política
brasileira, é compreender que essa era uma demanda política e intelectual do
período. E que em meio a esse mesmo contexto outra demanda surgia no fim
do período democrático brasileiro; e que os conceitos evocados e
desenvolvidos pelas obras trabalhadas aqui passaram a ser alvo de um esforço
intelectual de embate social e político pela redemocratização.

FINALIZANDO

Nesta aula, passamos por vários períodos da história da filosofia no


Brasil – desde a chegada dos portugueses até meados do século passado.
Como fio condutor, usamos as obras de dois dos grandes pensadores
brasileiros do século XX (João da Cruz Costa e Álvaro Vieira Pinto) para
compreender o movimento que se empreendia 70 anos atrás, para a tentativa
de consolidação de uma filosofia genuinamente brasileira. Tal esforço esbarra,
como vimos, na problemática conceituação de nação.

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Todo o pensamento brasileiro, para esses pensadores, não só
necessitava pensar a realidade brasileira, como precisava atender a certo
clamor de formação de uma elite cultural e intelectual que fosse capaz de
colocar o Brasil no cenário mundial. Tratava-se de criar uma cultura e uma
identidade brasileiras, uma forma de pensar e agir brasileiros. Ignoraram com
isso a cultura e identidade brasileiras já existentes; pois não foi por acaso. São
filosofias colocadas para pensar o Brasil a partir da necessidade de
modernização e projeto civilizatório: era preciso que o país se transformasse de
um território em uma nação, em uma civilização ocidental.
Esse esforço começou com os intelectuais da Escola de Recife, que,
trazendo o positivismo para terras tupiniquins, transformaram efetivamente a
produção das ciências humanas no Brasil. Mais do que isso: transformaram e
moldaram gerações e gerações de intelectuais e políticos e ensejaram uma
transformação da ordem política pública, com o fim do Império e a proclamação
da República.
Um dos intelectuais abordados nesta aula, João da Cruz Costa, faz um
resgate da formação do Brasil a partir das origens do seu pensamento. Embora
suas concepções sobre a contribuição indígena e negra para essa história das
ideias sejam estereotipadas e ultrapassadas, elas refletem muito o estado de
produção intelectual do país no período. Em meio a isso, seu resgate das
origens latinas e árabes da população ibérica é importante para pensarmos
alguns dos elementos constitutivos do Brasil.
Outro ator importante da presença da filosofia no Brasil foi a Companhia
de Jesus. Em seus diversos períodos, os jesuítas deram enorme contribuição
na compreensão (e infelizmente na assimilação cultural) da população indígena
brasileira, em particular da Região Sul, local das reduções jesuítas. As missões
foram um momento importante de desenvolvimento social e econômico do país
e seu funcionamento na Colônia fez sentir-se nas metrópoles ibéricas (Portugal
e Espanha); por conta do papel desempenhado, foram perseguidos até o
banimento e supressão da ordem no mundo.
Por trás de todo esse esforço de reconstrução dos caminhos de
constituição da presença da filosofia no Brasil encontra-se, em Cruz Costa, a
necessidade de desenvolvimento de um pensamento propriamente brasileiro.
Tal esforço foi o mesmo de Álvaro Vieira Pinto, que, por outros caminhos e sob
outra matriz intelectual, buscava os mesmos objetivos: o desenvolvimento do

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pensamento brasileiro, só que dessa vez pelo despertar da consciência crítica
atrelada ao desenvolvimento da identidade nacional.
Somente se debruçando sobre a realidade nacional que tal consciência
poderia surgir. E, como vimos, essa consciência está atrelada a certa
vanguarda intelectual e cultural, que desenvolveria no plano da ciência e da
consciência o desenvolvimento econômico necessário para o avanço da nação.
Vieira Pinto chega até a afirmar que a realidade nacional é a objetividade da
própria consciência; isto é, que a consciência crítica só pode existir quando
atrelada e sob o plano material da realidade que a nação a provê.

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REFERÊNCIAS

CRUZ COSTA, J. da. Contribuição à História das Ideias no Brasil. 2. ed. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

GIANNOTTI, J. A. João Cruz Costa. Discurso, São Paulo, n. 9, p. 7-8, 1978.

RODRIGO, L. M. O nacionalismo no pensamento filosófico. Petrópolis:


Vozes, 1988.

VIEIRA PINTO, A. Consciência e Realidade Nacional: a consciência ingênua.


Rio de Janeiro: Iseb, 1960a. 2 v.

______. Consciência e Realidade Nacional: a consciência crítica. Rio de


Janeiro: Iseb, 1960b. 2 v.

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