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FGVdeBolso Os índios na história do Brasil 15

Com diferentes denominações, esses grupos espalhavam-s e os portugueses. Estudos recentes têm demonstrado que essas
pelo litoral, distribuindo-se cm espaços descontínuos. recriações identitárias podiam servir também aos interesses
A designação dos grupos étnicos é bastante problemati­ dos indios, que souberam adotá-las e utilizá-las a seu favor,
ca e controvertida, sobretudo se levarmos em cont-a as difi­ como se verá a seu tempo.
culdades dos portugueses em identificar e compreender os Cabe lembrar. ainda, que na segunda metade do século
vocábulos indigenas. Varnhagen já alertava para o problema, XVI, quando as descrições sobre os índios tornaram-se mais
destacando que aparecem nos documentos antigos os mesmos frequentes e detalhadas, as relações de contato já se faziam
povos apelidados por nomes muito diferentes. Refletindo so­ há meio século e com certa intensidade há pelo menos duas
bre as denominações e seus significados usados pelos tupis décadas. Isso evidentemente implicava em mudanças consi­
para designar a si próprios e aos demais. o autor questiona as deráveis em suas culturas, organizações sociais e relaciona­
divisões étnicas estabelecidas pelos cronistas, revelando que mentos. As guerras intertribais que, segundo as descrições,
muitas nações passaram a ser assim consideradas a partir de ocorriam para dar continuidade aos ódios ditos "ancestrais"
apelidos que lhes eram dados por seus vizinhos, muitas vezes já eram, quando descritas, fortemente influenciadas pelos es­
do mesmo grupo. Tais apelidos, convém destacar, variavam trangeiros que através delas obtinham seus escravos e direta
conforme o tipo de relação que estivessem vivendo num de­ ou indiretamente as incentivavam. O impacto da presença eu­
terminado momento e podiam refletir relações de parentesco ropeia não se fez sentir apenas sobre as guerras. As relações
ou de aUança e de inimizade. Eram relações flexíveis e fluidas entre os grupos, com certeza, Lambém se alteraram com tantas
que se alteravam intensamente. /\ssim, as identidades étnicas �ovas ameaças (guerras, escravizações, epidemias) e atrações
apontadas pelos cronistas não devem ser vistas co1:10 ca:e­ (mstrumentos de ferro, armas de fogo, aliados poderosos).
gorias fixas, uma vez que muitas delas devem te� sido cria­ Portanto, quando os cronistas diziam que tais índios eram
_
das a partir das situações vivenciadas pelos tndLos e pelos �mlg ?s �esses e injmigos daqueles, talvez não percebessem a
portugueses. Em Pernambuco, por exemplo, os ponugueses mfluencia que eles próprios já exerciam sobre essas relações
aliaram-se ao grupo por eles chamado de tabajara, termo usa­ e, com frequência, equivocavam-se ao utilizar tais relações
do em tupi para designar os inimigos da mesma origem ou c�mo elementos ucfinidores de características dos grupos in­
inimigos-cunhados que podiam ser aprisionados nas g �ter­ dígenas que procmc1vam identificar.
ras. No Rio de Janeiro, os temiminós tornaram-se conhecidos São imensas. portanto, as limitações para o conhecimen­
a partir das relações amistosas com os portugueses, com os to das etnias e das sociedades ameríndias no período an­
quais se aliaram na luta contra os tamoios. Na verdade, como terior à conquista. Apesar disso, a partir das informações
assinalou Varnhagcn, uns e outros deviam pertencer ao mes­ produzidas por cronistas e missionários, alguns autores, en­
mo grupo, na medlda em que "temiminó" quer dizer "neto" tre os quais Florestan Fernandes, Alfrcd Métraux e, mais re­
e ''tamoio" quer dizer "avô". Tabajaras e temiminós podem, centcmemc, Eduardo Viveiros de Castro e Manuela Carneiro
pois, ter passado a existir como etnias a partir do contato com da Cunha, realizaram estudos que nos permitem desvendar
Capítulo 3

Guerras índígenas e guerras coloniais/pós-coloniais

A conquista do território na América portuguesa não


foi absolutamente pacífica. As várias regiões do continente
foram ocupadas após combates violentos con1 ra os povos
indígenas. Além da presença estrangeira cons1anre e amea­
çadora, as guerras Unham como alvo os indins hostis que,
do século XVI ao XlX, desafiavam ou mesmo impediam a
expansào da<; fronteiras portuguesas. Foram eles os princi­
pais responsáveis pelo malogro da maioria da,; capitanias,
no século XVI.
As guerras coloniais se misturavam às guerras indígenas,
na medida em que se faziam com índios aliado'> contra ín­
dios ho�lis. Europeus de nacionalidades distintas e índios de
difercntcli etnias lutavam corno aliados numa mesma guerra,
porém tinham motivações diversas, que se altcravam, con­
forme as circunstâncias e a dinâmica das rch,ções. Os índios
foram, scm dúvida, os maiores perdedores, porém souberam
também valer-se das hostilidades entre os europeus e ob1er
seus próprios ganhos a partir delas.
Os índios na história do Brasil 47
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No século XVl, o auge das guerras indígenas ocorreu na XVI ,10 XIX, esses "índios bravos" não apenas defendiam seus
costa brasileira entre as décadas de L530 e 1560, quando os territórios, desafiando a expansão territorial portuguesa,
povos nativos reagiram violentamente ao incremento das es­ como ainda faziam incursões guerreiras sobre regiões já ocu­
cravizações forçadas para atender às necessidades da coloni­ padas. Contra eles, eram enviadas as bandcLras, expedições
zação mais sistemática iniciada com as capitanias hereditá­ armadas que, além dos metais preciosos, buscavam priJlci­
rias. A criação do governo geral veio atender à necessidade palmente índios que seriam vendidos como escravos. Muitas
da Coroa em manter a soberania sobre a colônia contra os dessas expedições armavam-se com o objetivo explicito de
ataques estrangeiros e, principalmente, em submeter os ín­ punir grupos hostis.
dios inimigos e integrar os aliados. O Regimento do primeiro Alguns desses grupos foram especialmente aguerridos e
governador-geral, Tomé de Souza, já inclufa as diretrizes bá­ tornaram-se bastante conhecidos pelas descrições extrema­
sicas da política i11digenista que, <�rosso modo, iria se manter mente negativas e estereotipadas, como os caetés, os poti­
durante todo o período colonial. Recomendava a guerra justa guaras, os goitacazes e os terríveis aimorés que, a partir do
para os índios inimigos yuc, uma vez vencidos, se tornariam século XVill, foram sendo chamados de botocudos. Os dois
escravos; e os aldeamentos para os aliados. primeiros eram tupis e os demais incluíam-se, como tantos
Com Tomé de Souza, vieram os seis primeiros jesuítas que, outros, entre os chamados tapuias. Tupis e tapuias podiam
chefiados por Manoel da Nóbrega, tornaram-se responsáveis agir como aliados ou como inimigos, estabelecendo emre si
pelo estabelecimento das aldeias coloniais. Sua principal fun­ e com os estrangeiros relações fluidas e instáveis. Aldeias de
ção seria a de reunir os índios aliados cm grandes aldeias um mesmo grupo também, não raramente, se subdividiam em
próximas aos núcleos portugueses nas quais iriam se tornar làcções, apoiando ora uns, ora outros. Além disso, grupos ini­
súdHos cristãos para garantir e expandir as frolllciras por­ migos podiam também se unir para combater um adversário
tuguesas na colônia. Era preciso manter os índios aJiados e comum. Essas práticas eram (requentes entre os mais diversos
derrotar os inimigos de f'onna a seguir adiante com o projeto grupos indígenas e, com certeza, se acentuaram considerav e l ­
da colonização. mente, desde o século xvr, quando os europeus passaram a
Isso se fez às custas de inúmeras guerras bastante vio­ se inserir em suas relações.
lentas que se estenderiam até o século XlX. Algumas delas Sem compreender bem as razões culturais dos índios e
tomaram grande vulto e alcançaram vastas extensões territo­ sem perceber o forte impacto de suas próprias ações traiço­
riais, tendo envolvido enormes contiogcnles militares e gru­ eiras sobre as instáveis relações dos índios, os europeus, com
pos indígenas variados. Além dessas, houve inúmeras outras frequência, os descreviam como traidores e inconstantes.
guerras de resistência localizada e cotidiana de vários grupos Não entendiam como mudavam de um lado para o outro e
indígenas que se recusavam a colaborar com os portugueses. como interrompiam guerras para comercjar, lanto com outros
Ocorriam, g1·osso modo, nas fronteiras Lnternas da colônia, [nd•ios, como com europeus de diferentes nacionaJidades. A
nos sertões, onde habitavam os "índios bravos". Do século complexidade das relações entre grupos indigenas aliados e
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m1m1gos, principalmente em regiões de fronteira, tem sido sição de destaque e liderança entre os tupiniquins, graças ao
evidenciada por pesquisas regionais que q�estionam a ideia casamento com a lilha do grande chefe Tibi.riçá. Sua presen­
de oposição rígida entre os variados atores. índios de diferen­ ça, com certeza, garantiu aos portugueses a segurança neces­
tes etnias e não ín<l.ios (missionários, bandeirantes, soldados, sária para dar inicio ao povoamento português. Os índjos, por
colonos pobres, escravos negros, guilombolas etc.) desenvol­ sua vez, passaram a coutar com poderosos aliados nas guerras
viam múltiplas formas de interaçiio que passavam de relações contra seus próprios inimigos. Mais tarde. alguns grupos t u ­
de conflitos intensos para acordos, mediações, trocas comer­ piniquins iriam se rebelar contra os portugueses, enquanto
ciais e culturais. o grupo liderado por Tibiriçá manteria a aliança. A íluidez
A instabilidade das relações acentuava-se, com certeza, das relações entre os tupiniquins aparece em vários relatos
nas situações de guerra, levando os índios a mudar de lado aparentemente controversos. Inconstâncias e dissidências
conforme interesses e possibiUdades. Enu·e os chamados ocorriam em várias regiões e intensificavam-se com o incre­
"mansos'', isso era bastante comum, dadas as inúmeras trai­ mento das guerras. No século XVI, na costa brasileira, fran­
ções dos portugueses e as difíceis situações que enfrentavam, ceses e portugueses disputavam, além das riquezas da terra,
entre as quais as epidemias, tão frequentes nas aldeias. Não a imprescindível aliança com os nativos. O vajvêm dos vários
foram poucos os aliados que retornaram aos sertões, passan­ grupos indígenas entre acordos e confrontos entre si e com os
do a realizar ataques esporâdicos às suas antigas aldeias. estrangeiros foi intenso.
Convém lembrar que, no século XVl, a depcndência dos
portugueses em relação aos índios era praticamente total e A conquista da capitania de Pernambuco e suas anexas
a política de alianças era indispens-ívcl. As capitanias bem A capitania de Pernambuco só prosperou depois de mui­
sucedidas tiveram apoio dos índio� e as demais fracassaram tos cnfrentamentos. O principal desafio vinha dos potiguaras e
principalmente devido aos seus ataques. A superioridade tec­ eaetés. Eram ambos grupos tupis e, embora rivalizassem entre
nológica das armas europeias não é abso!ULamentc suficiente si, associavam-se aos franceses, que incentivavam suas hosti­
para explicar a vitória de um punhado de portugueses contra lidades contra os portugueses. Os cactés foram violentamente
milhares de povos guerreirns, principalmente se levarmos cm perseguidos, após ter sido decretada guerra justa contra eles,
co□La as limitações técnicas da época. A conquista do territó­ em 1562, corno punição por terem matado e comido o bispo
rio só se explica pelas alianças que os portugueses puderam D. Pero [•ernandes Sardinha e seus companheiros de naufrágio.
estabelecer com os índios. Os abu<;os e excessos dos colo110s que, ávidos por escravos, ma­
A escolha de São Vicente como núcleo inicial da coloniza­ tavam ou aprisionavam muitos caeLés, incluindo os habitantes
ção baseou-se. como destacou John Monteiro, prü1cipalmen­ de aldeias jesuíticas, levou o próprio Mem de Sá a revogar a
te na cooperação segura e confiável dos tupiniquins liderados medida. As perseguições, no entanto, não terminariam. A lei
por Tibiriçá sob a forte influência de seu genro João Ramalho. de l 570, por exemplo, proibia a escravização indígena, abrin­
Este era o já citado degredado português que alcançara po- do amplas possibilidades para que ela se mantivesse. Legiti-
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mava o cativeiro dos "tomados em guerra justa", com licença ses, os índios soltaram os cativos e fugiram para a Paraíba,
do Rei ou do Governador, ou daq u eles que "... cost umam sal­ onde se aliaram aos antigos inimigos potiguaras. Tabajaras e
tear os portugueses, e a outros gentios, para os comerem; as­ potig uaras uniram-se, então, para combater os port.ug ueses.
sim como são os que se chamam aimorés e outros semelhantes" O revide português não se fez esperar e foi bastante vio­
(MALHElRO, 1976: 173 ap ud BEOZZO, 1983: 16). Q uanto aos lento. As boas relações dos potiguaras com os tabajaras não
. _
potiguaras, também foram descritos de forma rnwto negativa, duraram muito e estes últimos restabeleceram a aliança com
embora inicialmente tivessem recebido bem os port ugueses na os portug ueses. Os combates prosseguiram pela conquista
capitania de Itamaracá. Não tardaram, no ent'.111to, a voltar-se da Paraíba e do Rio Grande (atual Rio Grande do Norte)
_
contra eles pelas razões costumeiras: as escravizações abusivas e após violentos combates, os potigu aras acabaram, como
e as violências desencadeadas na década de 1540. tantos outros, optando pelo mal menor: o acordo com os
Assim, os portugueses enfrentavam ao norte os potiguaras portugueses. Segundo Fátinia Lopes, foram vários acordos
e ao sul os caetés, contando com o auxilio inestimável dos estabelecidos separadamente com os chefes indígenas de di­
tabajaras. Estes eram também t upis e viviam em gu�rra. com ferc11tes aldeias. A paz foi ratificada com os potig uaras da
_
os primeiros e com vários grupos tapu 1as, com o� quais, a� ve­ Paraíba, em 1599, na cidade de Filipeia de Nossa Senhora
_
zes, tinham períodos de paz, como destacou Fatuna Lopes. As das Neves (hoje João Pessoa) em cerimônia na qual, além
relações entre port ug u eses e tabajaras foi sedimentada pelo das autoridades das três capitanias (Pernambuco, Paraíba
casamento de Jerônimo de Albuquerque, cunhado do dona­ e Rio Grande) compareceram os chefes indígenas Braço de
tário Duarte Coelho, com a filha do grande chefe Arco Verde. Peixe (Piragibe), Rraço Preto, Pedra Verde e os Potig uaras
Essas relações foram essenciais para assegurar o domínio �os Pau Seco e Mar Grande.
portugueses sobre Pernambuco. O importante papel dos �­ No fim da década de 1590, de acordo com Lopes, esta­
dios na construção dessa capitania evidencia-se no se u pro­ vam conquistadas as terras das capitanias da Paraíba e do Rio
prio traçado geográfico q ue, no século XVl. scgu e a linha das Grande. Os potiguaras, após os acordos com os portugueses,
_
aldeias indígenas aliadas, conforme revelou Bartira Barbosa: passaram a auxiliá-los na conquista dt: outros territórios em
Estabelecidos cm Pernambuco e contando com o presti­ regiões mais distantes, tais como Ceará, Serra de lbiapaba,
moso auxílio dos tabajaras, os portugueses prosseguiram a Maranhão etc. Conforme a autora, além das conquistas, esses
expansão, mal.ando e escravizando milha�es de índios. Não (ndios participavam também de expedições punitivas contra
_ _
tardariam, no entanto, a desagradar aos propnos altados, q ue llldios que, já inseridos no mundo colonial, se revoltavam.
acabaram se voltando contra eles. A tentativa (rustrada dos Guerreiros pot iguaras comandados pelo Principal Zorobabé
portu gueses de escravizar Piragibe, grande chefe tabajara, e foram enviados à Bahia para enfrentar os ainiorés sublevados,
seus guerreiros, 4ue haviam prestado valorosos se:v1ços nas entre 1 602 e 1604. Convém lembrar que os índios participa­
entradas no sertão do São Francisco, resultou em violenta re­ �am dessas expedições também movidos por seus próprios
ação contra eles. Além de matarem e comerem os portugue- interesses.
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A instigante atuação de Zorobabé após um combate vito­ motivações e interesses dos índios em situações de contato.
rioso em um quilombo na Bahia não deixa dúvidas a respeito Os próprios critérios de liderança deviam também se alte­
disso. De acordo com John Hemming, submetido o mocambo, rar conforme os contextos vividos. Os índios perdiam muito,
poucos escravos negros foram devolvidos aos seus donos " ... não resta dúvi.da, mas aproveitavam os possíveis ganhos nas
porque os gentios mataram muit0s e o Zorobabé levou alguns situações violentas com que se deparavam. Passavam a valo­
9ue foi vendendo pelo caminho para comprar uma bandeira
rizar n?vos símbolos de poder associados aos portugueses, tal
de campo, tambor, cavalo e vestidos com que entrasse triun­
como fizera Zorobabé.
fante na sua terra" (Hcmming, 2007:260). Segundo Frei Vi­
Os índios potiguaras iriam, ainda, nos séculos seguintes,
cente de Salvador, o Principal queria ser saudado também
por Piragibe (o grande chefe labajara), que teria, no entanto, exercer importantes papéis nas guerras coloniais. Por ocasião
da invasão holandesa, dividiriam seu apoio entre os portu­
se recusado a ir prestigiar o colega, alegando que, exceto em
gueses e os holandeses. A divisão do grupo entre as alianças
tempo de guerra, só esperava no caminho as mulheres. Como
Zorobabé não era mulher e não vinha para lutar, não se levan­ com uns e outros tem sido bastante explorada cm estudos
taria de sua rede para fr saudá-lo. Instigante narrativa que rec�nt�s, demonstrando que, apesar dos imensos prejuízos,
_
reafirma a competição entre os líderes por reconhecimento os tndios agiam a partir de suas próprias compreensôes e in­
e honra entre si e entre os seus comandados, bem como a teresses. A rica correspondência entre Felipe Camarão, Pedro
apropriação dos símbolos de prestigio do mundo europeu. A Poti e Antonio Paraupaba, lideres potiguaras que se posicio­
ausência de Piragibe na saudação não impediu o momento de naram em campos diversos (o primeiro foi aliado fundamen­
glória de Zorobabé. Segundo Hemming, os potiguares " ...se tal para os portugueses e os dois últimos para os holandeses)
postaram na beira do caminho que levava à aldeia, numa filei­ demonstra a consciência desses índios sobre a força dos seus
ra que se estendia por muitos quilômetros". O grande chefe aliados e o papel que eles próprios tinham a desempenhar em
"entrou nela com seu belo traje, montado no seu cavalo, pre­ suas guerras, com os possíveis ganhos ai associados. PinaH­
cedido por um porta-estandarte e ( ... ) 'um índio valente com zada a guerra contra a Holanda, muitos índios se refugiaram
_
espada nua [desembainhada], esgrimindo e fazendo afastar a na Serra de Ib1apaba, onde alguns anos depois, por iniciativa
gente gue era inumerável"' (Hemming, 2007:260-261 ). De­ do p�dre �tonio Vieira, seria estabelecida uma grande al­
_ ,
masiado prestígio, no entanto, despertou suspeitas entre os dei.a Jesu1uca. Os índios de Jbiapaba iriam se tornar baluartes
portugueses, e Zorobabé acabou sendo aprisionado e enviado de defesa da região e seus lideres iriam, até bem avançado
_
a Lisboa. Embora o desfecho do episódio tenha sido desfavo­ o se� lLIO XVIll, usufruir de considerável poder de barganha
rável, não há como negar que o grande chefe soube valer-se devido a essa condição.
da aliança com os lusos para crescer e se fortalecer diante dos
seus pares e dos seus comandados. A conquista da capitania da Bahia, Ilhéus e Espírito Santo
Várias outras lideranças fizeram o mesmo, o que reafir­ Na Bahia, no século XVI. os portugueses foram inicial­
ma a questão anteriormente colocada sobre as mudanças de mente bem recebidos pelos tupinambás, influenciados pelo
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conhecido Caramuru, que akançara grande prestígio entre submeter índios hostis que, na década de 1 550, combatiam
os índios, porém os conilitos não tardaram cm consequência violentamente emre o sul da Bahia e o Rio de Janeiro.
das escravizações indevidas, abusos e traições. F:rn reação, os O massacre de Mem d e Sá contra os tupiniquins de Ilhéus
índio,; expulsaram os por1ugueses que, indo para o sul, foram contou com o auxílio de seus antigos inimigos tupinambás
bem acolhjdos pelos tupiniquins, para logo retornarem dian­ que, uma vez vencidos, passaram a engrossar as fileirac; das
te <la informação de que os tupinambás, por intermedfação suas tropas. Foi um verdadeiro banho de sangue relatado por
de Caramuru, estariam dispostos, novamente:, a recebê-los. vários cronistas. Gabriel Soc1res de Souza referiu-se a mais
Surpreendidos, no entanto, por um naufrágio, foram todos de 30 aldeias queimadas, enquanto Frei Vicente de Salvador
mortos e comidos, com exceção de Caramuru. l·m 1 549, tal­ falou em 70 e, de acordo com um jesuíta, teriam sido 160.
vc1 de novo influenciados por Caramuru, º" tupinambás de­ Muitos índios foram morto'i, outros fugiram para o sertão,
ram boas-vinda'> ao primeiro governador geral, Tomé de Sou- in�s houve também aqueles que ingressaram nas aldeias je­
.
1a. Essa paz, no entanto, mais uma vez não seria duradoura. swtt �a �, passando a compartilhar com antigos inimigos novas
.
O terceiro govctnador geral, Mem de Sá, ao chegar à Bahia, poss1b1ltdades de sobrevivência nd colônia.
não teve a sorte de seu antecessor. Encontrou os Lupinambás P.ssas guerras do sul da Bahia foram se estendendo e pre­
cm pé de guerra e não teve duvidas sobre ,1 necessidade de parando o caminho para a grande guerra pela conquista da
aniquilá-los. Guanabara, que envolveria enormes contingentes indígenas
Os tupiniquins da capitania ele Ilhéus que, por sua vez, e europeus. Entre a baía de Todos os Santos e a baía de Gua­
tinham recebido bem os portugueses, não tardaram a mudar nabara, estendia-se uma longa f.iixa costeira de 750 milhas
de atitude. A1. doenças importadas, o trabalho extenuante, dividida por D. João U I em quatro capitanias (Uhéus, Porto
as escravizações e atitudes traiçoeiras dos porl ugueses logo Seguro, fapírito S.imo e São Tomé} que, nas décddas de 1540
os levaram a voltar-se contra eles. No decorrer da década de e 1550, foram palco de violentas guerras entre os índios e os
1550, desencadearam forte reação contra os antigos aliados. colonizadores.
Para o seu grande azar, no entanto, sua revolta ocorreu quan­ Nas capitanids do Espírilo Santo e de São Tomé, os índios
do Mem de Sá já havia vencido os tupinambâs, que passaram nào d�va '.n tré? ua aos colono<;. Na primeira, os goitacdzes e os
_
a auxiliá-lo na guerra coutra eles. Paralelo às campanhas mili­ tup1mqu111s aJJclíam-se e mataram o representanle do donatá­
tares, o terceiro governador impunha novas regras aos indios rio, queimaram engenhos e destruíram a cidade, obrigando
aliados, ao mesmo tempo em que os reunia em grandes al­ os colonos a abandonar a capitania, de forma que, em meados
deias, satisfazendo o projeto dos jesuítas. Nóbrega e Anchieta de 1550, apenas um pequeno grupo de colonos ali sobrevivia.
exult.:ivam com a nova política que enchia as aldeias de indios. U pouco mais ao 'iUI, na pequena capitama de São Tomé, os
'?
Aterrorizados com a situação de guerra enfrentada nos ser• goitacazes eram os terríveis e principais inimigos dos colonos
tões, eles pediam a paz e se aldeavam. Assim, num espaço �e �ue oi. impediam de se estabelecer na região. Í 11 dios de língua
aproximadamente I O anos, o terceiro governador conseguiu Je, portanto tapuias, e pouco conhecidos dos portugueses,
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Os índios na história do Brasil 57

eram descritos com características extremamente negativas:


mes, a esses qualificativos. Afinal. combateram os colonos
ferozes, bárbaros e cruéis.
enquanto puderam. Uma vez vencidos, voltariam a colaborar
Convém atentar, no entanto, gue tais características foram
com os portugueses, aJdeaado-se e buscando novas altcroa­
construídas, desenvolvidas e assumjdas pelos colonizadores
Livas para sobreviver na colônia. Conquistadas essas regiões,
e índios no processo histórico de suas relações de contato. De
início, os goitacazcs colaboraram com os portugueses, tendo estava aberto o caminho para a grande investida contra os
_ tamoios e os franceses no Rio de Janeiro.
contribuído para um bom inicio d a ca �tlama doada a Pero
_ _
de Góis. lriam se tornar ferrenhos mumgos dos portugueses A conquista da Guanabara
após a traição do comerciante � enriguc �� is, gue �o�vidou �
A conquista da Guanabara deu-se após intensos e violen­
chefe goitacá a visitar seu nav10 e o apns10nou ex1gmdo res­
gate. o pagamento não o impediu de rn tr�gar o chef� a gru­ tos combates que envolveram grupos indígenas, franceses e
portugueses. Nela se evidenciam também a flexibilidade de
pos rivais para a execução rilllal. Enra1vec1dos, �s g�1tacazes
relações entre os grupos envolvidos e os vários interesses que
destruíram os estabelecimentos da pequena cap1ta111a e der­
os motivavam. Cabe, pois, questionar a tradicional divisão
rotaram todas as expedições contra eles enviadas. A capita ?ia
dos combatentes em campos nitidamente delimitados: ponu­
não mais se recuperou, apesar dos esforços de P�ro de ?º'._ s.
gueses e temiminós, de um lado, e franceses e tamoios, de ou­
os goilacazes adquiriram reputação de �er�zes e invenc1ve1s,
tro. Uma análise mais cujdadosa da documentação, levando­
reputação essa que talvez tenha contribu1do �?ra que eles
_ se em conta os interesses e ações dos índios, revela relações
obtivessem algumas décadas de sossego a mais, Jª que a gran­
_ muito mais complexas.
de investida contra eles só se daria no inicio do seculo XVU.
Os tupinambás da Guanabara (tamoios) nem sempre fo­
Convém alentar aqui novamente para as possíveis rnudan-
ram inimigos dos portugueses. Pero Lopes de Souza informa
ça,s de comportamentos. características e identidades. mwtas
. . terem sido acolhidos com muita gentileza quando a expedi­
vezes inicialmente dadas pelos colomzadores, pore:n �ssu� t-
ção de seu irmão, Martim Afonso de Souza, ali permaneceu
das pelos grupos indígenas, conforme as circunstancias h1s­
_ por três meses para construir embarcações. Desde 1525, no
tóricas e por forte influência do contato co� �s estrangeiros.
_ entanto, esses indfos já md.Otinham relações contínuas com
se para alguns grupos indígenas a sobrev1venc1a estava na
_ os franceses. De acordo com Anchieta, voltaram- se contra os
aliança com os europeus, para outros ela podia �star no e11-
portugueses por injustiças e maus-tratos e receberam bem os
frentamento e na construção de uma imagem ternficante que
_ franceses que não lhes causavam agravo.
Linha O efeito de despertar o medo nos inimigos e man�e -los
O estabelecimento dos portugueses em São Vicente e suas
distante�. pelo menos por u.m certo tempo. A fama de � arba­
relações de amizade com os tupiniquins, contrários aos ta­
ros, cruéis e implacáveis inimigos construída por colonizado­
moios, devem, evidentemente, ter acentuado as hostibdades
res e índios deve, sem dúvida, Ler servido, de alguma f�rma,
destes últimos. Some-se a isso o contato cada vez mais estreito
aos goitacazes, que acabariam fazendo jus, segundo os infor-
dos tamoios com os franceses que compravam a madeira por
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melhor preço e os atiçavam contra os lusos. Em meados do tração dos jesuítas, tornou-se baluarte de defesa da região.
século, a presença francesa na Guanabara já era bastante sig­ Passaram, então, a aparecer nos documentos como temimi­
nificativa e, a julgar pelos relatos, suas relações com os índios nós. Anos mais tarde, não seria difícil aos portugueses obter
eram bem mais harmoniosas que as dos portugueses. Não fal­ o apoio de grande parte desses índios, então liderados por
tavam, pois, razões para os tamoios incrementarem suas ex­ Arariboia, para voltar às terras de origem e dar combate aos
pedições guerreiras contra os portugueses e os tupiniquins, tamoios e franceses.
causando sérias ameaças aos colonos estabelecidos em São Vi­ Segundo o jcsuitc1 Simão de Vasconcelos, a guerra pela
cente e no Espírito Santo. Estes, por sua vez, também instiga­ conquista do Rio de Janeiro contra os tamoios e franceses
vam seus aliados contra os tupinambás do Rio de Janeiro. foi para os chamados temüninós a oportunidade de exerce­
Em 1555, os franceses já estavam estabelecidos na ilha que rem a mais cruel vingança contra seus antigos Lniroigos. De
passou a se chamar Villegaignon e pretendiam fundar ali uma acordo com seu relato, escrito no século XVII, os tamoios e
colônia francesa, a França Antártica. A baia de Guanabara os temiminós andavam no Rio de Janeiro em guerras cruéis,
tornara-se um reduto antilusitano e a guerra colocava-se para dest.ruLndo-se e enmendo-se uns aos outros, quando estes úl­
os portugueses como uma necessidade de conquista territo­ Hmos conseguiram, com o aLDdlio dos portugueses, escapar
rial e religiosa, já que o combate se daria também contra os para o Espírito Santo.
hereges protestantes. Desde 1557, Nóbrega propunha a fun­ Essa aLiança entre os temiminós e os portugueses expres­
dação de uma cidade no Rio de Janeiro, como única forma sa a mútua dependência entre os grupos envolvidos e os di­
de defender a região e impedir os franceses de amotinar os ferentes interesses que os motivaram ao acordo, cada gual
indi.os. Um ano depois, Mem de Sá referia-se à gravidade da relacionado à dinâmica de suas respectivas organizações so­
situação no Rio de Janeiro e propunha fortificar o Espírito ciais. Se os portugueses viam a conquista da Guanabara como
Santo que deveria ser, segw1do ele, a barreira contra os fran­ possibilidade de estender a administração lusa nas 1erras da
ceses para o norte e ponto de ataque para expulsá-los do Rio �mérica, para os índios chamados tellliminós ela devia sign i ­
de Janeiro. Para isso, os portugueses iriam contar com a ajuda ficar a grande oponunldade de regressar às suas terras e com­
de aliados muito especiais: os i11dios do Gato, que iriam se bater inimigos. As alianças e conflitos nessa guerra demons­
tornar os fiéis temiminós de Arariboia. tram ta mbêm a flexibilldades das relações, não apenas com os
Antes da conquista da Guanabara, esses índios aparecem europeus, mas também entre os próprios grupos indígenas.
na documentação como índios do Gato ou Maracajá que, li­ Convém atentar, ainda, para algumas informaçôes sobre
derados por Maracajaguaçu ou o Grande Gato, estavam em 0� temiminós que apontam para a possibilidade de estarmos
guerra com os tamoios. Em 1555, sentindo-se seriamente d�ant� de uma etnia construida no contexto de guerra colo­
ameaçados pelos inimigos, pediram e obtiveram dos por­ nial. E provável que eles fossem um subgrupo tupinambá, no
tugueses auxílio para se aldearem na capitania do Espírito sentido mais restrito do termo, isto é, um grupo tamoio que,
Santo. Formaram uma populosa aldeia que, sob a admiois- no momento do encontro com os portugueses, vivia uma si-
t,(l FGV de Bolso Os índios na história do Brasil bl

tuação de conflito com seus vizinhos. Afinal, de início, eles de alianças, inimizades e identidades que iam surgindo nas
aparecem nos documentos apenas como os índios do Gato ou diversas situações, sobretudo em épocas de guerras intensas,
Maracajá. Cabe aqui retomar Varnhagen '!,ue, a� 1:atar das como as da costa brasileira em meados do século XVI.
auto-denominações dos índios dessa reg1ao, referiu-se aos Para os índios do Gato, a aliança com os portugueses e a
que por não quererem " ... esquecer sua procedência dos ta­ nova condição de índios aldeados significou, com certeza, a
moios (avós), chamavam-se tcmiminós (netos)...", enquanto segurança, cada vez mais difícil de ser alcançada nos sertões
outros se chamariam tupinambás. Disse, ainda, que alguns onde as guerras e escravizações se intensificavam. Se assumi­
"... vizinhos os tratavam por tupiniquins, ou quando contra ram uma nova identidade éLnica perante os europeus, podem
cllcs assanhados e cm guerra, por Maracayás ou Galos bra- não ter abdica. d o de ouLras formas de identificação entre si e
vos" (Varnhagen, s/d:19, v. 1). com os demais grupos com os quais interagiam. Afinal, se as
.
Essa informação somada à escassez de maiores inl.ormações identidades étnicas são históricas e mültiplas, não há razões
sobre os Lemiminós da Guanabara permite pensar na possibi­ para duvidar de que os índios podiam adotar para si próprios
Udade de estarmos diante de uma reconstrução identitária a
e para os demais identidades variadas, conforme circunstân­
partir das relações e dos imeresse.� tanto do� índio � 3uan­
cias e interesses. Mais importante do que tentar descobrir
to dos estrangeiros. Apontam Lambem para a 1mprec1sao das
quem eram originalmente os índios do Gato, questão prati­
classificações étnicas já anLeriormcnLe abordadas. As deno­
camente impossível de ser desvendada, cabe reconhecer o
minações étnicas, com suas respectivas qualificações (mansos
processo complexo e dinâmico do contato e de rearticulação
ou selvagens) e características, princi �almcnle de alianç as e
. constante de interesses e alianças. Fossem eles quem fossem
inimjzades entre uns e outros, constnuam-se, nessas conjun­
antes das relações estreitas com os portugueses, tornaram-se,
turas de guerra, estimuladas por interesses e motivações tan­
to dos portugueses quanto dos índios. Estudos recentes, em depois delas, os temiminós de Arariboia. Eram os grandes ini­
diferentes regiões e temporalidades, têm demonstrado que migos dos tamoios e, pri nci pa Imente, os fiéis aliados dos por­
_ tugueses, característica básica do grupo que, se foi proposta
não são poucos os grupos indígenas que, ao reconstruirem
relações, reconstrwam também suas formas de identificação ou inventada pelos portugueses, parece ter sido amplamente
com os grupos com os quais se relacionavam. assumida pelos índios que fizeram questão de mantê-la até,
. , . pelo menos, o final d o século XVIII, conforme veremos mais
As jnfonnaçõcs imprecisas e mujta vezes contraditonas
do:; documentos não nos permitem acompanhar passo a pas­ adiante. Foi essa identidade que lhes deu ganhos na violenJ·a
so a trajetória dos temiminós. nem tampouco a � e Ara_riboia, situação de guerra da costa brasileira.
sobre o qual as controvérsias são inúmeras. Não e possivel se­ Seu apoio foi fundamental para a vitória dos portugueses.
. Vencida a guerra e criada a capitania do Rio de Janeiro, per­
quer saber ao certo quando teria regressado ao Rio de J� ne�?·
Porém, muüo mais do que buscar verdades sobre a tra.ietona tencente à Coroa, era preciso recompensar ou castigar seus
de Arariboia ou dos temiminós, importa reconhecer nessas protagonistas e ao mesmo tempo garanúr a soberania portu­
informações as possibilidades de rearticulação e construção guesa na região. Arariboia queria regressar a sua aldeia, mas
b2 FGVde Bolso Os indios na história do Brasil bl

Mem de Sá pediu que ficasse na Lerra com seus índios para 0 mesmo vaivém entre alianças e conflitos dos diversos grupos
" ... ajudar a povoá-la por ser do rei, a quem nisso fazia ser­ étnicos, tal como visto nas guerras quinhentistas. As tropas
viço, e que pedisse para si e para os seus as terras que neces­ dos portugueses compunham-se, como nas demais regiões,
sitasse..." (Si.lva, 1854: 164). As terras escolhidas foram doadas de um número significativo de índios aJdeados, porém estes
por escritura pública e Carta de Sesmaria de 1 568 e nelas se incluíam os mais variados grupos de tupis e tapuias. Grupos
estabeleceu a aldeia de São Lourenço, que viria a constituir que ora se enfrentavam, ora se associavam nas experiências
importante baluarte de defesa da cidade. O castigo dado aos das guerras, para muitas vezes se reunirem e se misturarem
inimigos serviria também à ordem coloniaJ: os tamoios aprisio­ nas aldeias coloniais. Paralelamente às campanhas militares,
nados foram oferecidos como escravos legítimos aos combaten­ os portugueses procuravam, com o auxilio dos missionários
tes da guerra em recompensa pelos serviços prestados à Coroa. jesuítas e capuchinhos, estabelecer acordos e pazes com al­
guns grupos que ingressavam nas aldeias e os ajudavam no
E, para além do século XVI, as guerras continuam ... combate aos inimigos, tal como haviam feito com os grupos
Conquistadas as principais regiões da colônia, as guerras tupis inimigos. Os inctios das aldeias continuavam tendo im­
indígenas prosseguiriam nos séculos seguintes. Entre elas, portante íunção defensiva contra índios hostis, o que conce­
cabe destacar a chamada Guerra dos Bárbaros que, nas últi­ dia a eles considerável poder de barganha com as autorida­
mas décadas, tem merecido maior atenção dos historiadores. des. Continuavam também mudando de lado, cada vez que
Pedro Puntoni e Cristina Pompa revelam a complexidade des­ considerassem mais proveitoso o campo adversário. N o nor­
ses conflitos e da-; relações entre os diversos grupos tapuias deste, tanto a guerra contra os holandeses como a guerra dos
neles envolvidos. Puntoni desconstrói a ideia da existência de bárbaros são fartas em exemplos nesse sentido.
uma guerra geral dos índios bárbaros conlra o império por­ Cabe observar também a imensa interação entre os índios
tuguês. Segundo ele, essa concepção partiu do olhar europeu a1deados e os índios do sertão, não apenas no sentido de que
sobre as resistências indígenas e se apresenta nos documentos eles passavam facilmente de uma condição para outra, mas
coloniais, razão pela qual acabou sendo incorporada pela his­ também no que diz respeito às relações intensas que man­
toriografia. Assim, os inúmeros confütos com especificidades tinham entre si. Sobre isso é interessante observar o epi­
variadas que se estenderam por quase um século ( 1650-1720), sódio narrado por Cristina Pompa, no qual alguns índios
numa vastíssima extensão territorial do nordeste (do leste da aldeia de Pambu no Rio São Prancisco, administrada por
do Maranhão ao norte da Bahia), envolvendo uma enorme capucbinhos, foram escravizados Junto aos seus parentes
diversidade de grupos indígenas, foram convencionalmente cariris de Canabrava, quando tinham ido visitá-los. O fato
chamados de "Levante Geral dos Tapuias" ou "Confederação não deixa duvidas sobre a ex1rema mobilidade dos grupos
dos Cariris". De fato, blocos monolíticos mmtarizados, com na área. Outro aspecto importante ressaltado por Pompa é a
tapuias de um lado e portugueses com ínctios aldeados de o u ­ rede de relações entre os índios não aldeados e os vaqueiros
tro, não exisliram. Ao invés disso, observa-se nessas guerras nos sertões. que se evidencia na proposta dos pdrLugueses
FGVde Bolso Os indios na história do Brasil

de alrair os grupos que os combatiam, aproveitando as boas numa região e vendidas em outra. Os paiaguás, por exemplo,
relações que tinham com os vaqueiros. A autora cita vários íam , muitas vezes ricamente vestidos, "vender porntgueses,
testemunhos da convivência pacífica dos índios dos sertões mamelucos, negros e mulatos na cidade do Paraguai" (KOK,
com os moradores. 2004:1 40). Táticas de guerra europeias foram também ampla­
As complexas relações entre grupos indígenas das aJdeias mente apropriadas por esses índios que aprenderam a mane­
e dos sertões, entre si, e com os não índios, nas várias s.itua­ jar armas e a fazer uso do cavalo, prática essa que notabilizou
ções de guerra. desconstroem a ideia de oposição rígida entre os guaicurus como exímios cavaleiros.
o sertão e a colônia, entre índios mansos e índios selvagens Nos sertões de Goiás. as relações entre os xavantes, xc­
ou entre os chamados estados de barbárie e de civilização. renLCs, caiapós e avá-canoeiros, no fim do século XVLli e no
Essas divisões estavam muito mais presentes na legislação e XIX, não eram muito diferentes, como demonstraram Mary
nos discursos de autoridades. coJonos, missionários e até das Karach e David McCreery. A tenaz resistência desses grupos
próprias lideranças indígenas do que no cotidiano dos ser­ contra a i11vasão de suas terras implicou também em conílítos
tões, aldeias e vilas, onde as misturas eram grandes. sangrentos, alianças esporádicas, acordos com auroridades.
Os índios dos sertões não viviam absolutamente isolados traições, apropriações culturais, idas e vindas entre sertões e
do mundo colonial. Entravam e saíam dele conforme possi­ aldeias e, inclus.ivc, reconstruções identitárias. A documenta­
bilidades e circunstâocias. Vários estudos sobre regiões de çJo analisada pelos autores informa que xavantes e xercntes
fronteiras internas e externas revelam as múltiplas e variadas deviam ser C> mesmo grupo que, no início do século XIX, teria
relações bélicas, culturais e comerciais entre índios aldeados, se dividido no contexto das guerras. O grupo que se aldeara
índios dos sertões e não índios. Tais relações alteravam-se passou a ser chamado xerente e a colaborar no combate aos
consideravelmente pela intensificação de conllitos e avanços xavantes ainda hostis. Isso teria ocorrido, já no inicio do sé­
sobre novos espaços. No século XVIIT, tornaram-se muito cuJo xrx, quando a reputação dos xercntes foi se tornando
mais acentuadas, já sob a inJluência da legislação pombalina cada vez mais positiva, se comparada a dos xavantes. Por vol­
que incentivava misturas e interações. ta de 1830, no entanto, essa boa imagem começou a desapare­
Na capitania de Mato Grosso, as relações interétnicas e cer quando os xercates retomaram as hostilidades e voltaram
de poder entre os caiapós, guaicurus e pajaguás alterav�� ­ a ser dcmonizados. Mais uma vez se constata a fluidez das
sc diante das investidas dos portugueses sobre seus ternto­ r�lações e também das gualificaçôes atribuídas aos grupos in­
rios, conforme demonstrou Gloria Kok. Como tantos outros d1genas que de mansos passavam a selvagens e vice-versa.
já citados, esses grupos também passavam do� conflitos às As guerras indígenas se estenderiam pelo século XIX. O
_
alianças e igualmente jogavam com o antagonismo político maior exemplo dessa continu.idade foi, sem dúvida, a deda­
dos europeus. Curioso é perceber sua inserção esporádica nos ração de guerra justa do Príncipc Regente D. João, em 1 808,
_
circuitos mercantis da colônia, na medida em que comercia· contra os botocudos. logo estendida aos kaingangs. Os s e r ­
lizavam gado e outras mercadorias. muitas vezes roubadas tões d e Minas Gerais e do Espírito Santo (botocudos), bem
FGVde Bolso Os indlos na história do Brasil b?

como os campos de Guarapuava (kaingangs) eram, no início pressão de colonos e autoridades para obter da Coroa a sanção
do oitocentos, áreas consideradas infestadas por esses grupos oficial para investidas gue nunca haviam cessado.
indígenas hoslis que deviam ser combatidos. Nos chamados No entanto, se ela não iniciou a violência, teve o efeito de
serlões do leste, botocudos, puris, coropós, coroados e mui­ ampliá-la. Guido Marlierc, responsável pela chamada "paci­
los outros grupos indígenas mantinham relações de enfrenta­ ficação" dos botocudos, não cansou de denunciar as injus­
mentos e alianças entre si e com outros agentes sociak Puris tiças e atrocidades contra eles cometidas, alertando para o
e botocudos destacavam-se, pelos relatos, como os principais fato de que as ações dos índios eram, em grande parte, de­
responsáveis pelo impedimento do avanço da colonização. sencadeadas pela violência dos colonos e miliLares. De 1808
Foram os botocudos, no entanto, os inimigos por exce­ a J82J, inúmeras expedições foram enviadas para combatê­
lência, aqueles para os quais se construíram as imagens mais los. Na medjda em que cresciam os conflitos com os índios,
terrificantes que predorofoaram até o século XX e justificaram muJtiplicavam-se as descrições negativas sobre os botocudos.
urna política indigenista extremamente agressiva. Poram vis­ A imagem de ferocidade veiculada em discursos dos políticos
tos como ferozes, cruéis e inimigos implacáveis não apenas e na imprensa estimulava as ações de violência contra eles e
dos portugueses, mas também de outros índios. Essa repu­ acirrava os ânimos.
tação, no entanto, construída a partir dos interesses dos co­ Os botocudos, por sua vez, opunham-se às invasões, de­
lonizadores pode ter servido também aos botocudos, pelas senvolvendo estratégias variadas entre combates, acordos e
mesmas razões anteriormente apontadas para os goitacazes. cooperações. Os ataques desses índios, no entanto, não de­
O medo despertado nos inimigos podia mantê-los a distância, vem ser vistos como meras respostas às violências contra eles
pelo menos por certo tempo. perpetradas. Na complexa análise de Langfur, os índios não
Na verdade, essa imagem foi útil também aos interesses da aparecem como selvagens, nem tampouco como vítimas inde­
Coroa que, no período da mineração, proibia a circulação na• fesas das bandeiras. Sem aprofundar a discussão sobre os bo­
quelas áreas para evitar os desvios do ouro, conforme destacou tocudos, cabe situá-los como povos de Ungua macro--jê, que,
Hal Langfur. A presença ali de "índios seJvagens" contribuía como tantos outros, dividfam-se em vários subgrupos sobre
para dificultar o acesso à região. No entanto, apenas dificulta­ os quais ainda não há consenso a respeito de algumas de suas
vam, pois segundo o autor, desde meados do xvm, colonos e características e identificações. Izabel Missagia apontou as ri­
autoridades em Minas Gerais desobedeciam às ordens da Coroa validades entre os subgrupos botocudos e diferenças de com­
e procuravam se expandir por aquelas terras proibidas e, nessa portamento quanto às relações que estabeleciam com os por­
expansão, acirravam os conflitos com os índios. Entre l 760 e tugueses. Alguns se aliavam, enquanto outros se mantinham
1808, inúmeras bandeiras foram ao sertão e todos os governa­ hostis, o que não os impedia de unirem-se, eventualmente,
dores de Minas Gerais desse período foram, segundo ele, fa­ para combater um inimigo comum.
voráveis a políticas violentas contra os índios. A Carta Régia As guerras dos botocudos, nos sertões do leste, desperta­
de 1808, que declarou a guerra justa, resultou, na verdade, da ram especial atenção da Corte portuguesa no Brasil, porém
FGVdeBolso
05 índíos na hístória do Brasil

cm sertões mai11 distantes, outros grupos também desafiavam,


eram flexíveis e complexas, podendo passar lacilmentc de um
com suas guerras, a expansão das fronteiras lusiLanas: os mu ­ es�ado pc1 r� outro, como demonstram vários estudos. es-,as
ras e os mundurukus no Amazonas, os kayapos nas fronteiras _
nmturas m�m se intensificar com ao; reforma,; pombalinac;,
entre Minas Gerais e Goiás e muitos outros, incluindo os kain­ como se �era mais adiante. Por ora, cabe repensar a vivência
gangs contra os quais também se decretou guerra justa. Sobre e as rel,H,:oes dos 111dios nas aldeias coloniais.
eles comtruíram-se também imagens extremamente ncgati­
va1, e estereotipadas que incentivavam a violência de colonos
e militares. A cana regia de 1 808 foi finalmente revogada em
1831, mas as guerras indígenas continuariam no decorrer do
oitocentos, incluindo inumeros grupo,; já aldeados. entre os
quais os próprios botocudos que, cm 189 3, desencadearam
um grande levante na aldeia de ltambacuri, como destacou
Mi11sagia.
O quadro aqui apresentado não deixa dúvidas sobre a ex­
tensão e a violência da,; inúmeras guerras indígenas coloniais
e pós-colonia1s. Os dilerentc1- povos indígenas da América,
guerreiros em sua grande maioria, viram-se envolvidos cm
guerras muito mais amplas e participaram delas intensa­
mente. Perderam muito. não resta dúvida. ma!> moviam-se
por interesses próprios, buscando as alianças que melhor
lhes servissem, razão pela qual mudavam de lado com tan­
ta frcqu&ncia. Nào foram apenas os índios aldcados, ou os
"mansos" das aldeias que colaboraram com os portugueses.
Os chamados "selvagens" dos sertões não estavam tão dis•
tantes do mundo colonial. l:!ntravam e saíam dele, fosse para
roubar, para negociar, ou para estar numa aldei,1 por algum
tempo e depois abandoná-la. Essa participação implicava em
aproximações e alianças com vários outros agentes, tais como
índios (aldcaJos ou não), comerciantes, autoridades, missio­
nários etc., o que conduz à desconstrução da ideia de blocos
monolíticos para se pensar sobre índios doe; senões, índios
da11 aldeia-; e não índios. As alianças e hostilidades entre eles

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