Você está na página 1de 10

Alianças entre os índios e os

portugueses na Amazônia colonial


Rafael Ale Rocha∗

O objetivo deste artigo é demonstrar


Resumo como as políticas indigenistas e as políti-
cas indígenas se relacionaram na Amazô-
Este artigo, pela análise das alianças
nia durante a segunda metade do século
firmadas entre índios e portugueses na
XVIII, por meio de uma prática específica:
Amazônia, pretende analisar as rela-
as alianças acordadas entre índios e portu-
ções entre as políticas indígenas e as
políticas indigenistas na região duran- gueses. Tentaremos mostrar que o acordo
te a segunda metade do século XVIII. de aliança entre as duas partes era uma
Para tanto, levaremos em consideração política de suma importância para a sobe-
o contexto do período e os interesses da rania portuguesa em regiões fronteiriças;
Coroa portuguesa (representada pelos por outro lado, a aliança poderia represen-
oficiais coloniais) na negociação das tar uma estratégia de sobrevivência das
alianças. Por outro lado, tentaremos lideranças ou grupos indígenas.
entender os interesses e as políticas Em relação aos portugueses, os in-
dos índios em relação à mesma prática: teresses em firmar aliança com os índios
a firmação de aliança com os brancos. são mais conhecidos. Antes mesmo do pe-
ríodo pombalino, de acordo com Carvalho
Palavras-chave: Amazônia colonial.
Jr., a conquista do sertão amazônico deu-
Políticas indígenas. Políticas indige-
se por meio de alianças com as sociedades
nistas.
indígenas ali estabelecidas. Desse modo,
os lusitanos arregimentavam aliados nos
embates contra potências estrangeiras e
índios de “corso” – além de garantir o su-

*
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal Fluminense
(UFF).

378
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
primento de mão de obra. O povoamento te da América portuguesa, foram inseridos
do território e a expansão colonial para o nas relações intertribais já existentes. Se-
sertão, portanto, se fizeram pela forma- gundo a autora, no momento da chegada
ção de aldeamentos.1 Durante a segunda dos europeus (franceses e portugueses), a
metade do século XVIII, questões geopo- Guanabara era palco de confrontos entre
líticas específicas envolviam os domínios grupos tupis: os tamoios e temiminós. Em
coloniais pertencente às Coroas ibéricas 1555, o jesuíta Luís da Grã convenceu o
na América portuguesa/espanhola. Assim, donatário de São Vicente, Vasco Fernandes
dada a expansão colonial para o interior Coutinho, a “agasalhar” um principal temi-
da América, por parte dos referidos reinos, minó “que estava de pior partido”. Assim,
tentou-se resolver a questão a partir da os temiminós migraram para a capitania
negociação. Os tratados de limites acorda- do Espírito Santo e fundaram, com o auxí-
dos pelas Coroas de Portugal e Castela – lio dos jesuítas, um populoso aldeamento.
o Tratado de Madri (1750) e o Tratado de Posteriormente, retornando à Guanabara,
Santo Ildefonso (1777) – resultaram dessa ajudaram os portugueses na guerra contra
política de negociação. os franceses e seus aliados comerciais, os
Tendo em mente que um dos princí- tamoios. Nessa contenda, de acordo com
pios do tratado de 1750 era o uti possidetis Celestino de Almeida, os temiminós visam
(a terra pertence a quem ocupa), nas re- uma oportunidade para “exercerem a mais
giões fronteiriças da América portuguesa – cruel vingança contra seus inimigos e an-
especialmente aquelas referenciadas pelo tigos vencedores”.2
Tratado de Madri (1750) – a conquista e o Nesse sentido, os índios se relacio-
povoamento do território colonial por meio navam com os europeus segundo parâme-
da aliança com as comunidades indígenas tros tradicionais, que, em consequência do
foi uma política amplamente utilizada contato e/ou da convivência desses índios
pela Coroa portuguesa. No que se refere com os brancos, estavam em constante mo-
aos índios, além da necessidade de barrar dificação. Sendo a guerra – caracterizada
a violência da expansão colonial, para en- por certa fluidez nas relações de aliança e
tendermos os interesses desses agentes na inimizade entre os grupos e motivada pela
aliança com os portugueses devemos levar vingança – um elemento estrutural para
em consideração os embates existentes as sociedades tupis (dava sentido e coesão
entre os próprios grupos tribais ou líderes à comunidade), os brancos haveriam de ser
indígenas. inseridos nesse contexto de conflitos inter-
tribais. Portanto, segundo a autora, os “eu-
*** ropeus entravam na história dos índios e
Em estudo sobre o Rio de Janeiro co- eram por eles inseridos em suas relações
lonial, Maria Regina Celestino de Almeida intertribais como outros que, conforme sua
aborda o modo como os europeus, recém- tradição, viriam incluir-se em suas rela-
chegados ao território que se tornaria par- ções de aliança ou inimizade”.3

379
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
As fontes que coletamos não possi- portuguesa arregimentava leais vassalos.
bilitam o estudo dos parâmetros tradi- Diz o naturalista:
cionais de guerra e aliança dos índios da Fazendo os Sacacas a sua fala a quem go-
Amazônia no período colonial, mas, como vernava o Pará naquele tempo e dizendo-
procuraremos demonstrar a seguir, é cer- lhe que iam buscar a sua proteção e que
concedendo-lhe a mercê de lhe dar cem
to que alguns grupos (ou lideranças) in-
soldados com alguns oficiais para os aju-
dígenas buscaram inserir os portugueses darem a vencer na guerra aquele grande
nas guerras que travavam contra índios inimigo Aruãs, que eles se obrigavam a
inimigos. Observe-se, por exemplo, o caso sustentar os soldados e se sujeitariam ao
dos sacacas da Ilha de Joanes (Marajó). De domínio de El-Rei de Portugal sendo seus
leais vassalos. Foi aceita esta fala e exe-
acordo com o naturalista Alexandre Rodri-
cutada logo mandando-se-lhe um desta-
gues Ferreira, por volta do século XVII,4 os camento de soldados com um capitão com
sacacas viviam em guerra com os aruãs e seus respectivos oficiais.5
eram aliados dos karipunas, nações que,
Outros grupos indígenas da Amazô-
juntamente com os mocoons, os ingaíbas
nia colonial inseriram os brancos em seus
e os mariapãs, habitavam a ilha de Joa-
conflitos contra índios inimigos. No início
nes. Pelos relatos dos aliados karipunas,
de 1700, por exemplo, um aldeamento no
os sacacas “tiveram noticias que se achava
Japurá teve origem a partir de conflitos
gente branca na parte onde hoje é a cidade
travados entre principais. De acordo com
do Pará, o qual era muito valorosa e com
Alexandre Rodrigues Ferreira, o principal
esta fama a procuraram passando a outra
(chefe indígena) manau Baçuriana, habi-
banda da baía em canoas que lhes deram
tante do rio Negro, era “perseguido” pelo
os ditos seus camaradas Karapunas”.
principal Caricuá e seus aliados. Assim,
Assim, vieram à cidade do Pará (Be-
Baçuriana “vio-se obrigado a deixar este
lém) para negociar aliança com o capitão-
rio e retirar-se para o Iupurá”. Sabendo
mor da cidade. Para tanto, os sacacas fo-
da existência do aldeamento de Tefé no
ram intermediados por um “parente”, que,
Solimões (futura vila de Ega), onde missio-
capturado ainda “rapaz” pelos inimigos
nava o padre carmelita frei Francisco de
tupinambás em Joanes, fora batizado, re-
Seixas, Baçuriana, “discorrendo que delle
sidia em Belém e “estava feito capitão da
[do missionário carmelita] dependia a sua
nação Tupinambá”. Segundo o naturalista,
maior segurança, se resolvêo visita-lo, e a
por meio da aliança com os portugueses, os
pedir-lhe um Missionário que com elle vi-
sacacas buscavam auxílio militar na guer-
vesse na sua Aldeã”.
ra contra os aruãs. Tal assistência lhes foi
Francisco de Seixas não possuía um
concedida, iniciando-se, assim, uma san-
companheiro que o ajudasse na missão de
grenta guerra contra os aruãs. Alexandre
Tefé e, portanto, não tinha como atender ao
Rodrigues Ferreira explicita os interesses
pedido do principal. O carmelita informou
de ambas as partes na aliança: os índios
o ocorrido ao provincial frei João Coelho
conquistavam aliados militares e a Coroa
solicitando um missionário para assistir

380
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
o grupo de Baçuriana. Para tal diligên- dos líderes indígenas. Segundo o relato do
cia, João Coelho expediu o missionário governador, em ofício enviado a Sebastião
frei Mathias de S. Boaventura, “o qual to- José de Carvalho e Melo (secretário de es-
mou posse da nova Aldêa do Iupurá, onde tado, irmão de Mendonça Furtado e futuro
erigio uma Igreja, e a caza da rezidencia, Marquês de Pombal), os principais Cucuí,
desempenhando em tudo quanto poude as “que é um dos mais poderosos do sertão”,
funcções do seu ministério”. O principal Emu, irmão de Cucuí e “que também é
e os demais índios, apesar de batizados, poderoso”, Braga, filho de Emu, e Birurá,
não abriram mão das suas concubinas e, também filho de principal, foram a Mariuá
diante do “estranhamento” do padre, re- com o principal João para realizar uma
solveram matá-lo. Por conhecer a língua reunião com Mendonça Furtado. De acor-
dos manaus, o cafuzo José Cardoso, que do com o governador, esses principais “me
“servia” Boaventura, alertou o padre acer- vinham ver e saber o que queria deles”.
ca da intenção dos índios. Assim, Mathias Em resposta, Furtado convidou os
de S. Boaventura fugiu acompanhado pelo principais a ingressarem no grêmio da
cafuzo e encontrou no rio Uniuxy o prin- Igreja (para salvação de suas almas), mas
cipal Camandri, que, a partir de 1728, o também prometeu segurança contra seus
ajudaria a erigir o aldeamento de Mariuá inimigos e a garantia da autoridade que
(futura vila de Barcelos).6 possuíam entre os demais índios dos seus
Apesar do desfecho do relato, parece respectivos grupos. Os principais deve-
evidente que, mais uma vez, os índios bus- riam, entretanto, manter-se sob as leis do
caram o auxílio dos brancos – desta vez um monarca português:
missionário – para intervir em contendas [...] alem de interessante o fazerem-se fi-
travadas com um grupo indígena inimigo. lhos de Deus e salvarem as suas almas,
De igual forma, os interesses de ambos (ín- se lhes seguiam muitos bens temporais,
sendo os primeiros e mais importantes os
dios e brancos) também pareciam estar em
de se livrarem dos seus inimigos e vive-
jogo – ao missionário interessava a cate- rem entre nos com descanso e em vida ci-
quese e ao principal, o refúgio de ataques vil, e que com tôdas estas conveniências,
dos seus contrários. não perdiam a autoridade do governo dos
Durante o período pombalino ocorre- seus vassalos, porque S. Majestade os fi-
cava conservando nele, devendo, porém,
ram casos semelhantes. Em 1755, quando
regular-se pelas suas reais leis...8
tentava realizar suas primeiras negocia-
ções de “descimento”7 no rio Negro, o go- Segundo o governador, esses princi-
vernador do estado, Francisco Xavier de pais aceitaram a proposta e prometeram
Mendonça Furtado, parecia ter entendido a descer, entretanto informaram que no exa-
importância das guerras intertribais para to momento era impossível “dando-me al-
as comunidades indígenas da região. Nes- gumas desculpas, ainda que frívolas, para
se sentido, é interessante observar a argu- pretextarem aquela dilação”. Mendonça
mentação utilizada para atrair a atenção Furtado ainda narrou outras tentativas

381
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
de “redução”, que, apesar de principia- os termos usados pelo padre jesuíta João
das as negociações, resultaram em falsas Daniel). Os muras, ainda de acordo com a
promessas, deserções e levantes por parte historiografia, falavam variadas línguas e
dos índios – originando mocambos. Apesar viviam em grupos dispersos compostos por
do aparente malogro desses descimentos, múltiplas etnias agregadas. Tratava-se da
ao que parece, Mendonça Furtado tinha “murificação”: a adoção de hábitos e costu-
conhecimento dos anseios dessas lideran- mes mura por indivíduos raptados – podia
ças indígenas: visavam à proteção contra envolver negros, mulatos, mamelucos e ín-
índios inimigos e à manutenção da lide- dios que viviam nas povoações coloniais.11
rança sobre os membros dos seus respec- Segundo Ângela Domingues, “chega-
tivos grupos. Vê-se que, como nos relatos va a haver grupos Mura que eram inimigos
que descrevemos, a negociação com esses de outros grupos com a mesma designação
índios também era interessante aos euro- étnica”.12 Realizavam saques em variadas
peus, pois resultaria em “almas” para a povoações da capitania do rio Negro, ata-
Igreja Católica e em “vassalos” fiéis às leis cavam os viajantes, dificultavam a ligação
do monarca. entre as capitanias do Pará e Mato Grosso,
Outro exemplo bem conhecido é amedrontavam a população que ia ao cul-
a aliança acordada entre muras e portu- tivo das roças e, enfim, intervinham nas
gueses, na medida em que, como informa políticas lusitanas para a região. Portanto,
a historiografia,9 os primeiros procuraram a aliança com os muras significava o fim
os segundos porque visavam adquirir um do corso praticado por esta etnia e a ar-
forte aliado na guerra contra os mundu- regimentação de aliados na guerra contra
rucus. Os muras surgiram para os por- os mundurucus – etnia que, assim como
tugueses no início do século XVIII.10 Ori- os muras, habitava a região banhada pelo
ginários da região banhada pelo sistema sistema fluvial Madeira–Guaporé e era co-
fluvial Madeira–Guaporé, iniciaram sua nhecida por ações belicosas contra os por-
expansão – sem a intervenção e influência tugueses.13
dos europeus – por volta de 1723 e 1725 Sobre os portugueses encarados pelos
no sentido norte-sul, através do Madeira, muras como aliados contra os munduru-
e para o oeste, em direção ao Purús. Atin- cus, é interessante observar as opiniões do
giram, nesse sentido, os rios Amazonas, furriel Manoel José Valadão, comandante
Solimões e Negro. do destacamento do lugar de Santo An-
Segundo a historiografia, os muras tônio do Maripi no rio Japurá, acerca da
ficaram conhecidos pelos portugueses primeira negociação de paz entre portu-
como “gentios de corso”: não tinham al- gueses e muras. Em carta de julho de 1784
deias fixas, viviam a saquear as povoações a João Pereira Caldas (governador do Es-
(fossem aldeias ou vilas coloniais) para a tado e Plenipotenciário das demarcações
garantia do seu sustento e possuíam um de limites), Valadão relatou a chegada de
“ódio entranhável aos brancos” (conforme um grupo mura a Maripi, “em termos de

382
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
paz”, no dia 11 do mesmo mês e ano. Po- registro da vila de Borba, Antonio Carlos
rém, o furriel, o diretor (Mathias Fernan- da Fonseca Coutinho, narrou as negocia-
des) e dois soldados da guarnição estavam ções realizadas com dois principais das na-
ausentes da vila. O vigário e outros dois ções Iruré (“que é quem governa a todos”)
soldados, portanto, iniciaram as negocia- e Japuré – líderes agregados a um grupo
ções, concedendo presentes aos muras. Se- mura. De acordo com o relato, uma comi-
gundo Valadão, ao saber do ocorrido, “ao tiva enviada sob as ordens do comandante
meu conhecimento dirigiram-se outros havia chegado à boca do rio Autazes, onde
[muras] para conhecerem a força da povo- encontraram o referido grupo mura acom-
ação e não ao intento que expressaram”.14 panhado pelos mencionados principais.
Assim, de acordo com o relato do furriel, os Os muras não agrediram os portugue-
índios pretendiam analisar a situação do ses, pelo contrário, “antes lhes mostraram
estabelecimento português antes de acor- muito agrado e lhes disseram que queriam
dar a aliança. falar comigo e que logo cá vinham”. Pri-
Os lusitanos, por outro lado, pude- meiramente, chegou a Borba uma comitiva
ram perceber as intenções dos muras no guiada pelo filho de um dos principais (a do-
sentido de solicitar ajuda na guerra contra cumentação não especifica qual) e, dias de-
os mundurucus. Nesse sentido, o tenente- pois, os dois principais mencionados apor-
coronel João Batista Mardel, em carta de taram na vila com “setenta e dois índios de
1768 a Pereira Caldas, informou ter muita arco, nove mulheres, e oito crianças e me
esperança no descimento que os índios do disseram que os Mundurukus lhes tinham
rio Madeira e o principal de Mamiá – após morto muitas mulheres e alguns homens
uma reunião com Mardel em Ega – haviam e tinham vindo com sua gente para o dito
decidido principiar: Autazes”.16 Em resposta à correspondên-
Esperança (outra vez digo) que agora cia do comandante de Borba, datada de 28
me tornaram a ratificar alguns destes de junho de 1786, Pereira Caldas apontou
mesmos índios que ali se achavam e que como a aliança militar beneficiaria tanto
tinham chegado daquelas campinas, tra-
portugueses quanto muras:
zendo a noticia de que os Mundurukus
tinham feito entre os parentes daquele Sabia eu também já da carnagem que o
domicílio horrível carnagem e que tam- outro gentio Munduruku havia feito nos
bém por essa causa se queriam vir ali mesmos Muras. O mau e que reduzindo
estabelecer.15 estes, se venham aqueles introduzir nes-
te rio, e fazer o seu estabelecimento no
Os portugueses puderam aproveitar Autazes, para que se bem livres de uns,
essas guerras intertribais para arregi- não deixe ficar sempre infestada de ou-
mentar aliados ou “acalmar” determina- tras essa navegação; porém, menos ini-
migos haverá a combater e para o seu
da nação belicosa, mas, evidentemente, a
tempo se castigarem, os referidos Muras
aliança não beneficiava apenas aos lusita- nos serão de grande ajuda e vantagem.
nos. Em correspondência de junho de 1786 Esta considero eu maior, em que os ditos
a João Pereira Caldas, o comandante do Muras fiquem e se unam a essa vila; e

383
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
como V. Mercê diz que muitos assim mes- Segundo outro relato do frei, também
mo o querem e desejam, cuido que lhe de agosto do mesmo ano, índios da nação
não será dificultoso reduzir todos a que
juma agrediram os muras que estavam nas
aí se estabeleçam, para se restabelecer a
vila da sua diminuta população e melhor roças próximas a Airão, roubaram canoas e
se ir diligenciando, e conseguindo a civi- mataram a mulher do filho do principal. O
lização da mesma gente, propondo-lhes e vigário, que na ausência do diretor coman-
persuadindo-lhes V. Mercê que também
dava a povoação, informou não ter man-
se assim se estabelecerem, ficarão mais
protegidos e seguros contra algum insul- dado perseguir os jumas porque não havia
to, que mais separados, poderão dos seus armas, pólvoras ou balas no armazém do
contrários experimentar, não tendo lá povoado, pois as armas haviam sido envia-
nem soldados, nem os moradores dessa das pelo diretor a Barcelos para conserto.
vila, que em alguma invasão, ou violên-
cia os possam ajudar e defender. Porém,
Assim, os muras, que há pouco tempo ha-
se enfim mostrarem resistência, para viam se estabelecido nas proximidades de
largarem a situação que escolheram e em Airão, recusavam-se a trabalhar em suas
que principiaram a roçar, V. Mercê não os roças “sem companhia debaixo de armas”.
obrigará; e nesse caso auxiliará e dirigirá
O vigário informou a Caldas ter prometido
aquele estabelecimento.17
aos índios “que V. Ex. [Pereira Caldas] há
Uma vez estabelecidas as povoações, de dar providencias a tudo”.
os muras solicitaram a proteção dos portu- O padre ainda relatou que o princi-
gueses contra os ataques de índios inimi- pal, cujo filho havia perdido a mulher no
gos. Nesse sentido, em carta de agosto de ataque dos jumas, “foi ter aos pés de V. Ex
1787 a João Pereira Caldas, o vigário de [Pereira Caldas] a essa vila de Barcelos”.
Airão, frei José da Conceição, apresentou Em resposta, Pereira Caldas informou
um exemplo bem interessante. Primeira- que o referido principal “veio a minha pre-
mente, o frei informou que um grupo mura sença”. Posteriormente, o governador en-
estabelecido há três meses no lugar de Ai- viaria a Airão as armas que haviam sido
rão desejava ir a Barcelos “ter com V. Ex. remetidas a Barcelos para conserto – des-
[Pereira Caldas], e juntamente ver a terra pachando ainda mais armas e munições.19
dos brancos”.18 De acordo com o documen- Em síntese, alguns grupos muras, ao ouvir
to, tais índios haviam encontrado outros notícias acerca do poder bélico dos portu-
muras no Madeira, os quais lhes tinham gueses, buscaram alianças com os lusita-
informado acerca dos presentes recebidos nos, visando à proteção contra inimigos
dos portugueses. Ao que parece, seme- (fossem mundurucus ou não).
lhante ao descimento realizado próximo a Os casos se estendem e, como aponta
Maripi em 1784, tais índios intentavam, Ângela Domingues, várias etnias avalia-
primeiramente, conhecer o “poder” dos ram os lusitanos como “aliados vantajo-
brancos antes de principiar a aliança – o sos” na guerra contra etnias inimigas. Foi
que de fato se iniciou com o estabelecimen- o caso, por exemplo, dos gamelas do Mara-
to de casas e roças. nhão contra os acroás no início dos anos 50

384
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
e dos apinagés da foz do Araguaia contra cias cometidas pelos grupos ou chefes in-
os temembós no início do século XIX.20 dígenas inimigos, mas também as guerras
Em resumo, de acordo com a retó- empreendidas pelos próprios portugueses
rica das autoridades portuguesas, os lusi- contra eles.21
tanos se inseriam nas guerras intertribais
ou nos embates entre líderes indígenas vi- Alliances between Indians and the
sando aos interesses da Coroa: o aumento Portuguese in colonial Amazon
de “almas” para a Igreja, a “pacificação” de
determinada etnia belicosa – pondo fim ao Abstract
terror que dificultava o cultivo das roças no
sertão e o transporte pelos rios –, a garan- This article, by the study of the for-
tia das regiões fronteiriças enquanto domí- mation of the alliance firmed between
Indians and Portuguese authorities in
nios do soberano português e o aumento da
the Amazon, tries to analyze the rela-
população dos povoados coloniais (aumen-
tionships between the politics for the
tando, assim, o contingente trabalhador e,
Indians and the indigenous politics
consequentemente, a produção). in this region during the second half
Por outro lado, em alguns momen- of the eighteen century. For that, we
tos, os portugueses foram inseridos pelos will be aware for the context of the pe-
próprios índios nos conflitos intertribais riod and the interest of the Portuguese
ou nos embates entre líderes indígenas. Crow (represented by the colonial offi-
Nestes casos, podemos perceber que os in- cials) in the negociation of alliances.
teresses indígenas estavam no jogo, pois, For the other side, we will try to un-
por meio da aliança com os portugueses, derstand the interest and the politics
tentava-se conquistar um forte aliado nas of the Indians about the same practice:
guerras intertribais ou simplesmente con- the formation of the alliances with the
Portuguese authorities.
seguir proteção contra os ataques dos ad-
versários.
Key words: Colonial Amazon. Indige-
Vale lembrar que esses embates en-
nous politics. Politics for the Indians.
tre grupos ou chefes indígenas devem ser
entendidos no contexto da expansão colo-
nial portuguesa (e europeia de uma forma Notas
geral). Isso é claro em todos os exemplos 1
CARVALHO JR., Almir Diniz de. Índios cristãos.
aqui apresentados, pois a aliança se fazia A conversão dos gentios na Amazônia Portuguesa
a partir do conhecimento das ações dos (1653-1769). Tese (Doutorado) - Unicamp, Cam-
pinas, 2005. p. 41. Sobre as missões como estraté-
brancos por parte dos índios (incluindo o gia de expansão dos domínios coloniais, ver SAM-
papel dos missionários). Em outros casos, PAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos partidos:
etnia, legislação e desigualdade na colônia. Ser-
como a autopacificação dos muras, o que tões do Grão-Pará, c 1755-c. 1823. Tese (Doutora-
levou os índios a solicitar a aliança com os do) - UFF, Niterói, 2001. p. 46; PRADO JR., Caio.
portugueses não foram apenas as violên- Formação do Brasil contemporâneo. Colônia. 12.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. p. 90.

385
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
2
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Meta- 1795, seriam encarados pelos portugueses como
morfoses indígenas. Identidade e cultura nas aliados na guerra contra índios hostis do rio Ma-
aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Ja- deira (p. 292). Ver também SANTOS, Francisco
neiro: Arquivo Nacional, 2001. p. 45. Jorge dos. Op. cit. Sobre os mundurucus como
3
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Op. cit., aliados dos lusos ver p. 162.
2001, p. 53. 14
Carta do Furriel Manoel José Valadão a João
4
Esta datação é especulativa, já que o autor não Pereira Caldas. Maripi, 12 de julho de 1784. In:
faz qualquer referência à data dos acontecimen- FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Op. cit., 2.
tos relatados. A menção ao sargento-mor do ed., 2008, p. 263.
Pará como comandante, entretanto, nos faz crer 15
Exame do novos estabelecimentos dos muras,
que tais episódios ocorreram antes da segunda que por ordem de V. Exa., de 25 de abril, em car-
metade do século XVIII e após o primeiro século ta n. 2 fiz [...]. Feito por João Batista Mardel sob
da ocupação da região (Belém foi fundada em a encomenda de João Pereira Caldas, sem data
1616). (por volta de 1786) e lugar in: FERREIRA, Ale-
5
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filo- xandre Rodrigues. Op. cit., 2. ed., 2008, p. 305.
sófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, 16
Carta do comandante do registro da vila de Bor-
Mato Grosso e Cuiabá. Memórias I antropologia. ba, Antonio Carlos da Fonseca Coutinho, a João
2. ed. Manaus: Valer, 2008. p. 259-261. Todas as Pereira Caldas. Borba, 13 de junho de 1786. In:
citações sobre os Sacaca estão na p. 260. FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Op. cit., 2.
6
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem filo- ed., 2008, p. 309.
sófica ao rio Negro. Belém: MPEG/Museu Goel- 17
Carta de João Pereira Caldas ao comandante da
di, 1983. p. 362-63. Citações na p. 362. vila de Borba, Antonio Carlos da Fonseca Cou-
7
O “descimento” era a deslocação de grupos in- tinho. Barcelos, 28 de junho de 1786. In: FER-
dígenas através do seu “convencimento” pelos REIRA, Alexandre Rodrigues. Op. cit., 2. ed.,
missionários ou autoridades portuguesas. 2008, p. 314-315.
8
Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furta- 18
Carta do vigário do lugar de Airão, frei Joseph
do a Sebastião José de Carvalho e Melo. Arraial da Conceição, a João Pereira Caldas. Lugar de
de Mariuá, 15 de novembro de 1755. In: MEN- Airão, 5 de agosto de 1787 in: FERREIRA, Ale-
DONÇA, Marcos Carneiro de. A Amazônia na xandre Rodrigues. Op. cit., 1983, p. 568.
era pombalina. Correspondência inédita do go- 19
Carta do vigário do lugar de Airão a João Pereira
vernador e capitão general do Estado do Grão Caldas (Airão, 7 de agosto de 1787) e a resposta
Pará e Maranhão Francisco Xavier de Men- de Caldas (Barcelos, 29 de agosto de 1787), cons-
donça Furtado, 1751-1759. RIHGB, 1963, v. 3, tam em: FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Op.
p. 843. cit., 1983, p. 571-72.
9
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios eram 20
DOMINGUES, Ângela. Op. cit., p. 289-294.
vassalos. Colonização e relações de poder no 21
Segundo Francisco Jorge dos Santos, os ataques
Norte do Brasil na segunda metade do século dos mundurucus e dos portugueses aos muras
XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000. p. 290; SANTOS, explicam a “autopacificação”. SANTOS, Fran-
Francisco Jorge dos. Além da conquista. Guer- cisco Jorge dos. Op. cit., p. 83-84.
ras e rebeliões indígenas na Amazônia pombali-
nas. Manaus: Edua, 2002. p. 84-85.
10
O primeiro registro de que se tem notícia sobre Referências bibliográficas
esta nação é o relato do padre Bartolomeu Ro-
drigues de 1714.
11
Sobre os muras, ver DOMNGUES, Ângela. Op. ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Me-
cit., p. 279-288; SANTOS, Francisco Jorge dos. tamorfoses indígenas. Identidade e cultura
Op. cit., cap. III; DIAS, Leonardo Guimarães
nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio
Vaz. Gentios de Corso. Os mura no processo de
conquista e colonização do norte da América de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
portuguesa. Dissertação (Mestrado) – UFF, Ni- CARVALHO JR., Almir Diniz de. Índios cris-
terói, 2004.
tãos. A conversão dos gentios na Amazônia
12
DOMINGUES, Ângela. Op. cit., p. 281.
13
DOMINGUES, Ângela. Op. cit., p. 292. É curio- portuguesa (1653-1769). Tese (Doutorado) -
so notar que, posteriormente, os próprios mun- Unicamp, Campinas, 2005.
durucus, após a sua pacificação por volta de

386
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009
DIAS, Leonardo Guimarães Vaz. Gentios de MENDONÇA, Marcos Carneiro de. A Ama-
Corso. Os mura no processo de conquista e zônia na era pombalina. Correspondência
colonização do norte da América portuguesa. inédita do governador e capitão general do
Dissertação (Mestrado) - UFF, Niterói, 2004. estado do Grão-Pará e Maranhão Francisco
DOMINGUES, Ângela. Quando os índios Xavier de Mendonça Furtado, 1751-1759.
eram vassalos. Colonização e relações de po- RIHGB, v. 3, 1963.
der no norte do Brasil na segunda metade do PRADO JR., Caio. Formação do Brasil con-
século XVIII. Lisboa: CNCDP, 2000. temporâneo. Colônia. 12. ed. São Paulo: Bra-
FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Viagem siliense, 1972.
filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio SAMPAIO, Patrícia Maria Melo. Espelhos
Negro, Mato Grosso e Cuiabá. Memórias I partidos: etnia, legislação e desigualdade
antropologia. 2. ed. Manaus: Valer, 2008. na colônia. Sertões do Grão-Pará, c 1755-c.
_______. Viagem filosófica ao rio Negro. Be- 1823. Tese (Doutorado) - UFF, Niterói, 2001.
lém: MPEG/Museu Goeldi, 1983. SANTOS, Francisco Jorge dos. Além da
conquista. Guerras e rebeliões indígenas
na Amazônia pombalinas. Manaus: Edua,
2002.

387
História: Debates e Tendências – v. 8, n. 2, jul./dez. 2008, p. 378-387, publ. no 2o sem. 2009

Você também pode gostar