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pré-político, caracterizado pela mais perfeita liberdade e igualdade, denominado estado de

natureza” (WEFFORT, 1991, p.84)

“O direito coletivo tem, pois, seu princípio, sua razão de ser, sua legitimidade, no direito
individual. E a força comum, racionalmente, não pode ter outra finalidade, outra missão

A revolta da praia de sangue e o direito natural que não a de proteger as forças isoladas que ela substitui. ” (BASTIAT, 1850, p.12)

de liberdade indígena Coletivos são agrupamentos de indivíduos que por sua vez estão sujeitos às mesmas
leis e direitos naturais de vida, liberdade e propriedade relatados por Locke (1689),
Isabella Lima · Follow
Hobbes (1651) e até mesmo por Bastiat (1850). No caso dos indígenas, o grupo tem
12 min read · May 8, 2019
constantemente suas pautas atreladas à morais coletivistas, deixando que suas
individualidades humanas sejam negligenciadas.
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Durante o período de colonização sul-americana, a coroa portuguesa obteve sucesso


Há uma crença de que toda coletividade humana deva ter sua defesa embasada em em suas invasões em grande parte do território brasileiro. Apesar disto, o extremo
teorias sociais progressistas, quando a definição mais clara de “coletivo” é norte do país carecia de suporte, dada a localização privilegiada e proximidade com
comumente esquecida. espanhóis e holandeses. Foi necessário que os portugueses se posicionassem e
adotassem estratégias capazes de impedir as constantes tentativas de invasão à
região do Vale do Rio Branco, localizada no atual estado de Roraima.

Dentre todos os conflitos que ocorreram durante esta época de conquistas, poucos
foram tão sangrentos e pouco estudados quanto a REVOLTA DA PRAIA DE SANGUE,
conflito este que se deu por parte dos indígenas das tribos macuxi e wapichana em
forma de retaliação à coroa portuguesa, demonstrando sua insubmissão aos maus-
tratos e à escravidão característica aos povos europeus. A região do Vale do Rio
Branco, habitada por indígenas e colonizadores teve durante o conflito sua fluidez
manchada pelas marcas de sangue e sua água fluiu em tons avermelhados.

DO TRATADO DE MADRID À COLONIZAÇÃO DO VALE DO RIO BRANCO

Ainda que o descobrimento do Brasil tenha sido datado em 1500, a exploração do


extremo norte do Brasil só foi iniciada nos anos 1650 e em 1700 encontrava-se em
carência de suporte português, afinal, o território mantinha-se em constante status
de ameaça. A região do Vale do Rio Branco foi integrada à Portugal pelo Tratado de
Madrid em 1750, este que veio a substituir o Tratado de Tordesilhas, vindo como a
“Em oposição à tradicional doutrina aristotélica, segundo a qual a sociedade precede ao
primeira tentativa de pôr fim ao conflito entre Portugal e Espanha e delimitar suas
indivíduo, Locke afirma ser a existência do indivíduo anterior ao surgimento da sociedade
colônias sul-americanas.
e do Estado. Na sua concepção individualista, os homens viviam em estágio pré-social e
Entretanto, o Tratado de Madrid veio a cair em 1761 e a região tornou a ser alvo dos em manteiga, o cacau e ainda as criações de gados que seriam implementadas na
espanhóis e holandeses que permaneciam encabeçados nas incessantes tentativas região para que pudesse subsistir a Capitania a qual pertencia.
de encontrar o caminho para El Dorado. Cartas à coroa portuguesa relatam invasões
espanholas por volta de 1775 às águas do Rio Branco em direção à nascente do Rio As construções dos Fortes do Rio Branco deram-se em conjunto com a edificação de
Uraricoera (Chamado pelos espanhóis de Parimé) durante suas incansáveis diversos outros fortes no Brasil Colônia e contaram com a colaboração da mão-de-
expedições em busca do mitológico El Dorado, famoso mito que conta sobre um obra indígena. Em Portugal, o reinado recebia forte influência do iluminismo
reinado cuja riqueza excede todas as do mundo e cuja abundancia em ouro seria tão através do Marquês de Pombal e a Coroa ordenou que os índios fossem tomados
absurda que seu rei cobriria-se do metal cotidianamente e ao final dos dias como súditos e não mais como escravos. Para a fortificação do Estado português, a
banharia-se na Laguna Dorada. Os espanhóis, apesar de não o terem encontrado, fortaleza fora construída em formato de aldeamento, sugerindo que os indígenas
não estavam de todo errados à cerca do valor da região. Os portugueses puderam povoassem o entorno do forte criando uma espécie de “barreira humana”.
usufruir comercialmente de muito do que esta produzia.
“O Forte São Joaquim fez parte do arco de fortificações portuguesas que cercaram seus
“A política que empregaram os portugueses no descobrimento das vastas regiões d’esta domínios amazônicos no século XVIII, fechando os principais acessos à região interior da
parte da América, foi conhecer as nações e propor-lhe logo a sujeição portuguesa e a Amazônia” (FILHO e VIEIRA, 2015, p.127)
religião católica. Para este fim formaram aldeias, que entregaram aos missionários,
Dentre as exigências do Marquês de Pombal ao seu Diretório constava drástica
quando estes não foram os autores das mesmas. Sucedia por isso muitas vezes que as
mudança à política de mão-de-obra indígena; a dinamização da agricultura e
nações de um rio se viessem estabelecer a outro. Com este motivo pois entraram os
aplicabilidade do comércio na região; e a reintegração social das propriedades
portugueses a navegar mais adiantadamente o Rio Branco, conduzindo do mesmo Índios
retiradas dos jesuítas que se negaram às novas imposições da Coroa;
para as nossas povoações do Rio Negro. Ao mesmo rio subiam a comprar escravos n’aquele
tempo em que foi licito este comércio infame. As selvas do Rio Branco abundam de cacau: “Assim, nos aldeamentos o governo temporal seria exercido pelos principais (chefe
as suas aguas, férteis em peixe e tartarugas, que na própria estação, vindo fazer rico indígena) sobre os índios, existindo ainda o diretor (administrador civil) para dirigir o
deposito de seus ovos ás praias daquele rio, convidam os moradores das vizinhanças a aldeamento, e um missionário para a parte espiritual. Obrigava a utilização do português
utilizarem-se d’aquela voluntaria dadiva, para fabricarem o azeite que se extraem dos por todos, bem como de sobrenomes portugueses. E, os diretores, substitutos da
mesmos. Redução de Índios a sujeição portuguesa, comércio de índios escravos, colheita de administração missionária, ficavam com a sexta parte de tudo o que os índios
drogas e pescarias, fez necessária e conveniente a seguida descoberta do Rio Branco.” produzissem, e cuidavam dos salários dos mesmos. ” (FILHO e VIEIRA, 2015, p.123)
(SAMPAIO, 1777, p.206–207)
Entretanto, os Diretórios não tiveram resultados como os esperados e deram-se em
Após a queda do Tratado que garantia a posse do Vale aos portugueses, a Capitania fugas, deserções, rebeliões, prisões e execuções, “reflexo do confronto de políticas
Real de São José do Rio Negro recebe notícias de que o Rio Branco fora invadido por antagônicas, uma indígena e outra indigenista. ” (SANTOS)
espanhóis, viu-se necessário tomar atitudes acerca da guarda da localidade.
Ordenou-se, portanto, a construção de cinco Fortes no perímetro do Rio Branco. O Tais atos tidos como insubordinação da parte indígena e respostas a elas, foram na
principal erguido no ponto de encontro entre o Rio Uraricoera, de onde provinham realidade frutos do acumulo de abusos aos quais estes eram submetidos. Dentre as
as águas da Guyana Espanhola (hoje, Venezuela) e o Rio Tacutu, de onde viriam as imposições, destacam-se as limitações impostas às crenças indígenas e proibições
águas da Guyana Holandesa (hoje, Suriname), a fim de impedir possíveis invasões. aos modelos de relacionamentos poligâmicos, às tradições de pintura corporal com
Os objetivos econômicos assim como ressaltado por SAMPAIO (1777) eram em urucum e à cremação dentro dos aldeamentos dos entes mortos. Além destes, os
primeira instância o comércio de indígenas escravos, colheita das conhecidas indígenas eram forçados a trabalhos pesados, dentro e fora dos aldeamentos, pelos
drogas do sertão (ervas medicinais), pescaria, a transformação dos ovos de tartaruga quais nada recebiam. As “deserções” eram profundamente proibidas, sofriam maus-
tratos e passavam fome, quando não eram alimentados com suas “rações de
farinha”.

A REVOLTA DA PRAIA DE SANGUE

Em 1780 iniciaram-se as primeiras revoltas dos aldeados, o primeiro levante ocorreu


no Forte de São Felipe após uma imposição de um Frei Carmelita que resultou em
deserção em massa. Estas rebeliões espalharam-se aos outros quatro Fortes. No
Forte de Nossa Senhora da Conceição estabeleceu-se a punição do encarceramento
às fugas, tencionando os aldeamentos e avolumando a ira indígena.

Já no Forte de Santo Antônio e Almas, o estouro da rebelião deu-se pela agressão


injustificada acometida a um indígena por um soldado, agravando a inquietação
entre colonizadores e colonizados.

Dada a influência supracitada do iluminismo nas estratégias de colonização, para


declarar-se guerra à alguma tribo, era necessário que a Coroa a instituísse sob
terminação “guerra justa”. A aflição era tanta que o Governo Colonial solicitou
autorização para que fosse instaurada uma guerra aos indígenas do Rio Branco.
Todavia, ao contrário do que se esperava, Portugal indeferiu ao pedido de guerra,
concedeu anistia aos indígenas envolvidos nas rebeliões e exigiu novas tentativas de
aldeamento.

Em 1784, os aldeamentos sofreram modificações no que cerne à localização,


permanecendo em proximidade aos Fortes, contudo posicionados de formas mais
distantes ao local de origem dos aldeados, impondo obstáculos a mais às fugas.

Apesar da remodelação, não se dispuseram melhorias no estilo de trabalhos


compulsórios, punições e cerceamento religioso submetidos aos índios. Além da
tensão constante nos aldeamentos, decorria-se uma pressão a mais da Coroa à não-
deserdação indígenas. A conjuntura do novo modelo era análoga a das revoltas
precedentes e não se delongaria o surgimento de uma nova.

Em 1788, houve o surgimento de um novo motim, causando a execução de uma


tropa de índios das etnias paraviana e wapichana pelos europeus. Após o episódio, o
impulso indígena quanto à justiça não pôde ser contido e o levante que sucedeu este
evento ficou conhecido como A REVOLTA DA PRAIA DE SANGUE.

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