Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
PARTE I1
Tânia Lobo
Universidade Federal da Bahia
INTRODUÇÃO
Este capítulo dedica-se à história social linguística do Brasil, focalizando o
português brasileiro (doravante, PB), com o objetivo de delinear um sistema de
coordenadas fundamentais potencialmente articuláveis à chamada história interna da
língua. No traçado desse sistema, abordam-se, nesta primeira parte, mudanças globais
e profundas que, na longa duração, ocorreram principalmente em dois níveis. O
primeiro refere-se à “articulação entre fatos de ocupação territorial, fatos das
sucessivas distribuições demográfico-linguísticas e fatos das prevalências e
desaparecimento das línguas” (Houaiss 1985, 31-32.). A justificativa para tal está em
ser o PB uma língua que emergiu em contexto multilíngue, sendo, pois, o contato
linguístico um dos aspectos constitutivos da sua formação. O segundo diz respeito à
questão da distribuição social da escrita no Brasil. Juntamente com a história do
contato, é uma questão-chave para a análise das variedades do PB que configuram a
complexa teia sociolinguística do Brasil contemporâneo, definida por um continuum,
em cujos extremos se situam, por um lado, normas linguísticas socialmente mais
prestigiadas – urbanas, supostamente mais unitárias e supostamente descendentes
diretas do português europeu, além de moldadas sob o influxo do padrão normativo
de escrita difundido via escolarização – e, por outro lado, normas linguísticas
socialmente mais estigmatizadas – rurais, supostamente mais diversificadas e
supostamente descendentes diretas do português falado como segunda língua por
índios e negros, os quais, juntamente com seus descendentes, do século XVI a meados
do XIX, sempre constituíram o segmento maioritário da população brasileira e até
aproximadamente meados do século XX estiveram, em sua maioria, à margem do
sistema formal de escolarização.
1
Agradeço a Alan N. Baxter, José Amarante, Ana Sartori Gandra e André Moreno a leitura crítica do
texto.
1. AS ORIGENS DA DIFUSÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA NO TERRITÓRIO BRASILEIRO
1.1. O SÉCULO XVI
A expansão da língua portuguesa para áreas extraeuropeias inicia-se no século
XV, sendo indissociável, portanto, da aventura das grandes navegações. Em março de
1500, uma frota de navios comandados pelo fidalgo Pedro Álvares Cabral parte de
Lisboa, com destino às Índias. Afastando-se, todavia, da costa africana, avista, em abril,
a terra que será designada de Vera Cruz, Santa Cruz e, finalmente, Brasil.
Há consenso entre os estudiosos da paleodemografia brasileira quanto à
dificuldade de calcular a população autóctone no momento em que se iniciou seu
contato com os europeus. Tal dificuldade explica-se pela fragmentariedade dos restos
arqueológicos e também dos poucos registros remanescentes, feitos por funcionários
da coroa portuguesa ou por religiosos nas últimas décadas do século XVI2. Igualmente
difícil é o cômputo das línguas então faladas pelos nativos. A estimativa hoje
correntemente aceita é de que haveria 1.175 línguas no Brasil antes do começo da
colonização (cf. Rodrigues 1993).
As populações indígenas litorâneas com que os portugueses entraram
inicialmente em contato eram falantes, sobretudo, de línguas integradas à família tupi-
guarani, do troco tupi, o maior grupo de línguas indígenas brasileiras, seguido do
tronco macro-jê e das famílias aruák, karíb e páno3. O mapa a seguir indica como se
teriam distribuído as “nações”4 tupi-guarani na costa, apontando ainda os pontos
marcados pela presença de grupos etnolinguisticamente distintos, ditos tapuias5:
2
Sobre as discrepantes avaliações existentes, confrontem-se, por exemplo, Marcílio (1999, 312-313),
que menciona cálculos de 1.000.000 a 2.431.000 índios, e Andreazza/ Nadalin (2011, 60), que se
referem à ampliação do número para 8.000.000.
3
Grupos menores são as famílias tucano, arawá, makú, katukína, yanomámi, txapakúra, nambikwára,
mura e guaikurú. Há ainda 10 línguas classificadas como isoladas, isto é, como tipos linguísticos únicos
(cf. Rodrigues 1986/1994).
4
Cf. Fausto (1992) para a discussão do conceito de “nação”, empregado pelos colonizadores para
distinguir grupos indígenas.
5
Tapuia era o termo genérico usado pelos tupis, e adotado pelos colonizadores, para designar grupos
etnolinguísticos distintos, habitantes, sobretudo do interior.
Mapa 1: Distribuição das “nações” tupi-guarani ao longo do litoral brasileiro,
no início do século XVI
Havia muitos destes índios pela costa junto das capitanias; tudo enfim estava cheio
deles quando começaram os portugueses a povoar a terra: mas, porque os mesmos
índios se levantavam contra eles e faziam-lhes muitas traições, os governadores e
capitães da terra destruíram-nos pouco a pouco e mataram muitos deles. Outros
fugiram para o sertão e assim ficou a costa despovoada de gentio ao longo das
capitanias. Junto delas ficaram algumas aldeias destes índios que são de paz e
amigos dos portugueses. A língua deste gentio toda pela costa é uma, carece de
três letras – scilicet – não se acha nela f, nem l, nem r, coisa digna de espanto,
porque assim não tem fé, nem lei, nem rei, e desta maneira vivem sem justiça e
desordenadamente.
Uma das atribuições da coroa e dos titulares das capitanias hereditárias era a
distribuição de sesmarias – lotes de terras com dimensões variadas, destinados desde
a agricultura de subsistência a latifúndios agroexportadores. Assim, embora se tenha
afirmado que a plantation – grande propriedade agrícola, baseada na monocultura de
exportação e sustentada pela mão de obra escrava – foi a forma básica de colonização
do Brasil, a Metrópole sempre buscou garantir condições para a produção de
alimentos na própria Colônia. Tal constatação aponta para o fato, relevante na
perspectiva de uma história linguística, de que a estrutura social, mesmo nas áreas
rurais, não se reduziu exclusivamente à polarização senhores X escravizados, sendo
uma parcela significativa da população constituída por pequenos camponeses brancos
pobres (Fausto 1995, 58-59).
No início da colonização, o movimento migratório oriundo da Europa
caracterizou-se por ser espontâneo, porém seletivo: predominaram homens adultos
de distintos estratos sociais, vindos, sobretudo, do Noroeste de Portugal e das ilhas
atlânticas, sendo ainda considerável uma parcela de cristãos-novos (judeus
compulsoriamente “convertidos” ao cristianismo). A presença quase exclusiva de
homens favoreceu, desde o início, intensa miscigenação, característica fundamental do
processo de constituição da população brasileira, também relevante na perspectiva de
uma história linguística, já que são os mestiços um elo entre mundos linguisticamente
distintos.
A década de 30 do século XVI atestou outro movimento migratório, também
seletivo – com predominância masculina –, porém não espontâneo: a chegada de
negros africanos escravizados. O Brasil foi o último país a abolir a escravidão no
Ocidente, só o fazendo em 1888. O tráfico de escravizados estendeu-se oficialmente
até 1850 e, embora não seja possível precisar quantos foram importados, estima-se
que entre 8.000.000 e 11.000.000 de negros tenham sido trazidos às Américas, tendo
aproximadamente 4.900.000 do total se destinado ao Brasil (cf. Schwarcz/Starling
2015, 82). No século XVI, foi corrente, entre os traficantes portugueses, o uso da
expressão “negro da Guiné” para designar os africanos. Ao indagar sobre o que era a
Guiné nos primeiros tempos do tráfico, Oliveira (1997) informa que toda a África
Ocidental ao norte do Equador, do Rio Senegal ao Gabão, era então conhecida como
Guiné; além disso, informa que o termo também chegou a ser aplicado a populações
subequatoriais. Conclui-se, assim, que, já desde o início, se transplantaram línguas das
duas regiões subsaarianas que vão caracterizar toda a história do tráfico ao Brasil: a
oeste-africana, que abrange línguas que vão do Senegal à Nigéria, e a banta, com
línguas que cobrem toda a extensão sul da linha do Equador. As línguas do continente
africano classificam-se em quatro troncos: o congo-cordofaniano, o nilo-saariano, o
afro-asiático e o coissã; o congo-cordofaniano subdivide-se, por sua vez, em duas
famílias: a níger-congo e a cordofaniano6. Os escravizados que chegaram ao Brasil
6
cf. Greenberg, Joseph (1966), The languages of Africa, Bloomington, Indiana University apud Castro
2001.
eram falantes de línguas da família níger-congo, predominantemente dos grupos
banto e kwa (cf. Castro, 2001).
7
Outras ordens religiosas desenvolveram atividades educativas no Brasil colonial, contudo “operaram
de forma dispersa e intermitente, sem apoio e proteção oficial (...)” (Saviani 2013b, 41).
Uma questão instigante é saber em que medida estaria difundida a escrita na
diminuta sociedade colonial de final do século XVI, na altura da implantação do Ratio
Studiorum. À falta de números oficiais, tentativas de aproximação sobre aspectos
censitários da alfabetização em sociedades do Antigo Regime têm sido realizadas
através do método do cômputo de assinaturas. Analisando os depoimentos prestados
e assinados perante o Santo Ofício na sua primeira visitação ao Brasil, feita às
capitanias da Bahia, Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, entre 1591 e 1595, Lobo e
Oliveira (2013) e Sartori (2015) chegaram aos seguintes resultados gerais: em um
universo de 686 depoentes, 492 (71%) assinaram seus testemunhos e 194 (28%) não o
fizeram. A surpreendente taxa de 71% de assinaturas pode ser melhor interpretada
com a repartição da amostra em variáveis, sendo o sexo e a etnia, duas das mais
relevantes:
8
A conquista da Paraíba aos franceses ocorreu em 1585, razão por que tal capitania só figura na tabela
no ano de 1590.
– uma das constantes da história demográfica brasileira até meados do século XIX –,
evidenciando que a compreensão do processo de difusão da língua portuguesa no
Brasil não pode desconsiderar o papel exercido por índios e negros que, em graus
diferenciados de proficiência, adquiriram a língua do colonizador como segunda língua
e a transmitiram a seus descendentes.
Os africanos, presentes já em todas as capitanias, constituem o segmento
maioritário da população, 41.5%, destacando-se em Pernambuco e na Bahia, onde
correspondem, respectivamente, a 58.1% e 64.2% do total. Por que nenhuma língua
africana permaneceu sendo falada até os dias atuais e por que, apesar de processos
seguramente endêmicos de pidginização, nenhuma língua crioula se estabeleceu no
Brasil são duas questões fundamentais a ser abordadas posteriormente (cf. item 2).
Por fim, chama a atenção o fato de, na tabela, a miscigenação não estar
representada, já que são recorrentes, no período, solicitações à Metrópole de envio de
mulheres órfãs e de homens degredados não ladrões, para frear ou minimizar a
mestiçagem. Quanto aos mamelucos, segundo Couto (1998, 275), eles estariam, na
maioria das fontes, incluídos entre as famílias portuguesas9, constituindo, assim, uma
parcela de “não europeus” que não se pode contabilizar. Identifica-se, pois, aqui, o que
se tem chamado de “branqueamento” de mestiços, e, como se viu, no século XVI, o
“branqueamento” de uma parcela de mamelucos, na Bahia e em Pernambuco, terá
passado não só por falar a língua dos pais europeus, mas também por escrevê-la.
9
Uma das exceções são as fontes inquisitoriais, como visto acima.
correspondendo aos atuais Estados do Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Pará,
Maranhão e ainda toda a Amazônia. É só no ano de 1823, após a Independência do
(Estado do) Brasil, ocorrida em 1822, que o Estado do Grão-Pará e Maranhão vai
incorporar-se ao Brasil imperial.
10
A escravidão indígena foi oficialmente abolida no Estado do Grão-Pará e Maranhão pela Lei de 6 de
junho de 1755, cujos dispositivos foram ampliados para o Estado do Brasil pelo Alvará de 8 de maio de
1758.
“integração” – por ampla mistura racial – e ainda as múltiplas formas de resistência –
tanto pela fuga para o interior, quanto também, como o tem demonstrado uma
renovada historiografia da América indígena, por constantes e complexos processos de
redefinição identitária.
A expansão territorial foi motivada por vários fatores, dentre os quais se
destacam a busca de metais e pedras preciosas – cujas primeiras jazidas serão
localizadas apenas na década de 1690 –, a expansão da agropecuária e a captura de
índios como mão de obra escrava. São Paulo, ao sul, e Maranhão e Pará, ao norte,
foram dois dos principais pontos a partir dos quais se deu o movimento de expansão,
cujo sustentáculo foram, em especial, mas não apenas, “os mamelucos, que,
regionalmente, se aliavam a determinadas nações indígenas para usufruírem seus
conhecimentos acerca do território.” (Andreazza/ Nadalin 2011, 62-63).
Distintas expedições passaram a devassar o território e, consequentemente, a
ampliar o contato com populações falantes de línguas pertencentes, principalmente,
ao tronco macro-jê, ao qual se filia a maior parte das línguas indígenas dos sertões do
Brasil. Data do ano de 1699, a publicação da primeira gramática de uma língua do
tronco macro-jê, falada no interior do Nordeste, a Arte de gramática da língua
brasílica da nação cariri, do jesuíta Luís Vicêncio Mamiami. Tal publicação corrobora a
hipótese de que “o fenômeno de emergência de uma “língua geral” [no sentido de
língua veicular] tenha ocorrido em mais de um ponto do território brasileiro” (cf.
Houaiss 1985, 37), sendo, no que tange às línguas indígenas, o tupinambá e o cariri os
dois casos documentados no período colonial.
Cabe agora indagar que línguas acompanharam os expedicionários que saíram
de São Paulo e do Maranhão/Pará. A partir de Rodrigues (1986, 1996), pode-se
responder a esta questão: não foi a língua do colonizador; junto com eles, foram
difundidas, principalmente, duas línguas de “base” indígena: a língua geral paulista e a
língua geral amazônica. De São Paulo, a língua geral paulista expandiu-se até Minas
Gerais, sul de Goiás, Mato Grosso e norte do Paraná. Do Maranhão/Pará, a língua geral
amazônica avançou pela Amazônia brasileira; subindo pelo Rio Negro, alcançou ainda a
Amazônia venezuelana e a Amazônia colombiana.
Língua geral e lengua general foram expressões utilizadas por colonizadores
portugueses e espanhóis para designar línguas de povos subjugados faladas em grande
extensão territorial, muitas das quais indo além da sua base geográfica original e
estabelecendo comunicação entre grupos etnolinguisticamente distintos e habitantes
de diferentes territórios. Afastando-se de uma historiografia mais tradicional, que
utiliza a expressão sempre no singular e muitas vezes apenas associada “à língua mais
usada na costa do Brasil” (cf. item 1.1), Rodrigues propôs a distinção diatópica,
diacrônica (1986) e linguística (1996), entre dois referentes: um que designou de língua
geral paulista, com origem em São Paulo, no século XVI e de “base tupiniquim”, e
outro que chamou de língua geral amazônica, com origem no Maranhão/Pará, no
século XVII e de “base tupinambá”. Diz-se “de base,” porque ambas as línguas
sofreram mudanças, à proporção que foram deixando de ser faladas exclusivamente
por índios tupiniquins e tupinambás e por seus primeiros descendentes mamelucos e
foram sendo adquiridas por índios falantes de outras línguas, portugueses e negros.
Tais línguas teriam, nas suas respectivas áreas de abrangência, sobrepujado a língua
dos colonizadores – a paulista, por cerca de 250 anos, e a amazônica, por mais de
30011. A partir da segunda metade do século XIX, justamente quando se torna língua
minoritária, devido à dizimação de grande parte dos seus falantes durante a Revolta da
Cabanagem (1835-1840), a língua geral amazônica passa a ser chamada de nheengatu,
‘língua boa’, sendo falada, ainda hoje, no vale do Rio Negro.
Sem discriminar os diversos grupos étnicos que a compunham, Wehling e
Wehling (1994, 142) informam que, no ano de 1700, a população colonial seria de
350.000 habitantes. Um quadro aproximativo da sua realidade linguística pode ser
desenhado nos seguintes termos:
11
Para a discussão do desaparecimento/declínio dessas línguas, remete-se a Vitral (2001) e a Bessa
Freire (2004); para uma aprofundada introdução à complexa questão das línguas gerais, remete-se a
Nobre (2011).
Além disso, o caráter de plantation, que marcava a estrutura sócio-
econômica da Bahia e de Pernambuco, favorecia a emergência de
variedades pidginizadas e crioulizadas do português, além do uso de línguas
gerais africanas, entre os escravos que formavam o grosso da mão de obra
do empreendimento agro-exportador. (cf. Lucchesi 2006, 351)
12
Em 1798, o Diretório foi revogado, os índios aldeados foram emancipados e equiparados aos demais
habitantes livres.
em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína
Espiritual e Temporal do Estado.
13
Nem sempre a intenção de separar colíngues teve sucesso, em razão da possibilidade de
intercomunicação entre falantes de distintas línguas africanas, destacando-se as do grupo banto.
14
Exceções seriam os quilombos, espaços que, com as constantes fugas de escravos em busca de
liberdade, foram sendo constituídos do século XVII ao século XIX. Dados os limites deste texto, esta
importante questão não será discutida.
crescimento negativo e à constante importação de mão de obra escrava da África (cf.
Schwarcz/Starling 2015, 79)15.
Com Pombal, teve início o período laico da educação pública, distinto do
anterior, em que a educação pública era de vertente exclusivamente religiosa. Trata-se
de um período de retrocesso, pois o esfacelamento do sistema escolar jesuítico não
deu lugar a um sistema alternativo e eficaz de ensino. Saviani (2013a, 121) aponta
como principais motivos do insucesso das reformas educacionais pombalinas a
escassez de mestres laicos, o fato de a formação dos mestres laicos ter estado
marcada pela ação pedagógica dos jesuítas, o fato de a Colônia não ter contado com
uma estrutura arrecadadora capaz de financiar as aulas régias, o retrocesso político
ocorrido quando, após a morte de D. José I, em 1777, D. Maria I assumiu o trono e,
finalmente, o temor de que, através do ensino, se difundissem na Colônia ideias
emancipacionistas. Assim, admitindo-se que, para ter sido eficaz, a política pombalina
de imposição do português devesse ter estado sob a tutela de um eficaz sistema
escolar, não será difícil concluir que o Diretório dos Índios teve seu alcance, mas
certamente menor do que inicialmente suposto. Comprova-o o fato de, no Estado do
Grão-Pará e Maranhão, a língua geral amazônica ter sido corrente até meados do
século XIX. Também não se pode imputar exclusivamente à massiva chegada dos
portugueses no século XVIII a “vitória” da língua portuguesa, já que, igualmente de
forma massiva, chegaram africanos, mantendo-se estável a proporção de 30% de
“brancos” e de 70% de “não brancos” no conjunto da população colonial, como se verá
a seguir.
A segunda metade do século XVIII inaugura a fase protoestatística dos estudos
demográficos no Brasil16. Em tese, portanto, a tabela abaixo já apresentaria
“estimativas menos grosseiras e de caráter menos indicativo” que as vistas para o
século XVI:
15
Veja-se Castro (2001, 76-78), que, além dos argumentos sócio-históricos, discute as similitudes entre
os sistemas linguísticos das línguas bantas e kwas e do português, como um fator desfavorecedor à
permanência de línguas africanas e também à emergência de crioulos no Brasil.
16
Não há dados gerais sobre a difusão social da escrita. Sem indicar as fontes em que se baseia, afirma
Houaiss (1985, 88-89) que, no correr dos séculos XVI a XVIII, o percentual de portugueses cultos,
letrados variaria entre 0,5% e 1% da população.
Tabela 3: Composição racial no Brasil no final do período colonial
Local Brancos Mulatos e negros Índios Total
Livres Escravos
Pará 23% 20% 80.000 - (3.9%)
Maranhão 31% 17,3% 46% 5% 78.860 - (3.8%)
Piauí 21,8% 18,4% 36,2% 23,6% 58.962 - (2.9%)
Pernambuco 28,5% 42% 26,2% 3,2% 391.986 - (19.1%)
Bahia 19,8% 31,6% 47,0% 1,5% 359.437 - (17.5%)
Mato Grosso 15,8% 3,8% 26.836 - (1.3%)
Goiás 12,5% 36,2% 46,2% 5,2% 55.422 - (2.7%)
Minas Gerais 23,6% 33,7% 40,9% 1,8% 494.759 - (24.1%)
Rio de Janeiro 33,6% 18,4% 45,9% 2% 229.582 - (11.2%)
São Paulo 56% 25% 16% 3% 208.807 - (10.2%)
Rio Grande do Sul 40,4% 21% 5,5% 34% 66.420 - (3.2%)
Média para 8 28,0% 27,8% 38,1% 5,7%
17
jurisdições
FONTE: Alden 1997, 535. Com adaptações na forma de apresentação.
17
Exceto Mato Grosso, Pará e Rio Grande do Sul, cujos dados são incompletos/deficientes.
3. INDEPENDÊNCIA, URBANIZAÇÃO E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL DO PB
Os séculos XIX e XX/início do XXI serão abordados a seguir, tendo como foco a
compreensão dos principais processos de mudança associados à configuração
sociolinguística do Brasil atual.
(...) dos princípios da colonização até 1808, e daí por diante com intensidade
cada vez maior, se notava a dualidade linguística entre a nata social, viveiro
de brancos e mestiços que ascenderam socialmente, e a plebe, descendente
dos índios, negros e mestiços da colônia.
Tabela 7: Taxa de analfabetismo no Brasil de 1920 a 2010, entre a população com mais de 15 anos de
idade
Ano População total Analfabetos %
1920 17.557.282 11.401.715 64,9%
1940 23.709.769 13.242.172 55,9%
1950 30.249.423 15.272.632 50,5%
1960 40.278.602 15.964.852 39,6%
1970 54.008.604 18.146.977 33,6%
1980 73.542.003 18.716.847 25,5%
1991 95.810.615 18.587.446 19,4%
2000 119.533.048 16.294.889 13,6%
2010 144.823.504 13.949.729 9,6%
Fonte: IBGE, Censos Demográficos, apud Lucchesi 2015, 149
REFERÊNCIAS
Alden, Dauril (1999), O período final do Brasil Colônia, 1750-1808, in: Leslie Bethel (ed.), História da
América Latina. Vol. II América colonial, São Paulo, EDUSP/Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão.
527-592.
Alencastro, Luiz Felipe (2009), Os africanos e as falas africanas no Brasil, in: Charlotte Galves/Helder
Garmes/Fernando Rosa Ribeiro (edd.), África-Brasil: caminhos da língua portuguesa, Campinas: Editora
da UNICAMP.
Almeida, Marcos Abreu Leitão de (2014), Tráfico de africanos para o Brasil, in: Ivana Stolze Lima/Laura
do Carmo (edd.), História social da língua nacional 2: diáspora africana, Rio de Janeiro: Nau/FAPERJ.
19
A lei nº 10.436, de 20 de abril de 2002, regulamentou o uso da LIBRAS e tornou o Brasil, em toda a sua
extensão territorial, oficialmente bilíngue.
Andreazza, Maria Luíza/Nadalin, Sérgio Odilon (2011), História da ocupação do Brasil, in: Heliana
Mello/Cléo Altenhofen/Tommaso Raso (edd.), Os contatos linguísticos no Brasil, Belo Horizonte, Editora
da UFMG.
Anchieta, José de (1595/1980), Arte de grammatica da lingoa mais usada na costa do Brasil, Salvador,
Universidade Federal da Bahia.
Barros, Maria Cândida D. M. Barros/ Borges, Luiz C./ Meira, Márcio, A língua geral como identidade
construída, Revista de Antropologia 39/1 (1996), 191-219.
Bessa Freire, José Ribamar (2004), Rio Babel: a história das línguas na Amazônia, Rio de Janeiro,
Atlântica.
Castro, Ivo (1992), História da língua portuguesa. Relatório (Programa e manual da cadeira), Faculdade
de Letras, Universidade de Lisboa.
Castro, Yeda Pessoa de, Das línguas africanas ao português brasileiro, Afro-Ásia 14 (1983), 81-101.
Castro, Yeda Pessoa de (2001), Falares africanos na Bahia: um vocabulário afro-brasileiro, Rio de
Janeiro, Academia Brasileira de Letras/Topbooks.
Castro, Yeda Pessoa de (2002), A língua mina-jeje no Brasil: um falar africano em Ouro Preto do século
XVIII, Belo Horizontes, Fundação João Pinheiro/Secretaria da Cultura do Estado de Minas Gerais.
Dias, Pedro (1697), Arte da Lingua de Angola offerecida a virgem senhora N. Do Rosario, Mãy, & Senhora
dos mesmos Pretos, pelo P. Pedro Dias, da Companhia de Jesu, Lisboa, Officina de Miguel Deslandes,
Impressor de Sua Magestade.
"DIRECTORIO, que se deve observar nas Povoaçoens dos Indios do Pará, e Maranhaõ em quanto Sua
Magestade naõ mandar o contrario", in: Rita Heloísa de Almeida (1997): O Diretório dos Índios: um
projeto de “civilização” no Brasil do Século XVIII, Brasília, Editora da UnB.
Faraco, Carlos Alberto (2008), Norma culta brasileira: desatando alguns nós, São Paulo, Parábola.
2
Fausto, Boris ( 1995), História da Brasil, São Paulo, EDUSP/FDE.
Fausto, Carlos (1992), Fragmentos de história e cultura tupinambá: da etnologia como instrumento
crítico de conhecimento etno-histórico, in: Manuela Carneiro da Cunha (ed.), História dos índios no
Brasil, São Paulo, FAPESP/Companhia das Letras/SMC.
Ferreira, Carlota (1984), Remanescentes de um falar crioulo brasileiro, in: Carlota Ferreira et al. (edd.),
Diversidade do português do Brasil, Salvador, EDUFBA, 21-32.
Gândavo, Pero de Magalhães de (1576/1965), Tratado da província do Brasil, Rio de Janeiro, Instituto
Nacional do Livro.
Gandra, Ana Sartori. Pela pena do Santo Ofício: difusão social da escrita nas capitanias de Pernambuco,
Itamaracá e Paraíba em finais Quinhentos, Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia, Tese de
doutorado.
Houaiss, Antônio / Villar, Mauro de Salles (2001), Dicionário Houaiss da língua portuguesa, Rio de
Janeiro, Objetiva.
Kreutz, Lúcio (2000), A educação de imigrantes no Brasil, in: Eliane Lopes / Luciano Faria Filho / Cynthia
Veiga (edd.), 500 anos de educação no Brasil, Belo Horizonte, Autêntica, 347-370.
Lobo, Tânia / Oliveira, Klebson (2013), Ainda aos olhos da Inquisição: novos dados sobre níveis de
alfabetização na Bahia em finais de Quinhentos, in: Rosario Álvarez/Ana Maria Martins/Henrique
Monteagudo/ Maria Ana Ramos (edd.), Ao sabor do texto. Estudos dedicados a Ivo Castro, Santiago de
Compostela, Universidade de Santiago de Compostela, Servizo de Publicacións e Intercambio Científico.
273-291.
Lucchesi, Dante (2006), Século XVIII, o século da lusofonização do Brasil, in: Werner Thielemann (ed.),
Século das luzes: Portugal e Espanha, o Brasil e a Região do Rio da Prata, Frankfurt: TFM. 351-370.
(Biblioteca Luso-Brasileira, 24).
Lucchesi, Dante (2015), Língua e sociedade partidas: a polarização sociolinguística do Brasil, São Paulo,
Contexto.
Mamiami, Luiz Vincencio (1699/1877), Arte de Grammatica da Lingua Brasilica da Naçam Kiriri (com
notas introdutórias de Batista Caetano de Almeida Nogueira), Rio de Janeiro, Bibliotheca Nacional.
Marcílio, Maria Luíza (1999), A população brasileira colonial, in: Leslie Bethel (ed.), História da América
Latina. Vol. II América colonial, São Paulo, EDUSP / Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão. 311-338.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia, Uma interpretação para a generalizada difusão da língua portuguesa no
território brasileiro, Gragoatá 9 (2000), 11-27.
Mattos e Silva, Rosa Virgínia (2004), Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro, São Paulo,
Parábola
3
Mattoso, Kátia de Queirós ( 1990), Ser escravo no Brasil, São Paulo, Editora Brasiliense.
Mussa, Alberto (1991), O papel das línguas africanas na história do português do Brasil, Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Dissertação de Mestrado inédita.
Nobre, Wagner Carvalho de Argolo (2011), Introdução à história das línguas gerais no Brasil: processos
distintos de formação no período colonial, Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia,
Dissertação de Mestrado inédita.
Oliveira, Maria Inês Côrtes, Quem eram os “negros da Guiné”? A origem dos negros na Bahia, Afro-Ásia
19/20 (1997), 19-73.
Petter, Margarida Maria Taddoni (2006), Línguas africanas no Brasil, in: Suzana Alice Marcelino
Cardoso/Jacyra Andrade Mota/Rosa Virgínia Mattos e Silva (edd.), Quinhentos anos de história
linguística do Brasil, Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia, 117-142.
Queiroz, Sônia (1998), Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga, Belo Horizonte,
EDUFMG.
Ribeiro, Darcy (1995), O povo brasileiro: a evolução e o sentido do Brasil, São Paulo, Companhia das
Letras.
Rodrigues, Aryon Dall’Igna, Línguas indígenas: 500 anos de descobertas e perdas, D.E.L.T.A. 9(1) (1993),
83-103.
Rodrigues, Aryon Dall’Igna (1986/1994), Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas,
São Paulo, Edições Loyola.
Rodrigues, Aryon Dall’Igna, As línguas gerais sul-americanas, Papia 4(2) (1996), 6-18.
2
Saviani, Dermeval ( 2006), O legado educacional do “breve século XIX” brasileiro, in: Dermeval Saviani et
al., O legado educacional do século XIX, Campinas, Autores Associados.
Schwarcz, Lilia M./Starling, Heloisa, M. (2015), Brasil: uma biografia, São Paulo, Companhia das Letras.
5
Silva Neto, Serafim da ( 1950/1986), Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, Rio de
Janeiro, Presença/Instituto Nacional do Livro.
Teyssier, Paul (1982/1997), História da língua portuguesa, São Paulo, Martins Fontes.
Vitral, Lorenzo (2001), Língua geral versus língua portuguesa: a influência do processo civilizatório, in:
Rosa Virgínia Mattos e Silva (ed.), Para a história do português brasileiro: primeiros estudos, São Paulo,
Humanitas, 303-315.
Vogt, Carlos/Fry, Peter (1996), Cafundó: a África no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras.
Wehling, Arno / Wehling, Maria José C. de M. (1994), Formação do Brasil colonial, Rio de Janeiro, Nova
Fronteira.