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Considerações:
CAPÍTULO 4
O Estado não pode ser considerado uma simples ampliação do círculo familiar, nem uma integração
de agrupamentos particulares, onde a família é tida como um exemplo máximo. Na verdade, entre
o Estado e a família, não há uma gradação, mas sim uma descontinuidade e até mesmo uma
oposição. Esse equivocado pensamento romântico foi propagado por alguns doutrinadores
entusiastas no século XIX, que afirmavam que o Estado e suas instituições derivavam diretamente
da família. No entanto, a verdade é bem outra, pois ambas pertencem a ordens distintas em sua
essência. O Estado surge apenas depois da transgressão da ordem familiar e da sua consequente
abolição, transformando o indivíduo em um cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e
responsável perante as leis da cidade. Esse fato representa um triunfo do geral sobre o particular,
do intelectual sobre o material e do abstrato sobre o corpóreo, e não uma depuração sucessiva ou
uma espiritualização de formas naturais e rudimentares, como se descreve na filosofia alexandrina.
A ordem familiar, em sua forma mais pura, é abolida por uma transcendência. Tal como expressou
Sófocles, Creonte representa a noção abstrata e impessoal da cidade, em conflito com a realidade
concreta e tangível da família. Antígona, por sua vez, ao enterrar Polinice, contraria as regras do
Estado, atraindo para si a fúria do irmão, que não age de acordo com sua vontade pessoal, mas sim
com a suposta vontade geral dos cidadãos e da pátria. Esse conflito é atemporal e continua a ocorrer
nos dias de hoje. Em todas as culturas, a suplantação da lei particular pela lei geral é acompanhada
por crises mais ou menos profundas e prolongadas que podem afetar profundamente a estrutura
social. O estudo dessas crises é um tema fundamental da história social. A comparação do regime
de trabalho das antigas corporações de artesãos com a "escravidão dos salários" nas fábricas
modernas é um elemento valioso para avaliar a inquietação social nos dias atuais. Nas velhas
corporações, o mestre, seus aprendizes e jornaleiros formavam uma só família, sujeitando-se
naturalmente a uma hierarquia, mas partilhando das mesmas privações e confortos. O regime
industrial moderno, por outro lado, estimula os antagonismos de classe, separando cada vez mais
empregadores e empregados, o que facilitou ao capitalista a exploração do trabalho por salários
ínfimos. Para o empregador moderno, o empregado se tornou um simples número, e a relação
humana desapareceu. A transição do trabalho industrial trouxe consigo uma crise que demonstra
as dificuldades de abolir a velha ordem familiar por outra na qual as instituições e as relações sociais
baseadas em princípios abstratos tendem a substituir os laços de afeto e de sangue. Algumas
famílias ainda persistem, obedecendo ao velho ideal de educar os filhos apenas para o círculo
doméstico, mas acabam desaparecendo diante das exigências das novas condições de vida. Para
alguns pedagogos e psicólogos de hoje em dia, a educação familiar deve ser apenas uma
propedêutica para a vida em sociedade, fora do âmbito doméstico.
Em síntese, a educação moderna tende cada vez mais a separar o indivíduo da comunidade
doméstica e a libertá-lo das chamadas virtudes familiares, representando as condições primárias e
obrigatórias para uma adaptação bem-sucedida à vida prática. Essa separação e libertação
representam uma mudança significativa em relação aos antigos métodos de educação, que
valorizavam a obediência como um princípio fundamental. No entanto, a obediência continua
sendo importante, desde que permita a adoção de opiniões e regras razoáveis formuladas por
adultos experientes nos terrenos sociais em que ela ingressa.A preparação adequada das crianças
para a desobediência é um aspecto importante para a formação da individualidade, que é o único
fundamento justo das relações familiares. Infelizmente, alguns pais acabam exercendo um controle
excessivo sobre os filhos, sufocando sua liberdade de escolha e tornando-os socialmente e
individualmente incompetentes ou mesmo psicopatas. É interessante notar que isso não se limita
apenas a pais de ideias estreitas, mas também a pais extremamente inteligentes e atilados, que
muitas vezes acabam exercendo um domínio excessivo sobre a criança. As boas mães, em particular,
podem causar maiores estragos do que as más. Nesse sentido, a ideia de família, especialmente a
de tipo patriarcal, pode lutar contra a formação e evolução da sociedade de acordo com conceitos
atuais. A adaptação dos indivíduos ao mecanismo social é especialmente sensível no nosso tempo,
em que virtudes antifamiliares, como o espírito de iniciativa pessoal e a concorrência entre os
cidadãos, predominam.
Ademais, existem formas de corrigir os inconvenientes impostos pelos padrões de conduta
impostos pelos círculos domésticos. Os estabelecimentos de ensino superior, por exemplo,
contribuem para a formação de homens públicos capazes, libertando adolescentes dos seus meios
provinciais e rurais e permitindo que se libertem progressivamente dos velhos laços caseiros. A
personalidade social do estudante, moldada em tradições particularistas, é forçada a ajustar-se a
novas situações e relações sociais, possibilitando uma revisão radical dos interesses, atividades,
valores, sentimentos, atitudes e crenças adquiridos no convívio da família. Embora nem sempre seja
suficiente para apagar o vinco doméstico, estas novas experiências permitem aos jovens alcançar
um senso de responsabilidade muito imprescindível que lhes fora até então vedado. A crítica
direcionada aos Estados que adotaram a criação de aparelhos de seguro e previdência social tem
se concentrado na diminuição da ação individual e na restrição das competições. Essa
argumentação é fruto de uma época em que a concorrência entre os cidadãos foi elevada à valor
social positivo, algo inédito na história. Mesmo aqueles que condenam o ambiente familiar
excessivamente restrito devem considerar que, nos dias de hoje, esses ambientes podem gerar
inadaptados e até psicopatas. Em épocas anteriores, as virtudes que se formavam no lar eram
também as que asseguravam a prosperidade social e a ordem entre os cidadãos. No Brasil, onde a
família patriarcal foi predominante, a urbanização provocou um desequilíbrio social. As pessoas que
foram formadas nesse ambiente não compreendiam a diferença fundamental entre o privado e o
público, o que gerou o funcionário "patrimonial", característico do sistema patrimonialista. Esse
funcionário considera a gestão política como uma questão de interesse pessoal, e não de interesses
objetivos, como acontece no Estado burocrático. A escolha dos servidores públicos é feita com base
na confiança pessoal, ao invés das capacidades individuais. No Brasil, é possível acompanhar ao
longo da história o predomínio das vontades particulares, que encontram seu ambiente em círculos
fechados e pouco acessíveis a uma ordenação imparcial. A supremacia da família é um dos efeitos
mais evidentes dessa situação. A vida doméstica sempre foi modelo obrigatório para qualquer
composição social no Brasil, mesmo com a adoção de instituições democráticas. O Brasil tem uma
contribuição única para a civilização, segundo uma expressão muito feliz: a cordialidade. Nós
seremos os responsáveis por apresentarmos ao mundo o conceito de "homem cordial". A nossa
maneira de tratar as pessoas com gentileza, hospitalidade e generosidade é tão bem vista pelos
estrangeiros que nos visitam, que se tornou um traço definido do caráter brasileiro. Essas virtudes
não significam apenas "boas maneiras" ou civilidade, mas são expressões autênticas de nossas
emoções extremamente ricas e transbordantes. Isso contrasta bastante com a ideia de civilidade,
que pode ser coercitiva e se expressar em mandamentos e sentenças. Por exemplo, no Japão, a
polidez envolve até mesmo os aspectos mais comuns da vida social e às vezes é confundida com a
reverência religiosa. As formas exteriores de veneração à divindade no cerimonial xintoísta não
diferem essencialmente, em muitos casos, das maneiras sociais de demonstrar respeito.
No entanto, os brasileiros estão muito distantes desse tipo de ritualismo social. Nossa maneira
ordinária de convívio social é o contrário da polidez. Pode parecer o contrário em aparência, mas
na verdade, a atitude polida consiste em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que
são espontâneas no "homem cordial". A polidez é uma forma de organização de defesa do indivíduo
perante a sociedade, detendo-se apenas na parte exterior e epidérmica do indivíduo, podendo
servir como uma peça de resistência quando necessário. E assim, é como se a polidez fosse um
disfarce que permite a cada um preservar intatas suas emoções e sensibilidade. O "homem cordial",
por outro lado, consegue manter sua supremacia social sem precisar usar essa máscara. Para ele, a
vida em sociedade é uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo e
em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência. Sua maneira de se expressar
perante os outros é uma forma de reduzir o indivíduo cada vez mais à parcela social, periférica, que
no brasileiro - como bom americano - tende a ser a que mais importa. Para esse tipo de indivíduo,
a vida social é uma forma de viver nos outros. Nenhum outro povo apresenta tanta aversão ao
ritualismo social como os brasileiros. Isso é evidente, por exemplo, na dificuldade que muitos
brasileiros têm em manter uma reverência prolongada ante um superior. Embora nosso
temperamento admita fórmulas de reverência, é quase somente enquanto não suprimam de todo
a possibilidade de convívio mais familiar. No domínio da linguística, essa tendência se reflete no
nosso pendor acentuado para o emprego dos diminutivos. A terminação "inho" é aposta às palavras
para nos familiarizar mais com as pessoas ou com os objetos e, ao mesmo tempo, para lhes dar
relevo. E essa é uma maneira de aproximá-los do coração. Sabemos que os portugueses, tão
próximos de nós em tantos aspectos, zombam de certos abusos que cometemos em relação aos
diminutivos. Outro aspecto peculiar da vida social brasileira, é a tendência para a omissão do nome
de família no tratamento social. Em vez disso, prevalece o nome individual, de batismo. Essa
tendência acentuou-se estranhamente entre nós e resulta, talvez, da sugestão de que o uso do
simples prenome importa em abolir psicologicamente as barreiras determinadas pelo fato de
existirem famílias diferentes e independentes umas das outras.
Enfim, o Brasil é um país com uma maneira de convívio social muito particular, baseada em uma
ética de fundo emocional. Isso é um aspecto da vida brasileira que poucos estrangeiros entendem
bem. Mesmo em setores que normalmente seriam alimentados pela concorrência, essa maneira de
ser ainda está presente. Nosso catolicismo típico, que permite que os santos sejam tratados com
intimidade quase desrespeitosa, pode parecer estranho para almas verdadeiramente religiosas.
Mas sua popularidade no Brasil, como a de Santa Teresinha, se deve ao caráter íntimo e fraterno de
seu culto, que não se adequa às cerimônias e suprime as distâncias entre fiéis e santos. O mesmo
ocorre com o Menino Jesus, companheiro de brincadeiras das crianças, que evoca menos o Jesus
dos evangelhos canônicos e mais o de apócrifos como o Evangelho da Infância. Essa forma de culto,
com raízes na península Ibérica e na Europa medieval, representa uma transposição para o domínio
religioso da aversão brasileira às distâncias sociais. Para nós, o rito ritualista se afrouxa e humaniza,
em oposição ao Japão, onde o ritualismo é mais rigoroso na conduta social. No Brasil, Cristo, Nossa
Senhora e os santos deixam de ser seres privilegiados, e todos querem estar em intimidade com
eles, como amigos próximos e familiares.
Apesar disso, esse culto sem obrigações e sem rigor, que dispensa esforço e diligência do fiel, pode
corromper o sentimento religioso genuíno. A religiosidade que se preocupa mais com a pompa
exterior e que não entende o verdadeiro sentido íntimo das cerimônias é incapaz de produzir uma
moral social poderosa. Ela se confunde em um mundo sem forma, sem ordem, sem forças para
impor uma ordem duradoura. Com isso, nenhuma elaboração política seria possível dentro dessa
religiosidade superficial, que apela somente para os sentidos e sentimentos, mas não para a razão
e a vontade. Isso explica por que a República brasileira foi proclamada pelos positivistas e
agnósticos, enquanto nossa Independência foi, em grande parte, obra de maçons. A devoção dos
brasileiros, como notado por viajantes estrangeiros, desde o Padre Fernão Cardim, é superficial e
pouco devota. Os serviços religiosos são frequentados mais por hábito que por devoção, e mesmo
os homens mais distintos participam sem compenetração do espírito das solenidades. As pessoas
comparecem a essas celebrações como se fossem a um folguedo, pois para que a devoção alcance
as almas, ela precisa ser espiritual, não apenas visual e auditiva. Em resumo, a devoção brasileira,
embora rica em intimismo e fraternidade, pode ser superficial e carente de um verdadeiro
compromisso com o sentido religioso íntimo das cerimônias e ritos. Isso pode explicar por que nossa
história política se desenvolveu sob influência de visões laicas ou racionalistas, sem
aprofundamento espiritual. Um visitante do século passado expressou suas dúvidas sobre a
possibilidade de se estabelecer no Brasil seitas mais rigorosas, como o austero metodismo ou o
puritanismo. Ele argumentou que o clima não é favorável à severidade das seitas nórdicas e que os
próprios protestantes logo degeneram aqui. No entanto, a exaltação dos valores cordiais e das
formas concretas e sensíveis da religião encontraram um terreno fértil no Brasil e acomodaram-se
bem a outros aspectos típicos de nosso comportamento social.
Nossa aversão ao ritualismo é explicável em parte pelo fato de que, normalmente, não vemos a
necessidade dele em nossa vida diária. A reação do brasileiro ao meio em que vive não é uma reação
de defesa, visto que sua vida íntima não é coesa nem disciplinada o suficiente para integrar-se
conscientemente no conjunto social. Por isso, ele é livre para adotar todas as ideias, gestos e formas
que encontrar em seu caminho, assimilando-os facilmente.
O texto fala sobre a falta de aptidão social e a valorização da personalidade individual configurada
pelo recinto doméstico entre os brasileiros. O trabalho é visto como meio de satisfação pessoal e as
profissões são consideradas meros acidentes na vida dos indivíduos. A inclinação geral para as
profissões liberais também é abordada, mas é observado que isso não é um fenômeno
distintamente brasileiro. As críticas feitas ao fato de os advogados ocuparem muitos cargos públicos
no Brasil também ocorrem em outros países, como os Estados Unidos. Além disso, ressalta o
prestígio das profissões liberais no Brasil, relacionado à tradição portuguesa de valorizar títulos
acadêmicos, e à cultura de exaltar a personalidade individual. Destaca-se também o amor por
formas fixas e leis genéricas, e a tendência ao positivismo como uma busca por definições claras e
inflexíveis. Os positivistas brasileiros eram paradoxalmente negadores e viviam narcotizados por
uma crença obstinada em seus princípios. Apesar de serem considerados a aristocracia do
pensamento brasileiro, sua postura essencialmente negadora não permitia que inspirassem
qualquer sentido construtivo aos negócios públicos do país. Eles eram conselheiros de alguns
governantes, mas sua virtude de desinteresse pessoal não era uma força para lutar contra políticos
mais ativos e menos escrupulosos. Benjamin Constant Botelho de Magalhães, considerado
Fundador da República brasileira, tinha nojo da política e era indiferente a quem governava. Ele
dedicava seu tempo aos estudos de matemáticas. A crença mágica no poder das ideias foi muito
presente na adolescência política e social do Brasil. A democracia sempre foi mal-entendida,
importada pela aristocracia rural e semifeudal. Os movimentos reformadores partiram de minorias
exaltadas e a persistência dos velhos padrões coloniais foi seriamente ameaçada somente após a
migração forçada da família real portuguesa em 1808. A distância entre o elemento "consciente" e
a massa brasileira se evidenciou em todos os instantes supremos da vida nacional. O romantismo
brasileiro foi principalmente artificioso e insincero. A literatura romântica brasileira, apesar de
sincera, tende a ser superficial e se afastar da realidade social do país. Os escritores dessa época
preferem criar mundos fictícios e se dedicar a questões estéticas, em vez de lidar com os problemas
reais. Esse comportamento é representativo também de outras esferas da sociedade, como a
intelectualidade oficial e a nobreza colonial. O amor pelos livros é visto como símbolo de sabedoria
e superioridade mental, mas pode levar a um distanciamento da vida real. Novas elites surgiram
com o declínio do mundo rural e são indicadas para preencher o vazio deixado pelas antigas elites.
A intelectualidade conservadora e aristocrática se destaca pela presunção de que o verdadeiro
talento é inato e pelo alheamento ao mundo circunstante. A alfabetização em massa não é
obrigatória para o progresso e pode até ser prejudicial se desacompanhada de outros elementos
fundamentais da educação. Simplificadores defendem soluções superficiais para resolver
problemas complexos. Críticas ao Brasil imperial e propaganda republicana revelam desencanto
com as condições do país. A ideia de que o Brasil precisava de mudanças vinha da vergonha sobre
sua realidade biológica. A República mostrou-se ainda mais além do Império, com corrupção do
Poder Moderador, divisão política em dois partidos e parlamento com função importante.