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Cândida Barros
Museu Paraense Emílio Goeldi (Belém, Brasil)
1
Há uma grande diversidade de ortografia para este termo na literatura colonial: tapuia,
tapuya, tapigigya, tapuigya, tapyyja, etc. Usaremos tanto tapuia (grafia moderna do português)
como «tapuyas» (empregado por Bluteau). A citação incluída no título foi retirada de Bluteau,
Vocabulario portuguez & latino, 1721, t. VIII, p. 47.
2
O trabalho foi resultado de um estudo conjunto com Charlotte de Castelnau L’Estoile no
qual tomamos como ponto de partida a concepcão de «língua geral» em Rafael Bluteau para
analisar o tema linguístico nas colônias portuguesas na América. Os resultados foram apresen-
tados na reunião do projeto LANGAS no INALCO (Paris) em 2012. Agradeço a Charlotte de
Castelnau L’Estoile e Ruth Monserrat pelas discussões e sugestões.
3
Pinheiro, 2005, p. 14.
Juan Carlos Estenssoro, César Itier (coord.), Langues indiennes et empire dans l'Amérique du Sud coloniale
Dossier des Mélanges de la Casa de Velázquez. Nouvelle série, 45 (1), 2015, pp. 99-112.
ISSN : 0076-230X. © Casa de Velázquez.
dossier langues indiennes et empire dans l’amérique du sud coloniale
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Definição de «língua geral» e «tapuya»
em um dicionário português-latim de 1712
Aryon Rodrigues observou no artigo «Língua geral» que esta expressão teve
circulação tardia na colonização portuguesa em comparação com a espanhola5.
Seu emprego como nome de língua da família tupi falada na sociedade colonial
portuguesa na América se tornou recorrente a partir da segunda metade do
século xvii6, porém, sua entrada em dicionários da língua portuguesa só ocor-
reu no século xviii. O padre Rafael Bluteau, da Ordem de São Caetano, institu-
cionalizou tanto a expressão «língua geral» como o termo «tapuya» na língua
portuguesa ao incluí-los no Vocabulario Portuguez & Latino (1712). «Tapuyas» é
entrada de um verbete7 e a expressão «língua geral» faz parte do verbete «língua»8.
«Língua geral» em Bluteau é definida em oposição à categoria de «línguas
particulares». Cada uma destas representava uma classe de idiomas caracteri-
zados contrastivamente (favorável à religião, conquista e comunicação versus
propício à guerra, insociabilidade e barbárie):
As linguas ainda que pareção innumeraveis, todas se podem reduzir
a duas, a saber, linguas matrizes, & géraes, que se estendèrão muito,
& saõ usadas entre muitas nações diversas, em razão das Conquistas,
Religião, commercio, que as introduzio; & linguas particulares, ou pro-
prias de alguma nação, que por consequencia saõ menos dilatadas9.
4
Delesalle e Valensi, 1972, p. 80.
5
Rodrigues, 1986, p. 96.
6
Ibid., p. 103.
7
Bluteau, Vocabulario portuguez & latino, 1721, t. VIII, p. 47.
8
Ibid., 1716, t. V, p. 138.
9
Ibid.
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cândida barros «em razão das conquistas, religião, comercio»
10
Ibid., p. 139.
11
Ibid.
12
Ibid.
13
Ibid.
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14
Bluteau, Vocabulario portuguez & latino, 1721, t. VIII, p. 47. Itálico acrescentado.
15
Vasconcelos, Crônica da Companhia de Jesus, t. I, p. 110. Itálico acrescentado.
16
Ibid., t. I, p. 109.
17
Ibid, t. I, p. 110.
18
Ibid.
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cândida barros «em razão das conquistas, religião, comercio»
19
Ibid.
20
Ayrosa, 1938, p. 264. Análise morfológica de tobajara: [t-oba-jara] [genérico-rosto-dono].
21
Ibid., p. 163.
22
Ibid., p. 264. Análise morfológica de amotareĩbara: amotar-eim-ara [desejar-negação-o que].
23
Ibid. Análise morfológica de oronhoamotareigm: ore-nho-amotar-eim [nós exclusivo + reflex.
mutuamente + desejar + negação].
24
Ibid., p. 172.
25
Araujo, Catecismo na Língua Brasílica [1618], fº 116vº.
26
Ayrosa, 1938, p. 147.
27
Ibid., p. 218.
28
Ibid.
29
Ibid., p. 309.
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30
Nimuendaju, 1981.
31
Castelnau L’Estoile, 2000, p. 42.
32
Vieira, «Sermão do Espírito Santo» [1697].
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cândida barros «em razão das conquistas, religião, comercio»
Assim como «tapuia» foi uma categoria criada pela política colonial para mar-
car fronteiras de identidade entre os que falavam a língua comum e os que não
a falavam, a categoria dos «nheengaibas» também foi fruto da mesma política.
Os motivos dos jesuítas para se ocuparem desses índios estavam rela-
cionados ao fato de que estes mantinham comércio com outras nações
européias que haviam se instalado na Guiana. Por vinte anos, os «Nheen-
gaíba» mantiveram guerras contra os portugueses36. Por outro lado, era do
interesse político dos portugueses a aproximação com os grupos indígenas
33
Ibid.
34
Vieira, Cartas do P. Antônio Vieyra da Companhia de Jesu, t. II, p. 22. Itálico acrescentado.
35
Daniel, Tesouro descoberto no Rio Amazonas [ca. 1757-76], vol. 1, p. 271. Itálico acrescentado.
36
Vieira, Cartas do P. Antônio Vieyra da Companhia de Jesu, t. II, p. 24.
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no Marajó, por eles estarem próximos a Belém, local onde havia sido fun-
dado um forte, um núcleo de colonos e algumas missões com grupos de
língua geral. Em 1661, duas missões jesuíticas (Arucará e Guaricuru) foram
fundadas com os «nheengaíbas».
37
Beozzo, 1983.
38
Vieira, Antônio, Regulamento das aldeias indígenas do Maranhão e Grão Pará [1658-1661],
citado por Beozzo, 1983, p. 199.
39
Ibid.
40
Eckart, Anselm, Zusätze zu Pedro Cudena’s Beschreibung der Länder von Brasilien...,
citado por Papavero e Porro (orgs.), 2013, p. 562.
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cândida barros «em razão das conquistas, religião, comercio»
Porém, as línguas não tupi eram utilizadas apenas na preparação dos adul-
tos para o batismo. As demais rotinas cristãs deveriam ser conduzidas em lín-
gua geral, como a confissão, por exemplo, para evitar a presença de intérpretes.
Os Nheengaíbas ilustram bem os limites impostos às línguas não tupi
na evangelização. Nos primeiros anos de contato com eles, o padre Manuel
Nunes (1606-1676) elaborou um catecismo breve. Trinta anos mais tarde, o 107
jesuíta João Filipe Bettendorff (1625-1698) continuou fazendo uso de uma
doutrina breve nessa língua. Mesmo assim, até o século xviii, depois de quase
cem anos de missão entre os nheengaibas, não há noticias de que os jesuí-
tas tivessem elaborado um confessionário em sua língua. Seus falantes eram
obrigados a confessarem pela «geral», como comenta o jesuíta João Daniel42.
Ele revela que as mulheres nheengaibas —também denominadas «tapuias»—
se recusavam a usar a língua geral na confissão e que os missionários tinham
que fazer uso de castigos para que elas confessassem por esta língua:
Como porém as confissões das tapuias por intérprete trazem consi-
go muitos inconvenientes, tem-se empenhado muitos missionários a
desterrar este abuso, já com práticas, e já com castigos: e posto que já
vai em muita diminuição, contudo ainda há algumas [mulheres nhe-
engaíbas] que nem a pao querem largar este abuso: tanto que já houve
algumas, às quaes o seu missionário mandou dar palmatoadas até elas
dizerem basta ao menos, pela língoa geral, antes se deixavam dar até
lhes inchar as mãos, e arrebentar o sangue, até que se resolviam a fazer,
o que deviam logo, que era o falar a língoa comum43.
Finalmente, caso não houvesse intérpretes nas línguas não tupi para auxi-
liar no batismo ou para preparar um catecismo breve, Vieira recomedava no
Regulamento «misturar» os índios que não falavam a língua geral com aque-
les que a sabiam no espaço da missão:
41
«Caderno da Doutrina pella Lingoa dos Manaos», 1757, Joyce, 1951, p. 41. Observa-se no
documento a multiplicidade de denominações para a língua usada na colonização (tupinambá
e língua geral). O término «tupinambá» foi associado à variedade usada na doutrina que serviu
de base à tradução manao.
42
Daniel, Tesouro descoberto no Rio Amazonas [ca. 1757-1776], vol. 1, p. 272.
43
Ibid., t. I, p. 272. Itálico acrescentado.
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em caso que totalmente não haja intérprete, nem outro modo por don-
de fazer o dito catecismo, será meio muito acomodado o misturar os
tais Índios com os da Língua Geral ou de outra sabida para que ao
menos os seus meninos aprendam com a comunicação44.
44
Vieira, Antônio, Regulamento das aldeias indígenas do Maranhão e Grão Pará [1658-1661],
citado por Beozzo, 1983, p. 199.
45
Daniel, Tesouro descoberto no Rio Amazonas [ca. 1757-76], vol. II, p. 225.
46
Anônimo, Gramatica da Lingua Geral do Brazil, fº 301.
47
Ibid., fº 275.
48
Leite, 1943, t. IV, p. 139.
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cândida barros «em razão das conquistas, religião, comercio»
A criação de mais uma categoria de índios que não falavam a língua geral
(«baré» como categoria genérica de índios novatos) mostra a manutenção de
práticas relacionadas à política de introduzir uma língua comum e a criação
correlata de identidades sociais para os grupos que não a usavam.
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52
Bluteau, Vocabulario portuguez & latino, t. V, p. 139.
53
Anônimo, Gramatica da Lingua Geral do Brazil, fº 301.
54
Ibid., fº 275.
55
Anônimo, s.d., [Dicionario da Lingua Brazilica?], fº 62.
56
Anônimo, 1771, Diccionario da Lingua geral do Brasil que se falla em todas as villas?, fº 89.
57
Anônimo, Vocabulário «Meirinho», fº 46.
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Referências bibliográficas
58
Roxo [1752] «As aves do Pará segundo as “memórias” de Dom Lourenço Roxo de Potflis»,
citado por Teixeira, Papavero, Kury, 2010, p. 103.
59
Carlos Moreira Neto estudou a categoria tapuio entre 1750 e 1850 e sinaliza o seu fim
como categoria específica a partir de 1870, Moreira Neto, 1988, p. 102.
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Palavras chave
Amazônia, Brasil, colonização, jesuítas, língua geral, tupi
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