Você está na página 1de 99

Vintedois

contos de Roberto Moreno

OUTRO

Então é isso, um irmão gêmeo. Várias vezes vieram me dizer: "vi você em tal lugar". Claro que não era eu.

Agora, olhando de frente, é uma sensação única. Algo como um espelho vivo, que não obedece à maior parte
de meus movimentos, mas que tem o mesmo rosto, mesmo corpo, mesmo sinal na testa, jeito de mexer as
mãos, de olhar, de sorrir. Com essa diferença: ele sorri muito, é expansivo. Talvez por ser assim mesmo,
talvez por não estar surpreso. Já sabia de minha existência, pela TV, pelas revistas de fofocas, mas nunca
tinha me procurado.

Sabia que, se pensamos da mesma forma, eu responderia ao e-mail suspeito e me encontraria com ele neste
bar, pela curiosidade de saber quem teria escrito apenas "eu sou você. me encontre às tantas em tal lugar".

Aqui estou, aqui estamos, aqui estou. Não sei o que dizer. Não adianta procurar as razões, a maternidade,
como teriam nos separado, se vamos aparecer no blog do Fernando. Aqui estamos, aqui estou. Olho para ele
e não consigo formular uma frase conexa.

Ele ri e me pede um autógrafo. Autógrafo do irmão famoso, que é ele mesmo, que tantas vezes foi
confundido na rua; tantas vezes deu autógrafos a passantes como se fosse eu.

Olho para ele mais uma vez, tentando encontrar diferenças e observo a forma como leva a xícara de café à
boca. Não tomo café; nunca seguraria a xícara daquele jeito.

Por sorte, vim preparado ao encontro misterioso.

Tiro a arma da cintura e disparo em direção a ele, à sua testa, à sua marquinha na testa.

Aqui estou.

150 KM/H

Quando ela disse 'venha, dá tempo', eu estava a trezentos quilômetros de distância, correndo a toda,
onde dava, só reduzindo perto dos postos policiais. Trezentos quilômetros no sentido contrário ao seu.
Li e apaguei a mensagem na hora, instintivamente. Continuei dirigindo, no sentido contrário ao seu.

Fiquei sem saber o que fazer. Esperava aquele chamado há mais de um ano e, na véspera, na última
massagem cardíaca, menti: telefonei dizendo que estava a trezentos quilômetros de distância e que não
poderia ir à sua festa de aniversário.

Disse que só chegaria à cidade durante a madrugada, e a festa, no salão do hotel, tinha hora para acabar.
Esperava, com aquela farsa, que ela dissesse que me ama, e que me esperaria depois da festa, a
qualquer hora, no quarto 41 do hotel.

Mas ela não disse nada. Agradeceu os parabéns, mandou um beijo e desligou. A um quarteirão dali, me
desesperei, com aquela última massagem cardíaca desperdiçada. Resolvi partir. Sairia, sem rumo, na
noite do dia seguinte, para que estivesse a trezentos quilômetros de distância na hora de sua festa,
oferecida pelo embaixador não-sei-de-onde, com a presença do ministro não-sei-quem, da top model
fulana de tal. Fugiria daquela gente, rasgaria as cordas que me prenderam a ela durante tanto tempo,
cordas invisíveis, impalpáveis.

Na noite do dia seguinte, peguei o carro, enchi o tanque, e sorteei o rumo girando a caixa de fósforos.
Embiquei na estrada leste só com o dinheiro do pedágio; uns trocos a mais, talvez.

Rodei quase trezentos quilômetros.

Tocata e Fuga, de Bach. Sinal de mensagem no celular. Desvio os olhos da linha amarela que leva ao
horizonte para o aparelhinho piscante e leio 'venha, dá tempo'. Apago a mensagem na hora,
instintivamente. Continuo dirigindo, no sentido contrário à cidade onde ela está. Fico sem saber o que
fazer. Invento a desculpa mental de comprar cigarro e páro num posto. Pergunto à mocinha do caixa
'para que lado fica a cidade?' e ela ri, acha que é uma cantada, qualquer pessoa sabe para que lado fica a
cidade; ela sorri e aponta: pra lá.

Manobro o carro para pegar a pista de volta. Acelero. Ainda dá tempo. Acelero sem me preocupar com
as placas ou com a polícia. Em duas horas chego à cidade. Corro para o hotel e encontro o salão vazio.
Pergunto qualquer coisa a um funcionário e ele responde que os últimos convidados sairam faz uns
quinze minutos. Encosto na concierge e peço para chamar o apartamento 41.

- Senhor, a suíte 41 está desocupada.

- Desocupada? Desde quando?

- Desde ontem, senhor.

ARIANA
Freqüentou diariamente a pequena livraria do bairro durante os oito meses em que morou ali do lado. Mas
seus interesses estavam aquém dos livros. Café. Puro, forte. Nos fundos da loja. Na mesinha de canto, se
dedicava apenas ao saborear, ao identificar nuances no paladar e ao praguejar silencioso contra os que
adoçavam e aleitavam seus cafés. Sua raiva contra amantes do açúcar só se equipara àquela contra os que
deterioram o sabor dos alimentos com sal. Um e outro tempero, disfarces, adaptações egoístas de bem estar,
desrespeito à composição química original do arroz, da carne, do chá, das coisas do chão, da superioridade de
uma folhinha de manjericão.

O livro, incômodo, sempre esteve na prateleira central durante os oito meses em que Catarina visitou o café
da livraria diariamente. Auto-ajuda. Desprezo. Como alguém pode querer adoçar sua vida com explicações
fabricadas, receitas rígidas de ingredientes comuns? Passava batido. Todos os dias. O incômodo livro, na
prateleira central.

Numa manhã de chuva, depois de sua dose de adrenalina líquida, Catarina saia da loja quando o livro voou
vagarosamente em direção aos seus pés. Sentiu um arrepio. Não adiantou ignorá-lo. O livro estava pronto,
queria ser devorado por ela, ela estava pronta para devorar o livro. Vintedois, era o título. Não fazia idéia do
que se tratava, mas o fato de estar na prateleira central, aquela dos mais vendidos, era argumento suficiente
para deixá-lo lá.

"Ai, como sou desastrada! Coisa de ariana, sabe?"

Catarina quase se entregava à análise mística do livro que busca o leitor quando a vendedora que havia
esbarrado na estante se aproximou para pegar o exemplar derrubado. Catarina foi mais rápida - se abaixou o
recolheu. A vendedora estendeu o braço, agradecida, mas Catarina não entregou. "Vou levar".

INTRANGEIRO

Já faz muito tempo que saí em viagem pelo Brasil. Naturalmente, perdi a conta dos quilômetros
percorridos e da quantidade de cidades e lugarejos visitados, principalmente se levarmos em
consideração que raramente percorro uma trajetória linear. Esses caminhos passam pela mesma
localidade repetidas vezes, pelo simples motivo que, se estou em um ponto e sinto vontade de ir a
outro, vou, sem me preocupar se é perto ou de fácil acesso. Porém, quando acontecem estas interseções,
tomo todos os cuidados para apenas circundar as cidades, jamais atravessá-las. É inadmissível revisitar
um local, assim como reler um livro ou rever um filme. Lembro que quando saí para viajar tinha 14 ou
15 anos. Antes disso nunca havia deixado o bairro.
Não que considerasse os muros em volta do bairro uma barreira, nada disso. Apenas não tinha vontade
de sair. Os muros, vazados a cada 150 metros por grandes portões abertos, com placas de "volte
sempre" eram, na verdade, um convite para aventuras, com a certeza de um porto seguro no retorno.
Pensando bem, uma vez, acho que só uma, pensei em viajar antes disso. Cheguei até o portão oeste,
quando me dei conta de que não tinha dinheiro para o ônibus e me resignei. Agora, também, não tenho
um centavo.
A andança é custeada com trabalhos prestados pelo caminho. Pedir carona, nunca. Aceitar comida
grátis, nem pensar. E você deve imaginar como é difícil conseguir trabalho quando se é forasteiro. Já
aconteceu de passar quase um ano na mesma cidade me abastecendo de recursos para próximas etapas,
evitando o risco de seguir viagem e não encontrar outro bar ou restaurante que estivesse precisando de
um lavador de copos.

Sim, esta é minha profissão. Aprendi cedo. Existe muita resistência por parte dos empresários em
contratar um lavador de copos, principalmente se for um desconhecido, sem referências. Quando
precisam de um lavador de copos, recorrem a generalistas que também lavam talheres, pratos, até
panelas. Não faço isso. Tenho uma reputação profissional a zelar - sou lavador de copos, o melhor. Mas
não digo que sou radical - por força da necessidade, já cheguei a lavar e enxugar xícaras durante alguns
dias, mas o proprietário da cantina deve ter notado que aquela não era minha especialidade e me
dispensou. O dinheiro só foi suficiente para uma passagem de ônibus até a cidade vizinha.

QUASE

Que barulho é esse? Campainha? Alarme? Telefone? Ele nunca havia ouvido isso antes. Interfone. É a
primeira vez que toca o interfone do apartamento. E olhe que ele já mora no prédio há um bom tempo.
Nunca recebia visitas. Nem a irmã. Alô? Professor, tem uma dona Elisa aqui. Elisa? (pausa para pensar
nos motivos que levariam Elisa ao seu apartamento. Alguma coisa grave, urgente. Nem ligou.
Estranho). Ok, pode subir.
Elisa é amiga quase de infância. Se conheceram numa festinha de aniversário, daqueles primeiros
bailinhos. Quase ficaram. Na época ainda não se ficava. Conversaram um pouco, começaram a se
interessar um pelo outro e quase dançaram. Augusto chegou antes e foi ficar de rosto colado com ela.
Alguém apagou a luz.
Ele espera Elisa na porta do apartamento. Pé direito apoiado no batente, posição de ponto de ônibus.
Velha jaqueta de couro. Um cigarro na boca e seria James Dean. Mas ele não fuma. Parou ainda
durante a faculdade. Alguns segundos e ele ouve o elevador se aproximando. Pin. Oi, Eli, que surpresa.
Tudo bem? Dois beijinhos.
Enquanto ela percorria os dois metros que os separavam, ele pensava no dia em que quase foram ao
cinema. Se encontraram na rua, por acaso, olhando a vitrine de uma loja de vinhos. Dois beijinhos, e aí,
tudo bem? O que tem feito? Tá indo pra onde? Cinema? Eu também. Que filme? Legal, posso te
acompanhar? Ainda na hora da pipoca o celular dela tocou. Que pena, preciso ir. Uma paciente está
sentindo as dores. Tudo bem.
Sua irmã tá aí? Ah, você quer falar com ela? Saiu. Não, não, é com você mesmo. Riso quase tímido.
Entra. Dá licença. Senta aqui. Brigada. (um, dois, três, quatro segundos de constrangimento).
E aí? Os dois juntos. Risos. Queria te falar uma coisa, desculpe não ter ligado antes. Tudo bem, o que
é? Algum problema? Não, não... nenhum problema. Tem uma água? Claro.
Gelada ou sem gelo? Misturada. Fala, você está parecendo nervosa. Não, não, imagina. Nada demais. E
aí, como vão as coisas? Trabalhando, né? Como sempre. E a pós? Parei, estava sem grana. (um, dois,
três, quatro, cinco, seis segundos)
Ele começou a achar que era assunto de morte. Algum amigo comum, quase de infância, deve ter ido
pro beleléu. Ela é médica, deve ter recebido a notícia antes e veio me avisar. Por isso está nervosa, sem
coragem.
Mais água? Não, obrigada. Sabe o que é? Queria te fazer uma pergunta. Pode fazer. (Se é pergunta, não
tem defunto).
Os encontros entre os dois não eram raros, nem freqüentes. Tinham uma quase intimidade, sabiam da
vida pessoal um do outro, mas nada íntimo. Também nem tinham tanto assunto assim para uma visita
inesperada, para chamar pelo interfone, que nunca havia tocado.
Elisa sabia que ele não mentiria. Todo mundo comenta que ele nunca mente e, por isso, de vez em
quando se dá mal na vida. Mas que idéia, nem uma mentirinha? Vira um pouco o braço e quase derruba
o copo da mesinha. Risos. Tudo bem, vai na lata, vou perguntar.
- Você gosta de mim?
(cinco, dez, quinze segundos, ele levanta, senta, não sabe o que dizer, se deve dar uma resposta prática,
pensa em mentir, ri nervoso, olha pra ela e quase responde na lata, ganha tempo) Que pergunta é essa?
Ela esconde o rosto - ai que vergonha, não devia ter vindo aqui, mais risos. Ele cria coragem e muda de
lugar. Cabem dois no sofá pequeno. Ela entendeu a resposta, mas queria ouvir, e ficou olhando nos
olhos dele, esperando uma resposta prática, mesmo que ele não dissesse nada. Ele prefere falar - você
sabe. Não, não sei, quero saber, por isso vim perguntar. Faz dias que estou ensaiando. Ele chuta a
mesinha e o copo vai pro chão. Tinha tudo para cena romântica e vira pastelão. Quase sem parar de rir,
ela reforça, já descontraída - e aí, gosta? Gosto. Na lata. Gosto muito.
(quinze, trinta segundos de contemplação, olhos úmidos, os quatro)
Mas a gente sabe que não dá, né? É, a gente sabe. Mas e aí? Nem faço idéia. Não devia ter perguntado.
Devia, sim, claro, senão a gente nunca teria certeza. É, a gente tinha quase certeza. É, quase. E agora?
Me dá um beijo? E ele responde na prática.
Amigos comuns, quase de infância, acham que eles namoraram em segredo. Afinal, tinham tudo a ver
um com o outro. Mas eles nunca tiveram coragem. Se não puderam antes, agora menos ainda. Cada
um, cada vida. As coisas, trabalhos, relacionamentos.
Foi um beijo demorado, no sentido de demorado para acontecer. Rápido, no sentido prático. Meio
atrapalhado. Motivo para mais risadas e um longo, demorado abraço.(cinco segundos)
Preciso ir. Já? Tenho uma consulta daqui a pouco. Ah. A gente se fala. É, me liga. Quer dizer, volta.
Não sei. Vamos marcar um cinema? Sim, vamos. Como amigos? Claro. Tá, a gente se fala. Tchau.
Chega o elevador. Troca de olhares. Ele tenta dar um selinho. Ela escapa. É, não dá.
Quase.
Enquanto Elisa se atrapalha com os botões e sobe em vez de descer, ele se vira e espatifa o nariz na
porta, que calculava ter deixado aberta.

QUASE

Não sei por que fui até a casa dele. Estava aqui, sem fazer nada, folheando revistas, devo ter visto o
nome em alguma página; nesta? não, foi antes, era do lado esquerdo, página par, sumiu, mas devo ter
visto em algum lugar, ou então era só uma palavra parecida, uma letra repetida, sei lá, alguma coisa me
fez lembrar dele. Sorri em pensamento. Fui até a geladeira, peguei um danone, sem colher, com o dedo,
como criança, com a língua, como ele, já havia me esquecido dele naqueles poucos segundos entre o
pufe e a cozinha, mas agora, ele de novo, com sabor de abacaxi.
Voltei para a revista, folheei, não entendi nada do que estava escrito, tentei de trás pra frente, página
87, 85, 83, futilidades, palavras desconexas, assuntos mornos, 73, é o apartamento dele. Pensei nele de
novo, por que será? Vou até lá. Loucura, tudo bem, vou até lá, preciso ver se a irmã dele tem um livro
de qualquer coisa, vou até lá, mas agora? Vou até lá. E fui, sem saber, sem entender, fui.
Contrasenso, estupidez, não sei. Tantas vezes fugi, ou melhor, escapei, não, fugi mesmo. Nunca tive
certeza, ou melhor, nunca soube, ou nunca quis saber se gostava mesmo dele. Aquele dia, no shopping,
disse que tinha dentista, tinha nada, menti. Dei carona pra ele um outro dia, errei o caminho, de
propósito, confesso, (confesso pra quem? pra mim, mas eu já sabia), mas faltou coragem, mudei o
caminho, dei indiretas até que ele tomou a atitude e disse que ficaria por ali mesmo. Aliviada, com peso
na consciência, tchau, beijinho, sumi.
E lá fui eu, de ônibus, sei lá por quê. Dia de rodízio, sei lá por que fui até lá. Lembrei de quando a gente
voltava do colégio de ônibus, a gente tinha se conhecido um ano antes, acho que foi numa festa, não
tenho certeza, ele descia um ponto antes, mas se esquecia e descia dois depois.
Colei na grade e resolvi voltar, mas o porteiro já tinha me visto, não vou passar por louca, fiquei.
Apartamento 73, perguntei pela irmã. Como é o nome da senhora? Só um minuto que eu vou ver se elá
está. Alô? Professor, tem uma dona Elisa aqui. Ele falou pra subir. Ele? O professor, irmão da dona
Sonia.
Subi, ou melhor, entrei no elevador e não apertei o botão, travei, resolvi sair, esbarrei com uma
senhora, dona Conceição, soube depois, que andar? Quarto, obrigada. Ela cheia de sacolas de
supermercado, a porta do elevador fechando. Você também vai para o quarto? Hein? Ah, não, esqueci
de apertar o sétimo. Dona Conceição está com dor na coluna, muito peso, trabalho da casa, o filho está
pra ser promovido, quem sabe consiga pagar uma diarista, mas ela sabe que é difícil, está cheio de
gente mal intencionada por aí, ou preguiçosa, e ela vai ter de acabar fazendo o serviço, mas a dor nas
costas, nos poucos segundos entre o térreo e o quarto andar. Té logo, tudo de bom. Ainda bem que ela
não me perguntou se sou médica, nem teria motivo, hoje não sou nada, sou confusa e não sei o que
estou fazendo aqui, como será que ele vai me receber? não trouxe o estetoscópio. Pin. Chegou. Oi, Eli,
que surpresa. Eli? Ele nunca me chamou de Eli, sempre fui Elisa, porque esse apelido agora? Tudo
bem. Sua irmã tá ai?
Entrei. Ficamos ali uma eternidade, sentados, um de frente para o outro, em silêncio. Toca, telefone.
Toca, telefone. Toca! E o telefone não tocou e continuamos ali. Se tocasse poderia inventar uma
história, sei lá, uma paciente precisando de mim. Ah, essa não, acho que já usei com ele, sim, usei, no
cinema. Falei que uma paciente estava com hemorragia, alguma coisa assim.
E aí? Que mico, falamos os dois juntos, na falta de assunto. Quem fala junto vai virar compadre, sai
fora, não quero ser comadre dele. Ele deve me achar uma completa idiota, vem até a casa dele, depois
de anos, e não fala nada. Preciso falar alguma coisa, ou então sair correndo, ou então pular pela janela,
mas é muito alto, não vale a pena, risinho sem graça, queria te falar uma coisa, sei lá o que vou dizer,
desculpe não ter telefonado. Algum problema? Não, nenhum. Pedi água.
Estava explodindo de nervoso e ele ali, sem entender nada. Mais um tempão daquele maldito silêncio.
Ai, que terror! Vou pular pela janela. Queria te fazer uma pergunta. O rosto dele ficou menos tenso.
Vou perguntar direto, ele vai ter que responder. E se responder, vai ser de verdade, ele nunca mente.
Será mesmo? Todo mundo fala isso, mas acho meio impossível, todo mundo mente de vez em quando.
Penso em fazer um gesto de que não é nada importante e esbarro no copo, que desastre, quase derramo
água no carpete, o americano bambeou, duas, três vezes e parou. Que alívio. Alívio nada, vai na lata,
vou perguntar.
- Você gosta de mim?
Não vi mais nada. Nem sei o que aconteceu. Não sei se ele respondeu, se mentiu, se inventou, se
disfarçou, nem sei como, de repente, ele apareceu do meu lado, parece que falou alguma coisa, não
tenho certeza, o que foi isso? parece que caiu alguma coisa, está tudo rodando, o que que eu estou
fazendo aqui? vou sair correndo, não deu tempo, ele me beijou, acho que beijou, sim, só pode ter sido
isso, sei muito bem o que senti, ele me beijou, será que isso é uma resposta? Que cara maluco! Isso não
é possível, não pode acontecer, não podia ter acontecido, continuei falando alguma coisa que nem eu
mesma entendi, começaram a passar imagens da nossa adolescência pela minha cabeça, uma festa, um
cara chamado Alfredo, Alfredo? que nome... Otávio, sei lá, um cara me beijou e agora está me
abraçando, socorro, quem é esse cara, preciso dar o fora, toca, telefone, toca, tocou, cadê o telefone,
não está na bolsa, esqueci em casa, sai afobada, nem trouxe o celular, preciso sair daqui, do que esse
imbecil está rindo, me larga, vou embora, cinema? não, não dá, tem uma paciente me esperando, tchau,
o elevador chegou, quarto andar? não, a dona Conceição é no décimo, enquanto a porta está fechando
escuto um barulho de batida, será que caiu alguma coisa no chão?
PIRES

Teias de aranha já se formavam entre o queixo e a mesa - semanas sem sinal, impressão de meses; toca o
telefone afinal: tomar café?

Pulo, me desvencilhando das teias, lavo o rosto, visto uma camiseta limpa e corro ao seu encontro. Chego
antes; logo ela aparece, cheiro de banho.

O café? Um bom tanto de conversa, até que chega. Fazemos o café render, saboreamos cada gota, são dezoito
segundos para cada volta da colherinha. Não nos importa se esfria. Trinta e dois segundos para levar a xícara
aos lábios, seus lábios, quentes, de porcelana, o açúcar, seu sorriso.

O cantinho do balcão, lá no fundo, seus olhos, a gota de café.

O cardápio de doces, este, aquele, ela aponta, eu aponto, os dedos se tocam, ouvem a música? É eterna, dura
horas, dura todas as horas necessárias para uma xícara de café e um pedaço de doce, só um. Só para poder
compartilhar o prato, só para encostar acidentalmente uma colher na outra.

E vai o tempo, ninguém se dá conta, até que a madrugada pesa para o garçom que começa a nos olhar com
insistência; percebemos e rimos. Seus lábios, seu sorriso. Eu pago, eu pago, vamos dividir.

Os movimentos de pegar bolsas, pretextos para roçar de braços, onde está seu carro? Ali em frente; o meu
está no outro quarteirão, vou dar a volta. Mais um quarteirão juntos, não pode acabar, esse momento tem que
ser como a música, até que o estacionamento surge à nossa frente.

Ainda falamos, a esmo, qualquer coisa, só para não ter despedida.

E assim seguramos o relógio, esticamos o encontro. Um fiapo na sua roupa, invisível, inexistente, só mais um
carinho permitido, nada mais.

Tchau, beijo no rosto, mais demorado que o previsto, o máximo permitido, palavras medidas.

Olhar comprido, a teia de aranha começa a se formar de novo. A mão segurando o queixo, olhos no
telefone, esperando ela ligar, o máximo permitido, para mais um café.
CATARINA ACORRENTADA

I
Julio, me liga vai, preciso de você, tô numa secura danada. Por favor. Tô esperando. Um beijo. Julio,
me liga, é sério.

Fumaça dançando, indo e vindo, espiral sem regra, fugindo da brasa que teima em aparecer no meio da
cinza, já pendendo para cair do pouco cigarro que resta entre os dedos de Júlio. Mão suada, manga
comprida apesar do calorão. No cotovelo, a outra mão, agarrando firme, formando travesseiro para a
cabeleira despenteada e para a cara afundada. Júlio não consegue chorar. O molhadinho na mesa é do
copo de vinho gelado. O recado na secretária eletrônica dói por dentro, mas o corpo obedece à sua
determinação de nunca mais falar com Catarina, nunca mais, pelo menos até o dia em que ela resolva
ter algo sério com ele, um namoro, pelo menos. Casamento não vale, não de novo. Em baixo da mesa,
pernas trancadas, sapatos desamarrados, sem meias.

II

Volta a fita. Fila do cinema, Catarina segurando vela para Suzi e Jaime. Truffaut, para ela, era marca de
chocolate. Bertolucci devia ser jogador do Real Madrid. Preferia uma comédia romântica, com aquele
coroa que quase não abre os olhos. Mas com a casa em reforma, feriado sem grana, segurar vela em
filme de arte até que era programa aceitável. Suportou a fila. Como é que pode? Pleno feriado e um
tanto de gente desses esperando pra ver filme esquisito. Reclamou da fila.
Amigo de escola, quase namoradinho, tantos anos atrás, agora um esbarrão. Ele olha, pisca, parece que
reconhece, ela se segura pra não dar bandeira, ele pergunta: Catarina? E ela: Julio? Oi! Quanto tempo!
E então? Pois é. Casou? Nada... e você? Separei. Poxa. Tudo bem. Vai ver esse filme? Vou sim. Você
gosta? A-do-ro. Que legal, também curto pra caramba.
Mentiram.
Apresentações, ois, tudo-bens, tem visto fulano? Nunca mais. Ah, nem eu, mudei de bairro, sabe? Se
formou em quê? Direito. Eu fiz Publicidade.
Cento e oitenta minutos. Para Suzi e Jaime, esplêndido. Para Catarina, filme nojento. Para Julio, ué,
você disse que gostava. Já vi melhores, sem tanta apelação. Onde já se viu, irmão com irmã?
Risos anticaretice dos três acompanhantes. Riso de ai-como-estou-sendo-trouxa, de Catarina.
Vamos tomar um café? Boa! Legal! Ih, eu não posso, gente. Suzi precisava voltar cedo pra casa, sei lá
por quê. É, não dá, Jaime decepcionado. Suzi: vai você, na boa. Jaime: que é isso, eu te acompanho.
Suzi: fica vai, é coisa minha. Jaime faz que pensa, decisão tomada. Tá bom, vou tomar café com eles.
Tudo bem mesmo? Claro, na boa. Eu chamo o táxi pra você.
III
Alô, Julio, é o Jaime. Atende aí rapaz. A Catita tá mal de verdade, liga pra ela. Falou.
Catarina despenteada, borrada de chorar. Jaime: não faz assim, ele deve ter saído. Ele gosta de você. E
ela nem ouve. Nem os consolos vazios nem as citações de poetas ingleses nem os pensamentos
românticos de Jaime. Ela só quer o Julio. Na cama. Só isso. Custa? Jaime: Cati, vamos falar sério. Você
quer sexo, certo? Vem comigo. Eu faço amor com você a noite toda, prometo. Cati: pára com isso! Eu
não quero fazer amor, eu quero é trepar! E com o Julio! E os dois tentam ainda, uma vez cada, ligar
para a casa e para o celular do amigo, ninguém atende.
A brasa chega à bituca. Falta coragem para acender outro cigarro. Julio cai no sono, na mesa da
cozinha.

IV

No dia do cinema.
Café virou cerveja, cerveja virou uísque, tarde virou noite e depois madrugada. Os três pareciam
amigos de infância. Riam de tudo. Da orelha do garçom, dos pastéis que chegaram frios, dos erros do
cardápio. Jaime se sentia amigo de infância dos dois, mas disse que precisava ir pra casa e ligar para
Suzi. Catarina lembrou: a gente não ia tomar café? Mais risadas. Vamos pro meu apartamento, a gente
toma café e continua o papo. Boa! Garçom, a continha.
A fumaça, ou vapor, qual será a diferença?, dançava ao som do café pingando no bule de vidro. Nem
deu tempo de terminar de coar. Catarina tirou a blusa, como sempre fazia quando chegava em casa,
mas dessa vez tinha mais gente por perto. Julio entendeu como um convite. Jaime não entendeu nada.
Catarina aceitou o convite que não tinha feito. Jaime tomou um gole de café sem açúcar. Julio jogou
Catarina no sofá. Jaime se afundou no canto, sem entender nada. Catarina deixou Julio beijando suas
pernas e abraçou Jaime. De repente, tudo ficou claro para Jaime.
Amanheceram dois na área de serviço. Julio babou no sofá da sala.
Suzi liga para Jaime: Amor? Oi, sou eu. Oi, estou acordando agora. Vocês demoraram no café ontem?
Não, não, foi rápido. Passa aqui depois? Preciso te mostrar uma coisa. Passo sim, claro, mais tarde.
Então tá. Beijão. Beijo. Que barulho foi esse? Que barulho? Deve ser linha cruzada. Beijo, tchau.
Catarina ficou semanas sem ligar para Suzi. Dias sem sair de casa. Dispensou os pedreiros. Ignorou os
telefonemas de Julio. Jaime? Nem sinal de vida, nem uma palavra sobre aquela noite. Passou a evitar
Suzi.
Para Suzi, declínio de um namoro de seis meses. Cento e oitenta e nove dias, pelos cálculos dela. Suzi e
Jaime passaram a se ver cada vez menos.
Até que Julio ligou para Jaime. E aí? Opa! Topa uma cervejinha no Amadeu, hoje? Uns amigos vão
tocar lá. Legal, boa idéia. Vai levar a Suzi? Acho que não. Tá certo. Nenhum comentário sobre
Catarina. Foi como se nem tivessem pensado ou lembrado dela.
No bar, à noite. E a Catarina, hem? Vou ligar pra ela. Já liguei, mas ela não atende. Deixa eu tentar.
Catarina? Oi, é o Jaime. Estou no Amadeu. Você, no Amadeu? Achei que só gostasse daqueles botecos
de quinta do Centrão. Risos. Chega aí. Bem, não sei, pode ser. Talvez.
Demorou, mas foi. Nem fez cara de surpresa ao ver Julio. Deu um selinho em cada um.
A partir dessa noite passaram a se encontrar todas as sextas, em trio. E várias vezes na semana, em
duplas.
Justo Catarina.

IV

Jaime levava Catarina para ver exposições. Ela odiava, mas ia. Um dia encontraram Suzi. Foi direta:
vocês estão namorando? Não, claro que não, só estamos passeando. E Suzi nunca mais vai aparecer
nesta história. Catarina levava Jaime para a feirinha hippie. Gostava de brincos de penas e anéis de
casca de coco. Jaime e Catarina assistiam a shows de MPB, peças de teatro com atores de novela,
filmes de pouca bilheteria. Ela começou a gostar.
Julio aparecia de vez em quando, do nada. Tentou levar Catarina para o futebol duas vezes, sem
sucesso. Acabou se contentando em assistir NBA pela TV, na casa dela. Catarina levava Julio para a
feirinha hippie. Gostava de brincos de penas e anéis de casca de coco. Ele odiava o cheiro de incenso,
mas comprava brincos e anéis para ela.
Catarina trabalhava numa importadora. Cumpria tabela no maior profissionalismo. Horários, metas,
relatórios e reuniões. As colegas faziam piadas sobre sua empolgação das sextas-feiras. Ela nunca
comentou nada sobre Julio e Jaime, com ninguém.
Cada semana era num lugar. A casa de um dos três, nunca hotéis ou motéis. Sempre depois de passeios
rápidos e bebidas longas. Sempre os três, mas nunca os três juntos. Jaime dava carinho. Julio dava
tesão. Catarina dava para os dois, mas nunca para os dois juntos.

VI

Catarina nasceu às 7h40, do dia 3 de novembro de 1978.


Na escola, quarta série, se apaixonou por um garoto da sexta, Henrique. Ele nem tchum. Ela pensava
em se declarar. Um dia ouviu Henrique dizendo que não era papa-anjo. Ela desmontou. E continuou
apaixonada. Dois anos depois ele mudou de escola. Dois anos depois ela continuava sofrendo de paixão
recolhida. Havia dispensado, ou, pelo menos, não dado muita esperança ao Rodrigo, ao Julinho e ao
Igor. Catarina foi fazer o segundo grau em Goiás, a pedido dela, morando na casa da madrinha. Os pais
estranharam e concordaram, seria bom, daria experiência de vida. Ela só queria sumir dali. A irmã
achou ótimo, quarto só pra ela. Depois do segundo grau foi fazer faculdade em Minas, Direito, achou
um porre, tinha um professor chamado Henrique e a paixão latente voltou a explodir, trancou, resolveu
voltar para casa. Nunca mais tinha voltado, nem pra visita, só cartas, raras, e telefonemas, parcos.
Voltou decidida a procurar Henrique, seu Henrique, mas nem foi preciso.
Ele estava na rodoviária, acompanhando sua irmã. Os dois iriam se casar meses depois.
Catarina entrou em desespero, pirou, precisou de tratamento, terapia. Tentava disfarçar, tentava engolir,
a família não notava, ninguém se lembrava bem de seu jeito. Se trancava no quarto e chorava. Depois
do casamento, passou três meses ouvindo "Jura Secreta" no último volume. Até que levou uma bronca
da vizinha e caiu na real. Aceitou o casamento da irmã, passou a freqüentar a casa deles, com o mesmo
sentimento, disfarces, evitando falar com o cunhado para não derreter, fazendo o possível para esbarrar,
encostar no cunhado para continuar viva. Uma tarde, comendo pudim, último pedaço, escapando da
colher, ele ajuda, encosta sua colher como apoio, ela ri, nervosa, consegue capturar o pudim, mas a
boca é destino incerto, queria um beijo, o doce tocado pela colher que havia tocado a boca de Henrique
levaria o beijo, tremeu, derrubou pudim no decote, corou, correu, banheiro, lavou, chorou, voltou,
sorriu; amanhã eu faço outro, a irmã prometeu, ela voltou no dia seguinte, não havia pudim, Henrique
estava trabalhando. Ela chorou, disse à irmã que estava doente, precisava viajar, queria voltar para
Minas, para Goiás, para a puta-que-pariu, qualquer lugar, só precisava sair dali, a irmã se preocupou,
conversou com os pais, chamaram médico da família, Catarina se negou a conversar, arrumou as malas
e se mandou.
Terminou o curso de Direito e voltou, mas foi morar em outro bairro.

VII

Julio nasceu em 29 de julho de 1978, mas não sabe a que horas. Sabe que é de Leão, mas não sabe o
ascendente.
Sua mulher se ligava nessas coisas, mas ele não. A data do casamento foi escolhida por ela, a igreja foi
escolhida por ela, a decoração da casa foi escolhida por ela, o nome do filho que não nasceu foi
escolhido por ela. Para ele só sobrou resolver sobre a separação, e ela não aceitou. Assunto para
advogados. Lá se vão dois anos, e ainda não rasgaram os papéis definitivamente.
De vez em quando ela liga. Fica ouvindo e não fala nada, desliga. Inversão. Na infância era ele quem
corria atrás de Paula. Escrevia o nome dela com o dedo na areia. Prestava atenção em todos os
movimentos da colega e nem ouvia o que os professores diziam. Subornava outros garotos para ficar
com o papelzinho que tinha o nome dela no amigo secreto. Suborno tipo assim, borracha, apontador,
figurinha de futebol. Ela se fazia de difícil. Só aceitou namorar na oitava série, com as meninas do
clube sempre por perto. Durou uma semana. Nem um beijo, de verdade. Nem chegaram a romper, ela
aceitou o pedido de namoro de Alex com um beijo, de verdade, no meio do pátio, na hora do recreio,
num dia em que Julio havia faltado para ir ao médico. Nem se falaram mais, até o meio do segundo
grau. Se encontraram no cinema, olha a coincidência, e começaram a namorar, de verdade. Noivaram,
casaram. Ela escolheu a igreja, a data, os padrinhos, o salão, a cobertura do bolo, a casa, a decoração, a
camisola, o nome do bebê, os padrinhos, o enxoval, o berço, a maternidade, a babá, o médico e o
caixãozinho branco. Ele aceitou tudo. Até visitar três clínicas de reprodução por mês. Só não aceitou ir
ao terreiro, fazer trabalho, vela, pinga, essas coisas. Cansou. Desistiu, pediu divórcio. Ela não falou
mais nada, emudeceu, mandou o advogado. Estão separados, de fato, há dois anos. De direito, ainda são
casados.
Ela ficou com a casa. Ele mora com os pais, numa casa separada, no mesmo quintal.

VIII

Jaime sabe de tudo: dia, hora, minuto, posição do sol, signo chinês, com quantos quilos nasceu, quantos
centímetros, lembra que fazia calor no dia em que deu o primeiro beijo, "O Outro", de Borges, que o
fisgou para as letras, as primeiras sessões de cinema no Colossal, hoje igreja, namoradinhas de escola,
transas, o dia em que puxou assunto com Suzi no café da Pinacoteca, tudo, tudo, tudo, sem precisar
anotar, memória emocional.

IX

Foi Jaime quem chegou à conclusão: Você precisa de dois homens. Xii, papo de bêbado. Ela pensou no
assunto. Retomou minutos depois, dois chopes, uma ida ao banheiro.
- Preciso, concordo, mas não sou só eu. Toda mulher precisa de dois homens. Um que lhe dê amor,
outro que lhe dê força. Um para sussurrar coisas românticas enquanto o outro se soca dentro de você,
um companheiro e um macho. Nunca encontrei os dois numa pessoa só. Um Schwarzenegger e um
poeta. Um que pague as contas e outro que vá com a gente ao shopping.
- Mas e nós, homens? Você acha que precisamos de duas mulheres? Esse foi Julio, tentando se situar.
- Os homens acham que sim, mas só o que precisam é de sexo, quanto mais melhor. Duas, três, quatro,
nenhuma, tanto faz. Mais um chope e Catarina já era expert na teoria levantada por Jaime.
Quanto mais melhor. Melhor e mais rápido, e mais rápido, desabaladamente os três atravessaram o vão
do Masp, de mãos dadas, a troco de nada, de uma tradição cinematográfica.
Catarina, naquela tarde, fez questão ter os dois, amor e sexo, Julio e Jaime, um de cada vez.
Mandou Julio para as compras, deveria trazer ingredientes para um jantar especial, listou temperos,
carnes e vegetais que deveriam ser trazidos do mercado municipal. Acompanhou com o olhar o táxi se
afastando e enquanto apertava, apertava mesmo, a mão de Jaime, Julio se ia, Jaime se aproximava,
foram para a casa dele. Catarina percorreu com os olhos a estante de livros, lia títulos, comentava
autores, Jaime se aproximou, Catarina tocava as lombadas dos livros, Jaime deslizava os dedos pelas
costas de Catarina. Mann. já leu? Montanha mágica, e ele: mágicos são seus olhos, que cantada
fraquíssima, nem precisava, Catarina se dissolvendo, se aprofundando nos assuntos, queria chegar a um
Bataille, mas não com Jaime, com ele seria mais leve, muito mais suave, abria a esmo uma página de
Simone e Jaime respirava perto de sua nuca, sentia a dor das personagens e o tremor da presença de
Jaime, Temor e Tremor, nome esquisito. Jaime apontava outro livro qualquer e seu braço tocava os
ombros de Catarina. Uma poesia de Manoel de Barros, coisa de passarinhos, e ela olhava terna, levava
a mão ao rosto, ele se esgueirava, ela se abaixava, roçava sua perna, como que acidentalmente, ele se
detinha e sentia o calor do toque, ela subia devagar, ele se abaixava devagar, de quem é esse livrão?
que livrão, ele não via mais nada, os rostos se aproximando, Amor de Perdição, as palavras
ensurdecendo, as bocas se aproximando, Catarina avança, encosta os lábios na orelha de Jaime, Jaime
se vira, encosta os lábios nos lábios de Catarina, Machado, suas mãos percorrem as costas da amiga, e
se deitam, deitam, na sala, Cecília, Florbela, entre livros, ao som de Madredeus, se beijam suavemente,
palavras mudas. Jaime hipnotizado pelos seios de Catarina, os seios de Catarina pulsando ao olhar de
Jaime, beijos, os dois tiram as roupas, suavemente, rolam pelo tapete, Jaime se deita, James Hilton,
Catarina vem por cima, senta-se sobre seu quadril, Jaime leva as mãos aos cabelos novos de Catarina,
acaricia, percorre seu rosto, Catarina encaixa sua vagina no pênis de Jaime com movimentos tranqüilos,
sem pressa, quer sentir cada segundo do toque, quer sentir a aproximação, quer sentir a leve pressão de
ser penetrada, vai sentindo e fecha os olhos. Volta a abrir os olhos e olha para Jaime com poesia, ele
toma a atitude e brinca com os dedos no clitóris de Catarina, que se abre um pouco, permitindo a
presença do pênis e dos dedos do amigo, que vai invadindo aos poucos, vai sentindo a pressão de entrar
no ambiente mais acolhedor do mundo, poesia, poesia o cacete, vai afundando, mergulhando no mar de
desejo, vai pulsando, e Catarina vai sentindo e orienta os movimentos dos dedos de Jaime, puxa,
empurra, leva para lá, traz um pouco para cá, aumenta a força, faz com que os dedos de Jaime se
mexam mais freneticamente, chupa o pênis de Jaime cada vez mais para dentro de sua vagina, morde a
cabeça do pênis de Jaime, aperta os dedos cada vez mais em seu clitóris, exige mais velocidade, e o
pênis vai tomando mais velocidade, mais e mais e ela gemendo, sentindo, e ele gemendo, sentindo, ela
subindo e descendo, comendo e devolvendo o pinto de Jaime, Jaime subindo e descendo, invadindo,
fugindo, invadindo, fugindo, os dedos cada vez mais rápidos, como pode? Dedo e pinto juntos? Será
que eu tranquei a porta? Catarina sente o gozo se aproximando e quer ser mais e mais invadida,
ocupada, ter seu buraco tapado, é essa sua vontade, ser tapada, e Jaime subindo, sentindo a porra subir
desde a ponta dos pés, passando pela perna, se aproximando do saco, e Catarina querendo cada vez
mais, cada vez mais freneticamente, ela sobe e desce, arranca a mão de Jaime de sua boceta, ela só quer
o pau duríssimo dentro dela, fundo, bem fundo, dentro, fora, rápido, rápido, rápido, Jaime sentindo a
porra explodir, Catarina explodindo, chupando o pau de Jaime com força, chupando a porra para dentro
dela, além de ser entupida ela quer também ser encharcada, quer ser gozada, quer gozar e o cacete de
Jaime explodindo dentro dela mais e mais em mais e os dois quase gritando e a porra explondido e os
dois gritando, gozaram, gozaram, gozaram e que cores são essas, de onde vem essa música, o gás foi
para o Julio, será que eu tranquei o mercado, está longe, a música vai ficando baixinha, o calor, e se
abraçaram forte, e se deitaram lado a lado, em transe, cinco, dez, quinze, vinte minutos. Ela olha para
ele, sorri, ele sorri, ela racionaliza, o Julio tá pra chegar, ele sorri e se levanta. Mais alguns minutos, um
beijo, uma chupada, outro beijo, devagar, se levantam, riem, se vestem, devagar, devagar, devagar,
devagar...
Julio chega com as compras, os três preparam o jantar, jantam, tomam vinho. Na hora da sobremesa
Catarina toma de novo as rédeas da relação e diz a Jaime que ele precisa dormir cedo, agarra a mão de
Julio, com força, e o leva para fora. Tchau, até amanhã, a gente se fala, valeu, tchau, tchau.
Catarina olha para trás, irritada: e quer saber? Estou cansada do jeito que o Moreno escreve. Frases
cortadas. Diálogos sem travessão, tudo muito confuso, só pra se fazer de coloquial. Que história é essa,
Catarina, quem é Moreno? Ah, vá, não adianta fingir que não sabe. Estou cheia, e pronto.

X
Jaime não agüenta ficar em casa, pensando em Catarina, pensando no que havia acontecido, pensando
em Catarina, pensando no que ela e Julio estariam fazendo, pensando em Catarina. Resolve ir ao
cinema, de ônibus. Aquele cinema, daquele primeiro dia. Se possível, o mesmo filme. Sai de casa sem
checar a programação. Demora, espera no ponto, lotado, espera o próximo, dá pra entrar, menos cheio.
Paga, passa, um lugar, se senta, do lado uma mocinha, feinha, coitada, Jaime pensa, até procura outro
lugar sem virar a cabeça pra não dar bandeira, outro banco vazio, ao lado de um bêbado que baba, fica
ali mesmo, com a feiosa. Se senta ao lado da mocinha, resmunga um com-licença, ela nem ouve, olha
pela janela. Sua perna encosta na perna da moça, desculpe, ele pensa, não fala, ela nem percebe, nem
encolhe a perna como seria natural, Jaime olha pra frente, cabeça grisalha, cabelo despenteado apesar
de recém cortado, olhar reto, deixa a cabeça, nem quero saber de paisagem, imóvel, mas sente a perna.
Da moça. Roçou, de novo. Rabo de olho, ela continua olhando pra fora, ele acha que foi de propósito,
ela, como saber? Não há como, ela olha pra fora, pela janelinha, chegou primeiro. Jaime se acomoda no
banco, esfrega o assento com a bunda, como se mostrasse para todos os outros 36 passageiros sentados
que ele tentava encontrar uma posição melhor, mais confortável, e que não era o responsável por
aquilo, em que não fosse vítima de assédio de pernas, mas se mexe demais e volta a tocar na vizinha,
estremece. Ela se mexe por dentro, Jaime não vê, ninguém vê, nem ela, nem se mexeu, só por dentro.
Catarina. Catarina vem à mente. Catarina, tudo o que acabou de acontecer, Julio chegando, Catarina,
seu corpo subindo, descendo, a perna roçando, subindo, Catarina, o Julio está pra chegar com o vinho,
as mãos inquietas, o olhar para a frente, a perna direita sobe, treme, desce, encosta em Catarina, o
vinho, a perna de Catarina, calça jeans, áspera, ela subindo e descendo, com força, tudo de novo, fecha
os olhos, aperta os olhos, sente a calça apertada, pau duro, latejante, abre os olhos, a cabeça grisalha no
banco da frente, pensa em piolhos transando, bacanal capilar, entre cerdas negras e brancas, e Catarina
sobe e desce, e o pau forçando a calça, uma freada do ônibus, Jaime sai do transe, percebe a moça do
lado, que mudou de posição, também olha pra frente, como ele, séria, já não tão feia, segura a bolsa no
colo, no chão uma sacola de loja de roupas, cabelo preso, séria, olha pra frente, Jaime vê que chegou
seu ponto e levanta, daquele jeito, dá sinal, em cima do ponto, freada, desce, envergonhado, de pau
duro, olha direto para a janela onde esta Catarina, ela sorri, mais, ela ri, ri de Jaime, ri de ter feito sexo
no coletivo, ri da vergonha de Jaime, que baixa os olhos, erra o passo na calçada e molha o pé na
sarjeta, o ônibus se afasta, Jaime sente que a feia sustenta o olhar e o riso, Jaime caminha
envergonhado, já com a calça mais frouxa.

XI

Trair pressupõe enganar prejudicando, delatar, coisa vil. Transportando para o campo dos
relacionamentos, passa a significar a quebra de um compromisso de fidelidade, formal ou informal, em
atos ou pensamentos, como acontece com os pecados. Por isso nunca traí ninguém. Quando estava com
a Suzi pensava somente na Suzi, não havia mais ninguém. A partir do momento que eu a deixava na
porta de casa e ia me encontrar com Daniela, só havia Daniela, ninguém mais entrava em meu
pensamento. Catarina ouvia indignada. E agora? Agora é só você, sou só seu. Catarina: não quero que
você seja meu, porque não sou sua. Os dois discutiam, o que era, o que não era, o que podia, o que não
podia, o que era certo e errado, os meio-termos e nuances, enquanto Julio jogava fora as sementes de
romã que guardava na carteira desde a virada do ano, uma por uma.
Os dedos vermelhos da tinta seca de romã, os olhos poderiam vir a ficar vermelhos caso abrisse a boca
para falar com os amigos, caso vomitasse tudo o que estava pensando, caso tentasse encontrar uma
solução, caso soubesse o que estava sentido, andava, lento, até o meio da rua, sem carros, chutava uma
poça, voltava, olhava Catarina, olhava Jaime, tinha a impressão de que os dois discutiam ou
negociavam alguma coisa, em sua terceira camada de raciocínio irracional sabia que tinha a ver com
ele, mas as camadas, sem poder ultrapassar, sem poder sentir, sem ouvir, mal sabia o que era, quem era,
não podia sequer entender o que se passava entre Catarina e Jaime, ali do lado, na mesa do bar, Paula,
havia ligado novamente, ele sabia que era ela, mesmo sem ter bina, os toques, o jeito do telefone tocar,
só podia ser ela, sabia, conhecia o sotaque da respiração do outro lado, o timing exato de ouvir, tentar
ouvir, entender o que Paula queria dizer com aquele silêncio, o filho, as clínicas, advogados, melhor
jogar tudo fora, voltou a pegar a carteira, havia guardado a carteira, já sem as sementes, abriu a carteira
em busca de uma foto para rasgar e não havia mais foto, há tempos, talvez nalguma gaveta, na falta
pegou um cartão de visitas, sabe-se lá de quem, um vendedor de plano de saúde, talvez, verde, dois
nomes, virou rapidamente para fugir daquelas letras, só queria ver a foto de Paula, não queria ver a foto
de Paula, só queria rasgar a foto, e rasgou, picou, juntou os pedacinhos e amassou, bolinha, varreu com
os olhos em busca de lixeira, nenhuma por perto, guardou no bolso traseiro da calça a foto rasgada,
picada e amassada de Paula, que havia ligado mais uma vez, e ele, sempre ficava assim, sempre perdia
o timão do bom senso quando ela ligava, odiava Paula, tudo o que ela representava, todas as escolhas
que não pôde fazer, o filho, as clínicas, os terreiros, queria que Paula morresse, batesse o carro, nunca
mais aparecesse para ficar em silêncio, nunca mais telefonasse na voz dos advogados, nunca mais,
nunca mais, nunca mais, estava, afinal, apaixonado por Catarina.
XII

Catarina apareceu com um papo estranho. Luiza. Ela é muito interessante, já viajou para não-sei-onde,
fez tal e tal cursos, trabalha há tanto tempo na importadora, nunca tinha dado atenção a ela, hoje
almoçamos na mesma mesa, até perdemos a hora de voltar, falamos muito, ela é um doce, uma fofa e
mais e mais e cada adjetivo era costurado por uma frase em silêncio de Jaime, outra de Julio, e mais
encantamento com Luiza.

XIII

Cati, sonhei com você. Ê Jaime, nessa idade tendo sonho erótico? Não foi sonho erótico. Quer dizer, foi
erótico, mas sem sexo, foi sonho romântico. Eu te olhava, apaixonado, tentando criar coragem para
dizer que te amo, mas nem foi preciso, você se aproximava, leve, linda, suave, e me beijava, guardo a
sensação até agora, do silêncio, do beijo, da sua pele, do seu corpo, do seu entendimento sobre o que eu
queria dizer e não podia, você tomou conta de mim, em vez de tirar as palavras da minha boca, guardou
tudo com carinho. Depois do beijo fiquei te olhando, você sorria, nos beijamos mais algumas vezes,
beijos rápidos porém muito bons, como quem precisa voltar para o mundo real e não tem coragem de
abandonar o paraíso, mas me levantei, estávamos sentados, e sai, tendo a certeza de que estávamos
juntos, seguro, definitivamente, você me olhava com a mesma segurança e com ternura, deixei você
nua, linda, sobre um tapete branco, fui para a rua e acordei.
Acordei leve, flutuava pelo quarto, nunca tive uma sensação tão boa. Não? Nem naquele dia que a
gente transou? Foi diferente.
Riso encantado, Catarina despertou e riu forte: também sonhei com você, sonho erótico, você e o Julio
se beijando. Gargalhada. Jaime, com raiva: Pô, tô falando um negócio bonito e você vem com
sacanagem, sai fora, e saiu fora, andando. Jaime, espera, tava brincando. Catarina sai correndo atrás
dele, que finge raiva e nem olha pra trás.
Julio apaga um cigarro com o pé. Levanta e vai na direção de Catarina e Jaime, sem pressa, mão no
bolso, cabeça baixa.

XIV

E-mail

De: Catarina
Para: Julio; Jaime
Subject: Re:Re:Re:Proposta
Para os dois

> De: Julio


> Para: Catarina
> Cc: Jaime
> Subject: Re:Re:Proposta
>
> Para quem foi a proposta?

>> De: Jaime


>> Para: Catarina
>> Cc: Julio
>> Subject: Re:Proposta
>>
>> Aceito!!

>>> De: Catarina


>>> Para: Julio; Jaime
>>> Subject: Proposta
>>>
>>> Quer casar comigo?

XV

Catarina chegou meia hora atrasada, os dois ainda não acreditavam, só podia ser alguma brincadeira,
afinal, teria de escolher entre um e outro, mas, como combinado, lá estavam, plantados, à porta do
cartório, domingo, tudo fechado, oito em ponto.
Vocês estão lindos de terno! Julio, gravata frouxa, Jaime, engomadinho, risos nervosos dos dois,
sabiam que o cartório não abriria, domingo, principalmente para um casamento a três, contra a lei, mas
foram, seguiram as instruções de Catarina, as roupas, os anéis, os sapatos, as flores.
Catarina chegou meia hora atrasada, rindo, contou que estava na padaria esperando dar o atraso, os
motoristas de ônibus que tomavam pingado e pão na chapa não tiravam os olhos dela, de vestido de
noiva, encostada no balcão; um bêbado da véspera se ofereceu como noivo, o português do caixa deu
um sonho de valsa como presente de casamento, e veio a pé, do quarteirão de trás. Cade a Suzi? Os
dois se assustam. Suzi? Convidei pra madrinha. Os dois se assustam. Catarina gargalha: tolinhos, não
vai ter madrinha; os dois riem da piada, da palhaçada, da cara dos vizinhos olhando pela janela, aquele
trio esperando o cartório abrir, só abriria no dia seguinte, será que estão gravando um comercial?
Catarina gargalha, tolinhos, só vai ter padrinho. Como assim? É, vai ter padrinho, o Pereira. Pereira?
Balconista da padaria, convidei, ele topou. E Pereira chega, paletozão sobre camisa listrada, colarinho
desabotoado, bigode, andar gingado, gravata ainda mais frouxa que a do Julio e mesmo assim
incomodando, pegou emprestado do pastor, que nem sonha o objetivo, soubesse e recusaria o
empréstimo, na certa, e Pereira gingando, cumprimenta o noivo, qual é o noivo? Os dois, ela ri, ele
olha, pergunta de novo, os dois riem, os três riem, os quatro riem, os cinco riem, contando o taxista do
ponto em frente, que não tira o olho da cena, e agora? E agora o quê? E agora? Agora a gente casa. E o
padre? Juiz? O Jaime. Mas eu não sou o noivo? Primeiro é juiz, depois noivo, depois troca, trouxe o
anel? Claro, e a comédia rolando, mas os três sabiam que era a sério, e foi a sério que Jaime assumiu o
papel e casou os amigos:
- Ana Catarina Loredo Fonseca, aceita Julio Carvalho como seu legítimo e fiel companheiro para as
mais loucas aventuras, viagens, beijos, corridas, gargalhadas, banhos de mar e momentos de completa
alegria, durante todo o tempo em que os dois estiverem dispostos a continuar juntos, e nem um minuto
a mais?
Deu pra ver uma lágrima no olho esquerdo de Catarina. Deu pra ver os olhos úmidos de Julio. Deu pra
ver Pereira tentando segurar o choro e assoando o nariz no lenço Presidente. Deu pra perceber que
Jaime engasgou no final e o motorista de táxi, as vizinhas, Pereira, Jaime, Julio, Catarina, todos riam,
riam, gargalhavam.
Julio mudou de posição com Jaime, tentou repetir o discurso improvisado de seu próprio casamento,
saiu assim assim, colocou o segundo anel no dedo de Catarina, estavam casados, os três, pelo tempo
que durasse. Foram de táxi para uma cantina. Catarina comeu rondelle, Julio pediu nhoque, Jaime foi
de raviole, Pereira e o motorista cortaram o espaguete com faca e respingaram molho na camisa.

XVI

Alô, Catarina, é, não sei o que dizer, só queria dizer que, queria falar, é, gostei muito de ter casado com
você, mesmo sabendo que não foi de verdade. Um berro. Como assim, não foi de verdade? Não, não é
isso, eu quis dizer que não foi com um juiz de verdade, um padre, nada disso, mas sei que casamos pra
valer. Catarina, fazendo as unhas, foi se irritando, prendia o telefone entre a cabeça e o ombro, algodão
entre os dedos dos pés, cada palavra de Julio parecia um gole de acetona descendo pela ouvido,
passando pela garganta, queimando o estômago, tentava dizer que ia desligar, e Julio falando, só queria
dizer que, queria falar, casamento, verdade, juiz, pastor, Pereira, queria, gostei, Catarina criou coragem
e desligou, sem se despedir, sem falar palavra, desligou, botou no gancho, caiu a linha, caso
perguntassem, ninguém perguntou, estava sozinha, Julio, do outro lado, a deixava mais sozinha, o
esmalte, a base, o algodão, o alicate, tudo ali, todos sozinhos, Catarina se sentiu só, jogou fora os
algodões, tampou o vidro de esmalte, deixou a toalha cair, balançou a cabeça e ligou para Jaime. Quer
vir aqui? Saudades.

XVII

Batata. Banana. Peixe. Mandioca. Alface. Repolho. Cenoura raladinha. Pastel de carne. Caldo de cana.
Não para o menino pidão. Amolece. Dá um de queijo para o menino.
Chegou em casa com os dedos marcados pelas sacolinhas de plástico. Abriu a geladeira. Abriu uma
cerveja. Abriu a boca. Foi a primeira do dia. Nem o peixe aproveitou a porta aberta para entrar na
geladeira. Espaço tinha, com a saída de mais uma e de mais uma cerveja. Vinho também. Acendeu um
cigarro e viu Catarina na fumaça. Catarina dançava, indo e vindo, espiral sem regra, fugindo da brasa,
dançando para Julio. Outro e outro cigarro. Mais vinho. O telefone toca. Julio aperta os olhos querendo
apertar os ouvidos, para não ouvir, para não ver, sabia que era ela, mas não podia, não devia, não
merecia aquilo. Acendeu outro, abriu outra, se esqueceu da fumaça, pernas trancadas sob a mesa, não
iria atender, que tocasse, era ela, claro, só podia ser ela, mas ela falaria, adivinhava sua voz, adivinhava
as palavras, cortantes, suaves, ao contrário do silêncio de Paula. A secretária eletrônica realiza a voz
imaginada, dói por dentro, a fita, o gravador, a luzinha vermelha, a voz de Catarina, Julio, fala comigo,
deixaria ela falar, deixaria tocar, mais um cigarro, a fumaça, Catarina dançando, indo e vindo, espiral,
baixa a cabeça. E o telefone de novo, a secretária, outra voz.
Alô, Julio, é o Jaime. Atende aí rapaz. A Catita tá mal de verdade, liga pra ela. Falou.
Desgraçado, está com ela, que se dane, que morra, que morram os dois, que batam o carro, não
apareçam mais, o cigarro, mais um cigarro, sou uma besta, cheguei a acreditar naquela farsa de
casamento, casamento, onde já se viu?
E o telefone volta a tocar. E o telefone volta a tocar.

XVIII
Jaime e Catarina viajaram. Ele, convidado para palestras, evento literário, escritores mal-humorados,
críticos desfilando com taças de vinho, escritores que nunca seriam carregando bolsas com seus
exemplares, edições independentes, abordando turistas, com licença, organizadores com crachás
gigantes, sou eu, eu sou eu. Ela, férias, queria dar um tempo, pensar na vida, montanha talvez, sozinha
seria melhor, não resistiu, aceitou o convite, nem pensou em Julio.
Duas palestras, bla bla bla, cachê recebido, mais uma semana de evento, estrangeiros importantes,
festas, lançamentos, foram para a praia, ali perto, andaram horas e acamparam, quase ninguém mais.
Comida num boteco coberto de palha, banho num chuveiro público do mesmo boteco, dormir na
barraca, iglu, estrelas, muitas estrelas, barulho do mar, consolidaram o casamento começado em
gargalhadas. Uma semana.
Carro, na volta, depois do pedágio, ela dirigindo, olhando pra frente, Jaime, o quê? Posso falar uma
coisa? Ele responde em silêncio, já sabe a pergunta, resposta dada. Ficam o resto da viagem em
silêncio, chegam, porta de casa, pega a mala, a mala de livros, pela janela do carro, um beijo rápido,
silencioso, um carinho, um carinho de volta. Não se viram por quase quatro meses.

XIX

Revistas jogadas, jornais esparramados, Don Giovanni no MP3, madrugada, toca o telefone, sempre
ele. A secretária cumpre seu papel. Voz baixa, sussurrante.
Alô, Jaiminho, me liga. Preciso de você, preciso do seu colo. Me liga, vai.

Julio vira para o outro lado e finge dormir.

A ESCRITORA

No meio do caminho tinha uma pedra.


Logo depois tinha outra. E mais uma, e outra, e ainda algumas mais.

Sabe essas cartinhas de amor que você teima em escrever? Queima. Aqueles poemas, ra ra ra, verbos
em primeira desinência, aquilo tudo é lixo. Esquece, você nunca vai ser escritora. A onda agora é ser
beat. Falar palavrão de cara limpa, escrever como estivesse conversando, mandar as vírgulas pro
inferno, enfiar palavrão em tudo que é canto. Como o Ezra. E tacar uma ou outra referência cabeça
também pega bem. Deste jeito. O resto, esquece. Põe uns palavrões no meio, ouviu?
Até mesmo esse "a onda", aí de cima, já era, purpurinou.
Como se alguém falasse tanto palavrão assim. Lá em casa, pelo menos, é bem menos. É nada. Nem
aquele comum, com B, a gente fala. Lá em casa é "poupança", "bochecha", "sentante".
Mas... outra coisa: essa roupinha sua. Tem dó, né? Comprou onde? Na C&A? Na Renner? Tudo bem,
comprou tá comprado. Agora usa até esgarçar. Ô palavrinha... esgarçar, o quê. Usa até gastar, até ficar
com a gola molenga, pendurada.
Sua casa é outro empecilho. Quem tem bibelô de recordação de Poços de Caldas na estante nunca vai
ser escritor. Joga no lixo essa m...porcaria. Quer saber? Joga fora aquele vaso também. O guri na foto é
seu namorado? Troca.
Tem o que na geladeira? Suquinho de fruta? Água diet? Lazanha congelada? Dá tudo pros pobres.
Troca cada item por uma garrafa de vinho Canção. Doce, bem doce, licoroso. Tá, cerveja pode. Mas
sem frescura de ficar escolhendo marca, é tudo igual.
Tá me entendendo? Deixa eu ver seus cadernos.
O quê? Blog? Ah, vai te catar. Não ensino mais nada. Fui.

INSÔNIA

Assim que o sino da igreja badalou a solitária das seis e meia, Edgar gravou na parede mais um
risquinho. O 1521o. risquinho. A 1521a. noite seguida que não conseguia dormir.
Pôs uma caneca de água no fogo alto e foi para o banheiro escovar os dentes. Enxaguou a boca e enfiou
a cabeça embaixo da torneira. Se secou com a camisa da véspera, pendurada ali do lado.
Deduziu as cores e o calor do dia através da janela fechada. Ficou ali por uns dois, três minutos,
olhando pelo vidro canelado, pensando em Gabriela, aquela, que passou por ali, do outro lado da
calçada, há exatos 1521 dias, e que desde então tirou seu sono.
Despejou a água fervente no filtro com uma colherada de pó e voltou para o banheiro. Fechou a porta e
ficou ali por uns dois, três minutos, e saiu acompanhado pelo barulho da descarga.
Misturou duas colherinhas de açúcar ao café e bebeu de um gole.
Vestiu o macacão e saiu, foi para o ponto.
Sentou no banquinho. Dois, três minutos depois, o ônibus da prefeitura encostou. A porta se abriu
rangendo, o motorista respondeu o bom-dia resmungando. Alguns colegas cochilavam, alguns
comentavam animados o três a dois do Quinze na véspera.
Edgar foi para seu lugar no fundo, na janelinha,e se lembrou de que há 1521 dias trocara a carreira de
advogado pela profissão de operador de britadeira. Sorriu feliz, sozinho, em silêncio. Sabia que daí a
uns dois, três minutos, passaria em frente à casa de Gabriela.

ENCONTRO

Ora, não é sempre que se encontra uma pessoa dessas na rua. Por isso a surpresa.
Mas que lugar para uma surpresa, mas que lugar para se encontrar uma pessoa dessas. No meio da rua.
No meio das ruas, bem no meio, bem no cruzamento da Brasil com a Xavier.
Os carros ali, passando a toda, pedestres esperando o homenzinho verde na perpendicular.
E eu ali, paradão. Paradão naquele pedaço de espaço público que não pertence nem a uma nem a outra
rua. Estaria perdido se morasse ali ou, se por acaso, não conseguisse escapar do fluxo de automóveis e
precisasse me estabelecer naquele ponto. Carteiro algum me encontraria. Adeus, encomendas da
Amazon.
Que belo lugar para se encontrar uma pessoa dessas.
Apressado, corri no amarelo.
Do outro lado, ela, apressada, driblou um Honda Civic e deu olé num Fox. Preferiu não se arriscar com
a Besta e parou ali, no meio das ruas.
Minha corridinha ridícula ficou sem fôlego para mais dez metros e terminou ali, no meio das duas ruas.
- Oi.
- Oi.
- Desculpe, mas você não é...
- Sou sim (rindo), tudo bem (deu a mão).
- Trânsito, né?
- É, muito.
- Tá com pressa?
- Um pouco.
- Certo... Então tá, vou indo.
- Ainda não abriu.
- Ah, é.
- Agora.
- Tchau, hein.
- Tchau, prazer.
- Prazer.
Fiz que fui, fiquei, olhei pra trás. Acompanhei sua corridinha ainda mais ridícula que a minha, seu
quase esbarrão com o senhor de guarda-chuva, sua risadinha de cumprimento para o camelô, seu
rebolado apressado descendo a Brasil.
Voltei para meu rumo, corri para atravessar. O homenzinho estava vermelho de novo, o Gol Bolinha
buzinou, driblei um Mille, dei olé num camelô e segui pensando. Que lugar estranho para encontrar
uma pessoa dessas.

NOITE

Tá com sono?
Agora é que eu estou ficando animada.
Não é o que parece. Olhos miúdos, voz densa, passos pesados. Entrega o copo de cerveja e continua
dançando.
- Vou sentar um pouco.
Sem resposta. Horas depois saem dali para uma lanchonete. Ele faz o pedido:
- Dois xisburgueres, dois copos grandes de refrigerante, uma porção grande de batatas fritas.
Ela, pouco acostumada a gentilezas,fica tocada ao vero pedidodobrado, mesmo não gostando de
xisburgueres.Dá um selinho evai se sentar na cadeira de plástico.
Romanticamente lambuzado de maionese, ele pergunta:Você nãovai pedir nada?
Vãopara um hotel de negócios, paredes de gesso, roncam antes de pensar em transar.
Um tranco violento no pulmão e ele acorda assustado, um arrepio, eletricididade macia percorrendo o
corpo. Olha para o lado, cama grande, vazia, deve ser saudade, ou sede, pensa. Abre o frigobar, água
gelada. Silêncio absoluto. Senta na beirada da cama.

Não parava de escorrer. O sangue em sua mão já havia se espalhado por toda a cama quando
elaacordou com a sensação de molhado. Atordoada correu para o banheiro, abriu a torneira com a
mão esquerda e deixou a água fria queimar os poros.

Ele fica ali parado por umas duas horas, imóvel. cabeça reta, olhos de pensar, começa sentir pequenas
erupções nas mãos espalmadas sobre acoxa. Sai o primeiro, o primeiro espinho sai ali, na primeira
dobrinha do indicador esquerdo, e depois outro no mindinho e dois no polegar da outra mão.
Pela manhã, eles pedem café no quarto e dão uma rapidinha antes de ir ao cinema.

CIGARROS

Durante os dois anos em que estive na Marinha, só pisei o continente uma vez. Sai do barco um pouco
atordoado, tentando encontrar numa varrida de olhos algum prédio familiar, alguma pista que indicasse
já ter passado antes por aquele porto.
- Cigarro?
Enquanto concheava as mãos para proteger a chama do isqueiro, o estranho continuou me oferecendo
coisas. O cigarro foi uma isca, percebi logo, e tentei me desvencilhar da conversa dizendo algumas
palavras em catalão. O estranho respondeu em português e deu uma risadinha.
- Sei que você é brasileiro.
- Não quero nada, obrigado.
Andei de passos rápidos até uma casa de jogo na esquina e entrei, bolando despistar o intrometido com
uma saída rápida por outra porta. Dei uma olhada para fora e lá estava ele, abordando outro cara de
branco. Resolvi apostar algumas fichas e dar um tempo.
Duas horas mais pobre, voltei a caminhar pelas ruas sujas da cidade que já começava a se mostrar
disposta a ser reconhecida. Noite chegando, neons acendendo, saias encolhendo, sentei num banco de
praça e esperei que viessem me oferecer outro cigarro.

CIGARROS
Dia difícil. Parece que os marinheiros estão chegando de viagem longa - saem do navio tropeçando,
olhando pros lados que nem bobos, filam meu careta e vão embora tontos, sem comprar nada. Acabei
pescando só uns quatro. Mas já dá pra garantir o pão de amanhã. Nunca deixei criança passar fome - se
os marujos não rendem nada, sempre descolo algum dos otários que entram na roleta. Sempre na
honestidade, nunca roubei ninguém. Mas é tarde, parece que vai esfriar esta noite. Hora de dar janta
pros meninos, ver as notícias e esperar a patroa chegar. Tomara que ela faça alguém na praça, a grana
anda curta.

MULHERES DE BRAUN

Zilah era a elegância em pessoa. Discreta, sempre muito bem vestida, cheirosa, atenciosa com todos. Nem
sei como é que foi gostar de mim, se é que gostou, com esse meu jeito um tanto esculachado.

Zilah, educada em escola de primeira linha, família tradicional, fazia de tudo para não incomodar as pessoas.
Tanto que, na hora do sexo, deixava a música num volume bem alto, para que ninguém se incomodasse com
seus berros.

Ô mulher pra gritar safadeza! Cheguei a ficar com vergonha algumas vezes, durante os dois meses de
namoro.

E não era só verbal - Zilah fazia questão de pôr tudo em prática, do oral ao final. Coisas que eu só sabia que
eram possíveis pela revista Peteca.

Até que um dia ela exagerou. Queria fazer uma coisa comigo que nem a Bizarre tinha coragem de publicar.
Pulei fora.

Lembrei que havia deixado o gás ligado e saí correndo.

Outro dia vi Zilah numa coluna social.

Elegante, finíssima, com uma vítima de smoking do lado.


Yolanda, apesar do nome pomposo, era novinha. Uma guria.

Cheia de ímpetos adolescentes, foi a primeira a dizer que eu era... digamos... pouco caminhão pra sua
garagenzinha. A cara de espanto que fez quando me viu sem roupa foi memorável.

Nem precisava dizer nada, mas disse.

Antes dela, certamente outras perceberam, mas nunca ninguém havia comentado.

Sem problemas. Mais velho, experiente, bem humorado, levei numa boa e parti pra conversa. Em pouco
tempo Yolanda relaxou e aproveitou tudo o que tinha direito. Foram seis semanas de namoro.

Até o dia em que soube que ela estava saindo com outro.

Um jogador de vôlei.

Bem maior que eu.


Xuxa era um misto de suas xarás famosas - dramaticidade da Lopes e infantilidade da Meneghel.

Beijava com uma dedicação shakesperiana e depois saía correndo, pulando, saltitando, feito moleca travessa.
Às vezes, invertia: dava umas bicocas rápidas, coloridas como aqueles confeitos de bolo de festa, depois
chorava, chorava de dar dó. Nunca tive coragem de perguntar o motivo de tanto choro, vai que era eu.

Um dia, inspirado por um desses momentos aguados e salgados, disse que ia fazer xixi e não voltei mais.
Walkíria era loira. Loira do jeito que fantasiamos as alemãs, suecas e nórdicas em geral. Loira por completo,
em todos os detalhes, genuína. Loira até no clichê da inteligência.

Assim que soube seu nome dei uma cantada operística, cheia de referências, como ataques e cavalgadas.
Necas. Ela não entendeu.

Perguntei se gostava de Wagner. "Wagner? Aquele das borbulhas de amor? Adoro!". Tomamos um
champanhe borbulhante e subimos para o quarto do hotel.

Foi forte.

No dia seguinte, saí cambeleando feito um nibelungo.


Val era mais que um apelido carinhoso. Era um disfarce pensado e indispensável para Valdelisse, nome
inventado pelo pai e registrado errado pelo escrivão.

Val era muito simpática. Muito inteligente, também. Militava no partido havia dois anos quando nos
conhecemos numa assembléia geral. Pintou uma química.

Para justificar a proximidade, criamos um grupo de trabalho que discutia sei lá o quê, do qual ninguém mais
queria participar. A direção aprovou e pudemos nos encontrar oficialmente, todas as terças e quintas, numa
salinha escondida da sede do partido.

Emendas, amassos, discursos, pegações, retórica, mão aqui, mão ali, entre panfletos e manifestos, duraram
um ano. Não dava mais. Queria uma namorada para passear, ir a festas, apresentar à família, mas com a Val
não dava.

Ninguém perdoaria a feiúra da moça.


Úrsula. Úrsula? Nunca saí com uma Úrsula. Mas aquela peituda de quem já me esqueci o nome ficou sendo
a Úrsula dos meus sonhos. Sonhos inatingíveis. Foram várias tentativas. Ela foi prestativa até o exagero, mas
não rolou.

Naquela época ainda não existiam comprimidos azuis. Melhor esquecer.


Tuca, maluquete total. Um dia tirou um negócio peludo da bolsa.

"Adivinha o que é?"

Sei lá, um cachecol de boneca?

"Errou, tem mais duas chances".

Não sei, fala logo.

"É o rabo da minha gata".

Ri. Só podia ser brincadeira. Tuca fez cócegas no meu nariz com o negócio peludo e ficou séria.

"É sério, é o rabo da minha gata, cortei hoje de manhã".

Fiquei pensando nos amassos da véspera e no risco que corri.

Dias depois, foi ela quem me deixou. Não suportou a indiferença perante o poético gesto de deixar a gatinha
cotó.
Silvana ficou só no platônico.

Me apaixonei por ela aos oito anos, assim que veio para minha turma, mas ela não dava a mínima. Pelo
contrário: brigava comigo, me ignorava, corria quando eu tentava me aproximar, jogava meus livros longe. A
situação durou uns seis anos. Durante esse tempo tive outras namoradinhas, até por provocação, mas Silvana
ficou só no platônico. Já disse isso?

Eu escrevia seu nome no orvalho dos vidros dos carros a caminho da escola, escrevia seu nome na areia da
praia, escrevia seu nome no ar, na mesa, nas nuvens.

Um dia, cada um foi para um lado, sem despedida.

Faz tempo.

Mais tarde, muitos anos depois, fiquei sabendo que Silvana já me achava bonitinho aos seis anos, bem antes
de eu conhecê-la.

Toda aquela marra era um jeito de dizer que também gostava de mim. Mas aí já era tarde.

Mas o tempo existe?


Rose me beijou no ônibus. Éramos dois adolescentes, com mais uma horda de adolescentes, a caminho de
uma festa na casa de uma amiga adolescente.

Beijar, naquele tempo, não era como agora, no atacado. Era varejo, raro, quase que só dentro do namoro.
Aquele beijo, no último banco do ônibus, longe da bagunça do bando, foi exceção.

Nenhum dos dois queria compromisso, éramos amigos, e foi assim que rolou. Rose vinha de uma paixão
frustrada, alguém que não lhe dava atenção, e que se parecia comigo, no jeito, no rosto, nas idéias.

Por isso me beijou, pela fantasia de estar com outra pessoa, com toda sinceridade. Pelo menos foi o que ela
explicou.

Entendi direito?
Quica era apelido de família, daqueles que as pessoas têm vergonha de dizer em público. Os amigos a
tratavam apenas por Cristina, ou Cris. Não perguntei, mas ela contou sobre o apelido na meia-hora em que
conversamos durante a festa de aniversário de uma amiga.

Se tinha tanta vergonha, porque abrir o assunto com isso? Até hoje não entendi. Fato é que nessa meia-hora
em que nos conhecemos, falamos tudo que precisava ser dito para que a festa continuasse só entre os dois, na
garagem da casa da amiga, dentro do carro de alguém.

Mas ficou nisso, história curta e sem graça.

Quica era fumante. Não curti.

A gente se vê.
Patrícia era a mulher mais bonita e gostosa da firma. Quando andava pela fábrica, os operários paravam o
que estavam fazendo e, descaradamente, olhavam para sua retaguarda rebolativa. Quando andava pelo
escritório, todos os homens, inclusive a Vera do Jurídico, paravam o que estavam fazendo e olhavam
disfarçadamente para sua retaguarda rebolativa.

Era o sonho de todos os marmanjos, mas ninguém tinha coragem de abordar presença tão dominadora. Numa
quinta-feira, chamei Patrícia à minha sala para discutir um relatório que ela havia apresentado. Concordamos
num ponto e começávamos a discordar num segundo quando ela apoiou sua mão sobre a minha: "você sabe
que tem alguma coisa acontecendo entre nós, né?" Hein? Eu sei? Sei? Não sei?

No final do dia, todos já haviam ido embora, fui conferir se o cofre estava fechado e Patrícia me atacou antes
que pudesse acender a luz.

Que ataque. Beijos, esfregas, mãos, lambidas e mordidas, fui praticamente empacotado em seus braços. E
assim todas as quintas, no final do expediente, durante três meses, eu era atacado - no cofre, no almoxarifado
ou na copa.

Obviamente, os termômetros foram subindo e eu passava a esperar ansiosamente pelas surpresas das quintas.
Até que numa terça-feira, a empresa resolveu fazer um corte e Patrícia estava no meio. Ela não se abalou.
Passou pela minha sala a anunciou, da porta: "sexta-feira, às quatro". E eu: sua homologação? É às três. E
ela: "depois, às quatro, no Le Moulin". Tremi.

Patrícia entrou e fechou a porta. Chegou bem devagarinho perto da minha boca e murmurou: "se você falhar,
eu te mato". Na sexta, tive uma intoxicação alimentar e pedi para Vera me substituir nas homologações.
Olívia passou por minha vida como uma valsa, dançada ao amanhecer, na cobertura de um prédio da cidade
grande. Ofereci champanhe e ela sussurrou: "tão cedo?".

Cantarolei. Cantarolei uma valsa, obra prima que virou brinde em bancas de jornais, e ela sussurrou: "não sei
dançar".

Conduzi. Conduzi cada passo, cada gesto, cada milímetro da mão sobre cada poro, cada lance daquele
namoro nas alturas, às vezes no meio da névoa, às vez sob sol violento. Guiava seus movimentos de forma a
deixá-la cada vez mais encantada. Controlava tudo, até os passos rasantes no beiral. Mas, num movimento
rápido, Olívia se soltou de mim e voou.

Só para mostrar, com toda sutileza, quem é que estava no controle.


Nádia apareceu como se saísse de um daqueles espelhos que a gente usa para viajar no tempo. Olhos
combinando com a blusa, cruzou o salão e veio se sentar ao meu lado. "Também gosta de Omar Khayyam?"
Saí do transe. O quê? "Rubaiyat". Ah, sim, estou lendo pela primeira vez. Ela tirou seu exemplar da bolsa,
suavemente, e me mostrou. "Noite, silêncio, folhas imóveis; imóvel meu pensamento".

Foi a primeira coincidência. Nádia fazia aniversário no mesmo dia que eu, doze anos mais nova. Ia para a
mesma cidade. Mesma profissão. Ambos com cinco dedos em cada mão.

Um aviso qualquer no alto-falante e ela se levanta: "é o meu, preciso ir". Não respondi. Desejei com toda
intensidade uma nova coincidência - peguei meu bilhete, mas não era o mesmo número. Levantei os olhos:
me dá seu e-mail?

Nádia já havia desaparecido do outro lado do salão. Como se tivesse entrado num espelho.
Marisa, dos lábios de mel, virgem com ascendente em libra, que beijo. Marisa era vocalista da banda. Veio
me consolar no dia em que fui reprovado no teste para guitarrista. Na verdade, não dei importância à
reprovação, mas fiz uma cara de tristeza bem convicente quando percebi que ela prestava atenção em mim.

Disse aos colegas que ia tomar um café e fez sinal para que eu a acompanhasse. Foi ali, na rua de trás do
estúdio, que eu experimentei o beijo mais sensual, mais molhado, mais envolvente da minha vida. Fomos
para a padaria e não tive coragem de tomar café. Assim como, no dia seguinte, escovei os dentes sem creme
dental.

Desisti da carreira de músico, mas entrei para a banda. Virei roadie e consultor sentimental da vocalista.
Passamos a viajar lado a lado no ônibus.
Lucia era a menina mais bonita da escola. Não resisti, mesmo gostando de outra. Tentei uma vez e nada.
Tentei duas, três, quatro vezes e ela resistindo. Insisti, chateei, pentelhei até que ela cedeu: "tá bom, vai".

Marcamos encontro num cantinho do pátio, na hora do intervalo. Ela foi, mas foi acompanhada pelas amigas.
Só um beijinho, tímido, e acabou por ali - não daria certo, com aquela força de segurança na platéia.

No dia seguinte vi Lucia aos beijos com Claudio, o cara mais feio da escola.
Kelly tocou a campainha e entrou carregada de três sacolas, quatro pacotes, um filho e uma babá, também
com sacolas e pacotes.

"Posso usar seu banheiro?" foi a resposta ao meu oi surpreso. O menino tomou posse de meu computador
perguntando como se chegava aos joguinhos. A babá se largou no sofá e explicou que estavam fazendo
compras por ali e que a dona Kelly precisava fazer xixi e resolveu vir à minha casa. Deu pra perceber. Só não
entendi a quantidade de embrulhos, porque não há tantas lojas assim na redondeza.

Kelly saiu do banheiro sorridente, e só aí me deu um beijinho e pediu desculpas por chegar sem avisar.
Contou toda a história novamente e pediu água, enquanto Alice perguntava se também podia usar o banheiro
e Gustavo tentava destravar o micro com Ctrl+Alt+Del.

Arquivos perdidos, desliguei o micro no botão, servi água e refrigerante e gritei para a babá que a descarga
estava com defeito, precisava segurar e soltar. Atônito. Antes do tempo que imagino necessário para um xixi
feminino, Alice saiu do banheiro secando as mãos na calça e arrastando Gustavo para fora: "vou levar o
menino no parquinho, posso?" Pode, claro. Mal fechei a porta e Kelly pulou nos meus braços. Me beijou com
toda a vontade guardada durante meses, tirou minha camisa, me arranhou, me lambeu, me mordeu, sem falar
nada, e é claro que retribuí, com a mesma vontade guardada durante meses.

Não sei quanto tempo passou, sei que já estávamos no chão, quase nus, quando ela se afastou e começou a
ajeitar a roupa, sempre sorrindo, sempre sem falar nada, e mostrando que eu deveria me arrumar também.
Acabei de afivelar o cinto quando a campainha tocou - entraram babá e menino: "vamos, dona Kelly, tá
quase na hora do seu Rubens chegar do serviço".

Kelly sorriu de novo, Gustavo me mostrou a língua, Alice piscou um olho. Elas haviam planejado tudo.
Jane deixou minha boca em frangalhos. Devia estar com sede, ou com fome, não sei. Foi bem no começo da
festa. Com fome de mim, talvez. Da turma de amigas, era a única que não me conhecia pessoalmente. Sabe lá
o que andaram falando pra moça. Bem, chega de convencimento; vamos aos fatos.

Jane deixou minha boca em frangalhos. Foi bem no começo da festa. Me puxou para um canto escuro e me
beijou com tanta violência que depois, disfarçadamente, fui checar se ela estava de aparelho. Se estava,
engoliu.

Fiquei uma semana sentindo o gostinho de sangue daqueles beijos. Marcamos cinema para o sábado seguinte.
Filme? Pobre boca. OK, não tanto quanto da primeira vez.

Marcamos barzinho para a sexta seguinte. Chegando à porta, bar lotado. Vamos lá pra casa? Jane me deixou
em frangalhos. Marcamos para domingo. Depois para terça. Depois para quarta, quinta, sexta e sábado. Já
estava sem forças.

Inventei viagem, viajei, marquei de ligar na volta, sem data. Uma semana depois estava louco para voltar à
tortura. Liguei. Cinema? Filme até que bonzinho, os beijos foram amaciando. Sexo só na quarta. Na semana
seguinte, nada. Na outra, só barzinho. Um mês depois ela liga: "olha, tô a fim de dar um tempo". Eu também,
Jane. "Então, tá. Ficamos assim". OK, ficamos assim. Nunca mais.

Dois anos depois ela apareceu em casa. Convite de casamento. Gerson? Mora na rua tal? Foi meu colega de
escola.

Felicidades, Gerson.
Ingrid era bailarina. Um encanto, tinha tudo de bailarina: corpo pequeno de se abraçar num pas-de-deux,
gestos desenhados em arabesques, postura de bailarina, cabelo de bailarina... ok, não vale falar dos pés.

E eu, bem, eu dançava tanto quanto aqueles caras que ficam na praça, pintados de branco, esperando uma
moedinha.

Nosso início de namoro teve fins didáticos. Isso mesmo, começamos a namorar para mostrar aos outros como
se faz. Cláudia era sua melhor amiga. Julio era meu melhor amigo. Claudia tinha uma quedinha por Julio.
Julio era loucamente apaixonado por Cláudia. Claudia era tímida. Julio era tão expansivo quanto aqueles
caras que ficam na praça, pintados de branco, esperando uma moedinha.

Nossos horários coincidiam - eu e Julio saíamos da aula de violão na mesma hora em que Ingrid e Claudia
saiam do balé. Se saíssemos mais cedo, esperávamos por elas. Se saíssemos mais tarde, iríamos sozinhos
para o metrô.

Naquele dia, esperamos uns dez minutos. Logo as duas garotas chegaram e conversamos um pouco na porta
do conservatório. Eu e Ingrid começamos a brincar com os amigos, tentando quebrar o campo de força entre
eles, tentando cupidar os dois. Até que fui direto. Julio, você tem que fazer assim: Ingrid, quer namorar
comigo? Ingrid nem pensou: "Quero". Eu não esperava aquela resposta, era só uma demonstração, mas reagi
rápido e continuei ensinando ao amigo: Julio, agora faz assim. E dei um beijo em Ingrid.

Cláudia e Julio começaram a namorar no mesmo dia e se casaram alguns anos depois. Têm dois filhos. Ingrid
morava longe, do outro lado da cidade, e nosso acordo de namoro dizia que eu deveria ir à casa dela aos
domingos. Fui três domingos seguidos, metrô e dois ônibus. Pulei um, fui outro, falhei dois e os encontros
acabaram, naturalmente, com a festa de fim de ano do balé. Reverence.
Helena era a mais linda das mulheres. Não só desta lista, mas de todas as mulheres que já vi na vida,
incluindo atrizes de cinema, modelos e estátuas gregas.

Era cortejada por todos os caras do bairro, todos os mauricinhos; todos sonhavam em se casar com Helena.
Inclusive eu, que na época era entregador de pizzas. Passava a semana contando os dias para a chegada do
sábado. Todos os sábados a família de Helena pedia uma pizza. Na maioria das vezes, era o pai quem vinha
buscar no portão. Mas nas poucas vezes em que Helena abria a porta e flutuava em minha direção, esquecia
de tudo - não sabia dizer o valor, errava o troco, deixava a moto morrer, não dava a mínima importância para
as risadas dos caras que se aglomeravam no muro em frente à casa.

Todos queriam falar com Helena, todos esperavam que ela saísse para pegar a pizza para tentar uma cantada
gasta, um beijo atirado, uma qualquer coisa. Helena sorria para mim e sorria para a rua. Sorria para todos.
Gostava de todos, ignorava a pobreza das cantadas e se encantava com todos. Queria namorar, mas não sabia
com qual.

Até que um dia recebeu flores de Manoel, nunca alguém havia lhe dado flores, e decidiu que era por ele que
se apaixonaria. Fiquei sabendo pelos colegas entregadores. Fervi de desespero.

No sábado seguinte criei coragem. Levei uma meio a meio, mozarela e portuguesa, com um bilhete junto,
disposto até a pedir ao pai que lhe entregasse o recado. Nem foi preciso. Helena abriu a porta e flutuou em
minha direção. Dois passos atrás Manoel cruzou os braços. Antes de entregar a pizza olhei fundo em seus
olhos verdes. Helena...

E ela, surpresa, "você sabe meu nome?" Helena, eu te amo. Nunca alguém havia lhe dito isso. Nem entreguei
o papel. Peguei sua mão e a trouxe para fora do portão. Manoel avançou. Helena... vem comigo. Ela olhou
para trás, Manoel espumava. Ela olhou para mim, sorriu. Joguei no chão a caixa térmica de isopor. Helena se
sentou na garupa da moto. Acelerei. Manoel e mais cinco caras vieram atrás de nós, de carro. Eu conhecia
todas as ruas: entrei à esquerda, à esquerda de novo, depois à direita, cruzei o sinal vermelho, levaria Helena
para um lugar seguro. Na esquina seguinte eles me fecharam. Tentei voltar. Eles me alcançaram. Saíram do
carro. Enquanto Manoel levava Helena nos braços, os outros mauricinhos me socavam.

Senti quatro ou cinco golpes, no chão, eram chutes, socos, pauladas. Acordei no dia seguinte, no hospital.
Escrevi uma carta para Helena. Uma carta, não - só um bilhete, que a enfermeira mandou pelo correio.
Helena, eu te amo. Com a letra torta de pulso aberto, com toda a dor, com todo amor.
Gabi tinha uma borboleta tatuada no ombro, bem pequena. Era a número 2. Disse que tinha mais quatro,
tamanhos diferentes, e que eu nunca conheceria todas. Topei o desafio.

A número 3 foi fácil, na nuca, escondida pelos cabelos longos, quase pretos, que desciam até o meio das
costas e que Gabi nunca amarrava. Foi ela quem deu a dica, dizendo que estava tensa, pedindo massagem.
Não, não éramos namorados, nunca fomos. Apenas colegas de trabalho e ótimos amigos.

Dias depois, por acaso, a número 5 apareceu, grandiosa, ilustrando uma das duas coxas mais bonitas que já
vi. Foi numa cruzada de pernas: a saia subiu um pouco mais, bem na hora em que me abaixei pra pegar um
guardanapo caído no chão. Sala cheia de amigos, ela fez que não percebeu e continuou conversando com o
noivo, no sofá.

Depois foram quinze dias de agonia até que a borboleta número 4 fosse revelada em público - sugeri um fim
de semana na praia, com os mesmos amigos da festa, mais acompanhantes. E bem no dia em que o noivo de
Gabi estaria de plantão no hospital. Firma nova, gente se conhecendo, cabia a mim organizar estes eventos de
entrosamento. E, claro, a praia seria o lugar ideal para que novas borboletas revoassem. Gabi foi a única das
moças a chegar sem canga. Imediatamente todos os homens do grupo, mais o vendedor de espetinho de
camarão, o salva-vidas e o coroa do guarda-sol ao lado, ficaram hipnotizados por aquele belíssimo exemplar
de Parides Ascanius em preto, branco e rosa, tatuado no lado esquerdo do bumbum que demorou todo o
tempo do mundo para estender a toalha e se sentar. Gabi se virou para mim e sorriu. Naquele momento tive a
certeza de que a exibição não era para o público e que estava na hora de procurar a borboleta número 1.
Quando vieram chamar para o almoço, ficamos um pouco para trás da turma e ela me mostrou a chave de seu
apartamento - 16 - e murmurou: "às 10". Finalmente eu venceria o desafio.

Como numa revisão de lição de casa, ela me fez procurar de novo cada uma das quatro borboletas
descobertas e pediu um beijo em cada uma. Mas antes de tirar toda a roupa, Gabi me jogou na cama, me
amarrou e me vendou os olhos.

Nunca vi a borboleta número 1, a menor de todas, a mais escondida de todas, a mais saborosa de todas, a
mais venenosa de todas.
Fernanda estabeleceu que quarta-feira seria o DDR. Dia de Discutir a Relação. Na verdade, ela queria que
fosse na segunda, pra começar a semana com todos os pratos limpos, mas segunda era dia de reunião de
planejamento no escritório e eu não teria cabeça pra discutir nem o menu do jantar. Sexta, casual day,
impossível. A turma toda ia trabalhar sem gravata e emendava no bar do Ditão até a madrugada. Terça e
quinta ela não podia, carteado com os pais e aula de História da Arte na biblioteca. "Vai ser na quarta". Mas
precisa, mesmo? "Claro, é fundamental num relacionamento que as coisas sejam faladas francamente". Disse
assim, igualzinho à manchete da Nova que estava em cima do pufe. Tudo bem, quarta-feira.

Na primeira o clima foi formal: "quais são suas queixas?" Nenhuma, oras. Depois veio a fase das
reclamações triviais: escova de dentes fora do lugar, tampa da privada, compra de supérfluos no
supermercado e lado da cama preferido. Três quartas depois ela perguntou: "muito bem, e quanto a prazo?"
Que prazo? "você fica comigo pra sempre?".

Na quarta-feira seguinte comecei a trabalhar como voluntário numa ONG que distribui sopa a moradores de
rua.
Elaine voltou a trabalhar fora três meses depois que fomos morar juntos, no apartamento dela.

Professora. Dava aulas pela manhã no Estado e era orientadora, à tarde, na Prefeitura.

Nessa época nossos encontros passaram a acontecer na cozinha, na hora do café, quando eu chegava do bar, e
na hora do jantar, que eu deixava preparado com coisinhas que ela gostava. Jantávamos assistindo ao Jornal
Nacional e, antes do boa-noite do Bonner, eu pegava o instrumento e saia. Tocava até as seis da manhã,
passava na padaria e voltava pra casa.

Elaine já esperava, de banho tomado e café coado. Eu deixava o instrumento na sala, ia para o banheiro e
Elaine se despedia.

Numa noite dessas, fria que só ela, o dono do bar resolveu fechar mais cedo por falta de movimento. Esperei
um pouco até a padaria abrir e levei os pãezinhos, nunca tão perfumados, nunca tão quentinhos. Cheguei
antes do café. Deixei o instrumento na sala, fui para o banheiro e dei bom-dia ao professor Augusto, de
História, que tomava banho com a porta aberta.

Sai do banheiro, peguei o instrumento e nunca mais voltei a ver Elaine.


Dora nunca tinha bebido. Pelo menos, nunca tinha bebido tanto. Pelo menos, desde que a conhecia. Três
meses.

Todas as terças, nos últimos três meses, fui esperá-la na saída do trabalho. Um bar, single bar, que fecha às
duas da manhã. Eu ficava lá, no balcão, bem no cantinho, só olhando.
Terça passada, quando cheguei, ela estava discutindo com um cara, na outra ponta do balcão. Quer dizer, o
cara estava discutindo. Não dava pra ouvir. Mas ela só mexia a cabeça, sinalizando que não, não rola mais.
Ele discutindo, gesticulando. Ela de braços cruzados, cabeça baixa, fazendo que não, devagar, não rola mais.
O bar fechou e eu saí. Fiquei por ali, na calçada, esperando um pouco. Logo ela saiu também, passo firme.
Logo ele veio atrás e a puxou pelo braço. Ela bambeou. Estava bêbada. Arrancou a garrafa de conhaque das
mãos dele e entornou. Conseguiu se desvencilhar e se desequilibrou. Foi ao chão. Ele se ajoelhou ao seu lado
e começou a chorar.
Hoje é segunda. Estou com medo de que a terça chegue logo e eu tenha que decidir se vou ou não vou ao bar
novamente.
Camila me pegou pela mão, como fazia todos os dias na hora do almoço. Aonde vamos hoje? "Visitar meu
noivo". Como assim? "É isso mesmo, vamos visitar meu noivo no escritório dele".
Não estava preparado para uma luta de vale-tudo, mas quem teria coragem de discutir uma decisão de
Camila? Lá fomos nós, rumo ao escritório do titular. Chegando perto, tentei soltar a mão, por segurança. Ela
não deixou. Comecei a ficar preocupado. O cara me vê assim, de mãos dadas com a noiva dele, no mínimo
vai me dar um sopapo.

Entramos. Eu constrangido, o noivo sorridente, Camila falando sobre qualquer coisa. Soltou minha mão e me
pegou pelo braço. Ai, ai, ai, agora sim que eu apanho. O noivo virou de costas para guardar um papel no
arquivo e ela me deu um selinho. Era o que faltava! Haveriam câmeras ocultas por ali? Estaria eu numa
pegadinha do Mallandro?

Meia hora de conversa dos dois e as despedidas. O noivo, cordial: "Vai lá em casa, domingo. Churrasco!"
Vou sim, respondi. Vou nada, pensei.

Faltei ao churrasco e Camila nem se importou. Continuou tudo como estava. Mãos dadas na hora do almoço,
passeios, selinhos e eventuais visitas ao noivo.
Bruninha ficou transtornada quando lhe disse que estava apaixonado pela Luana. Derrubou o croquete,
engasgou com o chope, gaguejou, perguntou se podíamos ir embora e pediu a conta ao garçom. Tudo isso em
trinta segundos.

Passei a noite acordado, pensando em sua reação. Bruninha devia estar interessada em mim e viu seu mundo
cair com a linda história da paixão por Luana.

Tsc, tsc. Que nada.

Soube, dias depois, por um amigo comum, que ela morre de amor pela Luana, desde o primário, desde a
primeira comunhão, desde aquele beijo acidental, rápido, na porta da escola.
Ainda não conheci uma mulher com a letra A.

Uma Ana, uma Adriana, uma Andréa, uma mulher que me faça perder o pouco juízo que resta, para um amor
que dure o tempo de uma chama ou de uma estrela, que tenha o calor de uma chama ou a luz de uma estrela;
que me chame baixinho para o chão quando eu estiver em órbita, que me carregue em suas asas se eu estiver
terra demais. Que peça ajuda quando precisar, que peça carinho quando quiser, que goste dos filmes que eu
gosto, que leia os livros que eu leio. Que me ensine, que aprenda comigo.
Uma mulher que seja tão mãe quanto sou pai, mas que não aja como minha mãe nem me queira como pai.
Que fique comigo nem que seja por um dia, ou todos.

Uma mulher que seja forte e que seja frágil, que não se anule, que não me anule, que tenha a coragem
de dizer que existe, que deixe um recado nos comentários, que me mande e-mail, que me telefone
agora, só para dizer que resolveu parar de perder tempo e que me dê um beijo, agora.

DORME, DORME

Enquanto você dormia Dolores foi do Rio pra Nova York, e também dormiu.

Enquanto você dormia um casal de efemerópteros teve filhotes e os filhotes cresceram, casaram, tiveram
filhotes e morreram,e você não viu.

Enquanto você dormia a mocinha sonhadora se entregou ao DVD, assistiu a toda uma temporada de Sex And
The City, mastigando Social Club com Nutella, e você? Nem viu a novela.

Enquanto você dormia, Douglas, o neurótico, pegou o Noitão do Belas Artes, viu dois filmes de suspense,
uma comédia e ainda encarou o café da manhã.

Sai dessa cama, escova os dentes, passa um pente no cabelo, vem pra rua, animal.

O trem passou, o Quinze de Jaú ganhou, o defrag acabou, e você se embrulhando no lençol.

OLIVAL

- Azeitonas?

- Foi fraca a colheita de azeitonas neste ano. Foi fraca, muito fraca, mal deu para pagar os trabalhadores. Sim,
azeitonas, foi muito fraca a colheita, investimos muito no plantio, a chuva, o sol, o mau tempo, as greves,
tudo atrapalhou, foi muito fraca a colheita de azeitonas neste ano.
- Você planta azeitonas?

- Sim, planto, e este ano foi muito, muito fraco, tudo muito fraco, ruim mesmo.

- Onde você planta azeitonas? Aqui não dá azeitonas, estamos no hemisfério sul, tropical, calor, oliveiras não
vingam.

- Sim, eu sei, talvez isso também tenha prejudicado a colheita, mas o sol, a chuva, o tempo, tudo isso, as
greves.

- Amigo, não há plantações de azeitonas no Brasil.

- Sim, é muito fraco. Todo investimento perdido. Sementes híbridas, melhor, sementes não, caroços, caroços
híbridos, caríssimos. Tudo perdido, tudo. Trabalho desperdiçado. Aragem, semeagem, chacoalhagem,
colheitagem, tudo, muito fraco.

- Amigo, você está bem? Está se sentido bem?

- Sim, muito bem, o que acha? Acha que estou louco só porque a colheita de azeitonas foi fraca, muito fraca?

- OK, está certo, não duvido de sua lucidez. Então me diga, por favor, onde é sua plantação? Você tem uma
fazenda? É no Sul, região mais fria?

- Ora, ora, ora, ora e mais um ora. Vejo, e entendo, e percebo, que você não acredita em mim. Acha que falo
insandices.

- Sandices.

- Como?

- Sandices, loucuras, tolices.

- Não, eu disse “insandices”. Você acha que eu falo insandices, palavras típicas de quem não é são. Insandice
é não se preocupar com o fracasso da colheita. Sim, a colheita, duzentos trabalhadores, homens, mulheres,
crianças, crianças não, adultos jovens, todos, todos eles, trabalhando, por quase nada. Quer saber? Você quer
saber onde é minha plantação de azeitonas? Quer mesmo? Não deveria dizer, você duvida de mim, vem com
essa conversa clichê de aqui não dá, aqui não pode. Não deveria dizer, não vou dizer, não deveria mostrar.
Está bem, está certo, eu mostro. Mas precisa me prometer que não vai rir.

- Claro, eu prometo. Agora fiquei curioso, quero ver sua plantação. Quando partimos?
- Partimos? Pensa que vai viajar? Rarara! Engana-se, amigo. Mas precisa prometer que não vai rir. Se
prometer lhe mostro a plantação de azeitonas. Sim, as árvores ainda estão lá, apenas chacoalhamos seus
galhos. Precisa prometer, precisa.

- Prometo, já disse, está prometido, não vou rir.

- É bom mesmo, não quero, não aceito que riam de meu fracasso como olivicultor. A colheita deste ano,
deste ano, deste, foi fraca, fraca, muito fraca. Rendeu quase nada, mal deu o bastante para pagar os
trabalhadores, duzentas pessoas ao todo, quase isso, cento e noventa e tantas, entre homens, mulheres e, e só,
adultos jovens são também homens e mulheres. Eu lhe mostro, mostro agora, com uma condição: não pode
rir de minha plantação. Promete?

- Sim, prometo.

- Então vamos, siga-me.

- Pronto, aqui estamos.

- Como assim? Nem saímos do lugar, demos cinco passos se muito. Agora, sim, compreendo tudo. Você é
louco. E eu sou um idiota em querer ver sua plantação de azeitonas e prometer não rir. Ora, sim. Com
licença, não tenho mais tempo a perder, tenho obrigações, tenho deveres.

- Espere, calma, aqui já estamos. Já vou lhe mostrar, espere. Só não ria, por favor. Aqui, já vou abrir a porta.
A chave, onde estará? Ah, sim, no bolso, pronto, estou abrindo. Feche os olhos. Vamos, feche os olhos,
avisarei quando a porta estiver aberta, mas não ria. Pronto, pode abrir os olhos. Que tal? Gostou?

- Mas... mas... mas... isso é uma enorme plantação de azeitonas!

PRINCESA LEOA

Bela princesa vivia encastelada em nuvens, dessas em que se vê cavalos e coelhos. Um dia seus pais
receberam a visita de um estrangeiro: queria conhecer sua filha.

Rei: Para quê?

Estrangeiro: Tenho algo para ela.

Rainha: Da parte de quem?

Estrangeiro: De minha parte.


Rei: Podemos saber o que é?

Estrangeiro: Um gato.

E o rei e a rainha, zelosos, permitiram que o estrangeiro encontrasse a princesa.

- Cuida de meu gato?

A princesa tomou o animal nos braços, baixou os olhos e nada respondeu. O estrangeiro nunca mais voltou.

Num outro dia a princesa caminhava pelo bosque e encontrou um sábio sentado sob uma árvore e sentou-se
ao seu lado. E o sábio permitiu que a princesa lesse suas anotações e folheasse seus livros. Ela sorriu e se
levantou. E o sábio também se levantou - pela primeira vez alguém havia se interessado por sua sabedoria. E
a princesa se escondeu atrás de um muro de pedras. E o sábio, que tinha um olho torto, passou ao lado do
muro procurando a princesa, e nunca mais a viu. Atrás do muro, a princesa esperou o sábio passar, sentiu
uma coisa no peito e acariciou a orelha esquerda do gato.

Houve ainda uma outra vez em que um guerreiro chegou ao castelo de nuvens e avistou a princesa de longe.
Era doce e gentil. Encantou-se com a princesa e perguntou se ela partiria com ele rumo a terras
desconhecidas. A princesa respondeu perguntando se poderia levar consigo o gato do estrangeiro. O
guerreiro concordou e partiram, em silêncio, num daqueles cavalos etéreos rumo ao inalcançável. E o
guerreiro, que tinha um buraco na cabeça por onde saia uma fumaça esverdeada, parou para alimentar o
cavalo. A princesa foi dar de beber ao gato, seguiu o caminho de volta e se trancou numa torre do castelo.

Em outra vez, não se pode precisar quando, surgiu no reino um mago. Dizia futuros e decifrava passados. A
princesa soube de sua fama e foi se consultar. Quis saber do presente. O mago disse seu entendimento,
misturou passados a futuros, dividiu por dois e lhe entregou o presente e lhe revelou verdades. Assustada, a
princesa guardou o gato em lugar seguro e se escondeu em sua torre de nuvens. O mago, que tinha os pés
sobre o ar e a cabeça enfeitada de fitas coloridas, voou até a torre, lançando mais e mais verdades amarelas,
vermelhas, brancas, verdes e azuis, mais e mais presentes. Mais assustada ainda, a princesa escondeu o gato
sob suas vestes e trancou-se num armário.

Até que num outro dia qualquer, bateram à porta do castelo. Era noite, todos dormiam. A princesa acordou
com a insistência das batidas e, curiosa, saiu de seu esconderijo. Ajeitou o gato sonolento entre travesseiros
macios e foi à porta. Estava lá um outro estrangeiro, estranho, mudo, que a olhava de olhos suplicantes. Mas,
em lugar de pedir, ofereceu. Deu uma taça de absinto à princesa, que bebeu de um gole e permitiu sua
passagem. Tirou o gato da cama e fez com que o estrangeiro se deitasse. Quando viu que o estrangeiro caía
em sono, o tocou e perguntou:

- Toma conta do meu gato?

O estrangeiro mudo despertou e falou: darei comida e teto, a ti e a teu gato. E a princesa sorriu.
E, no dia seguinte, o rei e a rainha souberam que seu reino se tornaria infinitamente maior, com tantas e
tantas nuvens, das brancas e das cinzentas, das diáfanas e das carregadas, que nenhum outro reino, da terra,
do mar ou do ar, jamais se igualaria. E que nunca, ninguém, o tiraria de suas mãos, nuvem que era. E
tomaram no colo o gato, enquanto a princesa servia o cálice do estrangeiro com a sabedoria do sábio, a
doçura do guerreiro, a loucura do mago.

E nem se incomodou com a caspa amarela que caia sobre os ombros do estrangeiro, provedor de sua
liberdade.

CONSULTA

- Alô, mãe?
- Oi, filha! Lembrou que eu existo?
- Tá ocupada?
- Ah, não, estava assistindo a Ana Maria Braga. Sabe aquele bolo de chocolate que seu pai adora? Então, ela
acabou de ensinar uma receita parecida, só que é diet, e ele vai poder comer sem afetar o colesterol. Não usa
nadinha de açucar, sabe? É um pozinho, ela falou que serve como adoçante, mas eu nunca vi, parece que
chama estévia. Escrevi aqui, depois vou perguntar na farmácia se eles têm. Já pensou? Seu pai vai poder
comer o bolo inteiro! Aliás, ele já come, sempre que eu faço, mas fica com uma culpa... Agora, desse jeito,
não vai ter problema. A Ana Maria falou que não deixa aquele gostinho amargo de adoçante no final. É bem
pouquinho, nem dá pra perceber.
- Mãe?
- Fala, Catarina.
- Tudo bem, depois a gente conversa. É sobre um livro que estou lendo.
- Nossa, nem sei quando li um livro pela última vez. Também não adianta - quando eu viro a página já
esqueci do que estava escrito antes. Essa memória está cada vez pior. Estou ficando velha.
- Mãe... preciso desligar. Tchau. Depois a gente se fala.
- Tá bom, filha, mas não esquece, me liga. Você fica aí nessa cidade estranha, cheia de gente estranha,
precisa me dar notícia de vez em quando, senão eu fico preocupada. Tá frio aí?
- Tchau, mãe, um beijo. Manda um beijo pro pai.

MINAS TERRESTRES

Perdi a perna esquerda na primavera do ano passado.


Sim, claro, eu sabia que era um campo minado. Todo mundo sabia, fui porque quis. Acreditava que era
invulnerável. Bomba nenhuma podia me atingir. Representante de Deus. Todo poderoso por procuração.

Eu sabia que era um campo minado, mas tinha a certeza de que nunca iria explodir. Tinha a certeza de que
viveria ali, o lugar perfeito, talvez não para sempre, mas por um bom tempo. Tempo suficiente para me
integrar ao ambiente ideal. Ali floresciam as margaridas mais singelas, daquelas que eu desenhava na escola,
quando criança. Naqueles campos gramados eu deitaria e rolaria, lá do alto, para me espatifar em gargalhadas
na pedra da curva. Aquele era o lugar ideal, o lugar que eu sempre sonhei viver.

Saia cedo e passeava pela estrada de terra, sentindo o cheiro do orvalho, o cheiro do mato, o cheiro da bosta
de vaca, verde, natural. Andava horas, em transe. Sabia que sob meus pés havia explosivo suficiente para
abrir uma cratera do tamanho do Maracanã. Sabia também que nunca pisaria uma daquelas armadilhas. E
andava, andava, andava, admirando o lugar que um dia seria minha casa, meu lar.

Mas um dia fui tomado pela ansiedade. Pra que esperar? Mais cedo ou mais tarde eu faria parte daquele
cenário, então porque não ser agora? Por que perder tempo? Comecei a correr. Corri, corri, corri, cada vez
mais rápido, nem me lembrava mais das minas enterradas, até que tropecei em alguma coisa. Uma mina.
Uma roda de ferro. Tropecei com o pé direito, mas nada aconteceu.

Naquele passo o tempo parou. Entre o momento da topada com a mina e o impulso para o próximo passo o
tempo parou. O tempo parou, mas eu não. Continuei no ar, com o pé direito são e salvo, e o pé esquerdo foi
descendo, foi descendo e pisou em cheio no miolo de uma maldita bomba. Não vi mais nada.

Acordei dois meses depois, no hospital, sem me lembrar do que tinha acontecido. Senti uma coceira na perna
e a mão não achou onde coçar. Eu estava aleijado, uma parte de meu corpo havia sido arrancada, e a culpa
era toda minha.

Depois, aos poucos, fui reaprendendo a me equilibrar. Dava alguns passos num andador, mas preferi as
muletas. Minha perna esquerda, arrancada para sempre.

Finalmente, dominei a arte de andar com três pernas no lugar de duas. Mas minha perna esquerda não estava
mais ali.

Foi na primavera do ano passado. Faz tempo. Muito tempo. Um tempo que passou arrastado. Assim como me
arrasto da cama para o banheiro. Do chuveiro para a cozinha. Vou me arrastando, tingindo de vermelho o
tapete da sala. Sim, vermelho. O toco de coxa que ficou ainda sangra. Sangra litros por dia e nunca vai parar
de sangrar. Tenho de conviver com essa ferida aberta para sempre, aqui, na casa paroquial, de paredes lisas,
de janela basculante, nos fundos da igreja.

Nunca mais vou poder viver em meu paraíso.


GÊMEAS

Ana Carolina e Débora Cristina são gêmeas.

Nasceram no banco de trás de uma Brasília, no Rio, em 15 de janeiro de 1985.

Os pulos da mãe aceleraram o trabalho de parto e não deu tempo de chegar ao hospital.

Até hoje o pai não se conforma por ter perdido o momento em que Angus Young abaixou a calça.
Publicitário bem sucedido, continua chamando as meninas de Aici e Dici, mas agora quase que só
conversam por e-mail. De vez em quando visita as filhas pra ver se uma delas pode ficar com o Pedro
Henrique, "só por essa noite, voltamos cedo".

A mãe se mudou para Sana com um cara aí e mudou o nome para Sana (sã em latim, explica ela).
Agora só ouve Marcus Viana. De vez em quando visita as filhas para pedir algum dinheiro.

Aici e Dici estão economizando. Querem ir à Austrália ainda neste ano. Vai tar uma edição do Rock'n
Rio por lá.

VINTEDOIS

Vamos embora, já estou atrasada. Calma, o carro não pega. Quê? O carro não tá pegando, não sei o
que é. Como assim, acabou a gasolina? Não, não é falta de gasolina, tá fazendo um barulho estranho.
Pára com isso, você gosta de me irritar. É sério, não liga. Não pode ser, tenho reunião daqui a
quarenta minutos, tenta de novo. Estou tentando, não vai, desse jeito acaba afogando. Ah, não dá pra
ficar aqui, parada, esperando a boa vontade do carro, vamos de táxi. Espera aí, deixa eu tentar de
novo, mas esse barulho é esquisito; não, não vai. Esquece, vamos de táxi, já falei. Vai você, eu fico.
Como, fica? E o seu trabalho? Tudo bem, eu vou mais tarde, estou com crédito no banco de horas; vai
indo que eu vou procurar um mecânico. Bom, então eu vou mesmo. Tudo bem, pode ir, eu me viro. Vou
pegar ali na avenida. Tchau, tchau, te amo, te amo.

Onze negativas num parágrafo de cento e sessenta e quatro palavras, logo no primeiro parágrafo, já dão
ao leitor uma noção do peso verbal do que vem pela frente. Melhor dizendo: peso das características
dos personagens com os quais estamos nos envolvendo, porque do verbal prometo, na condição de
contador da história, zelar, evitar repetições de palavras, sentenças longas e depressivas. Sempre que
possível, claro, sempre que os personagens permitirem. Já que se tratam de escritos
descompromissados, sem a intenção de ajudar a quem quer que seja, que, pelo menos, evitem
atrapalhar com negativas exageradas. Quiçá tenhamos um ilustrador.
Ela, pilhada, enxergando conspiração automotora para impedí-la de participar da desgastante reunião
de metas. Quer resolver tudo a seu jeito, tudo a seu tempo; seu tempo, no caso, dela. Ele, fatalista,
cabeça de área da turma do fazer-o-quê. Isso nunca aconteceu antes, o carro é praticamente novo.
Expiatoriamente místico, escusatoriamente passivo. Se o carro não funciona, é porque não devo sair de
casa. Ela, Débora; ele, Anderson. Ela, áries; ele, câncer. Ele, politicamente liberal, com inclinações
para a esquerda. Ela nunca teve tempo de pensar no assunto. Tempo? Ela nunca pensou no assunto.
Débora foi de táxi, já deve estar chegando ao trabalho, se não pegou trânsito. Anderson foi ao banheiro.
Confirmou se a barba estava bem aparada, lavou o rosto duas vezes, pensou que precisava encontrar
um mecânico, voltou para o carro, pensando em olhar os papéis jogados no porta-luvas. Antes de,
efetivamente, procurar o cartão de algum mecânico, que por certo lá não havia, sem pensar girou a
chave e ouviu o motor funcionar, sem espanto, sem cara de novidade, o carro apenas funcionou, como
fazia todas as manhãs.
Desprevenidamente, desligou o motor e voltou para trancar a porta da casa. Chegou ao trabalho na hora
certa, sem trânsito, sem queimar horas.

Amore? Oi. E a reunião? Um sufoco, esse mês vai ser dureza. Onde você está? Na firma. Foi de táxi?
De carro. Consertou? Funcionou normal, na primeira. Que coisa. Mas é bom levar à oficina assim
mesmo. E falar o quê? Está funcionando, o carro é novo. É, sei lá. Preciso desligar, o celular tá
tocando, é o Dog, tchau. Tchau.

Sem poder esticar o assunto, só resta a Anderson fingir que trabalha. Folhear processos e processos,
fazer cara de concentração. É um dos novatos mais conceituados no escritório, todos elogiam seu
trabalho, e ele fazendo cara de compenetrado. Como seria bom largar tudo e voltar para os pregos e
parafusos.

Hora da morte: 9h40. Tem alguém da família aí? Não, veio sozinho, no resgate. Dá uma olhada nos
bolsos, vê se tem celular, liga pra alguém.

Oi, Dog! Alô? Quem é? Débora? Aqui é do hospital Tal. Você conhece Douglas? Meu primo, esse
celular é dele, você assaltou ele? Não, não senhora, aqui é do hospital. Douglas teve uma parada
cardíada e acabou de falecer. Sinto muito. Alô, dona Débora?

Nada mal, hem? Uma morte, já na terceira página. Vamos bem, sim, senhor. Sem choro e sem vela, por
enquanto, é hora de falar sobre Dougas, Dog para a prima Déba.
Jovem, moço, aparenta menos de 20, o médico, desatento, não chegou a olhar a identidade. Parece
cuidar da saúde, sem ter físico de esportista. Parada cardíaca, sim. No meio da rua, meio da rua como
forma de expressão, já que caiu na calçada. O socorro veio rápido, de transeuntes que acionaram o
resgate público. Mas já estava morto.
Além de primo, era o melhor amigo de Débora, brincaram juntos, trocaram segredos, ansiedades e
toques. Douglas sempre morou na mesma cidade, no mesmo bairro, em duas ou três casas diferentes.
Quando Débora se casou e se mudou, chorou por dentro, e os quatrocentos quilômetros de afastamento
eram compensados, em parte, com os telefonemas quase diários.

Amore? Fala, tudo bem? O Dog. O que tem o Douglas? Calma, você tá chorando, aconteceu alguma
coisa com o Douglas? Fala! O Dog morreu, ligaram do hospital. Quê? Fica calma, já estou indo praí,
vou te buscar. O Dog morreu. Se acalme, senta aí que estou indo. Nós vamos pra lá agora. Mas e o
carro? É muito longe. O carro tá bom, tá funcionando, já disse, espere aí, toma uma água com açúcar,
estou chegando.

Se os sonhos são representações da vontade, ou se os fatos apenas concretizam o sonhado, não sei, e
você, suponho, não sabe também, e ainda está longe o dia em que saberemos, apesar de todas as
suposições e quase certezas de alguns.
Sei apenas, e conto, que numa noite de sono tranqüilo, Douglas sonhou com Débora. A prima
caminhava, lentamente, por uma estrada, uma rodovia, sem olhar para trás, sem atender aos chamados
de Dog, partia. Ele não se lembra de detalhes, da roupa, das margens da estrada, se havia indicação de
destino, mas a prima partia.
Sei também que, na manhã seguinte, durante o café, Déba entrou eufórica na casa de Dog e contou para
o primo e para os tios que estava namorando, o nome dele é Anderson, mora no interior, se conhecerem
há alguns dias, no colégio, ele é irmão de uma amiga, Tania, vocês conhecem. Douglas chorou por
dentro e ficou feliz com a felicidade da prima.
Não seria o primeiro namorado de Débora. Foram vários, aliás; Douglas sabia de todos e de tudo, sim,
tudo, detalhes, inclusive. Mas foram sempre namoros, só namoros, nunca houve algum que fizesse a
prima entrar eufórica durante o café da manhã, fazendo tio e tia se olharem com o pão pausado a
caminho da boca, o queijo com a faca encravada esperando o fim do corte. Dessa vez Douglas também
sabia, antes do anúncio, e sabia que seria diferente, dessa vez Déba não voltaria para ele, não olharia
para trás. Ela se sentou, comeu um rolinho de presunto e queijo, um copo de leite, mordeu uma maçã e
saiu apressada, estava atrasada.
Douglas teve a impressão de que já conhecia Anderson, mas estavam sendo apresentados ali, no
aniversário do tio, e moravam em cidades distantes, e seus caminhos, certamente, nunca foram
perpendiculares. Tenho uma cara comum, tem muita gente parecida comigo, talvez alguém na
televisão. É, pode ser, algum artista. Você é primo da Débora? Sou, a gente brincava juntos. Legal.
Você faz o quê? Estou terminando Direito e tenho uma lojinha de ferragens. Ah, legal. E você? Faço
Arquitetura. Foi uma das conversas mais longas entre os novos primos. Débora saltitava de lá para cá,
conversava com todos, Anderson tentava se enturmar.

A senhora é da família? Sou prima dele. E os pais? Ai, esqueci de avisar, como é que vou contar pra
eles? Vou lá, não, não vou, Amore, você fala com meus tios? Quantos anos ele tinha? Vinte e dois,
somos da mesma idade. Sofria de alguma doença? Não que eu saiba. Pode me dizer o endereço dele?
Sim, é..., não lembro, desculpe, estou muito nervosa. A senhora pode autorizar a doação de órgãos?
Melhor falar com meus tios.

OUTONO

Ela chegou com o outono. Notei sua aproximação dias antes, mas o calor nos impedia, a ela de falar, a
mim de entender o que estava acontecendo. Sabia, porém, que viria a mim, e esperei.
Sua presença foi se tornando mais constante. Às vezes, passava diante de meu banco, no parque,
enquanto transformava meu cachorro em urso.
Outras vezes chegava a roçar-me a mão na calçada quando apressava o passo pela esquerda ou quando
vinha em sentido contrário ouquando, sem saber o motivo, caminhávamos lado a lado.
Na chegada do outono, lia o jornal quando ela se dirigiu a mim: "cheguei", disse apenas. Não respondi -
me limitei a olhar o sorriso sereno, de lábios fechados, e a graça dos olhos. Aceitei.
Convivemos por três meses. Melhor, quase três meses, considerando que os últimos dias de outono
fizeram com que ela se esvaisse aos poucos.
Passeamos pelas ruas desertas da madrugada, tomamos café em mesinhas de madeira, comemos
croissants, fomos a três ou quatro peças de teatro, rimos, sorrimos, andamos de mãos dadas. Nunca lhe
disse uma palavra. Dela, só ouvi aquele primeiro e único cheguei.
Até que sua presença foi se tornando tênue. Seus dedos escapavam dos meus ainda que continuassem
entrelaçados. Seu rosto era cada vez mais transparente, escondido por cachecóis e golas altas. Mas ela
não se distanciava, apenas desaparecia. Até que sua presença se integrou à minha.
Continuamos a andar pelas ruas secas e frias, mas quem, por acaso, passasse, só veria uma pessoa.
Terminou o outono.
MANIFESTO IDIOTA

Durante os quarenta primeiros anos de minha vida interpretei o papel do homem bom, aceito e
recomendado pela sociedade, responsável, generoso, caridoso. O que ganhei com isso? Humilhação e
desprezo. Quatro décadas, talvez metade ou mais de minha existência, desperdiçados. Quatorze mil e
seiscentos dias representando o mesmo figurante na comédia humana.
Desisti.
Deixei para trás a família modelo, o emprego seguro, as patéticas relações sociais e me confinei neste
apartamento. Durante quase três anos raros vizinhos me encontraram no elevador, nas raras vezes em
que saí para me abastecer de água e comida enlatada. Em todas essas poucas vezes as reações de
estranheza foram as mesmas - expressões de nojo disfarçadas por bons-dias e boas-tardes não
correspondidos, expressões de asco por ter de dividir a intimidade de um cubículo com tão repugnante
figura.
Pois basta.É chegada a hora de revelar que os cumprimentos não foram correspondidos pelo mesmo
nojo, pela mesma repugnância de estar a centimetros de exemplares tão bem acabados da hipocrisia que
se transformou em espécie, subespécie que galgou a evolução natural e se sobrepôs à pureza animal
talhada durante milênios, até o momento em que alguém criou o pecado original e alardeou:' somos
civilizados. Somos superiores'.

ATROPELAMENTO

Fui atropelado às 23h05 do dia 17 de setembro de 2004. Contava 44 anos, quatro meses, sete dias e
cinco minutos.
Morri logo depois, deixando, inconsoláveis, mulher e filhos.
Tinha comido uma pizza pequena de bacon e tomado três chopes, um exagero para quem nunca passa
da primeira taça de vinho nas raras ocasiões em que bebe.
Por isso recomendo a todos:não bebam antes de atravessar a rua. Se não estivesse ébrio, provavelmente
teria conseguido driblar o Fiat Doblò que cruzou o sinal vermelho em alta velocidade, mas também
teria deixado de voar uns tantos metros, sonho antigo.
Foi um dia excepcionalmentevibrante na parte da manhã e modorrento,negativo,à tarde eà noite,
biorritmo abissal. Dia esquisito para morrer, carregando uma sacola de projetos para o futuro próximo.
A esta altura, todos projetosjá chutados ou varridos ou escorregados para o bueiro. Quiçá alguém tenha
recolhido algum deles para um dia, quem sabe, pôr em prática.Ou jogar fora, tanto faz.

FALTA

Para ler devagar, como repetição em câmera lenta.


Falta. Joilson deu uma entrada maldosa em Dieguinho, percebeu que o juiz estava ali, em cima do
lance, e ergueu os braços. Dieguinho, no chão, fez cara de dor, mas o juiz não deu importância -
conhecia a fama do ponta atleticano. Apito na boca, o ar ficou preso entre a garganta e os lábios e o
sopro não saiu. Com os olhos fixos em Joilson, o árbitro teve uma sensação de quase déjà vécu:
conhecia aquele rosto de algum lugar. Percebendo o momento de bobeira do juiz, Joilson correu e se
misturou aos colegas, partindo para um contra-ataque.

A partir deste ponto a leitura pode correr um ritmo padrão.


O XV de Campo Alegre já foi campeão da terceira divisão local, mas de uns três anos para cá está em
baixa. Salários atrasados, falta de apoio da torcida e desvio dos parcos recursos. Os principais craques
foram, aos poucos, sendo levados para clubes da segunda divisão da capital. Teodoro Goiano conseguiu
vaga no Matense - só fica no banco, mas é o bastante para quem veio de baixo. Joilson é contratado do
XV desde os tempos das vitórias - saiu para uma temporada pelo Cruzeirinho, emprestado, e voltou. É
amigo do dono do time e do prefeito da cidade, aliás, a mesma pessoa.
A paixão pela bola atacou Joilson já na adolescência, ao contrário dos colegas que chutam desde a
barriga da mãe. Infância pobre, mas não miserável, como todos na cidade, se dedicou aos estudos e
pensava em ser advogado, como o Dr. Ribeiro, pai do Luis Carlos. Jogava bola nas aulas de Educação
Física, mas aos domingos, quando a turma toda ia para o campinho, Joilson preferia ficar em casa,
lendo ou vendo TV.
Anos depois, quando Luis Carlos se candidatou a vereador e assumiu a direção de elenco do XV de
Campo Alegre, Joilson já havia se desinteressado do Direito e era um dos melhores pontas da região. O
amigo convidou e ele topou: sua primeira partida como profissional foi justamente contra o Atlético de
Ribeirão. Na época, Dieguinho ainda nem havia feito teste no clube.

Jogo de hoje, velocidade normal.


Joilson entendeu claramente a indecisão do juiz e fugiu de seu campo de visão. Pouco depois pediu ao
técnico para sair e foi para o chuveiro. Se fosse descoberto sua carreira dupla estaria acabada.
Desde que os salários do clube começaram a baixar os jogadores procuraram outras fontes de
rendimento. Alguns davam expediente na prefeitura, outros abriram algum comércio e uns dois ou três
preferiram continuar dedicando o tempo livre aos prazeres de De Masi. Joilson desaparecia da cidade
de vez em quando. Nunca lhe perguntaram nada, nunca falou nada. Na hora dos coletivos ele sempre
estava lá e isso era o suficiente.

São Gonçalo do Rio Claro fica a menos duas horas da cidade palco desta história, de ônibus. Dois
ônibus - um até a ponte, na divisa dos estados, e outro local, até o centro.
Um pouco maior que Campo Alegre e com comércio mais desenvolvido, São Gonçalo é considerada
uma capital regional para os agricultores das cidadezinhas do outro lado do rio - é lá que fazem suas
despesas mensais, compram botinas sola-de-pneu, chapéus, baby-looks e camisetas com estampas em
inglês (puro de anglicismos, o pequeno Uélinton foi visto dia desses, ao lado da mãe, carregando um 'I
´m looking for a boyfriend' em letras prateadas). É para lá que correm, também, em busca de
atendimento médico ou, quando o ônibus atrasa, de serviços funerários. Apesar da proximidade e da
superioridade comercial, São Gonçalo recebe raros visitantes alegrenses, que preferem a comodidade
de uma condução direta até Ribeirão Bonito. Justamente para fugir do oi-como-vai-lembranças-pra-
comadre freqüente de Ribeirão, Joilson se habituou a passear incógnito pela praça de São Gonçalo.
Foi num passeio desses que conheceu Zelão. Sentado no banco de granilite ofertado pela Farmácia
Nossa Senhora das Dores, Joilson pensava metafisicamente no nada, com as pernas esticadas. Percebeu
um tranco nos pés cruzados e olhou assustado para o alto.

Leitura muito lenta, por favor.


Viu quando dois mamões papaya atingiram o zênite e iniciaram a trajetória de descida em direção à sua
cabeça. Ainda teve tempo de olhar para baixo e ver um rapaz magrelo dançando no ar, como se
estivesse numa aula de tai-chi-chuan pantaneiro e, novamente olhando para cima, ter agilidade
suficiente para agarrar os dois mamões voadores. Alguns metros à direita o rapaz se espatifava no chão,
ao lado de uma sacola tombada por onde fugiam meia dúzia de laranjas, um quilo de tomates, dois pés
de alface, bananas (incontáveis), duas maçãs, uma cebola e quatro cenouras.
Visto de perto, Zelão não fazia por merecer o tratamento rapaz. Se já o havia sido, havia sido há
tempos; não aparentava andar pelos tempos em que é comum aos guris viverem de joelhos ralados,
como estava naquele momento, olhando apertado o ardor das mãos e tentando se levantar. Joilson,
protegendo os mamões contra o peito, não sabia se largava as frutas para socorrer o não tão rapaz ou
fazia outra coisa qualquer. Pateticamente, passou o mamão da direita para a mão esquerda, oferecendo
a direita para Zelão, que já se levantava e dispensava apoio; a mão direita sobrando, estúpida, tentou
socorrer a sacola, mas o movimento de se abaixar foi fatal a Joilson, que assumiu o lugar do caído ao
pisar um pé de alface e tombar aos pés daquele, que já sacudia a poeira da roupa. Faltou falar dos
mamões: abriram-se ao choque com a calçada.

Basta de lentidão.
Os dois, recompostos, riem timidamente e agradecem um ao outro, mesmo que Zelão nada tivesse feito
para merecer agradecimentos. Você pegou bem, consegui ver como foi rápido para segurar os mamões.
É, mas pena que... Não tem problema. E se puseram a guardar na sacola o que ainda se aproveitava da
quitanda. Obrigado, de nada. Você joga no gol? Não, sou ponta esquerda. Sem imaginar que Joilson
respondia profissionalmente, Zelão convida: Tá a fim de fazer um teste? Estamos precisando de um
segundo goleiro no Rio Claro. Você é o técnico? Não, sou o roupeiro, mas também sirvo de massagista
e olheiro. Vi que você tem jeito. Obrigado, eu já jogo em outra cidade, mas as palavras de Joilson se
recusaram a sair e Zelão ficou esperando resposta. Para quebrar o silêncio e acabar logo com aquilo de
ficar de prosa com um desconhecido de joelho ensangüentado, Joilson abre a boca e dispara um tudo
bem, tranqüilo. E os dois marcam o teste de goleiro reserva para o dia seguinte. Como é seu nome?
Joilson. Prazer, Zelão. Mas isso você, que está lendo a história, já sabia.
Apesar de nunca ter jogado no gol, Joilson se deu bem no teste. Passou a viajar as duas horas de
ônibus, dois ônibus, duas vezes por semana. Fazia treinos com bola, participava de coletivos e ficava
no banco enquanto o titular defendia até pênalti. Pelo andar da charrete, nunca precisaria entrar em
campo - e isso bastava. Tinha um pequeno salário que, somado ao do XV, que não recebia, ficava igual,
mas era o suficiente para as passagens de ônibus e ainda sobrava um pouco para seus gastos pessoais.
Chegou a faltar a duas partidas, para desespero do técnico, em dias em que os jogos coincidiram lá e cá.
Foi advertido, baixou a cabeça e prometeu que isso não aconteceria mais, sabendo que poderia
acontecer a qualquer momento.
IBIRAPUERA

Francisco chegou poucos metros antes da hora combinada e, assim, escapou de cruzar o olhar de
Nelson. Para este, não faria diferença; para o primeiro, havia o temor de tremer e ruborizar.
Márcia chegou na hora marcada e viu a mochila de Francisco se afastando, rumo ao lugar combinado;
Nelson, tirando o capacete, não viu nada, ninguém.
Francisco saiu do táxi e caminhou.
Márcia desceu da garupa e beijou, e Márcia também ordenou, como se pedisse: vem me buscar?
Venho, claro, apaixonado, Nelson prometeu, e ajudou a ajeitar a mochila nas costas de Márcia.
Passos seguros, disfarçando a insegurança, Francisco ultrapassou o portão do parque; despreocupada,
tensa, Márcia ainda deu um, dois, três beijos no namorado, pouco se importando sechegaria atrasada,
Francisco esperaria.
Nelson some no congestionamento do sinal; Francisco some na rala multidão de árvores; Márcia olha
os dois, um de cada vez, porque tem os olhos e a cabeça no lugar.
O bosque espera por Márcia com Francisco sentado ao pé de uma seringueira. Como combinado, quase
na hora, mas sempre a tempo de começar os estudos de história.
Paula espera por Nelson na entrada do shopping.

PALITINHO

Quarta-feira. Nove e quinze da noite. Os garçons olham para a porta com certa insistência - alguns
clientes percebem. Ele nunca havia se atrasado mais de dez minutos.
Nove e dezesseis. Ele entra, os garçons se tranqüilizam. Há quase quatro anos ele chega às nove, todas
as quartas. Dá uma olhada ampla pelo salão, procurando mesa, e se senta na oito. Todas as vezes. Se a
oito está ocupada, ele disfarça, fala sobre futebol com o maitre e dá um tempo até a mesa vagar.
Tirando o atraso, desta vez aconteceu tudo igual. Ele entrou, deu uma olhada ampla pelo salão e
caminhou para a oito. Há quase quatro anos ele faz a mesma coisa. Chega às nove da noite, ou um
pouco mais, no máximo com dez minutos de atraso. Vai para a mesa oito e se senta. Um dos garçons
lhe oferece o cardápio. Todas as quartas-feiras os garçons resolvem no palitinho quem vai levar o
cardápio para ele. Os novatos mal conseguem segurar o riso. Ele pega o cardápio, lê de ponta a ponta,
se concentra nas sobremesas e pergunta qual a sugestão do chefe para o dia. O garçom, que espera do
lado, recita o prato do dia. Ele olha para o vazio, pensa por alguns segundos, volta a ler o cardápio e
pede uma brotinho de aliche e uma água sem gás, sem gelo. Mas hoje será diferente. Pelo menos foi
que Souza disse aos colegas quando notou o atraso dele.
Souza chegou de Goiás há três anos. Indicado por um primo, trabalhou como copeiro numa padaria
durante oito meses, até que um freguês, dono do restaurante ao lado, o convidou para ser garçom. Uma
semana depois Souza já atendia no salão. Inseguro no começo, parecia dançar com a bandeja entre as
mesas. Sua primeira quarta-feira foi de sorte. Pelo menos foi o que os outros garçons disseram quando
tirou o palitinho menor.
Desta vez Souza não riu como há pouco mais de dois anos. Novamente sorteado, levou o cardápio e
esperou. Ele leu todos os pratos, das entradas às sobremesas. Passou o indicador de cima para baixo, do
pêssego em calda até o sorvete de creme. Com o canto do olho, observou se Souza prestava atenção.
Virou para o lado e perguntou a sugestão do chefe. Musse de abobrinha, risoto piemontês, escalopes.
Souza caprichou na descrição do risoto piemontês. Discorreu sobre a cremosidade, a textura, a sutileza
do sabor marcante. Desta vez Souza tinha certeza de que ele mudaria o pedido.
Pouco antes de deixar Goiás, Souza havia passado por experiências premonitórias. Pelo menos foi o
que o padre disse, quando ouviu os relatos de visões de coisas que viriam a acontecer dias depois e dos
dois jogos premiados na loteria. Souza era um vidente e, desta vez, sabia que ele mudaria o pedido.
Assim como também sabia que seria o sorteado do dia.
Acabando de ouvir a descrição do risoto, ele olhou para o lado, pensativo. Souza sentiu a pulsação
acelerar. Ele voltou para o cardápio e virou-se novamente para o garçom, que esperava apreensivo.
Uma brotinho de aliche e uma água sem gás, sem gelo.
PACTO

Voltou ao sebo oito vezes, olhou todas as estantes, cada dia um corredor, passou uma semana sem
aparecer, voltou dia 21, novembro, foi direto para o corredor cinco, nos fundos, ninguém ia lá, nunca,
foi encontrado no dia seguinte sob estante caída, a autópsia acusou sufocamento, endereço no bolso, a
polícia revirou o apartamento, encontrou remédio não tomado, asma, dono do sebo espera a saída do
rabecão pra levantar a estante, tirar o pó de décadas, reorganizar os livros, intercalar os três exemplares
de Kleist.
No apartamento ao lado, porta aberta, o policial oferece um copo d'água à velhinha que chora, chora,
chora, chora, chora de covardia.

FRANGÃO
Freqüento o Bariloche Bar e Lanches há oito anos. Mais por hábito que por louvor às habilidades
gastronômicas do Italiano, dono do boteco.
Se ele é mesmo italiano? Não sei, desconfio que não, o sotaque é diferente. O homem diz que mora em
"Guaianasses" e chama frango de "pocho".
Franguinho honesto esse pocho, prato principal do cardápio. Mais pelo precinho camarada que pelo
requinte dos temperos. Frango esse que salva nossas noites,cala a boca doestômago depois que a gente
passa o turno para o pessoal da madrugada. Uma vez o Ferreira veio com uma história de que o Italiano
pegava as galinhas que morriam no fundo do caminhão, por isso a comida era tão barata. A gente riu da
piada do Ferreira.
Agora, de uns dias pra cá, tem novidade no Bariloche. Um frangão, pra mais de cinco quilos, que a
dona Consuelo, a cozinheira, chama de "monumental de nunhes". A gente não sabe o motivo do nome,
mas o bicho é gostoso. E acaba saindo mais em conta, porque um dá pra quatro e o Chico fica com o
pescoção só pra ele. Dividindo uma Coca de 2 litros ainda sobra troco para o cigarro varejinho.
E não é só isso de novidade. O Italiano começou a abrir o estabelecimento um pouco mais tarde. Diz
que o médico mandou fazer caminhadas - a pressão andava alta, coisa e tal. Agora ele chega de casa e
vai direto para o Ibirapuera. Anda lá um tanto e só depois levanta a porta de aço.
Quer mais novidade? Dona Consuelo, mulher do Italiano, cismou de sair no Carnaval, pela primeira
vez. Fez uma fantasia bonita que só vendo,cheia dumas penas pretas, grandonas assim, coisa de luxo.
Acho que vai sair pela Leandro.
Amanhã vou lá de novo, no Bariloche. É minha folga, mas quero levar a patroa pra almoçar fora. E
nem vou tomar café em casa, que é pra traçar um pochão daqueles inteiro. ô bicho gostoso. A patroa
falou que quer experimentar o omelete.Dona Consuelogarante que é feito dum ovo só, mas dá até dó da
galinha quando a gente vê o tamanho da fritada.

CAMINHEIROS

Já são as sete?
- Sim, as são, por certo.
- Então nos vamos.
- Sim, nos vamos, enfim.
Malavaram olhos e saíram.
Hora e meia de silento andar.
Senta um e outro ao granito em pausa.
Gole dágua dambos na botela única.
Olha um ao chão, outro mira ao céu.
- Nos vamos?
- Vamos.
Longa jornada, desvaga para o cansar.
Diz-me um:
- Não as há.
- Que não? devolvo.
- Tais motas.
- Caso delas.
E os deixo ir.
Como precisassem. Não vão chegar.
Dentes ao pão, pelos três.

DESGOVERNO

- Querida, vou pescar.


Disse e foi saindo. A primeira-dama, combinando ao telefone o fim de semana do filho na casa de um
coleguinha, fez sinal de positivo semnotar que o marido saia de casa sem terno. Pior, de bermuda.Traje
inadmissível para o prefeito da cidade. Pior ainda, carregando uma ridícula varinha de bambu e uma
sacola de feira, daquelas de nylon verde com listras azuis e amarelas.
Com cara de zumbi entrou no carro.Deu partida com ar autômato. Acelerou como se estivesse sob
ordens de uma entidade velocista. Senna, Pace, um desses. Dirigiu80 quilômetros em velocidade
constante, olhar fixo. Pagou o pedágio e recebeu o troco sem reparar no nome esdrúxulo da mocinha da
cabine. Nem no seu sorriso de quemhavia reconhecido obam-bam-bam da municipalidade.
Tocou em frente. Na outrapista, sentido litoral,o prefeito dacidade vizinhaguiava seu próprio carro, fato
raro, em velocidade constante.
Solteiro, o prefeito vizinho resmungou ao se levantar: vou para a praia. E foi saindo. Tirou os chinelos
para dirigir. Colocou óculos de sol. Quarta-feira, dia de despachar com o secretariado. No banco do
carona, alto, esguio, colorido, o guarda-sol fazia companhia.
No dia seguinte os jornais noticiaram que a governadora do Estado fora vista andando de biquíni pelas
ruas da capital.
Carregava um par de nadadeiras, uma máscara e um snorkel.

PENA CUMPRIDA

Recebi o alvará de soltura às 9h06 de uma segunda-feira qualquer.


Poderiam ter me libertado na sexta, e ganharia um fim de semana, mas não, deixaram para segunda,
que é dia de arranjar emprego.
E me deram umas roupas limpas, sem listras, e me deram meus documentos.E uma passagem de ônibus
para voltar à capital, onde minha vida de quatro anos atrás deveria estar me esperando.
Mas não me deram nenhum dinheiro, como fazem nos filmes. E como era cedo para o ônibus, saí
andando pela cidade e gostando daquele calor, daquelas ruas largas, e gostando daquele calor, daqueles
prédios não muitoaltos.
Troquei uma idéia comigo mesmo e o velho do lado achou que eu estava falando sozinho. E eu falei
pra mim que seria bom ficar por ali e que deveria vender a passagem pra ter uns trocados no bolso, para
um PF ou só pra ter no bolso mesmo, até conseguir um trabalho qualquer. Achei que era uma boa idéia
e topei logo.
Mas o povo que circulava pela rodoviária parece que não estava muito a fim de viajar com um bilhete
carimbado na cadeia. E fiquei com a passagem dobrada e dei um tempo por ali mesmo.

MODA DO PODEROSO

Repiquei a viola cada vez mais rápido, mais rápido e mais rápido, mode hipnotizar aquela gente.
Fui olhando nos olhos de um, nos olhos de outro e vi que ninguém mais olhava pros meus - só miravam
a destreza da mão canhestra e uns tantos tentavam perseguir a velocidade da destra.
Fui espiralando o ponteio, cada vez mais pro alto, e a cabeça daquela gente subindo junto, feito
caminhão rumo ao cume de monte alto e fui regulando o passo, regulando pra chegar na toada dos
miolos daquela gente, fui emparelhando.
E ali, quando estava juntinho, segurei o toinhoinhoim, toinhoinhoim, rodopiando leve, estancando a
batida, pa pa pa pa, pa pa pa pa, e olhei de novo pros olhos daquela gente e os olhos de todos
rodopiavam juntos, toinhoinhoim, toinhoinhoim.
Era onda indo, era onda vindo, a cabeça daquela gente tava dominada e lasquei contar história, sem
parar com a viola, sem brecar nem pisar.
E aquelas almas, todas tementes a deus e a santo, logo, logo deixariam de ser platéia pra dançar na festa
do fogo, lá no centro, lá no miolo, regência minha, sinuelo de caminho torto, de viola ardente, corda
queimante.
E lá no cerne do mundo vou estalar os dedos, soltar cabresto, quebrar corrente, largar mão daquela
gente, enfim, liberta, enfim ciente da cor do fogo, enfim ciente de si.
Deixo eles lá e volto cá, triste sina dos diabos, buscar mais gente carente.

VINTEOITO

Chegamos ao campo ainda durante a madrugada. Encostamos os caminhões e descarregamos os


caixotes que, mais tarde, se abririam ao mundo, mostrando o invento que consagraria a criatividade
brasileira e transformaria uma época.
Alberto estava calmo, mais calado que o normal, observando o trabalho, o cuidado com as caixas,
apontando alguma imperfeição no desdobramento das sedas e no encaixe das hastes de bambu.
Em menos de uma hora montamos o 14 Bis. Logo mais Alberto pilotaria a máquina voadora e daria,
com ela, uma volta na torre principal da cidade.
Seu oponente na corrida aérea seria um jovem aeronauta francês. Os demais participantes não teriam
chance alguma, estavam lá pela festa. Festa que atraiu uma pequena multidão que teve de ser afastada
quando a sirene tocou, anunciando o início da prova.
Decolaram. Saímos dali em disparada rumo à linha de chegada. Chegamos e esperamos. Vários
minutos depois avistamos um ponto no céu. Tensos, começamos a torcer para que o ponto fosse
Alberto no manche de seu 14B.
Decepção. Era o jovem francês passando a toda velocidade sobre nossas cabeças.
Engano. A esquadrilha, preparada para comemorar o feito de Alberto, cruzou o céu na hora prevista
soltando fumaça com as cores verde e amarela, acreditando que a missão do brasileiro estava completa.
Cinco, quinze, trinta, cinquenta segundos depois surge um novo ponto escuro no céu. Agora, sim,
Alberto. Sintonizamos o painel de comando da aeronave. Com ele, visualizamos a sinalização de
chegada à frente. Tristes, acompanhamos Alberto em seus últimos segundos de vôo.
Susto. Ao lado, um aeroplano cor-de-rosa.
Susto. Do outro lado, um aeroplano preto.
À esquerda, Penélope Charmosa. Alberto avaliou a situação: ela não vai conseguir. E apontou,
calmamente, para um galpão de madeira.
À direita, Dick Vigarista trocando ofensas com um cachorro. Distraído, perdeu o rumo e seguiu para o
lado errado.
Penélope passou à frente de Alberto, já em procedimento de aterrissagem. Num piscar de olhos,
atravessou a porta aberta do galpão, saindo do outro lado, arrastando seu bólido pelo pasto. Duas vacas
perderam as manchas.
Centrado, Alberto seguiu até a linha de chegada.
Foi o segundo colocado.
Comemoramos com um silencioso café no centro de Paris.
Na rua em frente, uma kombi tomba.

IATE DE BOLANOS

Amacio Bolanos foi chegando devagarinho com seu iate. Quando estava no trecho em que o mar
profundo faz divisa com o calçadão, fez sinal para que a tripulação estacionasse. Não sei se o termo
náutico adequado é esse, mas ele mandou parar o barco e, para mim, isso é estacionar.
Amacio Bolanos não chega a ser um magnata da indústria cinematográfica, até por que, até hoje,
ninguém chegou a esse ponto em nosso país, mas pode ser considerado um muito bem sucedido
empreendedor cultural, especialmente no ramo cinematográfico.
Suas primeiras aparições como ator cômico ainda estão na memória dos mais velhos e na rotina dos
mais novos, que assistem religiosamente às reprises incansavelmente reprisadas na TV, todos os
sábados.
O calçadão era seu ponto preferido na cidade, desde o tempo em que chegava de bonde para tentar
algum trabalho nas mesas do Soberano. Vieira, veterano garçom e músico eventual, lembra que
Bolanos nunca tinha dinheiro para pagar os dois cafés que consumia, mas como sempre conseguia uma
participação num comercial ou alguma figuração em filmes da Boca, convencia o contratante a lhe
adiantar o troco da despesa. O próprio ator revelou mais tarde, numa de suas raras entrevistas, que
sempre convencia o contratante a esquecer daquele adiantamento inicial.
Retomando o foco: sem desembarcar, apoiado na cerquinha do iate novo, Amacio Bolanos conversava
com os conhecidos e desconhecidos que caminhavam, corriam ou pedalavam pelo calçadão. Alguns ele
convidava para entrar e oferecia um drinque. Outros ele dava um jeito de despistar discretamente: não
vai continuar sua caminhada?
Amacio Bolanos se considerava um predestinado. Para ele, seu sucesso artístico e sorte nos negócios
eram desígnios divinos. Por isso não desprezou o spam que oferecia os incríveis iates gregos
Kataklysmos.
Já estavam em alto-mar quando Bolanos se dirigiu às centenas de bêbados que cambaleavam por seu
iate: Permitam-me convidá-los para um passeio, no melhor estilo Ilha da Fantasia. Ébrios, os
convidados nem haviam notado o afastamento da terra firme. Um ou outro tentou protestar, alegando
compromissos urgentes, mas tiveram de se calar para beber mais uma rodada de espumante Brutt,
oferta da casa.
O hábil diretor havia selecionado seu elenco de convidados minuciosamente. Ali haviam duplas de
engenheiros, médicos, cozinheiros, malabaristas, professores, músicos, geólogos e de outras tantas
profissões essenciais para a humanidade, que só deixo de relacionar por falta de espaço. Se sua
profissão é essencial para o desenvolvimento da humanidade, pode ter certeza de que estava
lá,representada por algum bêbado.
Bolanos contou, então, à sua platéia, a história do spam. Imaginem quantas pessoas receberam aquela
mensagem - cinco milhões? Seis milhões? Destes, apenas uns quinhentos mil efetivamente deixaram
passar pelo filtro anti-spam. Conte aí mais uns trezendos mil que bloqueiam mensagens com anexos.
De cem mil destinatários restantes, quantos se interessam por barcos? Cinco, dez mil?E desta pequena
parte, quantos têm dinheiro pra comprar uma maravilha dessas? Só eu.
Alguns convivas que conservavam um pouco de consciência juntaram a mensagem divina com as
amostras de profissiões e riram da analogia óbvia. Os outros pediram mais um trago.
Vamos entrar, as nuvens estão ficando carregadas. Não se preocupem, temos bastantes provisões no
porão. Dito isso, o barco seguiu, felizmente sem rinocerontes a bordo.
E naquele dia choveu.
E no outro também choveu, e no outro, no outro, no outro...

SEXTA-FEIRA

À meia-noite as carruagens morrem. Cinderela acende um baseado, se esparrama na cadeira de plástico


e observa o rei e sua corja desfilarem através da fumaça. O duque se afoga numa banheira de uísque. O
cozinheiro real toma banho na panela de espaguete. Damas de honra ajustam as asas umas das outras
cantarolando cirandas. Crianças com gorros de lã caminham de mãos dadas rumo à escolinha da tia
Olga para um seminário sobre mais-valia. Começa o dia, começa a vida no reino. E a rainha flana, com
um fio de macarrão cozido em malte pendurado na gola.
- Guardas! Prendam este homem!
- Sim, majestade!
- Mas senhor, eu trabalho, acordo cedo, me espremo no lotação, o ovo se mistura ao feijão da marmita,
aposto em cavalos, pago o carnê de impostos em dia, às vezes atraso um dia, mas está sempre em dia,
escovo os dentes e os cabelos, uso álcool depois da barba, sei recitar Otelo, manejo rastelo, tupia e
arado, ajudo necessitados, lavo minhas roupas na laundromatic, calculo raiz quadrada de cabeça,
espalho...
- Guardas! Matem este homem!
- Sim, majestade!
À meia-noite e cinco a névoa se esparsa e o histrião saltita entre convivas anunciando a boa-nova. O rei
não vem, e o povo aplaude, a ralé se esbalda, ministros desabotam a casaca, a rainha pisca para o
lanceiro, um serviçal desastrado derruba a bandeja de ostras, um gorro vermelho bóia numa poça de
melado.
À meia-noite e dez o histrião fuxica para o rei. Seus cabelos estão caindo. E tira displicentemente rolos
de arame farpado do manto de sua alteza.
- Guardas! Matem o histrião!
Meia-noite e meia. Uma criança de cabeça descoberta corre atrasada para a aula de diletantismo
compulsório. O rio espelha a lua e um dragão, de binóculos, assobia o refrão de Carmen. Todos entram
para o palácio. Apagam-se as luzes.

SALOMÉ (incompleto)

Um sapato de mulher pendurado no abajur; caixa de pizza; copos e garrafas de vinho, prosseco e água com
gás; uma bola de basquete; um sapato de homem na mesinha de centro; paletó e camisa se fazendo de cortina
sobre a televisão; dois celulares; um sapato de mulher no sofá; um par de algemas; pacote de camisinhas;
vestido preto; um sapato de homem no lugar do telefone; um sapato de mulher pendurado na maçaneta;
calça, gravata, calcinha, cueca, sutiã; sachês de catchup; agenda; máquina fotográfica; caixinhas de remédios;
camisinhas usadas; CDs sem caixinhas, caixinhas sem CDs. Uma mulher, um homem.

Adriana, Gustavo. Ele por baixo, por pouco tempo. Dois anos morando juntos, já virou rotina: trabalho, sexo,
sexo, trabalho, sexo, sexo, sexo. Ela em casa, telefone o dia todo, contatos, contratos, relatórios, das nove às
cinco: sabe que às cinco e dez será puxada na cadeira giratória. Seu capricho é variar o perfume, sua mania é
nunca repetir um vestido.

Acorda com Adriano saindo, às vezes ainda rola uma, toma banho e escolhe o vestido no armário dos novos,
se veste. Fica o dia todo assim, ao telefone, sem ar condicionado. Na hora do almoço, anda quinze minutos
na esteira, come um qualquer-coisa e volta para o trabalho. Às quatro e meia pára de novo, calça os sapatos e
borrifa perfume, qualquer um, sabe que ele vai gostar, o que vale é a combinação com o suor, e espera por
ele.

Como ensaiado, hora marcada, Gustavo entra em silêncio vindo da empresa. Vai se desfantasiando do terno
pelo caminho e chega ao escritório nu. Finge que não sabe que ela finge não ter percebido sua chegada. Sem
falar nada, puxa a cadeira giratória, pega Adriana nos braços, sem falar nada, arranca seu vestido, inclina sua
cabeça em direção à mesa, afasta a calcinha e entra, devagar, sem falar nada.

Só depois começa a festa, beijos, cheiros, amassos, ali mesmo, no escritório, papéis, telefone, teclado,
vestido, gemidos, de frente, de costas, sentados, em pé. Depois em carrossel pelo apartamento, na sala, no
banheiro, no quarto, na cozinha, espaguete? Com muito molho. Queijo? Varia aqui e ali, detalhe ou outro, é
essa a rotina, o cenário, os personagens.
Aos sábados ele pratica esportes, ela vai às compras. Aos domingos, quase tudo igual, menos o trabalho.
Dois anos, pouco menos, setecentas fodas completas. Não, ninguém contou, é estimativa. - E esse cheiro? -
Gostou? - Não, não falei do perfume. Esse cheiro esquisito. Parece que vem da cozinha. - Deve ter alguma
coisa estragada na geladeira. Começam a pensar em ter alguém para o serviço da casa.

Anúncio no jornal. Maria das Dores, Maria do Socorro, Maria de Jesus, Maria José, Sandra (gostosinha...),
Maria do Carmo, Maria Augusta, Salomé. Salomé? Feia com experiência. Sabe? Sei. Faz? Faço. Cozinha?
Cozinho. Contratada.

A primeira vez foi numa varrida. Cantarolava um pagode qualquer quando tropeçou no tapete e disparou: "".
Gustavo passava por ali e ouviu a citação.

Casal na sala bagunçada, suja. Fazem sexo o tempo todo, não arrumam a casa. Resolvem contratar
empregada. Anúncio, seleção, decidem pela feia com experiência. Moça começa a fazer citações clássicas, o
patrão se interessa. Comenta com a mulher e ela despreza: agendas são cheias de citações. Porteiro começa
a frequentar o apartamento interessado na empregada. Marido puxa assunto e vê que a empregada sabe do
que está falando. Se interessa mais. Mulher ouve uma das conversas e também se sente atraída pela moça.
Para agradar o marido, tenta fazer a empregada se aproximar dele. Ele avança, ela recua, pede demissão.
Ele vai atrás e recontrata. Continua avançando. Ela pára de fazer citações. Começa a fugir do patrão e
namora o porteiro. Patrão pressiona, ela cita Salomé. Diz que fica com ele se trouxer a cabeça do porteiro.
Demitir? Não, a cabeça mesmo. Ele pira. Mulher pira. Empregada acha que o assunto está encerrado. Ele
chega com a cabeça num saco de supermercado. Empregada desespera, mata a patroa. Polícia prende os
dois.

JIPE (incompleto)

Aquela luz parecia brotar da água, impedindo que enxergássemos as poucas casinhas à margem do riacho que
cortava o vale. Era hipnótico. Nossos olhos atraídos pelo reflexo, nada mais existia. Ali, no alto, sentíamos
como que sugados, absorvidos. Era o que eu sentia e ela me disse a mesma coisa.

Até hoje, seis anos depois, quando ultrapasso o alto da serra, tenho a sensação de mergulhar num caldeirão de
vida, de regressar a um gigantesco útero ainda latente por ter gerado tudo ao seu redor.

Viajamos a noite toda. Saímos de São Paulo no fim da tarde de terça-feira, sob chuva fraca, a capota do jipe
levantada. Sabíamos que estávamos prestes a encarar uma nova aventura, esse era o objetivo, passar uns dois
ou três dias num vilarejo de montanha, selo mais romântico possível para um namoro começado por acaso,
na fila do supermercado.

A iniciativa foi dela; ainda não sei se proposital ou apenas reação espontânea, de sugerir que o último pacote
de pão de forma fosse dividido. Concordei, brincando, e disse que poderíamos fazer um pique-nique. Eu
topo, ela respondeu sem pensar.

Fomos conversando até o estacionamento e ela desatou a rir quando viu meu jipe amarelo. Antes de ficar sem
graça, entrei no clima fiz as apresentações formais: Este é o Pelêgo de Alcântara, não tão audaz como
Manuel, mas valente e destemido a ponto de me carregar do Maranhão para cá em ... dias de ininterrupta
viagem. Pelêgo, esta bela senhorita - senhora, rebateu ela - esta bela senhora convidou-me para o mais nobre
dos rituais, aquele proposto por nosso senhor jesus cristo, que resume todos os ideais de fraternidade
derramados durante a Revolução Francesa: partilhar o pão. Virei-me para ela e perguntei: posso ter a honra
de conhecer vosso nome, nobre senhora?

- Julieta. E o seu?

A partir de agora sou Romeu, filho de Montéquios e... não, não. Esqueça. Essa história é trágica demais. Sou
Quixote, cavaleiro a serviço de El Rey Sueños e lhe ofereço carona neste formoso rocinante de lata e
borracha.

Ela agradeceu e recusou: muito obrigada, estou de carro. Nos despedimos com beijo no rosto e aperto de
mão. E ela seguiu em direção a um Escort vermelho. Corri atrás dela ofegante: o pão! E lhe entreguei a
sacolinha. Ela aceitou e disse: me liga. Número tal.

Voltei para o Pelêgo repetindo o número em voz alta para não esquecer.

Liguei para ela na mesma noite. O filho atendeu. Julieta? Ele estranhou e logo teve o fone tomado das mãos.
Oi, Quixote!

Marcamos o pique-ninque para o dia seguinte, à tarde, no parque. Você não trabalha? Sou autônomo. E você?
Estou de férias.

Nunca soube se seu nome era mesmo Julieta. Meu nome ela só deve ser descoberto ao pegar os documentos
para preencher a ficha do hospital, mas nunca disse nada, continou me chamando de Quixote.

- Conhece Mauá?

- É perto de Diadema?

- Não, não... Visconde de Mauá, na serra da Mantiqueira.

- Já ouvi falar, mas nunca fui.

- Também nunca fui. Dizem que é meio mágico.

Julieta riu. Tá a fim? Claro!


Chegando à vila de Visconde de Mauá, nossa primeira providência foi procurar um mecânico que pudesse
consertar o cabo do acelerador, razão de uma noite toda na via Dutra.

- Mauá é isso aqui? O mecânico respondeu em silêncio, só olhou de esguia para ela. Desculpe, não foi isso o
que eu quis dizer. É que sempre ouvi falar em Mauá como sendo uma cidade mágica, casinhas de duendes,
cachoeiras, e aqui parece tão normal.

- É normal, sim senhora. Essa história de duende é invenção da hipaiada da Maromba.

- Maromba?

- Lá pra cima. E apontou com o queixo para uma montanha qualquer daquelas que nos empanelavam.

Lambuzado de graxa, Eurico começou a falar sobre vilas e vales, rios, divisas de estados e municípios. Até
poderia ser uma cidade normal, mas a paixão do mecânico ao explicar todos os detalhes deu a impressão de
que era, realmente, uma espécie de xangrilá, e que ele era o encarregado das chaves, aquele que resolvia
quem poderia ou não ficar em Visconde de Mauá para sempre. Parece que conseguimos vistos de turistas,
depois de duas horas de conserto e várias xícaras de café ralo, bolo e pão de queijo.

- Procurem o Nilson, na saída de Maringá. Ele é caminhoneiro e tem uma pousada ajeitadinha.

- Ah, não, obrigado, a gente veio pra acampar. O mesmo olhar de esguia e entendemos que aquilo era mais
ou menos uma ordem.

- Quer ligar para o Ricardo? Mais tarde, vamos chegar na pousadinha primeiro. Sacolejamos mais seis
quilômetros até um entroncamento que apontava Maringá para os dois lados. Julieta me olhou com cara de "e
agora?" Sorri e soltei meu aforismo preferido: na dúvida, siga sempre à esquerda.

Pouco tempo depois chegamos a uma verdadeira cidade de duendes. Uma última subida, um hotel à esquerda
e a última subida. Isso aqui é um cenário, só pode ser. Julieta não acreditava naquela ruazinha de terra com
oito casas de cada lado, placas indicando pousadas e restaurantes. Buzinei para o cavalo deitado no meio da
rua e algumas pessoas apareceram nas portas para ver a cara dos estrangeiros.

Mais duzentos metros e a cidade chegava ao fim. Uma casa branca de dois andares, muito simples, no lado
da montanha, era a única com jeito de hospedagem por ali. Julieta saltou do jipe e bateu palmas. Seu Nilson?
A resposta veio da cozinha, nos fundos. O Nilson tá pra Resende, foi buscar um frete. É que recomendaram a
pousada dele pra gente. É aqui mesmo, vocês querem dar uma olhada? Saltei e dei à mão a Julieta. A estrada,
as curvas, alguma coisa tinha nos deixando com sintomas de uma garrafa de vinho. Será que foi o café do
mecânico?

• Como é o nome da senhora?

• - É Ana.
- Prazer, sou Quixote e ela é Julita.

E no trajeto entre os quartinhos no alto da casa passamos a ser amigos desde sempre.

- Dona Ana, onde tem um telefone?

Ela riu, disse que nunca ninguém a tinha tratado por dona. Telefone? Tem um no Mauá, na Casa da Amizade.
E não tem um orelhão por aqui? Não tem, não. Só lá mesmo. E deixamos a ligação para o dia seguinte. E, no
dia seguinte, nada mais havia a dizer:

- Ricardo, é a mamãe. Olha, filho... como estão as coisas aí? Ricardo... quero que você vá para a casa da vó.
É, não sei, uns dias, depois a gente resolve. Sabe o que é? Vou ficar aqui pra sempre.

Você também pode gostar