Você está na página 1de 718

Medicina

A história dos saberes e das práticas terapêuticos em uso na Europa


medieval elucida o surgimento de corporações de especialistas -médicos�
cirurgiões, barbeiros -que buscam assegurar o monopólio da arte de curar,
ao mesmo tempo que se manifestam, por outro lado, as premissas de nossa
1nedicina 1noderna. Com efeito, o renascimento da observação anatômica,
no fi111 da Idade Média, supõe uma objetivação da pessoa e da doença sobre
a qual a medicina, em sua busca de científicidade, viria a se apoiar desde
então e até os nossos dias.
Serão abordadas aqui mais as relações simbólicas e as práticas sociais do
tratamento do que a história propriamente dita da medicina erudita. Em
outras palavras, situamo-nos em uma perspectiva antropológica distin,ca
da l1istória clássica da medicina medieval, tal como se encontra nota\'el­
mente abordada na Histoire de la pe11sée médicale en Occidtnt, dirigida por Nlirko
D. Gr1nek.
Na história da medicina letrada, a Europa meridional desempenha um
papel privilegiado por várias razões: a vitalidade de Salerno. desde a Alta
Idade Média; o esplendor do Sul da Itália e da Espanha, cujos traduto­
res legaram ao Ocidente as conquistas da medicina greco-arábica; a cria­
ção das facuidades de Montpellier e de Bolonha. comparáveis à de Paris.
Profu11damente maucada pela Igreja, essa medicina letrada foi, de início.
beneficiada pela luta que as autoridades eclesiásticas travaram contra as

1 73

Dicionário atialítico do Ocide11te 111edieval

práticas não cristãs e as heresias. Por ot1tro lado, no século XIII, a redesco­
berta de Aristóteles, o divórcio entre fé e razão, as co11tradições 1na11ifestas
entre as'' autoridades" levaram os n1édicos tnedievais a to1nar progressiva­
mente consciência de sua especificidade. Na 111edida en1 que partill1avain
a tradição galênica trans1nitida e rei1 1te1·pretada pelos árabes - o saber
racional e a observação - sentira1 11-se co1110 l101ne11s 11ovos, '' modernos" '
co1no diziam.
Entretanto, considera1 1do os diversos recursos de que dispu11l1am as po­
pulações medievais, impõe-se o questiona111ento acerca do lugar real1nente
ocupado por essa medicina. Entre os eclesiásticos que a ela se dedicaram,
a origem e o nível dos conhecimentos eram, se1n dúvida, extreman1ente
variados. E, sobretudo, aquilo que se originava das tradições orais e dos
patrimônios culturais não cristãos escapa-nos em grande parte, uma vez
que não dispomos de grande quantidade de documentos do mesmo nível
de importância de um Leechbook, o monumento da medicina anglo-saxã do
século X. Numerosas zonas de sombra subsistem ao tentarmos discernir
os sistemas de tratamento realmente em uso. Contudo, pode-se ao menos
seguir o traço de um insistente murmúrio, relativo aos nun1erosos curan­
deiros de tipo tradicional que se perpetuaram mesmo em nossas socie­
dades industrializadas com o desabrochar das medicinas ditas paralelas.
Enfim, na Idade Média, quando a medicina era ora elevada ao patan1ar de
uma filosofia, ora considerada uma ''arte mecânica'', e quando oscilavam
as fronteiras que separavam os campos eruditos e ''populares'', a própria
medicina considerada erudita manteve, por vezes, relações a1 nbíguas com
• • •
o emp1r1smo e a magia.

Restauração da energia vital e medicina no hospital

No século VII, o bispo Isidoro de Sevilha dedicou à medicina o quarto


livro de suas Etimologias, obra que foi a primeira das enciclopédias medie­
vais e uma referência constante. Nela, o autor enfatiza que a medicina não
é, necessariamente, medicação. Não que o prelado tenha preferido confiar
a cura mais à misericórdia divina ou aos santos taumaturgos do que à far­
macopeia, como havia prescrito Tertuliano. É que, para ele, tratar era em

1 74
Mtdicina

pri,neiro lugar restaurar uma energia vital considerada O verdadeiro agente


da cura e da manutenção da saúde.
Tal concepção, que iria perdurar por toda a Idade Média e inclusive
além dela, se originava da teoria dos humores, sistematizada no século li
por Galeno e difundida no século N pelo bizantino Oribaso. Ela não só
esti1nulou a medicina erudita até o século VIII, como se mante1le durante
esse longo período presente nas concepções populares, impregnando ainda
hoje as percepções não científicas do corpo e de sua patologi a. Segundo
esse sistema, o equilíbrio absoluto dos humores é um ideal ína cessí"·el a
u1n corpo humano vitimado por intermináveis processos de transformação
interna. Esse continuum entre saúde e doença impõe uma definição exten­
siva do tratamento, um zelo extremo com a prevenção e uma terapêutica
apoiada na'' dietética", compreendida como gestão racional e cotidiana do
corpo. Seu principal meio é o regime alimentar. E ele que pe111úre melhor
equilibrar a dinâmica vital dos indivíduos - de acordo com seu tempera­
mento particular (fleumático, sanguíneo, colérico ou melancólico) e em
função das estações - pelas qualidades específicas das substânci as naturais
e daquelas adquiridas através de diferentes modos de preparação culinária.
O controle das interações entre o homem e o meio natural fez dos mé­
dicos, durante toda a Idade Média, especialistas da natureza, pbysici, como
gostavam de se denominar, e, por causa disso, metafísicos. Eles pretendiam
elaborar sistemas classificatórios nos quais se relacionavam as ca tegorias
do alimento, do remédio e do simbólico. Medicina e cozinha esti\·erarn tão
estreitamente associadas na vida cotidiana quanto no seio das instituições
hospitalares.
Tratar consistiu, origin almente, em restaurar1 o que permite compreen­
der a importância atribuída por certos regulamentos hospitalares. como em
Florença ou en1 Laon, ao conforto dos doentes (luz, ca lor). e sobretudo à
sua alimentação, até mesmo aos seus caprichos alimentares.
Decorre daí a impressão de um abandono especit"ic amente médico dos
doentes. Con1 efeito, interpreta -se frequenten1ente como um indício de
indiferença terapêutica a inexistência, até o século XIII, de médicos vincu­
lados estatutariamente às instituições hospitalares (exceção feira à Espa ­
nha, onde, como no Oriente árabe ou bizantino, a pr, esença médica esta\�a

1 75
Dicio11ário a11alítico do Ocide11tc 111cdieval

assegurada desde te111pos a11tigos nos estabelecin1e11tos de assistê11cia). De


fato, 0 auxílio institucional aos doentes foi durante 111uito te111po conf Ltn­
dido com o dado aos ''pobres'' em geral, excetuando-se o caso dos leprosos
e dos ''inchados'' (os l1idrópicos). Da mes111a for111a, o cuidado específico
aos infelizes atingidos pelo ''mal dos arde11tes'' (ergotisn10) foi co11fiado
aos hospitalários de Santo Antônio desde a criação da orde111, em 1095.
Apenas no século XIII con1eça-se a enco11trar alguns hospitais especializa­
dos no cuidado aos enfermos, cotno o Quinze-Vingts, fundado em Paris
por São Luís para os cegos. E é justa111ente a partir desse mo1nento que os
médicos aparecem nos arquivos hospitalares.
/

E necessário acrescentar a essa coincidência o fato de que vários alber-


gues ou casas de Deus eran1 ce11tros religiosos onde se cumprian1 diversos
ritos de passagem que não visavan1 diretamente à saúde do corpo, mas es­
tavam destinados a assegurar a purificação espiritual dos assistidos e até
mesmo seu ingresso no Além. Tratava-se, tambén1, de garantir a salvação
eterna dos doadores e das almas ge11erosas que socorriam os pauperes, cujas
orações deviam, em troca, suavizar o fardo de seus benfeitores. Mas essas
figuras de Cristo despojado e sofredor, intermediárias privilegiadas entre
os benfeitores e o Céu, tinham um outro lado: os afligidos não era111, so­
bretudo, pecadores, objetos da cólera divina? Ou mesmo, no caso dos in­
válidos, não eram delinquentes castigados pela justiça humana? Ou ainda
sin1ples trapaceiros? Aqueles cujos corpos estavam atingidos suscitavam,
portanto, também a desconfiança, a zombaria e a agressividade, como re­
vela a contrario a maneira pela qual os estatutos dos hospitais insistiam na
brandura no trato con1 os doentes. Assim se poderia explicar que, no in­
terior dos próprios refúgios que lhes eram oferecidos, tenha-se por vezes
abandonado os assistidos a seus males corporais, co1no Jó, seu modelo de
paciência, tinha sido abandonado sobre seu monte de esterco.
No entanto, nada é mais incerto do que essa suposta negligência em
matéria terapêutica. Testemunha-o, por exemplo, a reputação dos cuida­
dos prodigalizados pelo hospital de Laon, a ponto de irem se tratar nele,
além dos indigentes que eram seus beneficiários correntes, os proprietários
fundiários das redondezas, os artesãos, e até mesmo ricos mercadores ou
nobres. Nele oficiavam os cônegos do cabido da catedral proprietária do
Medicina

l1ospital, famosos, desde o século IX, por seus práticas e conhecimentos


médicos, dedicados ao estudo apaixonado dos manuscritos de que dispu-
11l1am, como o De medicamentís, do bord elês Marcellus Empiricus (século
IV). De forma geral, os peregrinos e os indigentes muito provavelmente
eran1 tratados em enfermarias específicas - situad as nos prédios monásti­
cos ou em pequenos hospitais rurais estabelecidos nas proximidades- por
religiosos especialistas encarregados da enfermaria reservada aos monges.
As primeiras referências a médicos nos registros hospitalare s coincide m
cotn a relativa laicização das instituições d e caridade e com a profissiona­
lização dos ofícios de saúde no fim da Idade Média . No encanto, elas indi­
cam mais a importância do papel inicialmente desempenhado nessa matéria
pelos eclesiásticos do que uma ausência anterior de cuidados médicos pro­
priamente ditos. Pois havia nos quadros da Igreja, e m particular entre os
regulares, práticos suficientemente qualificados para, à guisa de carid ade ,
assegurar cuidados médicos, mesm.o que os arquivos não guardem traços
de sua intervenção. E possível propor a mesma interpretação para a menção
apenas tardia à inserção de médicos nas junta s destinadas a identificar os
leprosos: durante muito tempo, os eclesiásticos, que eram membros des ses
tribunais, acumularam as funções religiosas e as e specificamente médicas.
Nos estabelecimentos de assistência e ncontravam-se ainda todos aqueles,
e sobretudo aquelas, qu e, assumindo cotidianamente o encargo dos doen­
tes - frade s, fr eiras, conversos e servidore s laicos -, haviam adquirido, pouco
a pouco, um saber prático e até mesmo rudimentos teóricos do campo da
medicina letra da, mas também possuíam conhecimentos e habilidades '-• em­
píricos'' veiculados pela tradição oral não erudita. Quase não há� em relação
a esse aspecto, registros d iretos nos arquivos hospitalares. Ocasionalmente,
os textos revelam-nos, em algumas menções, um pouco desse quadro, como
o concernente aos cavaleiros teutônicos, religiosos e gue rreiros sobre os
quais o médico-cirurgião Guy de Chauliac diria, por volta de I 3 6 3, com
todo o seu desprezo de profissional, que, ''com imprecações e beberagens,
óleo, lã e folhas de couve, eles curam to das as feridas, funda mentando-se
na premissa de que Deus colocou sua virtude em pala,rras, en'as e pedras ".
De fato, eram numerosas as ocasiões de contato entre os diferentes re­
gistros do saber, inclusive nas portas dos mosteiros, ond e vende.dores de

177
Dicio11ário a11alítico do Ocide11te 111cdieval

plantas medicinais expunl1am o conteúdo de seus volu1nes e caixas, ven­


dedores que buscavam be1n se diferenciar do charlatão, detall1adainente
caracterizado por Rutebeuf no Dit de l'herberie. Os precursores medievais
dos médicos de hoje levaran1 um longo período para vencê-los. E1n 14341
dentro mesmo do l1ospital de Pont-du-Rhône, eclodit1 um conflito entre
os médicos e aqueles que as autoridades civis, discípulas da nova legitimi­
dade, chan1avam de'' irmãos hospitalários ignorantes, monges supersticio­
sos, empíricos ou pretensos feiticeiros''.
Estamos, pois, em presença de utna ampla prática social da arte terapêu­
tica, relativamente difusa e, ao n1enos até o século XIII, não exclusivamente
reservada a grupos profissionais distintos e organizados. Na ausência de
documentação suficie11te para apreciar os respectivos papéis exercidos por
todos esses personagens, pode-se evocar a atual situação sanitária de certos
países do Terceiro Mundo. Por exemplo, na Etiópia, cristianizada desde o
século IV, ainda hoje se cruzam bispos taumaturgos (que nos fazem pensar
em São Martinho, na Gália do Baixo Império), 1nédiuns possuídos pelos
espíritos tradicionais, ''letrados'' fabricantes de talismãs, curandeiros es­
pecialistas em plantas medicinais, além dos práticos da medicina ocidental
..
moderna.

Nascimento, depois laicização de uma religião da medicina

Os Pais da Igreja, desde o século III, adotaram o galenisn10, e serviram­


-se dele para pensar os processos da vida espiritual, em particular da pe­
nitência, a partir do modelo da purgação dos humores, como testen-iunha
bem mais tarde o Livro das santas medicinas, composto em I 3 54 pelo duque
Henrique de Lancaster.
No decorrer dos primeiros séculos da nossa era, o tratamento do corpo
e. a conversão das almas mantiveram-se estreitamente vinculados em fun­
çã o do caráter estratégico assumido pela cura das doenças na cristianização
das consciências. A Igreja rejeitou como suspeita toda prática curativa não
avalizada pela medicina galênica. Os bispos encontravam-se na primeira fila
do combate engajado contra curandeiros de todos os tipos, que seduziam 0
Mtdicína

vulgo misturando às tradições autóctones objetos do culto cristão (óleo sa­


grado, relíquias) , a crer-se em Gregório de Tours. Na ausência de qualquer
corporação propriamente médica, sem dificuldade instalou-se na Europa,
sob a égide da Igreja, um dogmatismo terapêutico fadado a longo futuro.
Por outro lado, a preservação e a cóp1a do s manuscríto, s médicos da An­
tiguidade greco-romana nos mosteiros da Alta Idade Média, o monopólio
episcopal e monástico do ensino, o engajamento de inúmeros eclesiásticos
seculares e, sobretudo, regulares na prática médico-cirúrgica, impuseram,
até pelo menos o século XII, um marcado perfil religioso aos praticantes
letrados.
A partir do século XII, na esteira da reforma gregoriana, \·áríos concí­
lios promulgaram proibições, inicialmente para os monges, excessÍt;amente
vinculados ao exercício da medicina e aos afazeres do século, e em seguida
para os eclesiásticos que, atuando nas cirurgias, infringiam o tabu do san­
gue que pesava sobre a condição de "clérigo''. Em seguid� no contexto do
impulso corporativo que caracterizou o mundo dos ofícios no século XIlI,,
de onde saíram as universidades, cindiu-se o pers onagem do médico, que
áté então exercia tanto a cirurgia quanto a medicina e, com muitd frequên­
cia, confeccionava seus próprios remédios. Surgem novos profissionais da
saúde, preocupados com suas especificidades, s eus direitos e pri\·ilégios,
como os médicos da faculdade, os cirurgiões, os barbeiros e os boticários.
Alé1n dis so, ao tabu do sangue imposto aos clérigos e, logo, aos uru'tersi­
tários, superpôs-s e o desprezo des tes último s por todos aqudes que exer­
cian1 atividade manual.
Tanto na França quanto na Inglaterra, os cirurgiões do f1m da Idade
Média eram frequentemente iletrados, como os barbeiros aos quais dele­
garam rapidamente a responsabilidade pelas operações mais comuns, por
exemplo a sangria. A Itália apresenta, ness e aspecto, um quadro bem dis­
tinto. Os práticos letrados e laicos foram aí mai s numero sos do que em
outros lugares , e o exercício da cirurgia foi muit o valorizado. Em Bolonha,
médico s e cirurgiões mantiveram-se unidos dentro da faculdade, contraria­
mente ao que ocorreu em Paris, onde a faculdade de Medicina impôs a seus
bacharéis o juramento de não intervir tnanualmence sobre o corpo humano.

1 79
Dicio1zá1·ío analítico do Ocidente 11zedieval

À fundação das primeiras faculdades, e1n Montpellier, Paris e Bol011I1a,


e à criação das associações de cirurgiões e bar�eiros, seguiu-se a exclusão
que a Igreja buscou impor e111 1natéria de terapêutica a u 111 a parte de seu
clero. Prenunciava-se a laicização das profissões tnédicas. Mas essa laici­
zação produziu-se apenas paulati11 amente. Nu111erosas dispensas foram
de início concedidas aos eclesiásticos (sobretudo seculares) desejosos de
praticar a 1nedicina, e até 1nes1110 a cirurgia. O italiano Teodorico, doini­
nicano, confessor do papa Inocêncio IV, bispo de Bitonto e e1n seguida de
Cervia ( 1 266), foi utn célebre cirurgião. Na França, e11tre 1222 e 1447 ,
registram-se duas dezenas de médicos que, por outro lado, ascenderam ao
episcopado, e apenas em 145 2 desapareceu a obrigação do celibato para
os professores universitários. Há que se aguardar o século XV para ver
diminuir o nú1nero de práticos providos de ordens maiores e tnunidos de
benefícios eclesiásticos. Esse progressivo desaparecimento dos benefícios
no n1eio n1édico provavelmente acentuou a preocupação com a remunera­
ção. Sua suposta avidez impunha-se, desde o século XII, como um leitmotiv
em meio às críticas que lhes eram dirigidas, pois_ o pagamento do terapeuta
parecia exceder os limites de sua intervenção. Seria legítimo, sobretudo se
ele pertencia à Igreja, negociar uma cura que cabia somente a Deus, ou ao
n1enos à Natureza? Que tipo de traball10 executava, então, o médico? Seria
possível avaliar a sua intervenção sob a ótica de outras corporações de ofí­
cios presentes no quadro das atividades laborais urbanas?
A laicização socioprofissional da medicina, que então se inicia, foi pre­
cedida no plano intelectual pela crise do século XIII, quando se produz a
emancipação dos conhecimentos em relação à teologia, deslocando-se 0
foco ao exame da natureza por si mesma - independentemente das impli­
cações divinas e espirituais - e à legitimidade dos sentidos como meios de
conhecimento. Mas essa liberação do saber médico-cirúrgico, ainda muito
relativa, não implicava uma maior tolerância em relação aos terapeutas
alheios ao '' rebanho" universitário ou corporativo. Ao c�ntrário, na defesa
dos seus respectivos monopólios, as faculdades de Medicina e as associa­
ções de barbeiros e cirurgiões exigiam ativamente o apoio da Igreja na luta
contra os práticos não reconhecidos da arte de curar, entre os quais, dora­
vante e cada vez mais, contavam-se os próprios eclesiásticos.

1 80
Medicina

Nas fronteiras da ortodoxia

Os doe11tes, na Idade Média, dirigiam-se de bom grado aos tocados pela


graça divina, vivos ou mortos. Os eclesiásticos especialistas em medici na,
acumulando poder terrestre e eficácia sobrenatural, foram então convoca­
dos a uma dupla missão, pois os vínculos privilegiados que os personagens
consagrados, sobretudo eremitas e reclusos, supostamente mantinham com
o Além - como os santos - eram suficientes para atrair até el es inúmeros
doentes e enfermos. Daí a acrimônia com a qual os homen s de ofício, e
particularmente os cirurgiões, reivindicaram, a partir do século Xlll, a ex­
clusividade da arte de curar contra todo curandeiro sagrado, mesmo s e el e
fosse um mártir defunto.
Qua11do os doentes recorriam à Igreja, o ''mágico'' interagia plenamen te
com o ''religioso'': via-se eles considerarem a extrema-unção um remédio,
recolherem o pó ou rasparem a pedra das s epulturas santas para ingeri-lo,
ou ainda abrire m '' ao acaso" as Sagradas Escrituras para prognosticar uma
do e nça. As preces mantidas junto do corpo, a título de prevenção ou cura.
funcionavam mais como talismãs do que como sinal de devoção. Alguns
eclesiásticos confeccionavam encantamen tos cristãos ou cristianizados, da
1nesma forma que muitos deles não hesitavam em indicar procedimen to s
terapêuticos heterodoxos, como o fez Pedro Hispano (o futuro papa João
XXI) e m seu Thesaurus pauperum, no século XIII, ou ainda um século antes
a abadessa beneditina Hildegarda de Bi ngen.
A atenç�..o que H ildegarda dedicava às pedras preciosas e a os vegetais
exprime o grande intere sse terapêut i co que ambos suscitaram ao longo de
toda a Idade Média. A e ficáci a das plan tas medicinais, cujo conhecimenco
const ituía, para _ Cassi odo ro, no século VI"' o próprio fundament o da a rte
d e curar, não resi dia ap e nas nos pri ncípi os ativ os presentes nas pl an t as
med icinais, reco nhe cido s pela farmacologia modern a. Seu pode r es ta\' a
ligado tan1bém às repercussões qu e as plantas produz iam no im aginário,
no con tex to de uma Eu rop a predom i nanteme nte rural onde a presen ça
conc re ta da nat u reza impunha-se aos se ntidos. O \7' egeral é um signo su­
perio r aprop riado à cu ra: a plant a é insubstituível nut ridora, benfeit ora de
l1omens e do gado,

e não ap enas nos períodos de miséria e fom e em que a

l 81
Dicio11ário analítico do Ocide11te 111edieval

flora selvagem era cl1an1ada a contribuir. Sustento per111a11e11te dos 111e110s


ricos (por 11ecessidade econôn1ica) e dos ascetas (por opção espiritual),
as plantas nativas foran1 sérias concorrentes, ta11to na far111acopeia coino
na cozinha, das especiarias orie11tais. Seu exotismo conferia a estas últimas
um poder suplen1entar que deter111i11ou a sua procura desde os te1npos tne­
rovíngios. Mas a pin1enta, a canela, o ge11gibre e a noz-111oscada eram re­
médios e condimentos de ricos, aptos a promover a fortuna dos boticários
que começaram a surgir desde a segunda metade do século XII, ao passo
que as ervas medici11ais europeias era111 fontes de cura acessíveis .a todos,
amplamente disponíveis, em geral dispensadas gratuitamente pelo meio
natural, ou, de qualquer forma, baratas. As raízes foram 1nuito en1prega­
das, pois acreditava-se que estavam impregnadas dos ''poderes soberanos"
do subsolo. Mas a planta inteira aparecia como mediadora simbólica entre
terra e Céu, floresta selvagem e espaços domesticados, alimento e remé­
dio, doença e saúde, e até entre ignorância e saber, entre n1undo humano e
mundo sobrenatural, entre presente e futuro.
Utilizadas em aplicações, emplastros, suspensões, decocções, banhos,
pós, unguentos e eletuários, por vezes colhidas segundo certos ritos, em
particular na véspera de São João, e utilizadas ocasionalmente em práticas
de tratamento de doenças que supunham uma estreita conivência entre a
criatura humana e a vegetal, as plantas medicinais eram objeto de saberes
difusos, largamente partilhados e originários de diferentes correntes cultu­
rais. Assim, o De simplice medicina, composto em Salerno entre I I 3 O e I I 60
por Mateus Platearius, obra que no século XV devia servir de códice aos
boticários parisienses, é um produto significativo das interações entre os
diversos registros de saber então disponíveis. Contém a matéria legada pela
Antiguidade grega (Dioscórido), pelos bizantinos e pela medicina árabe
difundida pelas traduções de Constantino, o Africano (I O I 9-1 087) , reti­
rado no mosteiro beneditino de Monte Cassino, situado a uma centena de
quilômetros de Salerno. Mas ali também aparece, claramente, a participação
de saberes femininos e de um empirismo, nem cego nem petrificado, que,
beneficiado pelas aquisições da experiência ainda não formalizadas, vê na
similitude uma ''proposição da natureza ao espírito, bastante clarividente
para interpretar seus dons de cura'' (P. Lieutaghi) . Sabor, forma e cor indi-
Medicina

ca1n as propriedades medicinais dos vegetais, segundo a lógica da medicina


dos registros, associada ao acúmulo das observações práticas.
As 1nulheres, aliadas preferenciais das plantas, e como elas julgada s
capazes do melhor e do pior, ocupam um lugar destacado na terapêutica
durante çoda a Idade Média. O que não chega a surpreender, uma vez que
essas nutrizes estavam tradicionalmente encarregadas do cuidado dos c or­
pos na vida cotidiana. Assim, os autores do ciclo arturiano confiam qua se
sempre às mulheres a cura d os cavaleiros feridos. Mais precisamente, ma­
tronas, parteiras, ventrieres, mas também miresses, 1 cirurgiãs e barbeiras dei­
xaram alguns registros nos arquivos europeus entre os sécul os Xill e XV,
sem contar as mulheres cujo saber equivalia ao dos práticos un.i\·ersícários
e que, muito afamadas, não foram necessariamente perseguidas. Sua im­
portância numérica exata nos escapa, de forma que é muito difícil traçar
uma clara linha de demarcação entre as práticas e os saberes inerentes à
vida comum das mulheres e a especialização mais efetiva de algumas delas
na arte de curar. Na Itália, elas parecem ter conservado o acesso à apren­
dizagem médica oficial após a fundação das faculdades, portanto muito
depois de as mulheres salernitanas terem adquirido a reputação que faria
o nome de Trotula servir de emblema por l ongo tempo.
Salerno foi, do século X ao XII, o farol das atividades ocidentais em
n1atéria de terapêutica. Era possível esperar que nessa cidade fosse criada
uma das primeiras faculdades de Medicina. No entanto, a ''cidade hip o ­
crática'' passou a um plano secundário no momento das primeiras funda­
ções universitárias, em parte por causa das opções sociopolíticas do reino
de Nápoles no século XIII, ainda que o ensino dispensado nas primeiras
faculdades europeias tenha originalmente se apoiado em uma célebre co­
leção salernitana, a Artice/la. Como explicar esse enfraquecimento? Pode­
-se perguntar se a organização universitária, tal corno se desen,·ol,·eu na
Europa e que implicava o embargo do saber por uma sociedade de clérigos
que excluía, necessariamente, os empíricos e as mulheres, não ia contra a
tendência adotada pelos salernitanos. Parece, com efeito, que os salerni-

I º
Ven triere aparece em I 1 60 no Ro111a11 de Enta.s com o se� tido de ..�� rt� i� e mím;r,
_ :.
tem no Tristão, de Béroul, de fins do século Xll. o significado de medica · [HFJ]

1 83
Dicio11ário a11alítico do Ocidc11te 111edicval •
..

tanos mantivera1n-se abertos a todas as contribuições, e111 particL1lar à das


mulheres e dos e1npíricos, e1n um 1110111ento e111 que os 111édicos u11iversi­
tários reivindicavam a propriedade exclusiva do conheci1ne11to, e e111 que
os intelectuais entusias111ava1n-se pelos n1-étodos dialéticos que os fariain
mergulhar na retórica no fim da Idade Média. Desde o século X 1nanifes­
ta-se, entre certos letrados, o indício de u1na significativa reticência em
relação a Salerno. Tal desprezo, flagrante no século XV na perspectiva do
chanceler da Universidade de Paris, João Gerson, possui algo de parado­
xal, haja vista o aporte saler11ita110 à co11stituição do saber terapêutico na
Europa. Salerno constituiu-se, nos séculos XI e XII, não apenas na base
e no meio que possibilitou o surgimento de muitos dos grandes tratados
farmacológicos medievais, dos quais alguns, como o Antidotaire Nicolas, man­
tiveram-se em uso até o século XVII, como foram seus práticos - Cofo,
Rogério de Parma - os responsáveis pelo primeiro impulso, no Ocidente
do século XII, da renovação da curiosidade anatômica (praticada, é verda­
de, no porco, mas porque sua anatomia era considerada particular1nente
próxima à do homem) .
As atitudes ambíguas da medicina erudita de Salerno na Baixa Idade
Média resultar am nas conduta s equívoc as dos práticos universi tários
diante dos empíricos em geral. Tratava-se de especialistas não letrados, le­
gitimados ou não em sua prática pelas autoridades: herbolários, parteiras,
boticários, barbeiros. Mas também incisares, extratores de cálculos e lito­
tomistas, tiradentes, banheiros e estufeiros, tratadores de fraturas, enfim,
curandeiros de todos os tipos. Para os profissionais letrados, tais empí­
ricos pertenciam a uma categoria ainda mais ampla, a do ''vulgar'�, isto é,
todos aqueles que se encarregavam do cuidado dos corpos e envolviam-se
com medicina e com cirurgia alheios aos ensinamentos reconhecidos pelos
universitários. Eram ' todos os iletrados, barbeiros, sortílegos, enganado­
res, falsários, alquimistas, aduladores, alcoviteiros, parteiros, matronas,
judeus conversos e sarracenos'', além de '' príncipes e prelados, cônegos,
párocos, religiosos, duques, nobres e burgueses que se envolvem, �lheios à
ciência, com curas cirúrgicas perigosas''. A despeito de sua possível ·eficácia
e reputação, esses diversos terapeutas - que poderiam ser lembrados sob
0 epíteto de ''populares'' - eram desqualificados aos olhos dos detentores
Mtdicína

oficia is da verdade terapêutica. D aí a situação paradoxal em que se encon­


tro u, no i11ício do sé cu lo XV: João de Domrémy, empírico qu e praticava a
parace 11tese 110s l1id ró pic os , e cujos cuidados foram pessoalmente requisi­
tados pe lo rege11te da faculdade de Medicina de Paris, mas qu e seria mais
tarde per seg uid o pelos mestres dessa instituição sob a acusação de exercí­
cio ileg al da Med icin a.
A essa amb igu idade das posturas adotadas em face dos saberes margi­
nalizados vem somar-se o fato de que a própria "medicina erudita" não foi
sen1pre das mais ortod oxas, como bem o demonstram os trabalhos pio­
neiros de Lynn Thorndike.

Horizontes fluidos da Medicina, cirurgiões


em busca de certeza

Houv1e, sem dúvida, tipos distintos de médico ''erudito", fosse ele for­
mado em Paris, a capital da teologia, cuja faculdade de Medicina caracte­
rizava-se por seu rigor para com os empíricos, seu conservador-ismo e sua
oposição à dissecação, ou em Montpellier (que dependia da coroa de Ara­
gão e, em seguida, de Maiorca, entre I 204 e I 3 49) , mais tolerante e aberta,
representante de uma síntese feliz de Salerno e da escola de Charcres, cujo
ensino médico, reputado nos séculos XI e XII como mais teórico do que
,
prático, esteve centrado no estudo dos textos clássicos. E preciso referir-se
lt
ainda aos médicos j udeus, que eram numerosos no Sul da França, na Itália e
na Espa�ha, dentre os quais se encontram alguns dos maiores médicos da
Idade Média, a começar por Maimônides. Eles fundaram, desde o século
VIII, suas próprias escolas médicas no Languedoc, que atingiram o apogeu
no sécul o XII, antes de desaparecerem progressivamente no fim da Idade
Méd ia sob o efeito das perseguições movidas contra suas comunidades.
Renomado s, pragmáticos e mais tolerantes, a despeito do Talmi,dt, do que
os méd icos cristãos em relação às práticas mágicas, inclusive mais acentos
à sexualidad e fem inin a, os mé dic os jud eus mantinham-se teoricamente
restritos ao cui da.do de seus correligionários. Na realidade, contudo, man-
. . , .
tLve ram uma clientela cristã notável, composta por papas, reis e prtnapes,
entre estes o próprio irmão de São Luís, afligido pelo mal dos olhos.

1 85
Dicionário a11alítico do Ocidet1te 111edieval

Vários médicos cristãos, que for11ecera1n un1a parte do co11ti11ge11te dos


astrólogos e dos alqui1nistas, se1npre mais nun1erosos a partir dos séculos
XIII e XIV, chegaran1 a aventurar-se nos li111ites suspeitos e até proibidos
do conhecimento, coi:no Arnaldo de Vilanova, que fabricou para O papa
um talis1nã astrológico considerado capaz de curar da ' 'pedra'', ou ainda
João de Bar, médico de Carlos VI, acusado de magia negra e conduzido à
fogueira ju11to com seus livros.
Esse vínculo, real ou suposto, de certos 1nédicos com conl1ecimentos
proibidos pairava no l1orizonte da prática médica desde a Antiguidade. No
século X, o enciclopedista Rábano Mauro tinha sublinhado, a propósito das
artes n1ágicas, as respectivas capacidades de médicos, n1arinheiros e agri­
cultores de vaticinar a evolução das doe11ças, a mudança meteorológica e o
crescimento dos vegetais. Três séculos mais tarde, desconfiava-se facilmen­
te do médico cujo prognóstico fatal confirmara-se com a 1norte efetiva do
doente. Essa questão do prognóstico perseguiu os terapeutas e os doe11tes
medievais, em uma época em que se receava, acima de tudo, a n1orte súbita
que privava os indivíduos dos meios de assegurar a saúde eterna. Vários
procedimentos mágicos eram tidos por reveladores do curso das doenças.
Entre os eruditos, a obra mais consultada de todo o corpus hipocrático du­
rante a Idade Média foi, justamente, a par dos Aforismos, aquela que concerne
à arte do Prognóstico. Manifesta-se aí explicitamente o orgulho do médico
quando se iguala ao divino por uma justa ''profecia'', orgulho ambíguo que
expressa o entusiasmo com o qual um cirurgião do século XIV devia ver
no homem da arte um novo Criador, capaz de retificar os erros da natu­
reza operando recém-nascidos atingidos por deformações congênitas. Em
outras palavras, na ausência de toda prática mágica, a tentação demiúrgica
que rondava o terapeuta, aliada à incompreensão, pelo vulgo, dos mecanis­
mos de sua arte, não suprimiu, no plano do imaginário, a vinculação dos
práticos com a esfera do invisível e seus poderes.
Enfim, o caráter equívoco dos dados clínicos disponíveis (a avaliação
qualitativa do pulso, a interpretação das particularidades do sangue reco ­
lhido na sangria, o ''julgamento da urina'') e a dificuldade de avaliar com
exatidão o impacto dos medicamentos internos sobre o organismo im pu.:.

nham à medicina um grau de incerteza que sensibilizou progressivamente

1 86
Medicina

os 11ovos profissionais da terapêutica t como se manifesta no Míroir de médi­


cí11e [Espell10 da medicina] , composto cerca de 1 4 1 3 por Quirino, médico
real da corte de Castela. Quanto aos cirurgiões, envaideciam-se de estar no
ca111po da certeza, do seguro, do visível.
Até o século XIII, o ensino médico-cirúrgico satisfez-se com uma leitura
comentada das autoridades (Galena, Avicena) , quase desprovida de icono­
grafia e oficialmente privada da observação direta do cadáver. A inovação
ocorreu de início no reino de Nápoles t quando, em 1 240 t o imperador Fre­
derico II insistiu na necessidade de os cirurgiões possuírem uma formação
anatômica. Entretanto, e a despeito das especialidades médico-legais pra­
ticadas em Bolonha e em Pádua a partir do fim do século XIII, seria ne­
cessário aguardar o ano de I 3 I 5 para que, ainda em Bolonha, as primeiras
dissecações públicas de Mondino dei Liucci marcassem, verdadeiramente,
o advento da anatomia humana no Ocidente. O progresso foi lento: apenas
em I 3 76 o duque do Anjou permitiria à faculdade de Montpellier dispor
do cadáver de um supliciado, e não se conhece dissecação anterior a 1407
na faculdade de Medicina de Paris. De fato, até o século XVI per111anecería
problemática a observação anatômica de cadáveres.
,,
E possível que essa renovação pelo interesse anatômico tenha se relacio-
nado não apenas com o desenvolvimento da medicina legal, impulsionado
pela faculdade de Direito de Bolonha, mas também com a evolução geral
das sensibilidades. O naturalismo, induzido pela filosofia aristotélica. pre­
conizava a observação do real por si mesmo, definindo-o por seu aspecto
concreto, acessível aos sentidos. Porém, a plena legitimação destes como
meios de conhecimento aconteceu na segunda metade do século XIIIJ com
os franciscanos de Oxford, Roberto Grosseteste e Roger Bacon (inventor
das lunetas) . Conhecidos por antecipar a noção de '' ciência experimen­
tal'', eles também eram herdeiros de uma tradição neoplatônica centrada
na importância da luz e da óptica. Tratava-se, então, de ..ver'', justamente
no momento em que �s coisas deste mundo começavam a tomar uma nova
consistência sob o impulso da sociedade mercantil, quando seriam inventa­
dos o retrato e a perspectiv,a. A visão e seus artefatos tornaram-se garantias
de objetividade na apreensão do real. Os desenhos técnicos multiplicaram­
-se, e se a iconografia anatômica mantém-se inicialmente tímida, as cartas
Dicionário atialítico do Ocide11te 111edieval

práticas não cristãs e as heresias. Por ot1tro lado, no século XIII, a redesco­
berta de Aristóteles, o divórcio entre fé e razão, as co11tradições 1na11ifestas
entre as'' autoridades" levaram os n1édicos tnedievais a to1nar progressiva­
mente consciência de sua especificidade. Na 111edida en1 que partill1avain
a tradição galênica trans1nitida e rei1 1te1·pretada pelos árabes - o saber
racional e a observação - sentira1 11-se co1110 l101ne11s 11ovos, '' modernos" '
co1no diziam.
Entretanto, considera1 1do os diversos recursos de que dispu11l1am as po­
pulações medievais, impõe-se o questiona111ento acerca do lugar real1nente
ocupado por essa medicina. Entre os eclesiásticos que a ela se dedicaram,
a origem e o nível dos conhecimentos eram, se1n dúvida, extreman1ente
variados. E, sobretudo, aquilo que se originava das tradições orais e dos
patrimônios culturais não cristãos escapa-nos em grande parte, uma vez
que não dispomos de grande quantidade de documentos do mesmo nível
de importância de um Leechbook, o monumento da medicina anglo-saxã do
século X. Numerosas zonas de sombra subsistem ao tentarmos discernir
os sistemas de tratamento realmente em uso. Contudo, pode-se ao menos
seguir o traço de um insistente murmúrio, relativo aos nun1erosos curan­
deiros de tipo tradicional que se perpetuaram mesmo em nossas socie­
dades industrializadas com o desabrochar das medicinas ditas paralelas.
Enfim, na Idade Média, quando a medicina era ora elevada ao patan1ar de
uma filosofia, ora considerada uma ''arte mecânica'', e quando oscilavam
as fronteiras que separavam os campos eruditos e ''populares'', a própria
medicina considerada erudita manteve, por vezes, relações a1 nbíguas com
• • •
o emp1r1smo e a magia.

Restauração da energia vital e medicina no hospital

No século VII, o bispo Isidoro de Sevilha dedicou à medicina o quarto


livro de suas Etimologias, obra que foi a primeira das enciclopédias medie­
vais e uma referência constante. Nela, o autor enfatiza que a medicina não
é, necessariamente, medicação. Não que o prelado tenha preferido confiar
a cura mais à misericórdia divina ou aos santos taumaturgos do que à far­
macopeia, como havia prescrito Tertuliano. É que, para ele, tratar era em

1 74
Dicionário a11alítico do Ocidc11te 111edieval

náuticas da escola de Maiorca viera1n assegurar os trajetos do oll1ar e dos


homens nos territórios aventurosos recente1nente descobertos.
Em um primeiro mon1ento, a dissecação dos corpos foi praticada, sobre­
tudo, para ilustrar o saber legado pelos gra11des autores gregos e árabes, e
não por um espírito crítico de pesquisa. Todavia, a dissecação, que parecia
responder ao questiona1nento dos terapeutas acerca do grau de certeza de sua
arte, continl1a em germe uma série de rupturas, tanto na sin1biose do corpo
e do universo quanto na própria u11idade do corpo, se não até na da pessoa,
prelúdio ao que viria a caracterizar o progresso científico no Ocidente: sepa­
rar, isolar o objeto de pesquisa, reduzi-lo, enfim. Impôs-se um estudo analí­
tico que supunha, em matéria de anatomia, que estivesse morto o objeto do
saber, ao contrário da visão da alquimia e do aspecto fusionista das aborda­
gens "empíricas''. A partir da dissecação, ia se aprofundar o fosso entre uma
via anatômica, com a qual a medicina científica devia a seguir se identificar, e
as considerações do invisível relegadas, daí em diante, àqueles que buscavam
outros caminhos de conhecimento. O corpo humano era transformado etn
objeto de ciência. Ele era um objeto real? Paracelso l1esitou en1 afirmá-lo,
da mesma forma que duvidava que a visão pudesse bastar à apreciação dos
processos v1ta1s em curso na caverna anatom1ca.
• • •
A

No limiar da Renascença, quando anatomistas, cirurgiões e até cirur­


giões-barbeiros situaram o saber médico na pista das grandes descobertas,
os médicos legitimados pelas universidades eram ainda numericamente mi-
noritários em relação ao conjunto dos recursos terapêuticos então disponí­
veis. De qualquer forma, a medicina erudita adquirira uma visibilidade social
que prefigurava seus triunfos ulteriores, em parte sob a pressão da grande
peste de 1 3 47-1 348, ocasião de uma enorme produção escrita do corpo
médico, talvez proporcional à sua impotência terapêutica na matéria. Os
novos profissionais da saúde apareceram nas juntas de exame de leprosos,
nas instituições hospitalares, nos tribunais e no serviço das cidades. Foi,
''naturalmente'', às corporações reconhecidas que as autoridades requisi­
taram especialistas em matéria de med icina legal ou de higi ene pública,
novas especialidades que se desenvolveram, respectivamente, desde fins do
séculos XIII e ao longo do século XIY, enquanto proliferavam os tratados
de medicina prática e as obras de cirurgia em língua vulgar. Quaisquer que
; "' ,
.,,, ,, .. .,,.
✓ ✓
,,.
- ,'f .,.,
,, ''°
.,,_
-
.,·" ", ✓ , "''º
..r,,- .,,,,';,,J·,,,""""'
,il' �

,;,
· �• 'J./"!.�· -� l 88
Mtdícína

ce11l1a1n sid o, etn se gu id a, os avatares de sse recon he cim en to do sa be r un i­


ve rs itá r io pe los poderes so cia is e po lít ico s , a me díc alí za cã o da s sociedades
..
ocidentais delineava-se no horizonte.

M,'\ RfE-CHRJSTrsE PoucHELLE


Tradurão de Má-rio Jorge da Motta Bastos

Ver também

Ali1ne11tação - Clérigos e leigos - Feitiçaria - Marginais - Masculino/


feminino - Monges e religiosos - Universidade

Orienta{ão bibliográfica

AGRIMI, Jole; CRISCIANI, Chiara. Medicina dei corpo e medicina dtll'anima: note s:il sapitre
dei medicofino all'íni-<fo del secolo XIII. Milão: Episteme, 1978.
BARKAI, Ron. Les Infortunes de Dinah, ou la gynécologie juive au Moytn Age. Paris: Ce:rf,
1991.
, A

BERIAC, Françoise. Hístoire des lépreux ai, Moyen Age. Paris: Imago, 1 988.
GRMEK, Mirko D. ( org.). Hístoire de la pensée médicale en Occident. Paris: Seu.il I 99 5.
A

t.I: A ntiquité et Moyen Age.


___; HUART, Pierre-André. Mille ans de cbin,rgie en Occident: V!.-XV$ siecles. Paris;
Roger Dacosta, I 966.
HORDEN, Peregrine. A Discipline of Relevance: the Hisroriograph}· of che Larer
Medieval Hospital. Social History ofMedecine, Oxford, v. I, p.3 59-74. 1988.
HUART, Marie-José. La Médecine au Moyen Âge, à travt-rs lis marrit.Scrits dL la Bibliorhtptt
Nationale. Paris: Bibliotheque Nacionale, 198 3 .
JACQUART, Danielle. Le Milieu médical en France dit XJl! ai, Xl1� siicl,. Genebra; Droz,
I981.
___, La Médecíne médiévale dans [e cadrt parisien. Paris: Fa)1ard, I 996.
___; MICHEAU, Françoise. La Médeci11e arabe et l'Occidt111 ,niditval. Paris: �1aison-
neuve et Larose, I 990.
___ ; THOMASS ET, Claude. Sexuali tl et savoir n1idical m, Moytn Age. Paris: Presses
A

Universitaires de France, 198 5-


LIEUTAGHI, Pierre. Jardin des savoirs,Jardin d'histoire, S11ivi d'unglossaire dts planttS midii--
vales. Paris: Alpes de Lumiere, 1992.
Dicio11á1·io analítico do Ocide11te 111edieval

MATTHEUS PLATEARIUS. Le Livre des si111ples 111édeci11cs. 2.ed. Paris: Ozalid 1990_ 1

(Edição e comentários de François Avril, Pierre Lieutagl1i, Guisl�ine Malandain.)


POUCHELLE, Marie-Christine. Co1ps et chir1,1rgie à l'apogée di, Moye11 Age: savoir et i tna­
ginaire du corps chez Henri de Mondeville, cl1irurgien de Philippe le Bel. Paris:
Flammarion, l 9 8 3 .
ROUSSELLE, Aline. Croire et guérir: la foi en Gaule dans l'Antiquité tardive. Paris:
Fayard, l 990.
SAINT-DENIS, Alain. Institutio11 hospitaliere et société ailx XJ[r et Xlll!. siecles, l'Hôtel-Dieu
de Lao11 ( z z 50- 1300). Nancy: Presses Universitaires de Nancy, 1 9 8 3 .
SAUNIER, Annie. "Le Pauvre 1nalade" da11s le cadre hospitalier n1édiéval. Paris: Argun1 ents,
1 99 3 .
SHATZMILLER, Joseph. Médeci11e et justice e11 Provence médiévale: Documents de Ma­
nosque, 1 262-1 3 4 8. Aix-en-Provence: Publications de l'Université de Provence,
1 989.
SIRAISI, Nancy G. Medieval a11d Early Renaissarzce Medici11e. Chicago: University of
Chicago Press, I 990.
THORNDIKE, Lynn. A History of Magic a11d Experimental Scie11ce during the First Thirteen ·
• Centuries oj our Era. Nova York: Columbia Universicy Press, I 92 3 . t.I-IY.
"
WI CKERSHEIMER, Ernest. Dictionnaire biographique des 1nédecins en France au Moyen Age
[ 1 9 3 6 ] . Genebra: Droz, I 979. 3 v. (Nova edição dirigida por Guy Beaujouan e
ampliada por Danielle Jac quart.)

Você também pode gostar