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JACQUES LE GOFF
JEAN-CLAUDE SCHMITT

Dicionário àna ítico


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Volume l

Coordenação da tradução
Hilário Franco Júnior
,

editor:a
unesp
Dictionnairc raisonné de l'Occídcnt 111édiéval,
sob a direção de Ja cques Le Goff e Jea11-Clat1de Scl1n1itt
© 1997 Librairie Artl1e1ne Fayard.
© 2017 Editora Unesp

Direitos de publicação reservados à:


Fundação Editora da Unesp (FEU)
Praça da Sé, 1 OS
01001 -900 - São Paulo - SP
Tel.: (üxxll ) 3242-7171
Fax: (Oxxll ) 3242-7172
\v,v,v.editorau11esp.co1n.br
www.livrariaunesp.com.br
t-eu@editora.unesp.br

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Vagner Rodolfo CRB-8/9410

0545
Dicio11ário analítico do Ocidente medieval: volume I / Jacques Le
Goff, Jean-Claude Schmict (Orgs.); tradução coordenada por Hilário
Franco Júnior. - São Paulo: Editora Unesp, 2017.

Tradução de: Dictionnaire raisonni de l'Occide11t 111édiéval


Inclui índice.
ISBN: 978-85-3 9 3-0685-5

1. História geral. 2. Europa. 3. Idade Média. 4. Ocidente Medieval.


5. Dicionário. I. Le Goff, Jacques. II. Schmitt, Jean-Claude. III. Franco
Júnior, Hilário. IV. Título.

2017-345 COO: 940.1


CDU: 94 ( 4) "04/14"

Editora afiliada:

hodad6n de EdltonaJca Unm:nlltanu


l■■I
Assodação Brasilclrà de
de Amá1ca Lattna y el Caribe Editoras Unlvers1tár1as
Sumário

Apresentação . 9

Prefácio à edição brasileira . 11

Prefácio. 13

Alé1n. 25

Alimentação . 41

An1or cortês .55

A11in1ais . 67

Anjos. 80

Artesãos . 95

Assembleias . 105

Bíblia. 120

Bizâncio e o Ocidente . 135

Bizâncio visto do Ocid€nte . 147

J
Dicionário analítico do Ocidente n1edieval

Caça. 158

Castelo . 173

Catedral . 196

Cavalaria . 210

Centro/periferia . 227

Cidade. 247

Clérigos e leigos . 268

Corpo e alma . 285 •

Corte .302

Cotidiano. 318

Deus.338

Dia.b o .358

Direito(s) .373

Escatologia e milenarismo. 395

Escolástica . 411

Escrito/ oral. 429

Estado. 444

Fé· 459

Feitiçaria . 473

Feudalismo . 489

Flagelos . 512

Guerra e cruzada . 529


6
Sumário

Guilda. 546

Heresia . 561

História. 583

Idade média .599

Idades da vida . 617

Igreja e papado . 632

Imagens . 658
'

Império . 675

Indivíduo . 691

Islã. 703

"
Indice onomástico . 723

Sumário iconográfico . 735

Lista de autores . 741

Lista de tradutores . 745

7
Apresentação

Se toda a história das ciências é feita complementar111ente de obras de


tese (isto é, de novas propostas, de revisão e mesmo revolução dos conhe-
cin1entos aceitos até então) e de síntese ( que nunca são meros resumos de
teses, e sim seleção e articulação delas de uma maneira própria) , talvez isso
seja mais importante na História do que em outras áreas do conhecimento.
De fato, se poucas pessoas fora do círculo de estudantes e especialistas
leen1 sínteses, e muito menos teses, de Física, Matemática ou Biologia, por
exemplo, muito técnicas e abstratas para o cidadão comum, as obras de
História - daí seu sucesso de público nas últimas décadas - parecem mais
diretamente dizer respeito a todos. Não é preciso entender os princípios
básicos da teoria da gravitação para andar com os pés no chão, ou os meca-
nis1nos da fisiologia para sentir sono e forne, mas, para melhor exercer seu
papel político, social, econômico e cultur.al, é importante que cada cidadão
das democracias ocidentais do século XXI conheça a trajetória histórica de
sua sociedade e a de outras com as quais ela se relacio.n a mais intimamente.
Saber as condições dela no passa.d o, as opções que se lhe apresentaram, as
razões e as consequências das escolhas feitas, são elementos fundamentais
I

para o indivíduo melhor avaliar seu mundo e a si mesmo. E um chavão.,


mas :verdadeivo, que sem c:ompreender o passado ficamos condenados a
repeti-lo n 0 essenc:ial, mesmo que na aparência as diferenças sejam muitas .

9

Dicio11á1·io a11alítico do Ocidente 111edicval

Esse raciocínio é particular1ne11te pertine11te e1n relação ao período co-


nhecido por Idade Média, ao mes1110 te111po basta11te próxi1no e bastante
distante de 11ós, e cujo conl1ecimento é in1presci11dível, já que aqt1ele foi
o momento no qual surgiratn os alicerces da civilização ocidental. No en-
tanto, não é fácil ter um conta.to sólido e razoaveln1e11te rápido co1n a l1is-
tória medieval. As obras de tese são i11úmeras, 11ecessariamente polêmicas
e pressupondo uma erudição fora do alcance do não especialista. As obras
de síntese torna111-se cada vez mais difíceis de ser elaboradas diante da rá-
pida expansão da produção de conl1ecimento e de seu inevitável, embora
perigoso, subproduto, a excessiva especialização.
Daí o imenso valor e utilidade do presente Dicionário a11alítico. Concebido
e dirigido por dois dos mais prestigiosos medievalistas do momento, ele
reúne outros 66 especialistas de 9 nacionalidades, equipe que em 82 artigos
radiografa a medievalística na passagem do século XX para o XXI. Dize-
mos radiografa, e não fotografa, pois não se trata apenas de revelar o estado
atual do conhecimento, com cada estudioso fazendo o balanço de sua área,
como também de problematizar essa exposição, de indicar as lacunas ainda
existentes, as interpretações frágeis, as hipóteses promissoras. O Dicionário
analítico sintetiza e organiza a rica e inovadora produção das últimas déca-
das e sugere caminl1os a trilhar. Por isso ele será, sem dúvida, muito bem
recebido pelo público brasileiro, tanto os estudiosos quanto os curiosos
da Idade Média, época que paradoxalmente parece nos atrair e continuar
presente quanto mais o avançar inexorável do tempo nos dis~ancia dela.

HILÁRIO FRANCO JÚNIOR

10
Prejácío à edí§ão brasileira

Desde que uma missão científica francesa - composta dentre outros


por Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, Jean Glenísson e Roger Bas-ri-
de, então jovens professores e pesquisadores - organizou a Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras (atualmente Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas) da Universidade de São Paulo, a partir de I 93 5, os

laços intelectuais entre a França e o Brasil não diminuíram, apesar do a\·an-
ço geral da influência norte-americana desde a segunda metade do século
passado.
Isso é sobretudo verdadeiro em relação à historiografia, da qual uma das
maiores obras - a justamente célebre O Mediterrâneo e o mundo mulittrránico
·na época de Filipe II ( I 949), de Braudel - teve parte de sua gestação em São
Paulo, onde o autor, segundo ele mesmo confessaria mais tarde. viveu os
anos mais felizes de sua vida. A geração seguinte dos Annalcs desenvol~eu
e aprofundou aqueles laços graças a estágios de pesquisadores brasileiros
na França e à tradução no Brasil de dezenas de livros produzidos por ·ela.
O mesmo empe11ho, de uma parte e de outra, prossegue atualmenc~
Representantes da terceira e quarta gerações dos Annalts, os diretores
deste Dicionário analítico, que já têm várias obras publicadas no Brasil, ale-
gram-se que também ele esteja desde agora acessívd a um maior número
de pesquisadores, estudantes e apreciadores da Idade Média. Se o presente
Dicionário analítico do Ocidente n-1edieval puder ser útil aos brasileiros, estimu-

l l


Dicionário analítico do Ocidente 111edieval

!ando as reflexões e pesquisas 1nedie,,alistas 110 Brasil e co11tribui11do para


reforçar a a1nizade franco-brasileira, 11ossas espera11ças en1 relação a esta
tradução estarão confirn1adas.

JACQUES LE GoFF
JEAN-CLAUDE ScHMITT

Tradtt{ão de Hílário F1·a11co Júnior


12
-

Prefácio

Este Dicionário analítico do Ocidente medieval nasceu do desejo de preencher


uma lacuna. Dentre o rico conjunto de obras que reúnem os conhecimen-
tos recentemente adquiridos sobre a Idade Média, falta,~a um livro como
este. Entretanto, o interesse pela Idade Média é particularmente intenso em
11ossa sociedade e esses dez séculos de história foram o principal obj1eYo da
recente renovação da disciplina histórica. Da mesma forn1a que no século
XIX, que chamamos o '' século da história'' - mas uma história dominada
pelos fantasmas dos românticos e pelo culto ao acontecimento por pane
dos positivistas-, a Idade Média foi no século XX o terreno privilegiado de
uma renovação metodológica que associa rigor científico e imaginação, que
interroga o passado por meio do presente, mas sem cair no anacronismo.
/

E verdade que já existem outros dicionários que se propõem a respcn-


der, por meio de um grande n(uner:o de verbetes específicos, as legítimas
demandas de informações sobre aspectos pontuais da sociedade e da civi-
lização medievais: o reinado de um soberano, uma instituição particular, a
biografia e a obra de um autor. Esses dicionários, dirigidos a especialistas
ou a um público mais amplo, multiplicaram-se nos últimos anos, numa
prova evidente de sua utilidade. 1 Mas parece-nos que nenhum deles respon-

I Assim, foram publicados exclusivamente sobre a história da Idade Média: o Dic-


tionnary of the Midâle Ages, sob a direção de Joseph St:ra)lCT (Nova York: Charles

13
Dicioná1·io analítico do Ocidente 111cdieval

de às ambições desta obra: 11ão apenas forn ecer i11for1nações, 111as traduzir
o constante desenvolvi1nento de un1 saber - a história da Idade Média -
'
trazer até nós as l1ipóteses dos pesquisadores, revelar seus debates, escla-
recer uma l1istória e111 transfor1nação, tudo fu11da111e11tado e111 a11álises e
conl1ecimentos precisos.
Como todo dicionário, este segue urna orde1n alfabética, que é neutra e
facilita a consulta. Mas os verbetes que o co1npõe111 não estão si1nplesmen-
te justapostos uns aos outros de 1naneira arbitrária. Através de utn jogo de
remissões cruzadas, eles formam u1n siste111a, definem subconjuntos que
favorecem a compreensão das diversas esferas constitutivas da sociedade
e da cultura medievais. Ao tnesmo te111po, a va11tagem de un1 dicionário é
de não impor a p1·iori ner1huma orde1n de leitura: toda entrada, no co111eço,
no meio ou no final da obra, é válida, e deve permitir, pouco a pouco, uma
apropriação progressiva do conjunto de uma matéria imensa e co1nplexa.
Não há aqui, como em um livro con1um, um percurso obrigatório, linear,
e sim um feixe de atalhos do qual cada pessoa pode se servir a seu modo.
Para satisfazer essa ambição, deveríamos propor verdadeiros artigos,
suficientemente ricos e extensos para apresentar em sua complexidade os •

diversos domínios da pesquisa e os diferentes temas e componentes da his-


tória medieval que nos pareciam ser mais importantes. Não se tratava de
apresentar todos os temas possíveis. Guiamo-nos por uma concepção pre-
cisa da História e da Idade Média, e por conseguinte fizemos certas opções.
Quisemos ao mesmo tempo não nos perder em detalhes e evitar as noções
gerais que convêm tanto à Idade Média quanto a outras épocas. Fixamos
uma escala média, banindo o muito grande - por exemplo, os setores tra-
dicionais da l1istoriografia como ''arqueologia'', ''história da arte'', ''histó-
ria econômica'' ( conservando somente ''literatura'', para questionarmos a
legitimidade dessa noção) - e o muito pequeno - os nomes de ''persona-
gens históricos'' (''Carlos Magno'', ''Joana d'Arc'') e mais genericamente os

Scribner's. 1982-1989), o Lexicon dts Mittelalters (Munique e Zurique: Artemis-


-&-Winkler, l 980-1998) e, em francês, o Dictionnaire de la France 111idiivale, de Jean
,.
Favier (Paris: Fayard, 199 3), a,s sim como o Dictionnaire encyclopidique du Moyen Age,
sob a direção de André Vauchez (Paris: Cerf, 1997).
Prefácio

..
11omes próprios (por exemplo t "Ven eza")
~ • As urni·cas exceçoes
- sao:
- "Rorna " ,
qtte aqui designa mais do que a cidade com esse nome, a memória da Roma
antiga e o coração da Igreja latina; "Bizâncio", entendida em sua mútua re-
lação com o Ocidente; "Jerusalém", compreendida como um l1ugar mítico,
o centro ideal das representações do mundo na Idade Média. Do mesmo
modo, fatos sociais particulares, tais como "talha,~, "ordenação de cavalei-
ro", ''heráldica'' ou "cônego'', não constituem títulos de artigos, mas, ape-
sar dissot não são esquecidos. Eles fazem parte de conjuntos mais vastos
que lhes conferem todo seu sentido, por exemplo, nos artigos ''Cavalaria'',
'' S"1mbo1o ,, ou ,,.l"\Ssem
" 61 e1as
. ". Igua lmente, gran des acontecimentos
· como
concíliost batalhas decisivas, conflitos (Guerra dos Cem Anos) , rupturas
(Grande Cisma) são apresentados num contexto mais fundamental: a h is-
tória da Igreja, dos Estados, das nações.
Algumas entradas impunham-se como caracterís,ticas da sociedade e
da cultura medievais: 'Amor cortês'', ''Catedral", ''Cavalaria"~ ''Feudalis-
mo'', ''Escolástica'', "Senhorio'' etc. Mas seu tratamento nesre dicion-ário
é original, uma vez que os autores empenharam-se em mostrar como esses
objetos tradicionais, e mesmo emblemáticos da história da Idade Média,
foram submetidos a profundas renovações nos últimos anos.
Várias entradas referem-se a temas que só retêm a atenção dos historia-
dores l1á pouco tempo: "Memória'', "Maravilhoso'', ''Morre e mortos', ou
'' Sexualidade'' já contam com pesquisas importantes. Outros, como "'Fla-
gelos'', "Jogo'', ''Ordem(ns)" ou "Ritos", designam campos que acabam
de ser abertos.
Outros verbetes ainda marcam um esforço explícito de refor111ulação de
problemas, de acordo com as orientações fundamentais de nossa reflexão:
não se trata de ''arte'' (podemos falar de ''arte" na Idade Nlédia e.orno o
fazemos a partir do Renascimento?) , mas de '·Imagens''. Também não en-
contraremos um verbete ''Religião'', não só porque ele recobre um campo
muito vasto, mas porque duvidamos que esse conceito, cal como concebi-
do desde a época das Luzes, dê conta satisfatoriamente da extensão e das
múltipias funções das práticas e crenç~~ c~a~~e~stica~ ~~ ~sci.~.~s':1:
medieval, come veremos nos verbetes '.AnJOS ~ Deus , Diabo , Fe ,
''Igreja e papad'o " e outros, nenhum dos quais se deixando confinar numa

15
Islã

E difícil determinar com precisão o alcance histórico do primeiro contato


brutal entre a Europa cristã e o Islã, 1 na Espanha, em princípio do século
VIII (7II). A consequência imediata foi a queda do reino visigodo apa­
rentemente em crise profunda, e do qual não é possível saber o alcance de
sua influência na Europa cristã caso não tivesse sucumbido. Talvez a integra­
ção de certos elementos de sua tradição cultural (Isidoro de Sevilha) ao le­
gado da Cristandade ocidental tenha sido favorecida pela dispersão de suas
elices, já que uma parte refugiou-se no Império Carolíngio. In,·ersamente,
com o reino de Oviedo, no noroeste da Espanha, constituía-se a partir de
7I 8 um "reduto cristã.o'' muito isolado culturalmente onde essa mesma
tradição se manteria de forma mais homogênea (a liturgia moçárabe e o
código visigótico perpetuaram-se !1º direito asturiano, depois no leonês).

Primeiros contatos: séculos VIII-X

Ao rechaçar o Islã para fora da Francia ocidental. os Carolíngios impu­


seram duramente a autoridade franca austrasiana às regiões que os muçul-

r Em francês, como em português. islame/islã indica ao mesmo tempo a religião e a


civilização nela baseada. Mas, para evitar ambiguidades. por Islã. com maiúscula, en­
tendemos o conjunto territorial e cultural fundamentado em uma religião, 0 islamis­
º
mo - correspondente ao que é "Cristandade para o mundo do cristianismo. (HFJ]

7º3
Dicioná,·io a11alítico do Ocidente 111edieval

n1anos tinl1a1 11 ten1 p orarian1 e11 te do11 1inado, i11 clusive a a11tiga Septi 111 â11 ia
visigótica (La11 guedoc n1editerrâ1 1eo, do Róda11 0 ao Roussillo1 1). Lá ainda,
na fronteira de território s reconquistados a o Islã, e11 1 torno da vell1 a ci­
dade fortificada de Barcelona (ocupada en1 80 I), surgira111 as bases de
uma região ligada politican1 e11 te ao domínio f1·anco, 1 11as com forte i11 di­
vidualidade hu1nana (o s hispa11i) e jurídica (direito de origen1 visigótica),
fundamento da futura Catalunl1 a. U 11 1 p o uco 1nais tarde, 11 0 século VIII e
princípio do IX, aparecem 11 a zo11 a pirenaica entidades políticas autôno1nas
ainda 1nais frágeis: o s condados pirenaicos, dos quais o principal é Aragã o,
e1 1qua11 to a Navarra, país dos bascos, realmente se co11stituirá c omo reino
apenas no século X.
A luta vitori osa contra a ameaça árabe-muçulmana certamente favore­
ceu a afirmaçã o da dinastia carolíngia, com o apoio do papado, porta11 to a
,,
forn1 açã o do império de Carlos Magno e da ''Cristandade latina". E difícil
saber se o caráter decisivo desses acontecin1entos foi plename 11 te percebido
pelos contemporâne os. A esse respeito , cita-se por vezes o termo Europe11ses
que a Crônica mofárabe de 7 5 4 emprega para designar os francos na batall1 a
de Poitiers, o que poderia levar a supor que existia (circunstancialmente
entre os cristã os submetidos ao Islã) uma certa percepção da dimensão do
''choque de civilizações" que estava acontecendo.
Se o pr ocesso de repovoamento iniciado a partir de células cristãs do
no rte da Península Ibérica (os '' núcleo s da Reconquista" dos historiado ­
res espanl1óis) estende lentamente o território cristão em direção ao sul
a partir do fim do século VIII, no s extensos territóri o s despovoados da
bacia do Douro, os limites do mundo muçulmano, que se fixam impreci­
samente no vale médio do Tejo e, no vale do Ebr o , no s c onfins da cadeia
pirenaica, não variarão substancialmente até o século XI. Passada a grande
crise política que afet ou o mundo islâmico (Dar al-Isla1n) em meado s do
século VIII com a substituição do califado omíada de Damasco pelo cali­
fado abássida de Bagdá, o Islã, absorvido po r sua reorganização interio r e
por seus próprios probl.emas político-religi osos, não mais 1na11ifestará seu
dinamismo expansionista a nã.o ser em algumas zonas limitadas (conquista
,,
da Sicília pelos aglábidas de Kairuan entre 82 7 e o fim do século IX). E
então que, além de eventos militares marginais, alguns contatos diplomáti-
Islã

cos co1neçam a ser estabelecidos de um lado entre os soberanos carolíngios


e otônidas e, de otttro, o califado de Bagdá, os emirados aglábida e omíada
da Ifr1qiya e da Espanha.
Contudo, nos séculos IX e X, o fenômeno que domina a história das
relações entre a Europa e o mundo muçulmano é o da pirataria sarracena
no Mediterrâneo ocidental. As expedições de frotas oficiais da época do
califado omíada, interrompidas desde meados do século VIII, dão lugar,
por volta de 800, aos ataques contra as ilhas do Mediterrâneo, o litoral do
Império Carolíngio, da Itália central e meridional, desencadeados p,rínci­
palmente de al-Andalus, mas também do Magreb. Acredita-se que essa
pirataria, que se desenvolve nos séculos IX e X, tenha sido organizada fora
do âmbito dos poderes estatais. Parece que tais incursões tinham o obje­
tivo de capturar escravos, cuja demanda era grande no mundo muçulmano.
A única região em que os ataques estiveram sob controle de um poder po­
lítico era a Sicília, cuja conquista pelos aglábidas começou em 827.
Pouco depois, entre 8 34 e 8 39, bandos de ifr1qiyanos e de andaluzes
apareceram no sul da Itália. Esses muçulmanos tomaram Tarento em &40
e Bari em 84 I, constituindo dois pequenos "emirados'' que duraram ape­
nas até a reocupação bizantina em 871 (Bari) e 880 (Tarento)- Mas as
depredações levadas a cabo a partir de pequenas bases estabelecidas perto
das costas continuaram a ocorrer na Calábria, Campânia e Itália central.
Grandes mosteiros como Farfa e Monte Cassino foram despovoados, en­
quanto a própria Roma tinha sido atacada e parcialmente pilhada em 846.
Na Provença, os ataques culminaram com o estabelecimento de uma
colônia sarracena em Fraxinetum por volta de 890 (La Garde-Freinet). As
devastações provocadas pelos piratas alastraram-se por uma área geográ­
fica impressionante, até os Alpes, onde interceptavam caravanas de mer­
cadores e peregrinos que viajavam entre a Germânia e a Itália. Os poderes
cristãos locais ou distantes (italianos, germânicos) re\·elaram-se incapazes
de expulsá-los até que uma reação da aristocracia provençal, consecuti\'ª à
captura do abade São Maiol de Cluny, pôs fim a ocupação em 972.
Nesse mesn10 período, a fraqueza dos poderes políticos na Itália levou
0 papado em diversas ocasiões a tomar a iniciativa na luta contra os ban­

dos e incursões sarracenos-que constituíam a principal ameaça 00 flanco

7º5
Dic;onário analítico do Ocidente ,ncdicval

meridional da Cristandade -, vi11do a deli11ear u1na espécie de e111brião da


doutrina da "guerra sa11ta", cujos desdobrame11tos le,1aria111 à Cruzada. O
perigo sarrace110 acabou por se ate11uar ta11to e111 razão da resistê11cia dos
cristãos quanto devido a fatores i11ternos ao Islã. E111 fi11s do século X, o
pior mo1nento tinha passado, 11ão mais restando estabelecin1e11tos 1nuçul­
manos no litoral da Gália e da Itália. E11tretanto, a a1neaça co11tinuava a
existir no sul da Itália, desde a Sicília.
En1 982, os kalbidas da Sicília vencen1 1nesmo o exército enviado pelo
imperador Oco II para co11lbater os bandos de sarrace11os que ti11han1 inva­
dido a Calábria (Cabo Colonna). A Espanl1a n1uçulmana é, então, governa­
da pelo poderoso nlinistro do califado, o hadjib al-Ma11sur, que, de 980 até
sua morte em 1002, aterroriza os Estados cristãos do 11orte com poderosas
expedições no curso das quais ele pill1a Barcelona em 985 e Santiago de
Compostela em 997. Mas o dina1nismo n1uçulmano chega ao fim co1n a
crise política instaurada em Córdoba a partir de 1009 e em Palermo após
1036. Apenas u1n dos príncipes das taifas andaluzas que sucedem ao cali­
fado, Mudjahid de Denia, que controla as Baleares, tenta prolongar a ati­
vidade guerreira ao empreender a conquista da Sarde11l1a em l O15-1O16,
tendo sido prontamente rechaçado por pisanos e genoveses. O aconteci­
mento simboliza a alteração na relação de forças em proveito dos cristãos.
Outras formas de contato entre o Islã e a Cristandade parecem ter sido
pouco importantes nesse período. Apenas se pode citar, em 95 3, a visita
a Córdoba do abade João de Gorze, da Lorena, como embaixador de Oto
I para pedir a interrupção dos ataques sarracenos a partir de Fraxinetutn,
e o envio ao mesmo Oto, pelo califa Abd al-Rahman III, do n1oçárabe Re­
cemundo (ao qual Liutprando dedica seu Anta podosis). Na Espanha, as re­
lações diplomáticas eram mais frequentes. O envio por parte do 1nesmo
califa em 958 do médico judeu Hasday ben Sl-1aprut à rainha Toda de Na­
varra ficou célebre: tinha a missão de fazer emagrecer o neto de Toda, o rei
de Leão, Sancho, o Gordo, destronado pelos súditos devido à sua obesi­
dade, e de ajudá-lo a recuperar o poder.
E nos limites do califado de Córdoba e de Leão, nas partes meridionais
desse reino, onde se tinham instalado núcleos de populações cristãs ara­
bizadas independentes da autoridade muçulmana, e nos mosteiros dessas

706

' •. )l i ii 1 .
:) ' ,
Islã

regiões t qt1e se desenvolve nos séculos IX e X a arte extremamente origi-


11al qualificada de '' moçárabe''. Trata-se, sobretudo, de belos manuscritos
religiosos iluminados e de igrejas influenciadas por formas arquitetônicas
e11tão valorizadas no califado (arcos com ferro duplot abóbadas com ner­
vuras). Menos espetaculares são as primeiras infiltrações de elementos da
ciência árabe no Ocidente cristão. Sabe-se que o monge francês Gerberto
de Aurillac t o futuro papa Silvestre II, estudou em 967-970 nos mostei­
ros catalães e aí obteve uma formação matemática de nível muito superior
à dos seus co11temporâneos t utilizando as primeiras traduções latinas de
obras árabes feitas na Espanha em meados do século X.
Parece, entretanto, que as trocas ou correntes de influência foram muito
tênues na Alta Idade Médiat e que tiveram por agentes sobretudo grupos
mar.ginais, comerciantes moçárabes e em especial judeus. O comércio
resumia-se essencialmente a produtos de valort como peles e armas, mas
também a escravos brancos vindos da Europa (eslavos, ou saqaliba), cuja
den1anda era insuficientemente atendida pela pirataria.
A conquista árabe fechou o Mediterrâneo (H. Pirenne) o� ao contrá­
rio, estimulou o desenvolvimento econômico do Ocidente cristão (M.
Lombard)? Os testemunhos arqueológicos tendem a confirn1ar as teses
do historiador escandinavo Sture Bolin, para quem a produção maciça e a
circulação de moedas de prata muçulmana abássida até o norte da Europa
tinham influenciado o ''Renascimento Carolíngio'' e seu monometalismo
argênteo. Mas essas conexões não parecem ter durado além das duas pri­
meiras décadas do século IX. A entrada de prata muçulmana no norte da
Europa diminui em seguida, enquanto o Império Carolíngio e o Império
Abássida entram numa fase de desmembramento político cada ,,ez mais
acentuado.

A época da Reconquista e da Cruzada

A monarquia asturo-leonesa desenvolveu desde o fim do século VIII


unia ideologia "neogótic,a" t considerando-se herdeira do reino visigodo.
Nos séculos IX e X t a ideia de uma ''restauração da ordem gótica'� tinha
acon1panhado o esforço para o repo,,oamento de vastos territórios pratica-

7°7
Dicionário analítico do Ocidente 111cdicval

bacia do Douro. Mas, ao aproxi111ar-se de territórios


01 ente despo,,oados da

densamente ocupados pelo po,1oame11to mL1çulma110, o ava11ço cristão, 1110-


menta11ean1ente contido pelo poder do califado de Córdoba, tornoL1-se "re­
conquistador'', e pôde-se pensar 11a aplicação de u111 prograr11a de reL1nião
dos territórios cristãos da Hispa11ia, separados pela i11vasão 1nuçul111ana. A
crise em que estava mergull1ado o califado de Córdoba e11tre 1009 e I O3 I
permitiu aos cristãos to1nar consciência de sua força. A partir de aproxi­
madame11te 1 O 5O, os soberanos cristãos in1puseran1 siste1naticamente aos
governantes das taifas o pagamento de tributos, ou parias, forma de explo­
ração da riqueza muçulmana que enfraqueceu Estados já divididos, refor­
çando o vigor - e os apetites - das monarquias e aristocracias do Norte.
No reino ca.stelhano-leonês, os primeiros avanços territoriais signi­
ficativos ocorrem entre I O 57 (ton1ada de Lamego e de Viseu) e 1064
(Coimbra) sob o rei Fernando I. Nos mesmos anos, o papado, estimulado
pelo desenvolvimento de seu ideal teocrático e contando com o apoio dos
cluniacenses, começa a ton1ar parte ativa nesse esforço. Quando, em 1059,
Nicolau II reconheceu em Roberto Guiscardo o ''futuro duque da Sicília'',
tinha-lhe confiado uma missão de reconquista. Com a morte de Ramiro I
de Aragão em 106 3, em combate contra os muçulma.nos, o mesmo papa
colocou o jovem rei Sancho Ramirez sob sua tutela e decidiu o envio da
grande "cruzada'' francesa de 1064 - a primeira expedição desse gênero,
para a qual foram prometidas recompensas espirituais - que acabou por
se apropriar de Barbastro, na fronteira pirenaica do emirado muçulmano
de Saragoça.
A mesma alteração da relação de forças começou também a ocorrer no
princípio do século no Mediterrâneo central. Em l O l 5- l O l 6, com o en­
corajamento do papado, P isa e Gênova obrigam o emir Mudjahid de Denia
a evacuar a Sardenha, que ele tinha desejado poder controlar. Em 1034, os
pisanos atacam pela primeira vez uma cidade do litoral magrebino (Bône)
e em 1063 tentam um ataque contra Palermo. Em 1087, pisanos e geno­
veses recebem o vexillum Sancti Petri (a auriflama de São Pedro) para uma
expedição contra Mahdia.
Mas o episódio determinante nas últimas décadas do século XI na Pe­
nínsula Ibérica é a ocupação de Toledo por Afonso VI de Castela. Ponto
Islã •

cul1nu1ante da Reconquista do século XI, esse fato marca também a inter­


rupção do avanço castelhano-leonês, pois provoca a entrada dos almorávi­
das ern al-A11dalus a chamado dos reis das taifas, apavorados com a queda
de Toledo: os muçulmanos alcançam então sobre os castelhanos a grande
vitória de Sagrajas, ou Zalaca (1086). Apenas em Aragão, protegido da
an1eaça almorávida em virtude do domínio do Cid sobre toda a parte norte­
-oriental de al-Andalus, de Saragoça a Valência, é que a progressão cristã
pode continuar a se consolidar com a tomada de H uesca em I 096.
No ano anterior, Urbano II havia lançado em C1ermont o apelo à Cru­
zada, cujos mecanismos e a própria ideia tinham sido elaborados na Espa­
nl1a. O paralelismo entre os movimentos de Cruzada e de Reconquista é
evidente não apenas do ponto de vista cronológico. Tanto no leste quanto
no oeste, a Cristandade, cada vez mais consciente de sua força espiritual e
militar, defronta-se com um Islã cuja composição étnic� política e cultural
está se modificando em benefício de povos não árabes - mas rapidamente
arabizados - que aparecem como uma ameaça ao mundo cristão: turcos
seldjúcidas de um lado, berberes almorávidas de outro. Na realidade, toda
a zona de contato mediterrânea entre os dois mundos encontra-se afetada;
também no Mediterrâneo central assiste-se à expansão dos no11nandos da
Sicília em direção às costas do Magreb oriental: tomada de Malta em I 127,
de Djerba em l l 34, de Trípoli (já atacada em I 143) em l 146, depois de
bom número de outros portos de Ifr1qiya, dos quais o mais importante é
Mahdia (já atacado em l 123 e l 140) em l 156.
O contato brutal entre o Islã e a Cristandade evolui em cada front a um
ritmo próprio. A expansão no Oriente consolida-se entre I 09 8 (tomada
de Antioquia e de Edessa) e l l 09 (tomada de Trípoli), tendo como ponto
culminante a sangrenta pcupação de Jerusalém (1099). estagnando e re­
cuando em seguida devido ao rearmamento morál, religioso e político do
Islã no Oriente. A longa fase de declínio dos Estados latinos do Oriente
con1eça con1 sucessos obtidos pelo regime zêngida (retomada de Edessa em
I 144-1146). Em l 187, Saladino alcança a esmagadora \tt.tória de Hattin,
retomando Jerusalém e a maior parte do reino. A segunda (i 147-1148)
e a terceira ( I l 90- l I 91) cruzadas, assim como as expedições do século
XTII, são tentativas ocidentais, em sua maior parte muito mal coordenadas,
Dicionário analítico do Ocidente 1ncdicval

:-
,,isando amenizar a pressão n1uçul111ana bastante forte dia11te das i racas
possibilidades demográficas das colônias latinas do Orie11te, e 11ão faze1 n
mais que retardar o a,1 anço 1nuçulma110.
No Mediterrâneo central, a domi11ação 11or1na11da de cidades do litoral
da Ifr1qiya teve curta duração. Algumas re,,oltas locais libe1·taran1 cidades
como Sfax em 1156 e Trípoli em 1159, 111as o aco11tecimento decisivo foi
a grande invasão da Ifrí'qiya pelos al111ôadas em II59, que elin1inot1 a pre­
sença norn1anda (Mal1dia caiu depois de seis 111eses de assédio, em ja11eiro
de I160). Na Espanha, pelo contrário, a expansão cristã, refreada após Za­
laca, volta a ser reto1nada na pri1neira n1etade do século XII. Os catalães,
com a ajuda dos pisanos - que tinham recebido as Baleares en1 feudo do
papa Gregório VII-, lança1n em III 3-1114 uma expedição naval contra
aquelas ilhas, onde a cidade de Madina Mayurqa é pill1ada.
Aragão, sempre contando com a ajuda de forças provenientes da França
tneridional, completa uma etapa muito importante de sua expansão com a
conquista de Saragoça em III 8. A dinastia portuguesa, em vias de fundar
um poder independente, apoia-se na vitória de Ourique (II 39) para obter
o título real. O desmoronamento do Império Almorávida permitiu aos
cristãos obter sucessos notáveis em meados do século: em I14 7, Afonso
Henriques, de Portugal, conquistou Lisboa e Santarém, e no ano seguinte
os catalano-aragoneses, desde então unidos sob a dinastia de Barcelona,
conquistaram Tortosa e Lérida. Tais avanços importantes devem ser situa­
dos no quadro da n1obilização da Cristandade à época da segunda cruzada.
A caminho da Terra Santa, cruzados ingleses e flamengos deram importante
contribuição aos portugueses na conquista de Lisboa.
Enquanto zêngidas e aiúbidas obtinl1am sucessos decisivos no Oriente,
o Império Almôada, cujo desenvolvimento parece ser paralelo (grande vi­
tória de Alarcos, em I195), chega ao esgotamento no princípio do século
XIII. Em 12I 2, a grande derrota que os exércitos dos sobera11os espanl1óis
infligem ao califa Muhammad al:-Nasir em Las Navas de Tolosa marca o
início de um período de crise inicialmente encoberta, depois aberta, que
possibilita aos reinos cristãos lançar o avanço decisivo dos anos I229-
1248, quando foram sucessivamente conquistadas Badajoz, Mérida, as
Baleares,, C6rdoba, Valência, Márcia, Jaen e Sevilha. O espírito de cruzada

710
Islã

inspira ainda os combatentes espanhóis de 1212, instigados pelo grande


arcebispo de Toledo, Rodrigo Jiménez de Rada, mas é gradativamente subs­
tituído no decurso do século por um espírito "pré-nacional'' que delineia,
etn tor110 das dinastias hispânicas, as configurações políticas fundadoras
das "Espanhas'' do fim da Idade Média. O êxito obtido por essas monar­
quias cristãs contrastam com o insucesso das contemporâneas cruzadas
de São Luís.

O Ocidente e o Islã nos séculos XIII-XV

Ao menos pelo que se pode depreender das fontes escritas, durante a


Alta Idade Média o desconhecimento do Islã era quase total. Essa situação
modifica-se lentamente apenas na época da Reconquista e da Cruzada. No
princípio do século XII, Guiberto de Nogent reclama não ter podido en­
contrar maiores informações a respeito do desenvolvimento histórico do
Islã. Ao contrário de uma opinião difundida entre seus contemporâneos,
que tomam Maomé por um Deus, ele realça o caráter humano do profeta.
A ideia de que os muçulmanos (geralmente chamados de ''pagãos'') cul­
tuam ídolos é frequente no século XII, em particular nas canções de gesta
que veiculam uma imagem bastante deforn1ada do Islã.
As cruzadas do Oriente produziram relações essencialmente milita­
res (nascimento das Ordens Militares) e não parecem ter enriquecido os
conhecimentos do Ocidente, nem suas condições materiais. Habituava­
-se, contudo, ao contato com os muçulmanos. Nas margens meridionais
da Cristandade, populações muçulmanas relativamente numerosas foram
integradas aos Estados criados ou aumentados às custas do Islã. O caso
mais notável é, sem dú,,ida, o da Sicília árabo-normanda, onde foram \'O­
l t1ntariamente conservados em proveito da nova dinastia não apenas um
povoamento muçulmano necessário para a valorização da ilha, mas também
estrutura.s governamentais e administrativas, em particular no domínio
fiscal, e elementos da própria concepção de monarquia.
Do "arabismo'' da corte de Palermo, são bons testemunhos tanto as

111uqa-rnas pintadas no teto da capela palatina (em torno de I 14 3) quanto


a obra geográfica de al-Idrisi. Entretanto, essa civilização original não foi

711
Dicionário analítico do Ocidc11tc 111edicvnl

exportada. A coexiscê11 cia entre 111uçul111a110� e cris�ãos durou ape11as u111


século, degradando-se progressivan1ente no f1m do secL1lo XII e 11as pri111ei­
ras décadas do XIII, qua11do revoltas e a subseque11te repressão esvaziara111
totalmente a ill1a de sua população 111uçul111ana. N L1111 aparente paradoxo,
os episódios 1nais dramáticos e a definitiva expulsão e1n n1assa ocorreratn
em 1 22 1 - 1 22 3 , sob o rei11ado do 111ais "filoárabe'' dos sobera110s da Idade
Média, o in1perador Frederico II.
Quanto à pertnanência de con1u11idades 111udejares na Espanha, esta só
veio a ser posta en1 causa depois do fin1 da Idade Média. Entreta11to, ao
contrário do que te1n sido feito muitas vezes, co11vém não co11siderar sua
integração aos Estados cristãos em expa11são como o fruto de uma convi­
,,ência quase harmoniosa. A conquista foi em toda parte n1ilitar e, e1nbora
raramente tenha sido acon1panl1ada de n1assacres (Lisboa) , sempre teve
como resultado destruir as estruturas urbanas da sociedade muçulmana
(as cidades foram repovoadas por cristãos e a n1aior parte das elites urba­
nas emigrou). Nas cidades subsistiram apenas pequenas 1norerías, povoadas
essencialmente por artesãos, e somente no campo continuaram a existir
populações importantes. Nas huertas do leste e do sul da península, tais po­
pulações conservaram as técnicas de irrigação, transmitindo-as aos cristãos.
Sem subestimar a dimensão dos contatos de civilização produzidos nesse
ambiente (a arte dita mudéjar que se desenvolveu a partir do século XIII em
diversas regiões, particularmente em Aragão, testemu11ha tais influências),
é preciso constatar que a própria natureza das sociedades cristãs peninsu­
lares, sem dúvida ligadas ao conjunto de culturas e de formações políticas
europeias, não foi alterada.
Situação diversa ocorreu no âmbito intelectual. A Europa rapidamen­
te se deu conta da riqueza cultural islâmica, hérdeira de u111a Antiguidade
com a qual procurava restabelecer contato e apropriar-se en1 seu proveito.
Os contatos diretos com autores árabes eram evidentemente raros, sobre­
tudo em razão da barreira linguística. Pode-se, entretanto, citar o catalão
Raimundo Lúlio, originário de Maiorca, como um bom exetnplo dos sen­
timentos de fascínio e repulsa que o Islã inspirava em alguns ocidentais.
Impregnado de intelectualidade árabe-muçulmana, ele foi tanto O defen­
sor zeloso da Cruzada, tratando o Islã com desprezo, quanto O partidá-

7 1 2.
Islã

rio "moderno'' da aprendizage 1n do árabe e de um diálogo islamo-cristão


desti 11 ado à conversão dos muçulmanos. No fim, morreu como mártir em
Bugia, tentando, como já tinha feito anteriormente, pregar a conversão à
n1assa muçulmana. No princípio do século XIV, Anselmo Turmeda, outro
1naiorquino, cl1egou a converter-se ao Islã. Antes deles, já se destacara a
surpreendente figura do imperador Frederico II, gue, como seus prede­
cessores normandos, cerca-se de uma guarda sarr-acena, mantém letrados
árabes em sua corte e interessa-se muito pela cultura árabe, a ponto de for­
mular questões científicas e filosóficas a eruditos do mundo muçulmano.
Mas o fato mais marcante do contato intelectual entre a Europa e o Islã
é o "movime11 to das traduções" do árabe para o latim, que aconteceu nos
séculos XII e XIII nas zonas de contato com o Islã, onde as condições cultu­
rais favoreciam tal empreendimento. As primeiras traduções ocorreram na
segunda metade do século XI na Itália meridional, em Salerno e em Monte
Cassino, sobretudo de obras de medicina, e foram realizadas por um cristão
ou muçulmano convertido originário da Ifnqiya chamado Cons�ncino, o
Africano. O trabalho iniciado pela "escola de Salerno" prosseguiu no cír­
culo dos reis normandos, depois sob seus sucessores suábios e angevinos,
mas na maior parte dos casos era de textos gregos.
Na Espanha, pelo contrário, as traduções do século XIl foram essen­
cialmente de textos árabes adqu�ridos em al-Andalus ou encontrados nas
cidades conquistadas no vale do Ebro e sobretudo em Toledo. Tudo indica
terem sido principalmente os judeus - capazes de traduzir o árabe para a
língua românica vulgar - que serviram de intermediários aos tradutores
em latim antes que eles próprios, ou pelo menos alguns deles, aprendes­
sem o árabe. Entre os grandes tradutores, cabe citar Adelardo de Bach, que
traduziu em I I 26 as tabelas astronômicas de al-Khu,varizmi (do nome
desse autor derivarão os termos "algoritmo'' e ''logaritmo"), e Geraldo de
Cremona. Este último foi até Toledo em busca de uma tradução árabe do
Almagesto, de Ptolomeu, fixou-se na cidade como cônego da catedral, apren-
deu o árabe e traduziu inúmeras obras antes de morrer em 1 1 87. E somente
nessa época que se pode falar de uma "escola de Toledo'·.
A i1nportância cultural do movimento das traduções é considerável:
acompanhou e estimulou o renascimento intelectual da Europa nos sécu-

7 13
..
-

Dicionário analítico do Ocidente 111edieval

los XII e XIII; fundou e1n larga medida a n1oder11idade do pensa111ento,


contribuindo para provocar na Europa L1111 dese11\'0l\1 imento intelectLial
verdadeiramente re,,olucionário. Para Alai11 de Libéra (Pe11se1· a-u Moyen Age,
I 99 I ) , é do contato com o pe11sa1nento árabe, e111 particular co1n o pe11sa­
dor andaluz Ibn Rucl1d (Averróis) , gra11de co111entador de Aristóteles 110
século XII, que nasce o "intelectual" ocide11tal, portador de L1ma primeira
1
\isão laica do mundo.
Desenvolvendo a ideia de progresso e a preocupação com as aplicações
téc11icas da ciência, o Ocidente tirou o mell1or partido das i11ovações que
conheceu por intern1édio do mu11do árabe, ou, em todo caso, paralelame11te
a ele (papel, algarismos arábicos e uso do zero, bússola e cartografia, pól­
vora ...) , valendo-se delas para dar suporte a u m desenvolvi 111ento cumula­
tivo que o colocaria rapidamente etn posição de superioridade e m relação
ao Dar al-Islam.
O 1nomento decisivo da assimilação das ciências e técnicas e1nprestadas
do mundo árabe foi certamente o século XIII, época de Frederico II. Para
Roger Bacon, a filosofia era domínio por excelência dos gregos e árabes, e
a Cristandade recebeu-a quase totalmente deles. Para os eruditos de mea­
dos do n1esmo século, a discussão das próprias realidades teológicas não
se podia fazer senão nos termos da filosofia árabe. No i11ício do século
XIY, Dante, cuja Divina con1édia deve muito à escatologia muçulmana, livra
do Inferno e coloca no Limbo Avicena e Averróis, únicos ''n1odernos'' ao
lado dos l1eróis e sábios da Antiguidade. Com seu contemporâneo Mestre
Eckl1art, Dante situa-se entre os pensadores da passagem do século XIII
para o XIV que reformulam para uso de um público mais amplo que o da
faculdade de Artes a ideia aviceniana de santidade, núcleo da concepção
medieval do enobrecimento do homem pelo exercício do pensamento (A.
de Libéra) .
W Montgome ry Watt destaca, entretanto, que, embora influenciado
por temas islâmicos e consciente da dívida do pensamento europeu con1
o Islã, Dante coloca Mao.mé no Inferno entre os semeadores de discór­
dia, re servando ao Islã espaço ínfimo na ampla visão do mundo a11tigo e
mo.de rno que se u poema nos dá. Para e le, ''Dante fixot1 à sua maneira a
imagem de uma fase desse proc e sso em ge stação, no qual a Europa pro-
....

islã

curava conceber-se por oposição ao mundo islâmico e identificar-se com


a l1 erança clássica". Essas diferentes interpretações da relação da obra de
Dante com o Islã são talvez significativas da relação da própria Europa com
o mundo islâmico. Em I 2 77, Estêvão Tempier, bispo de Paris, condenou,
a pedido do papa, 2 I 9 proposições filosóficas "averroístas" julgadas peri­
gosas. Petrarca, que exprime com vigor sua aversão por obras árabes e sua
oposição ao averroísmo, é alguém já plenamente representatÍ\'O do novo
tempo '' renascente'' no qual a Europa prepara sua entrada. O humanismo
e o Re11ascimento desprezarão as traduções do grego por intermédio do
árabe, vendo-as como símbolos de falsificação por parte do espírito '' gó­
tico'' da Idade Média.
Enquanto a Cruzada continua a ser um ideal essencialmente aristocrá-
tico, ações missionárias começam a se desenvolver, encarnadas por francis­
canos e dominicanos. O próprio papado começa uma diplomacia com os
príncipes muçulmanos, recom.endando-lhes por correspondência escrita
e111 árabe os frades enviados em missão aos territórios islâmicos, mas os
esforços não logram sucesso. A pregação em terra muçulmana dernons1:rou
ser quase impossível. Os missionários dirigem-se a outros terrenos de e\·an­
gelização no mesmo m.omento em que a expansão mongol a partir da ter­
ceira década do século XIII, e as viagens de Marco Polo, na segunda metade
do mesmo século, revelam aos europeus a imensidão do mundo asiático
que se estendia para além do Islã. Na Cristandade, esboçam-se então planos
quitnéricos de aliança mongol contra o Islã.
O próprio mL1ndo muçulmano modifica-se consideravelmente no fim
da Idade Média. No Mediterrâneo ocidental, os Estados pós-almôadas de
al-Andalus e do Magreb acabam enfraquecidos, mais ou menos submetidos
do -ponto de vista econôn1ico e político aos poderes cristãos, sobretudo ibé­
ricos e italianos (assim como a presença econômica geno\1esa em Granada,
qt1e está oficialmente na vassalagem do rei de Castela; as milícias cristãs
mantidas por soberanos do Magreb; a onipresença dos interesses mercantis
europeus em Tlemcen ou em T únis) . O poderio dos mamelucos no Egit:o,
vitoriosos sobre os mongóis em Ayn Djaluc no ano de 1 260, elimina os
úlcin1os vestígios da presença militar franca na Terra Santa (tomada de São
João d'Acre em 1 2 9 1 ) . Entretanto, o Estado mameluco escabel�ce densas

7 15
Dicionário a11alítico do Ocidente 111cdieval

relações comerciais corn os cristãos do Ocide11te, pois, 11ão dispo11do de


frota na,,al, depe11de delas para seu apro,1 isio11an1e11to de ferro, 111adeira
e n1esmo escravos, necessários para a renovação de seu estra11l10 exército
servil. Globalmente, a don1inação cristã parece ter se estabelecido e111 todo
o Mediterrâneo dia11te de un1 Islã árabe e111 declínio. No Ocide11te do sé­
culo XIY, sonha-se cotn planos de Cruzada a fi111 de organizar o bloqueio
comercial dos países muçuln1anos para obrigá-los a devolver a Terra Santa
à Cristandade.
Agora o perigo vem do Islã turco. Os sultãos otomanos de Brousse
constituem no segundo quarto do século XIV outro exército servil, o dos
janízaros, que na segunda metade do 1nes1110 sécu.lo entra nos Bálcãs pro­
vocando séria inquietação em Constantinopla. A a1neaça turca provoca a
renovação do espírito de Cruzada na aristocracia ocidental, cuja principal
manifestação veio a ser a cruzada de Nicópolis de l 3 96, e1n que a cavala­
ria francesa e o exército húngaro foram massacrados pelo sultão Bayazid.
Uma frota francesa ainda salva Constantinopla em 1 3 99, mas, em 145 3 ,
a cidade é tomada por Mehmet II, que utiliza amplamente a artilharia. Aos
olhos dos ocidentais, o perigo muçulmano vem, doravante, dos turcos, e
não mais dos árabes. Com efeito, na outra extremidade da Europa, o Islã
árabe é expulso da Península Ibérica com os mesmos meios (artilharia)
que os turcos en1pregaram contra Constantinopla, e Granada é conquis­
tada em 1492.
Apesar da inquietação gerada na Europa oriental pelos turcos, o Islã
deixou de ser concebido pelos cristãos como um corpo político unificado
éontra o qual era necessário se unir, e sim como um conjunto de poderes
mediterrâneos inserido num jogo diplomático e militar don1inado por po­
deres rivais da Europa meridional. O próprio papado, durante muito tempo
o principal sustentáculo da corrente ''cruzadista", acabou por participar
ativamente nesse complexo de relações. Em 1 490-1 494, o papa Alexan­
dre VI, firme defensor da ideia de Cruzada, opondo-se às a1nbições do rei
Carlos VIII da França - que deseja quimericamente conquistar a Itália para
fazer dela a base de uma cruzada visando reconquistar Constantinopla e
Jer usalém -, aliou-se abertamente ao sultão de Co11sta11tinopla Bayazid,
p ara que este compelisse os venezi a nos a se opor à empresa francesa. Foi
Islã

esse mesmo papa que, em 149 3, dj vidiu os novos mundos descobertos


entre a Espanl1a e Portugal através das bulas Aeterni Patris e Inter Coetera,
prolongadas no ano seguinte pelo tratado de Tordesilhas. A Eucropa, que
com o episódio mongol começara a alargar seus horizontes para além do
Islã, entra numa nova era, a da conquista do mundo, e o Mediterrâneo, um
"lago'' entre o Islã e a Cristandade, nada mais é, nessa perspectiva, do que
um setor secundário.
-
O Islã e o progresso da Europa

Desde o fulgurante avanço muçulmano sobre a Península Ibérica e a


Gália no século VIII até a conquista dos Bálcãs pelos otomanos nos sé­
culos XIV e XV, a ameaça do Islã pairou sobre a Europa, periodícamente
reavivada, por diversas razões, com maior ou menor intensidade. Se a ex­
pansão ocidental a partir do fim do século XI fez o Islã recuar no oeste,
na Sicília e na Espanha, o mesmo não ocorreu no leste da Europa, onde os
otomanos, senhores dos Bálcãs, sitiaram Viena em I 5 29.
As aventuras transoceânicas iriam oferecer ao Ocidente condições para
a dominação mundial, no quadro da qual a ameaça islâmica seria refreada,
depois reduzida, e o próprio mundo muçulmano viria a ficar exposto aos
empreendimentos europeus. Ao considerar-se esse longo processo his­
tórico a partir da Europa ocidental, há uma incontestá,�el continuidade
entre o recuo do Islã no Mediterrâneo ocidental, a consolidação do poder
europeu e sua expansão oceânica. Devem-se aos mediterrâneos os primei­
ros empreendime11tos atlânticos significativos em fins do século XIII e na
primeira metade do século XIY, no mesmo momento em que a expansão
militar de Castela abria definitivamente o estreito de Gibraltar às frotas
ocidentais (tomada de Algeciras em I 344)- Por essa ,ria é que o capitalismo
mediterrâneo e as técnicas n1arítimas atlânticas iriam se associar.
A luta contra o Islã contribuiu para a unidade da Europa do século VIII
ao XV. Europeus do Mediterrâneo e do Atlântico aprenderiam em seguida
a dominar o mar ocidental, e caberia a um genovês o privilégio de pôr fim à
Idade Média ao descobrir a América. A exploração e a tomada de posse das
imensidões que se abriam diante deles foram em parte motivadas pelo d.esejo
Dicio11ário a11alítico do Ocidente 111cdicval

de flanquear O Islã pelo sul da África ou pelo oeste, e de co11ti11 ua 1· a Cruzada


ao des cobrir os do1ní11 ios do 111ítico ''Preste Joã o". P a ra ta11to, '' serv iran1-se

em boa parte do saber do i11i1nigo 1ntiçulma110 e da experiê11cia adquirida


graças aos co11tatos n1edievais que tinl1ai11 ocasio11a do a Cruzada, e graças
às muitas traduções de obras árabes en1 latim efetuadas 11a Espa11 ha , Itália e
França dura11te os séculos XII e XIII'' (A. Hamda11i). Cristóv
,
ão Colombo
mostrou aos Reis Católicos que as riquezas trazidas da I11dia serviriam para
a reconquistaq de Jerusalétn, mas apoiava-se 11u111 co11l1eci1nento geográfico
l1erda do quase sempre dos árabes e das traduções que estes tinl1 am feito
dos sábios da A11 tiguidade.
O saber árabe te,,e i111portância considerável na formação da ciência e
da cultura europei as. Entretanto, convém lembrar que a referida tra nsfe­
rência não resultou de un1 processo pacífico de transn1issão do saber. O
n1ovime11to das traduções acompanl1ou a Reconquista. Os ocidentais enri­
queceram os conhecimentos necessários ao seu desenvolvimento científico
com a espad a em punl10, seleciona ndo o que lhes parecia útil no próprio
n1omento em que o pensamento árabe, incapaz de se renovar, esclerosava­
-se na fidelidade aos a ntigos mestres e fecha va-se em suas p reocupações
exclusivamente religiosas e místicas. O sucesso extraordinário e quase
imediato de Averróis no Ocidente - morto em 1198, ele está traduzido
par a o latim desde a segunda década do século XIII - ilustra bem o dista n­
ciamento entre as duas culturas: no mundo 1nuçulmano, ele ''fechou" por
a ssim dizer o ciclo da filosofia aristotélica, d a qual representa ao mesn10

tempo o apogeu e o fim; no mundo cristão, pelo contrário, constituiu o


ponto de partida da renovação do pensa1nento europeu.
Que dizer dos contatos em princípio ma is pacíficos, em p articular dos
contatos comerciais? Costuma-se acentuar a fraca contribuição das cruza­
das no que respeita a aportes culturais ao Ocidente. Mas, também 11isso,
a s coisas são talvez um pouco mais complexas. Embora as expedições na

Terra Santa tenham propicia do poucos enriquecimentos diretos, e embo­


ra as influências orientais já se fizessem notar bem antes na Europa, por
intermédio das cidades comerciais da Itália meridional, fora m os '' seten­
trionais" - cristãos do norte da Espanha, normandos instalados na Itália,
marinheiros e guerreiros dos portos d.a Toscana, Ligúria e Venécia - que
Islã

tiraratn 1naior proveito do co11tato com o Oriente ao participar das empre­


sas gL1erreiras contra o Islã desde o século XI.
Os pisanos do século XII, enriqL1ecidos seja devido às suas participações
em incursões antimuçulmanas e nas cruzadas, seja devido ao desenvolvi-
111ento de atividades comerciais, decoram as fachadas de suas igrejas com
azulejos provenientes da Espanl1a, Baleares, Magreb e Egjco, e colocam
11a abside de sua catedral um soberbo grifo de bronze, um dos mais belos
exen1plos da metalurgia muçulmana. Tais objetos eram, sem dúvida, troféus
adquiridos por pill1agem, e não o fruto de um comércio pacífico. Enquanto
as influências islâmicas aparecem de modo bastante visível na arte da Itália
meridio11al e, evidentemente, na Sicília "árabo-normanda", em Pisa e de
1naneira geral na Itália do Norte - numa arte românica local muito preco­
ce e que nada deve ao Islã -, os objetos de arte muçulmana constituem tão
so1nente lembranças de triunfos militares em além-mar.
Com efeito, um curioso texto do geógrafo andaluz al-Zuhri, escrito na
segunda metade do século XII, apresenta os pisanos antes de cudo como
guerreiros admiráveis, e apenas em segundo lugar como mercadores. Nesse
complexo de atividades, em que guerra e comércio aparecem como dois as­
pectos de um mesmo dinamismo do Ocidente, as trocas mediterrâneas -
larga1ne11te dominadas pelos cristãos - continuam, entretanto, a ser uma das
principais causas da penetração de ideias, produtos e técnicas, eventualmente
até de n1odas orientais - árabes, mas também bizantinas -, no Ocidente.
Sabe-se bem a maneira como o cálculo numérico de posição, emprestado
aos árabes, penetrou na Europa a partir do Liber abaci, escrito em I 202 pelo
matemático pisano Fibonacci, filho de comerciante, educado em Bugia e
impregnado de 1natemática árabe. Muitas outras inovações importadas do
mundo muçulmano ou levadas por seu intermédio penetraram na Europa
nos séculos centrais da Idade Média, embora frequentemente seja difícil
acompa11har a introdução do papel, da cerâmica esmaltada, de numerosas
produções agrícolas e, sen1 dúvida, das armas de fogo.
,
E preciso reconhecer a contribuição do Islã e tentar avaliá-la de modo
exato, mas convém não a superestin1ar. No domínio da cartografia, por
exemplo, após a elaboração da '' carta pisana'' de 1 28 5 - provavelmente
desenhada em Gênova -, os portulanos do século XIY, com especial des-
Dicionário analítico do Ocide11te 111edieval

taque, por sua habilidade, para a fa1nília jt1dia maiorqui11a dos Cresques,
sem dú,7ida de,1en1 algo aos contatos n1editerrâ11eos con1 o inundo árabe.
Tal contato tan1bém desen1penl1ou - en1bora seja 1ne11os certo - algum
papel na difusão da bússola no Ocidente. No caso de outras i11ovações _
excetuadas as técnicas agrárias responsáveis pela '' revolução agrícola'' eu­
ropeia, que por evidentes razões ecológicas não podiam vir do Oriente -,
o desenvol,,imento do Ocidente é sem dúvida '' endógeno''. Por exemplo, 0
leme de cadaste con1 toda a certeza não foi transmitido pelos árabes, como
1nuito apressadamente se escreveu algun1as vezes.
Tentar demarcar com a n1aior exatidão possível o impacto do Oriente
muçulmano no Ocidente cristão, eliminando quando necessário as impre­
cisões em que recaíram partidários muito entusiastas de uma ''influência
árabe'' onipresente, não significa desconl1ecer a grandeza da civilização
muçulmana medieval. Trata-se apenas de responder às exigências da ob­
jetividade histórica. Esta é necessária para que se conheçam as interações
recíprocas entre as grandes civilizações e a '' dívida'' de umas para com as
outras, mas também é indispensável na avaliação da especificidade de cada
uma e na melhor apreciação das condições de seu desenvolvimento.

PIERRE Gu1cHARD
Tradurão de José Rívaír Macedo

Ver também

Bizâncio -Jerusalém e as cruzadas - Medicina - Números - Peregrinação

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Islã

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72 1
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/
1
Indíce onomástíco

A Adelardo de Bach, 7 1 3
Abbas, Haly, 620-1 Adernar de Chabannes, 5 64
Abelardo, Pedro, 1 3 3 , 259, 280, 346, Adorno, Jorge, 141
41 3 , 462, 466-7, 470, 567, 573, 625, Adson de Montier-en-De½ 3 69. 3 98
629, 692-4, 699 Aelfrico de Eynsham, 1 3 0
Abu, Mashar, 626 Aethelstan, 679
Achard de Saint-Victor, 297 Afonso de Fecrara, 540
Adalberon de Laon, 20 3 , 2 l 7 Afonso de Spina, 48 5
Adão de la Halle, 260 Afonso Henriques de Portugal� 710

l Os nomes próprios sempre colocam problemas aos tradutores, com algnns de­
fendendo o aportuguesamento geral e outros o respeito ao idioma de origem.
Optou-se aqui por um triplo critério intermediário: manter no original os nomes
de personagens históricos pós-1nedievais (com exceções consolidadas pelo uso,
como Nicolau Copérnico) e os de estudiosos modernos; utilizar as fórmulas
já consagradas em português para topônimos (Cantuária ou Estrasburgo, por
exemplo) e antropôni1nos (como Rábano Mauro ou Godofredo de Bulhão); tra­
duzir nomes que, apesar de inusuais, não colocam problemas eufônicos (caso de
Agobardo ou Fulco) nem, sobretudo, de clareza na identificação do personagem
(por exemplo, Bertoldo de Ratisbona ou Eustáquio Deschamps). Quando a tra­
dução ser-ia linguísticamente fácil, mas rejeitada pela tradição (quem associaria
,
"Pedro da Francisca" ae grande artista Piero della Francesca ou ··Jaime Coração.
ao merca·dor Jacques Coeur?) ou potencialmente ambígua (o bispo Avito é de
Vienne, cidade do sudeste francês e não de Viena, hoje capital austríaca) , prefe­
rimos manter a grafia original. [ HFJ]

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