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HISTÓRIA INTELECTUAL1*

François Dosse

A história dos intelectuais tem recentemente tendido a se emancipar como


campo de investigação específico e autônomo entre as disciplinas sociológica e
histórica, no cruzamento da história política, social e cultural. Por muito tempo foi um
domínio proscrito, uma vez que nos anos 1960 e 1970, quando a história de longa
duração e a história serial dominavam sem reservas, a história intelectual era
considerada demasiado próxima do individual, do biográfico, do político e da história
das ideias “desencarnada”. A desvalorização da ação consciente leva a uma
marginalização das produções intelectuais “claras”, em benefício das “mentalidades”
tanto quanto de objetos desvalorizados pela história acadêmica A esse descrédito se
juntava um interesse maior pelos fenômenos massivos às expensas dos grupos de elite.
É necessário, então, esperar um período recente para ver emergir na França um interesse
por essa história de clérigos2.
Na França, é apenas em meados dos anos 1980 que se vê desenvolver-se esse
domínio de estudos como específico entre os historiadores. Ele já existia, mas reduzido
a uma expressão marginal, aquela de um Jean Touchard com a história das ideias
políticas no ​Sciences-Po [Instituto de Estudos Políticos de Paris] ou, na senda de
Bachelard e Canguilhem, a história “epistemológica” das ciências que participaram da
construção de uma história intelectual. Essa emergência está relacionada com a
mudança de paradigma nas ciências humanas. E talvez também deva ser colocada em
relação com a “beleza do morto”, com o desaparecimento dessa figura do intelectual
universal engajado, tal qual o havia encarnado Zola durante o caso Dreyfus em 1898.
Essa mutação já havia sido percebida por Foucault quando definia a modernidade do

1
* Tradução do verbete “​Histoire intellectuellle​”, publicado em “​Historiographies​, I” (Paris, Gallimard,
2010), organizado por C. Delacroix, F. Dosse, P. Garcia e N. Offenstadt.
2
Nota do tradutor: O termo “clérigo” em francês (​clerc)​ , em contexto literário e/ou irônico, pode
significar “intelectual”. Com a expressão “história de clérigos”, Dosse faz referência a um célebre ensaio
de Julien Benda, ​La trahison des clercs ​(“A traição dos clérigos”), de 1927, em que é deplorado o fato de
que numerosos intelectuais e artistas da época se teriam desviado de valores intelectuais estáticos (a busca
do verdadeiro, do bom e do belo) em prol de ideais políticos (nacionalismo, fascismo, comunismo etc.).
intelectual “específico”, que renuncia à sua vocação universalista. Pierre Nora se coloca
a mesma questão do possível desaparecimento da figura do intelectual: “Pode-se hoje,
ao mesmo tempo, chorar a morte do intelectual e deplorar a proliferação da espécie.”
Graças aos historiadores, os intelectuais teriam assim o seu canto do cisne.
Apressamo-nos em contá-los, classificá-los, compilar seus repertórios, antes de
enterrá-los definitivamente. Objeto arrefecido eles se tornariam objetos da história por
falta de serem uma verdadeira questão no presente, pagando o pesado preço de seus
compromissos no decorrer do trágico século XX. Nas proximidades dessa história dos
intelectuais, desenvolveu-se uma história propriamente intelectual em um
entrelaçamento entre a história clássica das ideias, a história da filosofia, a história das
mentalidades e a história cultural. Esse espaço de investigação tende, também, a se
tornar autônomo. Essa história intelectual atribui a si o objetivo de fazer “consonar” em
conjunto obras, seus autores e o contexto que os viu nascer em uma abordagem que
recusa a empobrecedora alternativa entre uma leitura internalista das obras e uma
abordagem externalista que privilegia somente as redes de sociabilidade. A história
intelectual pretende, assim, dar conta de obras, percursos, itinerários, para além das
fronteiras disciplinares. Carl Schorske dá uma definição bastante ampla daquilo que
pode ser a história intelectual: “O historiador busca situar e interpretar a obra no tempo
e inscrevê-la no cruzamento de duas linhas de força: uma vertical, diacrônica, através da
qual ele relaciona um texto ou um sistema de pensamento a tudo aquilo que os precedeu
em um mesmo ramo de atividade cultural... a outra, horizontal, sincrônica, através da
qual o historiador estabelece uma relação entre o conteúdo do objeto intelectual e aquilo
que se faz em outros domínios na mesma época.”
Essa história intelectual já é rica em debates entre diversas tendências. Roger
Chartier situa o novo espaço de investigação no cruzamento entre uma história de
práticas socialmente diferenciadas e uma história de representações, tomando como
objetivo dar conta de diversas formas de apropriação. Essa pluralização de construções
culturais vira do avesso a oposição fundamentalmente dualista dominantes/dominados
utilizada até então como garantia de coerência de descrições fragmentadas no interior da
hierarquia sócio-profissional. A reconsideração da capacidade organizativa desse
esquema de leitura confere à questão das formas de apropriação uma posição central.
Essa orientação deve muito a Michel de Certeau, que estudou as práticas cotidianas de
apropriação que se caracterizam por ser efêmeras, instáveis e deslocalizadas [​sans
lieux]​ ​. Nos trabalhos de historicização dos modos de aproximação dos leitores, dos
suportes de leitura, a posição de Certeau é particularmente sugestiva com sua distinção
entre a caça furtiva dos leitores e a escritura acumulativa. A investigação que ele
realizou sobre as práticas cotidianas tomou por objeto restituir as maneiras de “fazer
com”, as táticas não atribuíveis que desdobram suas lógicas no próprio interior das
estratégias postas em marcha pelos produtores para habitar, cozinhar, circular, ler...
É essencialmente a apreensão dos intelectuais a partir de seu engajamento
político que prevaleceu entre os historiadores franceses. A recente recuperação do
interesse pela história intelectual seguiu sobretudo a via da renovação da história
política, como exemplificado pelas publicações de Jean-François Sirinelli. Essa história
se vê, às vezes, “arqueologia, geografia e genealogia”. Arqueologia pela busca das
solidariedades originais e pelas estratificações geracionais; geografia pelo
esclarecimento dos lugares e recursos da produção intelectual e genealogia pelo
evidenciamento das relações de filiação que conectam ao passado. Essa história procura
mobilizar três instrumentos para evitar o obstáculo da história das ideias: “o estudo dos
itinerários, o esclarecimento das gerações e a observação das estruturas de
sociabilidade”.
O estudo social dos intelectuais se associa ao evidenciamento das suas redes de
sociabilidade e se articula acima de tudo no entorno da tríade
“recrutamento-reconhecimento-estratificação”. As revistas são, por exemplo, bons
observatórios das suas trajetórias, mas existem outros, como a assinatura de manifestos
e de outras petições por aqueles cujo meio é um protesto. Esse indicador representa um
bom sismógrafo para o historiador, complementar ao estudo das redes, que permite, por
seu lado, a restituição dos microclimas singulares. Essa abordagem tem a vantagem de
evitar os mecanismos de causalidade simples, de valorizar a complexidade e a
contingência. Ela se diferencia de maneira significativa da concepção bourdieusiana da
sociabilidade que se apoia sobre a única base estratégica da otimização dos seus
interesses e da conquista do poder, porque bem outros parâmetros entram em jogo.
Portanto, podemos substituir a leitura em termos de interesse por uma abordagem que
valorize o estudo do campo intelectual como campo magnético, notadamente no entorno
do conceito de afinidade eletiva, como o efetiva Michael Löwy (​Rédemption et utopie:
le judaïsme libertaire em Europe centrale​, PUF, 1997), ele é mais eficiente para tomar
conta das redes de sociabilidade.

É sobretudo a partir das formas que tomou a história intelectual no mundo


anglo-saxão, e notadamente na Alemanha, que se assiste atualmente na França a uma
nova inflexão dos estudos sobre o campo próprio de estudo do pensamento e da sua
evolução, transformadora da história dos intelectuais em história propriamente
intelectual. A verdadeira mutação que conhece a história intelectual nos Estados Unidos
é contemporânea daquilo que foi qualificado como ​linguistic turn​, que abalou
profundamente esse domínio de estudos, deslocando as questões, modificando os
métodos de aproximação e proporcionando um aumento no rigor aos estudos efetuados.
Essa virada linguística se cristaliza bem cedo e se exprime, entre outros, com a
publicação de uma antologia de vinte e oito textos-manifestos sob a direção do filósofo
Richard Rorty de 1967 sob o título ​The Linguistic Turn.​ Ela desemboca em uma história
intelectual renovada e forte em novas ambições. A intervenção mais retumbante é
aquela precoce de Hayden White, que publica a sua famosa obra, ​Metahistory,​
publicada em 1973, que, no entanto, é largamente ignorada na França, onde jamais foi
traduzida. Hayden White anuncia uma inflexão decisiva em relação às orientações da
tradicional história das ideias, encarnada nos Estados Unidos por Arthur Lovejoy, ao
assimilar o paradigma estruturalista pós-saussuriano.

Um momento maior na tentativa de articulação entre a história social e os


aportes do ​linguistic turn está no início das atividades de dois historiadores americanos
da Universidade Cornell, Steven Kaplan e Dominick LaCapra, que tomam a iniciativa
de um colóquio sobre esse tema que ocorre em abril de 1980 na Universidade Cornell
no estado de Nova York,dando lugar a uma publicação das comunicações centradas na
maneira de conceber a história intelectual. LaCapra propõe redefinir seis quadros
problemáticos para renovar a história intelectual e mostrar que as relações que
envolvem o texto com o seu contexto são relações complexas de práticas significantes
que devem ser pensadas à maneira de uma forma singular de intertextualidade. O
historiador deve, então, evitar a tentação de proceder a uma simples redução do texto
como simples representação de um contexto que lhe é exterior. O campo problemático
circunscrito por LaCapra define a história intelectual mais em termos de processos de
questionamento que em termos de regra metodológicas ou de fontes de informação a
propósito do passado.

Essa recuperação de favor pela história intelectual também proporcionou o


nascimento de toda uma corrente de renovação da história literária, que aparece no
começo dos anos 1980 nos Estados Unidos. Ela toma a medida do ​linguistic turn a​ o
definir um programa aberto qualificado de ​New Historicism​, de acordo com a fórmula
de um dos representantes dessa corrente, Stephen Greenblatt. Os proponentes do ​New
Historicismo​, além de Stephen Greenblatt, Louis Montrose, Joël Fineman, Richard
Terdiman e seus colegas, insistem sobre as capacidades de configuração da retórica,
assim como sobre o seu modo de recepção e de apropriação. Louis Montrose precisava
as novas formas de crítica ao dizer que a sua tarefa, tal como a concebia, era examinar a
“historicidade dos textos e a textualidade da história”.

No cruzamento entre a filosofia, a história, a ciência política e a linguística, a


escola dita de Cambridge empurrou as falsas evidências e abriu um campo de reflexão a
uma história intelectual às vezes fortemente contextualizada, atenta à singularidade das
situações históricas e interessada em renovar os questionamentos a partir das aquisições
do ​linguistic turn na linha dos aportes do Wittgenstein das ​Investigations
Philosophiques​. Os nomes e os trabalhos dessa escola começam a ser melhor
conhecidos deste lado do canal da Mancha: John Dunn, John G. A. Pocock (professor
de história na Universidade Johns Hopkins de Baltimore), Quentin Skinner (professor
na Universidade de Cambridge) são traduzidos ao francês e suas teses são objeto de
renhidas discussões. A fonte principal de inspiração dessa corrente se enraíza na
reflexão linguística conduzida pelos filósofos de Cambridge nos anos 1950, assim como
na reflexão sobre os atos de linguagem (​speech acts​) desenvolvida no mesmo momento
em Oxford e em outros lugares por John L. Austin e John R. Searle, privilegiando uma
linguística da enunciação estreitamente tributária das variações contextuais. Esses dois
mundos, o dos historiadores e o dos filósofos da linguagem, são em geral estrangeiros
um ao outro, e a exceção que essa escola de Cambridge constitui é ainda mais digna de
nota por esse motivo . O deslocamento mais importante operado consiste em privilegiar
uma abordagem contextual graças às contribuições da semântica história, rompendo
assim com a busca puramente genealógica realizada a partir apenas do presente dos
iniciadores do pensamento político moderno. Sua ambição é de dar conta da emergência
da concepção moderna de Estado, prestando atenção àquela que foi “a matriz social e
intelectual geral de que saíram” os trabalhos dos principais teóricos de tal concepção. O
objetivo é, pois, a restituição mais escrupulosa do contexto intelectual no qual um certo
número de teóricos do político elaborou suas teses. Defensores de uma prática
essencialmente histórica, os autores dessa escola de Cambridge preocupam-se em partir
das categorias do pensamento da época estudada e da linguagem então em uso,
situando-se à distância de toda forma de projeção a partir de seu presente. Sua
contribuição essencial vem de sua capacidade de colocar os textos à prova dos
contextos, evitando assim as armadilhas de uma abordagem puramente internalista da
história das ideias, mas levando ao mesmo tempo a sério aquilo que os textos dizem sem
os reduzir aos dados externos. Partindo da exterioridade dos textos, esses estudos
contribuem para os esclarecer de maneira nova, o que não invalida a abordagem inversa
que caminha da interioridade dos textos em direção à sua exterioridade. Simplesmente,
à maneira das escalas de análise, elas colocam em evidência dimensões não perceptíveis
segundo uma outra leitura.

Herdeiros do ​linguistic turn em sua versão pragmática, eles pretendem restituir o


que escrever quer dizer encontrando “o ​ato que seus autores cometiam ao os escrever”.
Tal perspectiva pressupõe uma atenção particularmente aguda aos dados filológicos da
época estudada, às categorias mentais e culturais do momento, sem para isso se limitar a
tais dados , pois todos são conscientes de que o que eles fazem é uma obra de
interpretação. Ao procurar situar, dessa maneira, um texto em seu respectivo contexto,
não é simplesmente um cenário que se propõe para a interpretação: é o próprio ato de
interpretação que começa. A escola de Cambridge consegue, assim, colocar a filosofia
política à prova da história, respeitando simultaneamente a singularidade de um
pensamento político não redutível a seu contexto de enunciação. Paralelamente a essa
contribuição metodológica pela qual tais historiadores saem do falso dilema entre
internalismo e externalismo, eles se abrem às proposições heurísticas que modificam em
profundidade nossa percepção da ruptura moderna, ao mostrarem que a autonomização
do pensamento do político no Ocidente se enraíza naquele que John Pocock qualificou
como ​momento maquiaveliano que vai muito além da pessoa única e da obra de
Maquiavel, uma vez que essa expressão designa todo o período de emergência do
humanismo cívico na república de Florença no começo do século XVI.

A outra grande figura da Escola de Cambridge, Quentin Skinner, nomeado


professor de ciências políticas na Universidade de Cambridge com trinta e sete anos em
1978, dirige uma coleção, ​Ideas in Context,​ que comporta mais de quarenta títulos e
anima um vasto programa de pesquisa coletiva sobre o pensamento político moderno
que tenta promover uma tradução, no plano histórico, das teses avançadas pela filosofia
da linguagem do último Wittgenstein e de Austin. Ao recusar o determinismo
sociológico para tratar das teorias políticas, Skinner pretende privilegiar o que o texto
significa no momento em que é enunciado; o historiador, então, deve se transportar para
o interior do universo de significação ​do autor de quem ele fala para encontrar o que
fazia sentido para ele. Para capturar a força ilocucionária do texto, Skinner conta com a
reconstrução histórica do contexto que pode permitir a compreensão das questões
conflituosas do enunciado a partir das convenções em uso e, assim, encontrar a
intencionalidade e a estratégia de escrita do autor.

As teses da escola de Cambridge suscitaram numerosas controvérsias, ao longo


das quais se expressaram objeções mais ou menos radicais. Na França, o filósofo Yves
Charles Zarka, que dirige o ​Centre d’histoire de la philosophie moderne​, foi o crítico
mais severo, especialmente porque ele preconiza uma abordagem completamente
diferente do mesmo ​corpus textual. Como diretor do centro Thomas Hobbes do CNRS,
Zarka é um especialista reconhecido do pensamento de Hobbes. Todavia, ele rejeita a
perspectiva de Skinner, considerada por ele estreitamente historicista em demasia, com
efeitos redutores quanto à história da filosofia política. A sua principal crítica visa a
utilização por Skinner de elementos exógenos aos textos estudados, que dissolveriam a
parte propriamente filosófica deles. Ele reconhece que a natureza histórica dessas obras
do passado necessariamente precisa se conformar escrupulosamente aos dados que
constituem o contexto de uma época específica, mais isso não deve obscurecer o fato de
que são textos cuja natureza é, antes de tudo, filosófica: “Toda tentativa de reduzir a
uma dimensão puramente histórica o estudo da filosofia política redunda, de maneira
mais ou menos direta, mais ou menos hábil, em negar a especificidade (filosófica) do
objeto estudado”. Zarka, de fato, propõe uma leitura de Hobbes que enfatiza mais a
modernidade do seu pensamento, que ele define a partir de uma profunda transformação
operada de uma filosofia dos corpos em direção a uma filosofia do espírito.

O desenvolvimento da reflexão sobre o pensamento político foi alimentado, na


França, pela crítica do fenômeno totalitário, a respeito da qual Marcel Gauchet
sublinhou que, “em certo sentido, não é mais que um retorno do recalque político”. Uma
história intelectual do pensamento político se desenha em torno dos anos 1980 com a
revista ​Libre​, criada em 1977, com a coleção “​Critique de la politique​”, lançada por
Miguel Abensour em 1975 pela Payot, a partir da construção de um seminário mensal
que se realizou entre 1977 e 1985, no qual encontramos Claude Lefort, Pierre Manent,
Marcel Gauchet, François Furet, Bernard Manin, Pierre Nora, Jacques Julliard, Krzystof
Pomian, Pierre Rosanvallon, entre outros. Esta reflexão coletiva permite
descompartimentalizar as abordagens disciplinares e retomar uma perspectiva
globalizante para uma abordagem histórica na qual a política é concebida como “tema
transversal e global das pesquisas”. A história intelectual da política se pretende colocar
na intersecção do histórico e do filosófico, e este lugar intermediário de observação lhe
permite jogar com as clivagens tradicionais entre histórica política, ciência política e
história das ideias políticas.

Na Alemanha, a história intelectual constitui, também, um domínio sugestivo, a


ponto de servir de modelo para um número crescente de países, sobretudo graças ao
projeto de semântica histórica definido por Reinhart Koselleck (a ​Begriffsgeschichte​).
Nos anos 1950, a história cultural foi particularmente desqualificada na Alemanha,
tendo sido utilizada, inclusive, como palavrão, e é justamente distanciando-se dela que
se afirmou um programa diferente, que consiste em realizar uma história intelectual.
Emanada substancialmente da ​Begriffsociology​, essa tendência inspira, ainda, os
trabalhos da sociologia do direito, que foram os primeiros a projetar uma sociologia dos
conceitos. É pela mediação de uma reflexão sobre as descontinuidades próprias ao
conteúdo jurídico que o historiador Koselleck empreendeu a sua abordagem de uma
ambiciosa história dos conceitos. Ele rompe, efetivamente, com o continuísmo ideal
para ancorar socialmente o conceito em seu espaço-tempo, partindo do princípio de que
o conceito registra o fato social em vias de produção. Mas, ao mesmo tempo, o conceito
é, em si mesmo, um fator do fato social e não mais somente seu reflexo. O conceito
retroage sobre o fato social. Koselleck se recusa a separar a atenção às transformações
das formações discursivas da história social, definindo um programa de história
intelectual para conservar a historicidade própria a qualquer noção ou controvérsia.

Koselleck retoma a sentença de Epiteto segundo a qual “não são as ações que
movem os homens, mas o que eles dizem a respeito das suas ações”, que nos ensina que
a força inerente das palavras não flutua somente na superfície das coisas. Daí resulta
uma obrigação metodológica da história que consiste em representar os conflitos sociais
e políticos do passado utilizando o que Lucien Febvre já chamava de utensilagem
mental e que Koselleck chama de “fronteiras conceituais da época”, e nesse ponto muito
próximo da escola de Cambridge. Tal atenção aos deslocamentos de sentido das noções
na diacronia e no plano sincrônico em função dos seus lugares no sistema visa melhor
compreender a história social em sua concretude, superando o falso círculo vicioso que
leva da palavra à coisa e vice-versa.

O domínio do direito aparecia, para Koselleck, como um conector privilegiado


para pensar o conjunto das transformações dos conceitos e do universo social, porque o
direito lhe servia como indicador da modernidade crescente. A respeito das inovações
do programa de Koselleck, nós encontramos a sua insatisfação diante de uma
historiografia como aquela representada pelos historiadores que, sem se terem
comprometido com o nazismo, permaneceram na Alemanha fiéis às teses clássicas do
historicismo. Para toda uma geração de historiadores alemães do segundo pós-guerra,
tal visão já não era mais aceitável e, mais do que procurar uma simples compaixão
consigo mesma, essa geração estava em busca das causas positivas capazes de
esclarecer as razões do desastre alemão, sobre o que poderia ter suscitado essa entrega à
barbárie, exigindo responsáveis e culpados. Foi com base nessa recusa e nessa atitude
crítica em relação à geração precedente que toda uma série de historiadores alemães
trabalhou em uma crítica da prática historiográfica dominante, procurando outras vias
de exploração mais fecundas. É o caso, dentre outros, de Reinhart Koselleck, cujo
projeto nasce no Instituto de história social, criado pelo irmão de Max Weber, Alfred
Weber, em Heidelberg. Koselleck, como a maior parte dos historiadores da sua geração,
está fortemente marcado pela experiência da guerra, por esse enorme fosso, na
Alemanha, entre a barbárie em marcha no cotidiano e o mundo do discurso. A posição
defendida por Koselleck é de uma historicização sem historicismo. Ele se torna um dos
grandes construtores de um gigantesco empreendimento editorial ao realizar uma grande
enciclopédia dos conceitos fundamentais da história em oito volumes, com o
medievalista Otto Brunner, que já tinha suscitado um grande debate a respeito da sua
tese segundo a qual o Estado não existia na Idade Média, e com o historiador Werner
Conze. Esse dicionário tornou-se o monumento mais representativo das contribuições
da história dos conceitos, a ​Begriffsgeschichte.​ O conjunto reúne não menos de 7.000
páginas, a sua realização tomou 20 anos e 10% do total foi redigido por Koselleck. A
narração constitui a mediação indispensável para se fazer uma obra histórica e vincular
o espaço da experiência e o horizonte de expectativa.

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