Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
François Dosse
1
* Tradução do verbete “Histoire intellectuellle”, publicado em “Historiographies, I” (Paris, Gallimard,
2010), organizado por C. Delacroix, F. Dosse, P. Garcia e N. Offenstadt.
2
Nota do tradutor: O termo “clérigo” em francês (clerc) , em contexto literário e/ou irônico, pode
significar “intelectual”. Com a expressão “história de clérigos”, Dosse faz referência a um célebre ensaio
de Julien Benda, La trahison des clercs (“A traição dos clérigos”), de 1927, em que é deplorado o fato de
que numerosos intelectuais e artistas da época se teriam desviado de valores intelectuais estáticos (a busca
do verdadeiro, do bom e do belo) em prol de ideais políticos (nacionalismo, fascismo, comunismo etc.).
intelectual “específico”, que renuncia à sua vocação universalista. Pierre Nora se coloca
a mesma questão do possível desaparecimento da figura do intelectual: “Pode-se hoje,
ao mesmo tempo, chorar a morte do intelectual e deplorar a proliferação da espécie.”
Graças aos historiadores, os intelectuais teriam assim o seu canto do cisne.
Apressamo-nos em contá-los, classificá-los, compilar seus repertórios, antes de
enterrá-los definitivamente. Objeto arrefecido eles se tornariam objetos da história por
falta de serem uma verdadeira questão no presente, pagando o pesado preço de seus
compromissos no decorrer do trágico século XX. Nas proximidades dessa história dos
intelectuais, desenvolveu-se uma história propriamente intelectual em um
entrelaçamento entre a história clássica das ideias, a história da filosofia, a história das
mentalidades e a história cultural. Esse espaço de investigação tende, também, a se
tornar autônomo. Essa história intelectual atribui a si o objetivo de fazer “consonar” em
conjunto obras, seus autores e o contexto que os viu nascer em uma abordagem que
recusa a empobrecedora alternativa entre uma leitura internalista das obras e uma
abordagem externalista que privilegia somente as redes de sociabilidade. A história
intelectual pretende, assim, dar conta de obras, percursos, itinerários, para além das
fronteiras disciplinares. Carl Schorske dá uma definição bastante ampla daquilo que
pode ser a história intelectual: “O historiador busca situar e interpretar a obra no tempo
e inscrevê-la no cruzamento de duas linhas de força: uma vertical, diacrônica, através da
qual ele relaciona um texto ou um sistema de pensamento a tudo aquilo que os precedeu
em um mesmo ramo de atividade cultural... a outra, horizontal, sincrônica, através da
qual o historiador estabelece uma relação entre o conteúdo do objeto intelectual e aquilo
que se faz em outros domínios na mesma época.”
Essa história intelectual já é rica em debates entre diversas tendências. Roger
Chartier situa o novo espaço de investigação no cruzamento entre uma história de
práticas socialmente diferenciadas e uma história de representações, tomando como
objetivo dar conta de diversas formas de apropriação. Essa pluralização de construções
culturais vira do avesso a oposição fundamentalmente dualista dominantes/dominados
utilizada até então como garantia de coerência de descrições fragmentadas no interior da
hierarquia sócio-profissional. A reconsideração da capacidade organizativa desse
esquema de leitura confere à questão das formas de apropriação uma posição central.
Essa orientação deve muito a Michel de Certeau, que estudou as práticas cotidianas de
apropriação que se caracterizam por ser efêmeras, instáveis e deslocalizadas [sans
lieux] . Nos trabalhos de historicização dos modos de aproximação dos leitores, dos
suportes de leitura, a posição de Certeau é particularmente sugestiva com sua distinção
entre a caça furtiva dos leitores e a escritura acumulativa. A investigação que ele
realizou sobre as práticas cotidianas tomou por objeto restituir as maneiras de “fazer
com”, as táticas não atribuíveis que desdobram suas lógicas no próprio interior das
estratégias postas em marcha pelos produtores para habitar, cozinhar, circular, ler...
É essencialmente a apreensão dos intelectuais a partir de seu engajamento
político que prevaleceu entre os historiadores franceses. A recente recuperação do
interesse pela história intelectual seguiu sobretudo a via da renovação da história
política, como exemplificado pelas publicações de Jean-François Sirinelli. Essa história
se vê, às vezes, “arqueologia, geografia e genealogia”. Arqueologia pela busca das
solidariedades originais e pelas estratificações geracionais; geografia pelo
esclarecimento dos lugares e recursos da produção intelectual e genealogia pelo
evidenciamento das relações de filiação que conectam ao passado. Essa história procura
mobilizar três instrumentos para evitar o obstáculo da história das ideias: “o estudo dos
itinerários, o esclarecimento das gerações e a observação das estruturas de
sociabilidade”.
O estudo social dos intelectuais se associa ao evidenciamento das suas redes de
sociabilidade e se articula acima de tudo no entorno da tríade
“recrutamento-reconhecimento-estratificação”. As revistas são, por exemplo, bons
observatórios das suas trajetórias, mas existem outros, como a assinatura de manifestos
e de outras petições por aqueles cujo meio é um protesto. Esse indicador representa um
bom sismógrafo para o historiador, complementar ao estudo das redes, que permite, por
seu lado, a restituição dos microclimas singulares. Essa abordagem tem a vantagem de
evitar os mecanismos de causalidade simples, de valorizar a complexidade e a
contingência. Ela se diferencia de maneira significativa da concepção bourdieusiana da
sociabilidade que se apoia sobre a única base estratégica da otimização dos seus
interesses e da conquista do poder, porque bem outros parâmetros entram em jogo.
Portanto, podemos substituir a leitura em termos de interesse por uma abordagem que
valorize o estudo do campo intelectual como campo magnético, notadamente no entorno
do conceito de afinidade eletiva, como o efetiva Michael Löwy (Rédemption et utopie:
le judaïsme libertaire em Europe centrale, PUF, 1997), ele é mais eficiente para tomar
conta das redes de sociabilidade.
Koselleck retoma a sentença de Epiteto segundo a qual “não são as ações que
movem os homens, mas o que eles dizem a respeito das suas ações”, que nos ensina que
a força inerente das palavras não flutua somente na superfície das coisas. Daí resulta
uma obrigação metodológica da história que consiste em representar os conflitos sociais
e políticos do passado utilizando o que Lucien Febvre já chamava de utensilagem
mental e que Koselleck chama de “fronteiras conceituais da época”, e nesse ponto muito
próximo da escola de Cambridge. Tal atenção aos deslocamentos de sentido das noções
na diacronia e no plano sincrônico em função dos seus lugares no sistema visa melhor
compreender a história social em sua concretude, superando o falso círculo vicioso que
leva da palavra à coisa e vice-versa.