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I Lamentando que a força numérica dos tapuios não tivesse se revertido em uma participação qualitativamente mais
importante, como a ocupação de cargos de liderança no interior do aparelho burocrático da Província rebelada,
Moreira Neto ressalvava: "mas isso não quer dizer que a Cabanagem não tenha tido dissensões internas, sobre a
pressão dos grupos ou facções social e economicamente mais conscientes ou mais preocupados com as questões
que as afetavam economicamente". Ibidem, p. 67. Os grifos são nossos.
De qualquer forma, e em que pese suas contribuições inovadoras,
Salles e Moreira Neto acabaram esbarrando na compreensão da Cabanagem
como exclusivamente uma luta institucional pelo poder na Província. Como
estÍmulos de ordem político-institucional não estavam presentes ou pelo menos
não apareciam no corpo documental pesquisado como tendo motivado
seriamente os segmentos populares, tais autores recorreram à idéia mais
vulgarmente difundida de uma participação destes setores como simples
"massa" de manobra nas mãos das elites.
Por esse entendimento, os Cabanos que apresentavam uma posição
de marginalização social apareciam como sujeitos sociais envolvidos no
turbilhão da luta política por questões e interesses que lhes eram exteriores.
Por visualizarem a participação de seus agentes sociais específicos (negros e ~
tapuios) a partir desse ângulo restrito, acabaram esterilizando os rumos da
investigação no imenso campo fértil que eles mesmos tinham propiciado.
Contrariando seus próprios argumentos, concluíram sempre de forma
conformista, como se ao pesquisador nada mais restasse a fazer do que exaltar
a importância numérica das massas e lamentar seu previsível insucesso:
2 Trata-se de manuscrito do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, intitulado "Relação de presos rebeldes, falecidos a
bordo da Corveta Defensora desde 4 de agosto de 1837 até 31 de dezembro de 1838'. A "relação" traz além da
própria nominação de 229 presos, uma descrição das suas "cores" (etnia), estado civil, além das datas e motivos
porque foram presos. Ibidem, p. 281-315.
comportamento, temos de recorrer a outros materiais. Entre
eles podem estar os arquivos da polícia, das prisões, dos hospitais
e os arquivos judiciais[ ... ] (RUDÉ, 1991, p. 10-11).
3Ofício do Presidente da Província do Pará, Bernardo Souza Franco, ao Ministro da Justiça do Império, de 14 de julho
de 1839.
4 Dos 864 registros de prísioneíro, 49 são registros anotados em local indevido - em geral desrespeitando a
ordenação alfabética - e, portanto, trazem somente o nome do preso e a observação de sua verdadeira
localização (folha e livro). Em um número pequeno de registros, não consta a informação de determinada
variável. Assim sendo, o número total de registros aptos para o cômputo da diferenciação étnico-social, recua
para 753, enquanto o cálculo da "ocupação" dos presos teve por base 720 registros, números que, no
entanto, consideramos bastante expressivos.
conceitos. Desde meados do século, a "história problema", "labirÍntica", tem
aceitado o desafio da contramão, sendo que, na formulação de Walter Benjamin
de se "escovar a história a contrapelo", o que se enfatiza é a aceitação da
pluralidade de "possíveis" históricos (BENJAMIM, 1986, p. 222-32). Nesse
sentido, visualizar o mundo da repressão e da própria rebelião, buscando
perceber as tensões e as vozes que foram sufocadas pelo discurso do poder,
não deixa de ser uma aceitação do desafio de trabalhar na contramão.
Mas como acercar-se desse mundo subterrâneo, quando quase nada
se sabe acerca de seus personagens? Ao largo da "vida singular" de quatro ou
cinco líderes, o que se sabe sobre os demais partícipes? Quem eram, afmal, os
Cabanos comuns; o que faziam, como faziam, por que faziam? É lamentável
que respostas para questões tão importantes não estejam ainda disponíveis,
mas é possível ao menos tentar contribuir para que elas, em breve, sejam
contempladas.
Os registros de prisioneiros do Defensora, em especial os indicadores
quantificáveis que eles contemplam, possibilitam ampliar a base de identificação
dos Cabanos do Grão-Pará, aproximando e discutindo a possibilidade de se
recuperar perfis (múltiplos) dos revoltosos, que superassem as genéricas
identificações anteriores. No entanto, é forçoso reconhecer que tais registros
servem apenas como indicadores parciais, jamais podendo ser tomados como
reflexo fiel de uma dada realidade. Essa, por sua vez, permanecerá a mostrar-
se sempre mais complexa e dinâmica, mesmo que a cada novo instante o
historiador amplie suas fontes de informação e fortaleça seus aportes teóricos
e metodológicos.
Não sendo o viver social mera equação matemática, querer captá-lo
ou compreendê-lo através da frieza de números, gráficos e tabelas é intento
que, em geral, transcende a mera ingenuidade e abre espaço para o anacronismo.
Desta forma, a apresentação dos números gerais dos códices do APEP que
tratam dos prisioneiros Cabanos, foi feita sempre com esse cuidado de não
incorporá-los enquanto reflexo fiel, seja do contingente total de rebeldes
participantes do movimento, seja do próprio quadro sócioeconâmico do
Pará no início do século XIX.
Um dos riscos presentes no trabalho de historiadores que procuraram
derivar suas interpretações exclusivamente a partir de fontes quantificáveis é o
de se deixar levar pelo "mito da média", buscando detectar pelos números,
um padrão ordenado r (p. ex: "trabalhador médio", "aldeão médio",
"camponês médio") que muitas vezes serve mais para confundir do que para
esclarecer a questão que se busca explicitar (THOMPSON, 1987, p. 39-40).
Parece importante salientar que a recuperação dos registros carcerários, de
forma alguma deve pautar-se pela busca de um "Cabano médio" que, uma
vez identificado, possa fazer derivar novas interpretações.
Mesmo que esse interesse estivesse presente, os limites derivados da
própria natureza da documentação, de caráter fragmentário e parcial,
impediriam uma tal pretensão. Basta lembrar que mesmo tendo se constituÍdo
a corveta Difensora no mais importante "presídio" da época da rebelião, ela
serviu prioritariamente como local de destino para os Cabanos capturados
ao longo das vilas e povoados do Baixo Amazonas, e assim, inúmeros presos
acabaram ficando mesmo em prisões menores, dispersas pelos mais variados
espaços da Província. As cadeias públicas das principais vilas da Comarca do
Alto Amazonas, tanto quanto as de Belém, ficaram abarrotadas por anos a
fio.
De igual forma, é importante lembrar que à chegada das forças
repressivas, as distensões internas já haviam aprofundado o imenso fosso
entre os insurgentes e parte do conjunto de proprietários brancos nativos que
tinham aderido à revolta a partir de objetivos reformistas. Estes, evadiram-se
da Província, temendo que a atuação dos grupos de rebeldes populares - que
também atuavam na capital- se voltasse contra eles. Tanto é assim, que o
próprio Marechal Manoel Jorge Rodrigues, ainda a caminho para Belém,
registrou a presença de muitos deles nas principais cidades do nordeste do
país. Em ofício à Regência enviado de São Luiz, o Marechal reconhecia que
"o maior número dos imigrados que estão aqui, são vindos depois da morte
de Malcher, de quem eram partidistas e, apesar do seu estado, mostram uma
rivalidade que talvez o tempo não possa apagar"5.
Seja como for, os primeiros "números" a respeito dos presos Cabanos
foram os de Jorge Hurley, apresentados enquanto mera curiosidade estatística,
5 Ofício do Presidente da Província do Pará, Manoel Jorge Rodrigues, ao Ministro de Estado dos Negócios do Império,
de 10 de junho de 1835.
uma vez que o autor não fazia derivar deles nenhum comentário. Assim,
lançando mão de um ofício do General Soares d' Andréa que encaminhava
pela charrua "Carioca" 145presos ao Rio de Janeiro, pôde ele anotar o seguinte
cômputo:
7 o códice 974, por exemplo, apresenta entre as indicações de "cor", termos como "meio-branco", "semi-branco",
"atapuiado", "amulatado", dentre outros.
8 O Códice 1131.
lado, sugere a necessidade de relativizar as especificações contidas nos dois
primeiros arrolamentos.
Enquanto os números de Hurley e Moreira Neto atribuem ao
contingente de prisioneiros "de cor" um percentual alto, 80 e 93,1%,
respectivamente, o mesmo ocorre com os dados obtidos através do Códice
1131, que aponta para a existência de 77,8% de não-brancos entre os
pnslonerros.
TABELA 1: Presos, por sua condição Étnica-Social
Condição ..," "Condição Frequ""e'ncl"a Percentual
Et,n"lca-Soc"lal Frequencla Percentual "
Etnica-Social
Brancos 167 22,2 Tapuios 44 5,8
Mulatos 131 17,4 Pardos 41 5,4
índios 123 16,3 Mestiços 21 2,8
Mamelucos 94 12,5 Crioulos 03 0,4
Cafuzos 78 10,4 Outros 02 0,3
Negro/Preto 49 6,5 Total 753 100
Por sua vez, o fato de Moreira Neto ter chegado a um percentual tão
baixo de brancos (6,9% contra 20% e 22,2%) prende-se à própria natureza
do material por ele recolhido, diz respeito aos presos falecidos a bordo da
corveta Defensora. Aqui, a objeção vai no sentido de que, pelo menos por
causa de três fatores distintos, o número de brancos aparece minimizado.
O primeiro fator - que também parece ser o mais óbvio - diz respeito
ao fato de que as populações brancas do Grão-Pará possuíam as maiores
oportunidades, tanto econômicas quanto sociais, para firmarem-se enquanto
grupos dominantes, uma vez que não só ocupavam cargos e posições de
destaque, mas também isentavam-se da execução de ofícios mais penosos e
desgastantes. Tudo isso favorecia o desenvolvimento e a manutenção de um
padrão de vida melhor frente aos demais habitantes.
Em segundo lugar, as populações brancas pareciam responder melhor
frente às epidemias, sofrendo, em conseqüência disso, um número menor de
contágios, o que corrobora as observações de Spix e Martius que haviam
chegado a Belém pouco depois de um desses contágios:
Quando a epidemia estava no auge, morriam diariamente 36 a
48 pessoas, e mais vitimados eram os índios e mestiços de
índios; menos perigosa foi a epidemia para os negros e ainda
menos para os europeus, isto provavelmente porque entre os
brasileiros [leia-se índios] o pavor agrava a doença. É fato
conhecido ser a raça americana mais sujeita a contrair todas as
doenças agudas da pele: sarampo, escarlatina, etc., e
particularmente a varíola, que conhecem trazida da Europa e
que, desde sempre tem feito terrível devastação entre eles
(SPIX; MARTIUS, 1981, p. 39).
9 o uso de "ferros" ou grilhões era prática corrente na carceragem do Defensora, embora seu uso fosse recomendado
com maior freqüência para os presos escravos.
10 Nesse sentido, o registro seguinte é ilustrativo, exatamente por conter deferências jamais concedidas aos prisionei-
ros de uma condição social inferior: "Manoel da Conceição Vilhena - Natural da Vigia, solteiro, negociante, idade
31 anos, branco. NOTA:Veio para bordo em 31 de agosto de 1837, remetido pelo Juiz de Paz de Monsarás por se
achar processado naquele Juizo. Praticou roubos escandalosos na Ilha de Marajó, fez fogo às Forças Legais e
assassinou um homem nesta capital como consta do seu processo. Por portaria de S. Ex' de 14 de outubro de 1838
foi-lhe concedido sessenta dias de licença para ir a Marajó para tratar de sua defesa, indo à Secretaria do Governo
para receber a ordem que se deve ali apresentar ao respectivo Comandante Militar e no mesmo dia foi para a terra
apresentar-se na Secretaria do Governo a fim de receber as ordens. Por portaria de S. Ex' o Sr. Presidente de 24 de
dezembro de 1838 foi-lhe mais concedido pelo mesmo Exmo. Sr. 30 dias de licença, visto não ter sido bastante a
primeira que lhe concedeu para tratar de sua defesa". Códice f!3 f.
É possível sustentar que, embora a participação dos contingentes
brancos na revolta tenha sido importante, ela respondia, grosso modo, a
interesses diferenciados daqueles externados pelos demais rebeldes" de cor".
Uma distinção desse nível não deve ser encarada, obviamente, com muita
rigidez, já que ela admite exceções freqüentes. A vivência de indivíduos brancos
e não-brancos não se dava sem a presença de contradições internas e
interpenetrações de outra ordem que não a pautada no viés da etnia.
De qualquer forma, a distinção entre Cabanos brancos e Cabanos
"não-brancos" (ou "de cor") é bastante perceptível nos discursos do poder
que perpassam os registros carcerários. Nesse sentido, é já uma primeira
distinção possível entre os rebeldes, a ser analisada posteriormente, quando se
discutir as penalidades atribuídas a cada um dos grupos étnicos que estiveram
na revolta.
Com relação à participação numérica dos tapuios, as diferenças
apresentadas entre as três fontes parecem ser igualmente relevantes, sendo
que enquanto Moreira Neto registra a presença de 39,7% dos presos como
tendo aquela condição étnica, no Códice 1131 este percentual cai para apenas
5,8%. Hurley não apresenta um cômputo isolado para esse segmento, já
que em sua estatística, tapuios e índios são vistos em conjunto, perfazendo
35,8% do total de presos. A princípio pensou-se que a discrepância numérica
residia exatamente neste ponto, ou seja, na pouca clareza com que as
autoridades procediam o reconhecimento entre indivíduos que, tendo a
mesma origem étnica, diferenciavam-se a partir de indicadores outros que
não o do próprio tipo físico. Muito embora tais dificuldades de identificação
fossem efetivas e aparecessem com clareza nos códices que foram
compulsados - uma vez que em muitos casos indivíduos citados como
índios em uma relação aparecem como tapuios em outra e vice-versa -, tão
logo procedeu-se um cômputo onde essas variáveis (tapuios/índios)
apareciam conjugadas - como na descrição de Hurley -, as diferenças se
mantiveram importantes, embora tenham caído de 33.9% para 23.2%.
Se forem levados em consideração outros grupamentos étnicos-
sociais, como mamelucos, cafuzos, mulatos, pardos e negros, diferenças
menores entre as três relações de presos podem ser percebidas. Com relação
aos presos negros ou miscigenados a partir desse segmento (mulatos, pardos,
cafuzos), cabe salientar que seu elevado percentual- aproximadamente 40% do
total- parece confrontar de forma muito significativa as referências de época,
que apontam para uma insignificância numérica deles no seio da população
amazônica. Spix e Martius, por exemplo, reconheciam em 1820 que "são menos
numerosos os mulatos e negros, porque até meados do século precedente se
empregava exclusivamente índios para o serviço da lavoura e das obras públicas"
(1981,p. 39).
Essa distância entre uma participação percentualmente maior na rebelião
que no conjunto da sociedade, fortalece a hipótese de que nem todos os segmentos
étnicos-sociais guardavam as mesmas expectativas, sendo de se esperar que para
os negros - cuja condição social inferiorizada tendia à imutabilidade em função
do estatuto da escravidão - a revolta geral da Província, muito mais que qualquer
outro movimento isolado de simples resistência, ensejava expectativas concretas
de libertação, configurando-se numa oportunidade que não deveria ser perdida
ou desprezada.
A freqüência com que a população negra e escrava aparece na relação de
prisioneirosll, bem como a peculiaridade dos delitos em que seviram envolvidos,
deixa claro que eles efetivamente acalentaram a possibilidade de emancipar-se do
jugo escravista, lançando-se ao turbilhão da revolta com a expectativa de fwla
reverter a seu favor.
As relações de presos do Defensora fornecem também indicadores mais
precisos quanto à ocupação dos participantes da Cabanagem, permitindo matizar
asnoções uniformizadoras que apontavam quase sempre para os rebelados como
hordas compactas de miseráveis, que nada tinham a perder. Os Cabanos do
Defensora eram, na maioria das vezes, pessoas conhecidas das autoridades que as
prenderam e também das populações das localidades em que agiram. Por pessoas
"conhecidas", quer-se dizer que tinham nomes, residências e ocupações. Assim,
quanto mais a névoa se dissipa pelo avanço da investigação, a antiga "massa
disforme" ganha contornos mais nítidos.
11 Muito embora para a maioria dos presos a fonte não indique a condição juridica, 48 prisioneiros são explicitamente
citados como escravos e apenas três aparecem como libertos. Na relação, o contingente de escravos é composto da
seguinte forma: 22 pretos, 8 mulatos, 6 cafuzos, 5 pardos, 3 negros e 1 "cabra". Outros três registros não indicam
a cor, muito embora em um deles apareça o termo "africano". O termo "cabra" foi correntemente usado entre os
séculos XVIII e XIX para designar os mestiços de índios e negros, sendo, portanto, sinônimo de cafuzo.
É preciso reconhecer que uma condição social marginalizada influiu
massivamente e foi responsável pela presença esmagadora no interior da rebelião
de elementos pobres ou mesmo despossuídos de quaisquer bens materiais,vivendo
apenas da caridade pública. No entanto, não deixa de ser relevante o fato das
relações de presos apresentarem em seus quadros pessoas que estavam longe de
ser pobres e inexpressivas. "Negociantes", "proprietários", "fazendeiros" e
autoridades civis e militares (quase todos brancos), participaram como rebeldes
na Cabanagem, inclusive ocupando cargos importantes no governo rebelde que
se estabeleceu em Belém, entre janeiro de 1835 e maio de 1836.
Ocupações nO % Ocupações nO %
Lavradores 365 50,7 Pescadores 16 2,2
Soldados e 78 10,8 Negociantes 15 2,1
Marinheiros
"Sem Ofícios" 52 7,2 Ferreiros 10 1,4
Carpinteiros 47 6,5 Ourives 8 1,1
Alfaiates 40 5,5 Marceneiros 8 1,1
Sapateiros 16 2,2 Outros 65 9,1
12 Esse parece ter sido o caso de pelo menos um dos prisioneiros arrolados no códice 1131, o cafuz Mauricio, da
região do Mosqueiro, uma vez que este, tendo se apresentado como lavrador, posteriormente confessou a bordo ser
escravo de Romão Moreira, morador de Cametá. Códice 113 I.
13 Soares d'Andréa havia definido a função dos Corpos de Trabalhadores de forma cristalina: "O fim da organização
destes Corpos é sobretudo evitar que haja vagabundos e homens ociosos, e poder dar-Ihes gente ao serviço
público". Neste "Regulamento", dois parágrafos se destacam: o quinto, define que "todos os homens de cor que
aparecerem de novo em algum distrito, sem guia ou motivo conhecido, serão logo presos e enviados ao governo,
para Ihes dar destino, quando a sua culpa não seja outra"; e o sexto que diz que "todo o individuo domiciliado
do mesmo distrito que não se empregar constantemente em algum trabalho útil, será mandado para as Fábricas do
Governo ou alugado a qualquer particular que o precise; e se apesar desta medida, se esquivar ainda ao trabalho,
será remetido ao Arsenal de Marinha, para ali trabalhar pela simples ração, e pelo tempo que se julgar preciso,
segundo a sua conduta". Regulamento dos Corpos de Trabalhadores, p. 27.
vivência mais propriamente urbana que rural 14 , como é o caso dos alfaiates,
sapateiros, carpinteiros, ferreiros, marceneiros e ourives, que juntos totalizam
129 presos, respondendo por 18% do total. Controlar um ofício ou profissão
poderia, em alguns casos, possibilitar uma condição de existência melhor frente
a um percentual relativamente grande de citadinos que, por não possuírem
tais "habilidades", freqüentemente acabavam tendo que sujeitar-se a trabalhos
mais embrutecedores e/ou menos remunerados. Em Belém, por exemplo, a
quase totalidade do trabalho doméstico era realizado pelos índios, pagos a
diária de "três vinténs, além de casa e comida". Spix e Martius observaram
também que "pescadores e carregadores eram dessa raça de homens", é que
os índios, "sob a direção de brancos e mulatos", eram além do mais, os
encarregados das "tarefas do estaleiro, do arsenal e de outras obras públicas"
(SPIX;MARTIUS,1981,p.28).
Dificilmente, no entanto, se poderia crer que o domínio de um
determinado "ofício" fosse condição suficiente para engendrar uma
diferenciação social de vulto entre os dois tipos de trabalhadores urbanos
(qualificados e não qualificados). Na verdade, mesmo para os que possuíam
um ofício, a existência era assegurada por meio de uma labuta diária intensa e
pouco compensadora. O simples fato de nove dos 129 presos listados nessas
ocupações possuírem a condição jurídica de escravos, dá bem a medida dessas
dificuldades.
A existência de "escravos de ganho" em Belém, como estes registros
15,
sugerem reforça a idéia de que o alto valor comparativo de um escravo
negro frente ao preço irrisório da mão-de-obra indígena regional, fazia com
que muitos senhores reservassem seus escravos negros, que representavam
um investimento de capital importante, para a execução de tarefas menos
desgastantes, com vistas a prolongar-lhes a vida útil. Talvez os mesmos motivos
expliquem tanto a existência de um número extremamente baixo de libertos
14 Na verdade a sociedade paraense no contexto da primeira metade do século XIX mesclava ainda muito fortemente
aspectos do mundo rural e do urbano, sendo conveniente lembrar que mesmo em Belém, única cidade da Província
e sua capital, a vida urbana se consolidava em franca articulação com o mundo rural de fazendas, engenhos e
chácaras que existiam em seu entorno.
1\ Dos 9 escravos que aparecem como possuindo um ofício, 4 eram carpinteiros, 2 eram alfaiates, 2 ferreiros e 1 era
16 Dentre os registros do Códice t 13 t, constavam apenas três libertos, sendo que dois deles possuíam a ocupação
de Taberneiros. Essa última característica parece confirmar a hipótese de que "cuidar de tavernas e pequenos
armazéns era atividade preferida pela população forra e mulata". (DIAS, 1998, p, 67).
17 Embora a fonte não revele o destino da maioria dos escravos presos, pelo menos 15 deles foram entregues aos seus
donos. Nesses casos, o despacho do Presidente indica a necessidade do pagamento pelo senhor da quantia diáría
despendida para a alimentação do preso, avaliada geralmente em 240 réis.
18 "Quanto à idade tem-se 14 menores de 20 anos: 71, maiores de 20 e menores de 30: 30, maiores de 30 e menores
de 40; 18, maiores de 40 e menores de 50; 8, maiores de 50 e menores de 60 e 4 maiores de 60 anos", HURLEY,
1936, p. 182-3.
aos presos menores de 20 anos - elas apresentam diferenças maiores que
. .
cmco pontos percentualS.
Se os números apontados podem conter equívocos, é importante
registrar que mesmo uma identificação precisa da idade de cada um dos
envolvidos na rebelião dificilmente possibilitaria grandes extrapolaçães analíticas.
A própria ausência de estatísticas acerca da composição etária das sociedades
amazônicas, ou mesmo brasileira, para períodos anteriores ao século atual
não permitem que se tomem os resultados da amostragem recolhida numa
relação comparativa com o contexto social mais amplo.
Era de se esperar que em um movimento social marcado por um
alto nível de radicalização e por uma configuração de verdadeira guerra de
guerrilha - implicando esforço físico e ampla mobilidade -, tanto as pessoas
mais jovens, quanto as mais idosas, mantivessem um certo grau de afastamento
da ação direta, o que, de forma alguma, significa dizer que não apoiassem o
movimento ou mesmo que não tivessem efetivamente tomado partido em
suas facetas mais radicais. A esse respeito é bastante ilustrativa a observação
anotada por um dos comandantes militares no registro de culpas do preso
Joaquim Esmeraldo da Conceição. Nele, o capitão Francisco de Paula Ozório,
queixando-se ao Presidente da Província que o pai do referido prisioneiro
não parava de elogiar os Cabanos e externava sempre veementes desejos de
vingança contra as forças legais, argumentava que já o teria destruído "se não
fosse sua decrépita idade e moléstias de que é achacado"19.
Deste ponto de vista, parece coerente que metade dos presos estivesse
englobada na faixa etária entre 21 a 30 anos, momento que para os padrões
da época, era significativo de uma vida adulta plenamente conformada. Isso
significa dizer que era bastante comum que os homens antes mesmo de
completarem a idade de vinte anos, já trabalhassem por algum ofício - em
geral aprendido no próprio seio familiar - e constituíssem família.
A trajetória pessoal de alguns dos líderes da rebelião, de quem se
possui dados biográficos mais precisos e confiáveis, reforçam essa precocidade.
Eduardo Angelim, um dos expoentes máximos da Cabanagem, com dezessete
anos de idade já trabalhava como guarda-livros no comércio de Belém,
momento no qual começou a participar ativamente das reuniões políticas dos
"filantrópicos" paraenses. Três anos mais tarde, no auge da agitação
revolucionária (1835), casa-se e, um ano mais tarde, assumia a presidência da
Província, tendo apenas vinte e um anos. De igual forma, os irmãos Vinagre
(Francisco e Antônio), chegam ao poder provincial em 1835 com pouca
idade (23 e 21 anos, respectivamente). Ambos já haviam se tornado chefes de
família e possuíam profissão, sendo que ainda jovens começaram a trabalhar
como lavradores e mais tarde como foreiros de Félix Malcher, outro presidente
Cabano (ROCQUE, 1984,p. 74-80).
Já a trajetória pessoal de Luiza Clara, esposa de Angelim, expressa,
por outro lado, a precocidade da vida adulta feminina. De descendência
portuguesa, casara-se pela primeira vez aos quinze anos de idade e quando
ficou "viúva aos dezessete anos, fIZeram-na ver que não era distinto permanecer
nesse estado sendo jovem e bela" (RODRIGUES, 1936, p. 86). Luiza Clara
casou-se novamente, para logo em seguida enfrentar nova viuvez. Seu
casamento com Angelim, sendo, portanto, o terceiro, ocorreu quando ela mal
tinha completado vinte anos. Como todas as mulheres de posse de sua época,
não exercia profissão ou ofício; "dócil e submissa", assumiu com "resignação
e renúncia" o papel doméstico que lhe cabia (p. 86).
Mesmo que exemplos nesse sentido sejam recorrentes, não deixa de
ser chocante perceber que a repressão não isentava pessoas como João Batista
ou João Francisco, pequenos rebeldes (no dizer das autoridades policiais) de
dez e doze anos de idade, que foram encarcerados no porão da Defensora2o•
Tão impressionantes quanto a prisão destes dois jovens, era a de pessoas com
idade bastante avançada. Há registros de presos com até setenta anos, como
o de "Maria", que não obstante sua dupla condição (idosa e mulher), foi
igualmente aprisionada no porão do Defensora, junto com centenas de
21•
presos
20 o fato de ambos serem negros e escravos explica, em parte. essa atitude repressiva. O fato de terem sido soltos
logo a seguir e remetidos para outra Província, também não diminui a truculência e irracionalidade desse ato.
{ódice 1131.
21 O Defensora não abrigava mulheres e, talvez por isso, Maria tenha sido solta (ou tranferida de presídío) pouco
BENJ AMIM, Walter. Magia e técnica} arte epolítica: ensaios sobre literatura, e
história da cultura. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. (Obras Escolhidas, v.1).
DIAS, Maria Odila Leite da Silva."Sociabilidades Sem História: votantes pobres
no Império, 1824-1881". In: FREITAS,Marcos Cezar (Org.). Historiografta
brasileira emperspectiva. São Paulo: Contexto, 1998. p. 57-72.
HOBSBA WM, Eric J. "A Outra história -Algumas reflexões". In: KRAUTZ,
F rederick. (Org.). A Outra História: ideologia e protesto popular nos séculos
XVII a XIX. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p.18-33.
___ o The Crowd in the French Revolution. Oxford: Clarendon Press, 1959.