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o Livro dos Mortos:

a Cabanagem através das fontes carcerárias

A crítica historiográfica se torna efetivamente relevante quando,


tendo situado o historiador num dado horizonte, lhe permite transcender
os limites interpretativos estabelecidos, direcionando a investigação para
campos até então pouco explorados. No caso da Cabanagem, essa crítica
tem apontado para a necessidade de se estabelecer um rompimento com
as interpretações uniformizadoras, ao mesmo tempo em que enfatiza seu
caráter multifacetado, fruto da atuação de sujeitos sociais múltiplos,
envolvidos na revolta a partir de trajetórias diferenciadas. Por sua vez, já
que tais trajetórias tinham origens e agentes distintos, era de supor que
estes mostrassem no decorrer da luta uma gama de demandas e atitudes
não só diferenciadas, mas até mesmo antagônicas.
Embora seja possível perceber a existência de divergências e
oposições internas a partir da própria ambigüidade interpretativa presente
no discurso historiográfico, resta a tarefa de submeter essa hipótese à
análise de dados mais confiáveis acerca da atuação dos agentes sociais
envolvidos. Mas é exatamente aí que surge outro problema: como perceber
atuações diferenciadas num movimento social de massa, em que a ação
de indivíduos ou grupos se perde confusamente na nebulosa da multidão?
No dizer de um dos pioneiros do tema, a dificuldade maior está no
fato da multidão ser sempre apresentada como uma "abstração
desmaterializada e não como um conjunto de homens e mulheres de carne e
osso" (RUDÉ, 1991, p. 7). Seguindo seus passos, caberia previamente aos
historiadores a tarefa de "decompor" essa multidão disforme, tentando
acercar-se o máximo possível de seus "rostos", o que implicaria levar a cabo
uma investigação no sentido de se definir com maior clareza pontos
fundamentais, como as origens sociais, idades e ocupações dos envolvidos. O
esforço de "classificação", processo pelo qual o historiador conseguiria
identificar e/ou abstrair os sentidos gerais de um dado movimento seria um
passo posterior, formulado a partir de novos questionamentos: quais seus
alvos e suas vítimas?; "quais suas finalidades, motivos e idéias subjacentes"?
(RUDÉ, 1991, p. 9-10).
Romper com categorias estereotipadas e pouco esclarecedoras
("turba", "ralé"), libertando o movimento das explicações psicologizantes,
exigiria dos estudiosos um empenho no sentido de fazer emergir suportes
documentais alternativos (às fontes mais convencionais) que propiciassem
questionamentos desse tipo. Infelizmente, até hoje pouco se fez de concreto
neste sentido e a atenção devida à pesquisa básica continuou sendo uma exceção,
já que, como foi dito, a grande maioria dos historiadores da Cabanagem se
contentou em calçar seus argumentos seja à sombra da produção
historiográfica preexistente, seja a partir de um conjunto de fontes bastante
convencionais, divulgadas pelo Barão de Guajará (RAlOL, 1970).
Sendo o conjunto documental trazido por Raiol realmente rico em
informações, não há dúvidas de que deve continuar a merecer a atenção dos
pesquisadores, mas nem por isso justifica-se sua incorporação acrítica, como
até hoje se tem feito. O fato daqueles documentos terem sido selecionados,
reordenados e difundidos por uma pessoa que explicitamente externava suas
antipatias para com o movimento, guardando dele ressentimentos pessoais
marcantes, já seria argumento mais do que suficiente para que os historiadores
procedessem pesquisas próprias, em busca de novos materiais, possibilitando
novas questões.
Sempre que utilizado, esse recurso metodológico (recorrer às fontes
de Raiol em detrimento da pesquisa básica) mostrou-se problemático, uma
vez que, freqüentemente, as análises do movimento acabavam enredadas na
teia argumentativa daquele autor. Sem se dar conta, vários historiadores
acabaram reforçando argumentos depreciativos, enquanto os que buscavam
novas angulações, viam seus esforços limitados pelo caráter unÍvoco da
documentação apresentada.
Embora uma das intenções deste artigo seja exatamente a de trazer à
tona elementos que atestem a diversidade até então recusada do movimento
cabano, a tarefa de reconstrução de seu campo de lutas é extremamente
problemática, principalmente porque envolve, no plano documental, além
dos problemas apontados, muitas defasagens e omissões. Essas dificuldades
não são uma exclusividade dos historiadores da Cabanagem. Em todos os
movimentos sociais nos quais os principais agentes da revolta constituíam-se
maciçamente de segmentos marginalizados, quase sempre a documentação
omite informações diretas acerca da vivência desses grupos e, nas raras
oportunidades em que o faz, é através de filtros pelos quais as experiências
populares acabam enquadradas dentro de um sistema de normas e condutas
dominantes apresentadas como modelares.
Este parece ser também o caso da Cabanagem, já que a grande maioria
da documentação preservada e indexada no interior das instituições arquivíscicas
- guardando ainda forte influência das visões positivistas - diz respeito apenas
às falas oficiais, onde a figura do "povo" freqüentemente não aparece. Alguns
poderão até objetar que as dificuldades não seriam tão grandes, uma vez que
os Cabanos também produziram seus registros, seja na forma de exposições,
seja na forma de proclamações ou bandos. Embora isto seja um fato, e em
que pese a importância efetiva desses registros (de resto ainda pouco
analisados), a situação mantém-se problemática, já que a quase totalidade da
documentação, diz respeito à correspondência oficial dos três governantes
rebeldes. Não sendo pessoas que possam ser propriamente identificadas como
oriundas das camadas populares, dificilmente suas falas espelham a realidade
daqueles setores e muito menos servem com esclarecedoras das ações e
interesses do conjunto dos rebelados.
Seja como for, nos estudos acerca da Cabanagem foram exatamente
os historiadores que aceitaram o desafio de transpor a tão propalada barreira
documental, que conseguiram lograr êxito, estabelecendo novos rumos
interpretativos. No que diz respeito à composição das massas rebeladas, só
recentemente surgiram trabalhos que apontavam com seriedade para o fosso
das distensões internas, sendo importante lembrar as obras de Vicente Salles
(1988)e mais recentemente de CarlosAraújo MoreiraNeto (1988).
Nos dois casos, os autores buscaram recuperar a participação de
determinados segmentos, alvos prioritários de suas pesquisas, acabando por
iluminar dimensões da revolta antes nunca exploradas. Salles, folclorista e
sociólogo, chamou a atenção para a participação dos contingentes negros
(especialmente os escravos) na Cabanagem, buscando todavia, relativizar as
insistentes abordagens que até então procuravam minimizar o papel daquele
segmento enquanto força socialimportante no processo formativo da sociedade
amazônica. Moreira Neto, recuperou o período compreendido pela primeira
metade do século XIX como sendo o momento em que, na região, consolidou-
se um tipo social novo, o tapuio, que emergia como elemento importante não só
por causa de sua preponderância numérica - dominando percentualmente o
cenário amazônico -, mas também como fonte preciosa de aportes culturais,
em grande parte defmidores de uma identidade amazônica em formação.
Neste último caso, o estudo da Cabanagem ganhou maior densidade,
graças a um trabalho de investigação meticuloso, que espelhava o rigor e a
coerência acadêmica assumida por seu autor. Para este, os tapuios formaram o
maior e o mais radical contingente de insurretos participantes da revolta, gerando
uma tal identificação entre sua condição social e os atos de insubordinação, que
a própria documentação oficialacabou por tornar 'btermo tapuio um sinônimo
freqüente para cabano" (MOREIRA NETO, 1988, p. 66). A perspectiva da
gama variada de tensões internas também está presente em seu trabalho!, embora
não a ponto de ver aquelas tensões como o resultado de uma participação
autônoma dos grupos étnicossociais envolvidos na revolta.

I Lamentando que a força numérica dos tapuios não tivesse se revertido em uma participação qualitativamente mais
importante, como a ocupação de cargos de liderança no interior do aparelho burocrático da Província rebelada,
Moreira Neto ressalvava: "mas isso não quer dizer que a Cabanagem não tenha tido dissensões internas, sobre a
pressão dos grupos ou facções social e economicamente mais conscientes ou mais preocupados com as questões
que as afetavam economicamente". Ibidem, p. 67. Os grifos são nossos.
De qualquer forma, e em que pese suas contribuições inovadoras,
Salles e Moreira Neto acabaram esbarrando na compreensão da Cabanagem
como exclusivamente uma luta institucional pelo poder na Província. Como
estÍmulos de ordem político-institucional não estavam presentes ou pelo menos
não apareciam no corpo documental pesquisado como tendo motivado
seriamente os segmentos populares, tais autores recorreram à idéia mais
vulgarmente difundida de uma participação destes setores como simples
"massa" de manobra nas mãos das elites.
Por esse entendimento, os Cabanos que apresentavam uma posição
de marginalização social apareciam como sujeitos sociais envolvidos no
turbilhão da luta política por questões e interesses que lhes eram exteriores.
Por visualizarem a participação de seus agentes sociais específicos (negros e ~
tapuios) a partir desse ângulo restrito, acabaram esterilizando os rumos da
investigação no imenso campo fértil que eles mesmos tinham propiciado.
Contrariando seus próprios argumentos, concluíram sempre de forma
conformista, como se ao pesquisador nada mais restasse a fazer do que exaltar
a importância numérica das massas e lamentar seu previsível insucesso:

A importância numérica dos tapuios na Cabanagem não deve


fazer supor um peso correspondente nos foros de decisão do
movimento, posição que eles evidentemente não parecem ter
atingido. Constituíram a massa mais numerosa da rebelião e,
provavelmente a mais radical. Mas, pela própria peculiaridade do
espaço e das funções econômicas e sociais que ocupavam em
relação às demais populações amazônicas, não parecem ter tido
condições de discutir e formular seu próprio programa político,
de modo explícito e coerente, e muito menos de fazê-lo discutir e
aceitar pelo movimento (MOREIRANETO, 1988,p. 67).

Talvez seja mais importante registrar que em ambos os trabalhos, foi


o recurso direto à pesquisa documental que possibilitou uma revisitação do
tema. Este aspecto foi mais evidenciado no trabalho de Moreira Neto,
responsável por fazer vir à tona documentos inéditos - compostos
principalmente de registros carcerários2 - que renovaram e ampliaram as
possibilidades de pesquisa frente a um tema que já parecia saturado. Seguindo
seus passos, nossa intenção de aprofundar a pesquisa a partir de um veio
interpretativo diferenciado acabou sendo favorecida graças ao trabalho de
investigação a partir dos arquivos mais regionalizados e também menos
explorados. Como fruto desse trabalho, foram recuperados os "Assentamentos
dos Rebeldes Presos a Bordo da Corveta Defensora Após a Revolução de
1835 ", compondo cinco códices inéditos do Arquivo Público do Estado do
Pará - APEP. Eles lançam luzes importantes para o estudo da Cabanagem,
sobretudo por conterem preciosas informações acerca da composição e
atuação dos diversos grupos de rebeldes em luta.
O recurso às fontes carcerárias, utilizadas com sucesso por diversos
historiadores em trabalhos que hoje são considerados clássicosna historiografia
dos movimentos sociais (LEFEBVRE, 1979; RUDÉ, 1959), é menos
recorrente entre os pesquisadores brasileiros. O próprio George Rudé, um
dos pioneiros no estudo da multidão insurgente, destacou com precisão a
importância do recurso a esse tipo de fontes para os historiadores dos
movimentos sociais de massa, ao mesmo tempo em que lembrava, por
contraste, o caráter limitado das fontes ditas "tradicionais":

N a verdade, tais fontes ["tradicionais"] raramente nos dirão


muito sobre a identidade dos manifestantes ou de suas vítimas,
e notavelmente pouco (em geral) sobre a configuração mais
detalhada dos acontecimentos ou sobre os motivos ou
comportamento dos que dele participaram mais. Esses
participantes, infelizmente, quase nunca deixam registros
próprios na forma de memórias, folhetos ou cartas; e para
identificá-los - e a suas vítimas - e investigar seus motivos e

2 Trata-se de manuscrito do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, intitulado "Relação de presos rebeldes, falecidos a
bordo da Corveta Defensora desde 4 de agosto de 1837 até 31 de dezembro de 1838'. A "relação" traz além da
própria nominação de 229 presos, uma descrição das suas "cores" (etnia), estado civil, além das datas e motivos
porque foram presos. Ibidem, p. 281-315.
comportamento, temos de recorrer a outros materiais. Entre
eles podem estar os arquivos da polícia, das prisões, dos hospitais
e os arquivos judiciais[ ... ] (RUDÉ, 1991, p. 10-11).

Na medida em que os registros carcerários apresentam - além da


gama de dados de identificação - uma descrição da "culpa" formada dos
prisioneiros, eles remetem o historiador diretamente para a ação dos implicados
no movimento, deixando entrever seus alvos, objetivos e intenções. Como
salientou Hobsbawm, as fontes mais interessantes para o historiador da "história
vista de baixo" são precisamente aquelas "que simplesmente registram ações
que têm que implicar certas opiniões". E isso porque, ainda segundo seus
argumentos, como no passado as populações eram majoritariamente
analfabetas, "de forma mais comum, inferimos seus pensamentos de seus
atos" (HOBSBA WM, 1990, p. 24).
No caso específico da Cabanagem, as primeiras referência à relações
de presos devem-se a Jorge Hurley, que buscou exemplificar a presença de
escravos no interior do movimento, apoiando-se em informações recolhidas
em pelo menos quatro destas listas, uma delas de prisioneiros Cabanas do
Defensora (1936, p. 182-3,209-10). Infelizmente tais listagens não foram
reproduzidas, embora o autor estivesse fortemente empenhado em transcrever
um número bastante relevante de fontes da Cabanagem.
Daquele momento até a publicação por Moreira Neto do códice do
Arquivo Nacional contendo uma relação de prisioneiros mortos no Defensora,
cinqüenta anos se passaram sem que os estudiosos do assunto fizessem uma
só referência a esse tipo de fonte. É difícil saber ao certo as razões para este
silêncio prolongado, mas é legítimo supor que ele se deva a dois fatores
distintos: ou porque os pesquisadores tenham se contentado com a ampla
documentação oficial já impressa e publicada ou por falta de sensibilidade
para avaliar as potencialidades destas fontes. O fato é que em todos estes anos
os códices contendo os registros de prisioneiros permaneceram "esquecidos"
no acervo do Arquivo Público do Pará. Talvez seja possível perceber outro
motivo desse" esquecimento", levando-se em conta que
Na maior parte dos casos, o historiador da história feita pelo
povo encontra apenas o que procura, não o que está a sua
espera. A maioria das fontes desse tipo de história foi
reconhecida como tal apenas porque alguém fez uma pergunta
e, em seguida, garimpou desesperadamente à procura de uma
maneira - qualquer maneira - de respondê-ia. Não podemos
ser positivistas, acreditando que asperguntas e respostas surgem
naturalmente do estudo do material. De modo geral, não existe
o material até que nossas perguntas o revelem (HüBSBA WM,
1990, p. 22).

As relações de Cabanas presos na corveta Defensora responderam a


muitas das questões que ao longo desta pesquisa foram levantadas. Uma simples
explanação do conteúdo mais geral destas fontes deixa claro a relevância de
seu teor informativo, tratando-se de relações de prisioneiros numericamente
maiores que o já citado códice do Arquivo Nacional, além de serem mais
ricas em detalhes, trazendo variáveis importantes que aquele códice não
contemplava. De resto, há uma diferença de fundo entre os dois conjuntos
documentais, pois enquanto o códice do ANRJ registra apenas os presos
mortos no Drfensora, os de Belém, referem-se a totalidade dos presos embarcados
nacorveta.
Do ponto de vista puramente quantitativo os cinco códices do APEP
pedazem um total de 2.559 registros de prisioneiros, muito embora haja um
elevado número deles que se repetem em dois ou mesmo nos cinco códices.
Mesmo neste caso, nem sempre há mera duplicação, mas antes
complementaridade, uma vez que o registro de um determinado preso pode
aparecer em outro códice acrescido de novas informações, o que se tornou
possível pelo fato das diferentes listagens terem sido produzidas em datas
diferentes. Dos códices do APEP, dois trazem uma grande quantidade de
registros: o de nO 973 apresenta nada menos que 880 e o nO 1131, pouco
menor, 864. Outros dois códices, os de números 974 e 1132, são pequenos,
com 144 e 147 presos anotados, respectivamente. Por fim, o códice nO 1130
é de dimensão intermediária, contendo informações acerca de 524 prisioneiros.
Entre eles existem também diferenças qualitativas, sendo que nem
sempre os maiores são os mais relevantes. O códice 973, por exemplo, embora
seja o maior em número de registros, traz as informações relativas as variáveis
de identificação dos prisioneiros ("cor", estado civil, naturalidade, ocupação
e idade) bastante comprometidas por um preenchimento irregular e pouco
cuidadoso, fazendo com que mais de 50% dos registros ali contidos não
contemplem as informações previstas no modelo utilizado. O códice 974
apresenta as mesmas omissões, posto que só 29% dos seus registros designam,
por exemplo, a variável étnica ("cor"). Os outros três códices possuem pequena
margem de registros com essas deficiências, prestando-se melhor para uma
avaliação quantitativa.
Seria vantajoso, se fosse possível chegar, após um meticuloso
cruzamento de todos os registros, a um número mais elevado de Cabanos,
passíveis de ser computados pelas diversas variáveis oferecidas na fonte. No
entanto, alguns obstáculos importantes impedem a ampliação da base de cálculo
pela simples soma dos nomes não coincidentes nos cinco códices. O primeiro
desses obstáculos diz respeito ao estado precário desses materiais, que tanto
pela oxidação da tinta, quanto pela ação nociva de fungos e traças, apresentam
lacunas sérias, por vezes impedindo seja a leitura de partes, seja de registros
mterros.
De igual modo, nem sempre essas listagens foram preenchidas com
o rigor necessário, causando bastante confusão e até mesmo uma certa dose
de frustração para quem se dedica ao cruzamento das informações ali contidas.
A primeira confusão deve-se ao fato de que freqüentemente um mesmo
prisioneiro ter sido registrado em mais de um códice com nome diferente,
deixando o pesquisador numa posição de insegurança, porque mesmo que suas
suspeitas pareçam coerentes, elejamais saberá se realmente trata-se de um mesmo
registro, equivocadamente grafado com outro nome, ou se, referindo-se a presos
diferentes, os registros mostram-se apenas coincidentemente idênticos.
A esse respeito vem corroborar a informação prestada ao Ministro da
Justiça, pelo próprio Bemardo Souza Franco, então Presidente da Província do
Pará, lamentando não poder "aliviar a sorte dos presos" da corveta Defensora,
por reconhecer que havia uma
tal confusão de nomes, já porque são pela maior parte muito
desconhecidos, designados por nomes vulgares entre eles, já
porque costumam ocultar seus nomes e os inverter, e trocam
todas asvezes que lhe são perguntados; assim é preciso proceder
com muita cautela para não soltar, em lugar de um inocente, ou
um pouco criminoso, um assassinoreconhecid03•

Limitados por tais fatores, a decisão metodológica adotada buscou


evitar o risco de, involuntariamente, acabar fo~ando uma base de cálculo viciada
e, no extremo, falsa. Dessa forma, optou-se por trabalhar num plano onde
fosse possível obter uma margem maior de segurança, fazendo assim derivar
os aportes quantitativos a partir de um único códice que permitisse maior
confiabilidade. Assim foi que a escolha recaiu sobre o códice nO 1131, já que ele,
além de possuir um amplo número de registros, apresentava-se em melhor
estado de conservação (econseqüente de melhor legibilidade), além de possuir
um número igualmente alto de registros quantificáveis4•
Envolver-se com leitura dos documentos deixados pela repressão,
em especial com as fontes carcerárias, é como enveredar por um caminho
sinuoso, que vai se tornando cada vez mais confuso e obscuro. A partir dos
registros, vem à tona um mundo de contradições cruentas que nada tem de
semelhante com as idílicas representações do passado amazônico, tão
comumente veiculadas. Por muito tempo, os historiadores acercaram-se dos
registros das prisões para demonstrar - com os olhos tomados de empréstimo
aos agentes da repressão - a virulência, a desumanidade e a irracionalidade
contida na ação dos "infratores".
Essa postura tem mudado principalmente porque, num século de
tantas e tão radicais mudanças, história e sociedade também se transformaram
radicalmente, abrigando em seu interior novas formulações, categorias e

3Ofício do Presidente da Província do Pará, Bernardo Souza Franco, ao Ministro da Justiça do Império, de 14 de julho
de 1839.
4 Dos 864 registros de prísioneíro, 49 são registros anotados em local indevido - em geral desrespeitando a

ordenação alfabética - e, portanto, trazem somente o nome do preso e a observação de sua verdadeira
localização (folha e livro). Em um número pequeno de registros, não consta a informação de determinada
variável. Assim sendo, o número total de registros aptos para o cômputo da diferenciação étnico-social, recua
para 753, enquanto o cálculo da "ocupação" dos presos teve por base 720 registros, números que, no
entanto, consideramos bastante expressivos.
conceitos. Desde meados do século, a "história problema", "labirÍntica", tem
aceitado o desafio da contramão, sendo que, na formulação de Walter Benjamin
de se "escovar a história a contrapelo", o que se enfatiza é a aceitação da
pluralidade de "possíveis" históricos (BENJAMIM, 1986, p. 222-32). Nesse
sentido, visualizar o mundo da repressão e da própria rebelião, buscando
perceber as tensões e as vozes que foram sufocadas pelo discurso do poder,
não deixa de ser uma aceitação do desafio de trabalhar na contramão.
Mas como acercar-se desse mundo subterrâneo, quando quase nada
se sabe acerca de seus personagens? Ao largo da "vida singular" de quatro ou
cinco líderes, o que se sabe sobre os demais partícipes? Quem eram, afmal, os
Cabanos comuns; o que faziam, como faziam, por que faziam? É lamentável
que respostas para questões tão importantes não estejam ainda disponíveis,
mas é possível ao menos tentar contribuir para que elas, em breve, sejam
contempladas.
Os registros de prisioneiros do Defensora, em especial os indicadores
quantificáveis que eles contemplam, possibilitam ampliar a base de identificação
dos Cabanos do Grão-Pará, aproximando e discutindo a possibilidade de se
recuperar perfis (múltiplos) dos revoltosos, que superassem as genéricas
identificações anteriores. No entanto, é forçoso reconhecer que tais registros
servem apenas como indicadores parciais, jamais podendo ser tomados como
reflexo fiel de uma dada realidade. Essa, por sua vez, permanecerá a mostrar-
se sempre mais complexa e dinâmica, mesmo que a cada novo instante o
historiador amplie suas fontes de informação e fortaleça seus aportes teóricos
e metodológicos.
Não sendo o viver social mera equação matemática, querer captá-lo
ou compreendê-lo através da frieza de números, gráficos e tabelas é intento
que, em geral, transcende a mera ingenuidade e abre espaço para o anacronismo.
Desta forma, a apresentação dos números gerais dos códices do APEP que
tratam dos prisioneiros Cabanos, foi feita sempre com esse cuidado de não
incorporá-los enquanto reflexo fiel, seja do contingente total de rebeldes
participantes do movimento, seja do próprio quadro sócioeconâmico do
Pará no início do século XIX.
Um dos riscos presentes no trabalho de historiadores que procuraram
derivar suas interpretações exclusivamente a partir de fontes quantificáveis é o
de se deixar levar pelo "mito da média", buscando detectar pelos números,
um padrão ordenado r (p. ex: "trabalhador médio", "aldeão médio",
"camponês médio") que muitas vezes serve mais para confundir do que para
esclarecer a questão que se busca explicitar (THOMPSON, 1987, p. 39-40).
Parece importante salientar que a recuperação dos registros carcerários, de
forma alguma deve pautar-se pela busca de um "Cabano médio" que, uma
vez identificado, possa fazer derivar novas interpretações.
Mesmo que esse interesse estivesse presente, os limites derivados da
própria natureza da documentação, de caráter fragmentário e parcial,
impediriam uma tal pretensão. Basta lembrar que mesmo tendo se constituÍdo
a corveta Difensora no mais importante "presídio" da época da rebelião, ela
serviu prioritariamente como local de destino para os Cabanos capturados
ao longo das vilas e povoados do Baixo Amazonas, e assim, inúmeros presos
acabaram ficando mesmo em prisões menores, dispersas pelos mais variados
espaços da Província. As cadeias públicas das principais vilas da Comarca do
Alto Amazonas, tanto quanto as de Belém, ficaram abarrotadas por anos a
fio.
De igual forma, é importante lembrar que à chegada das forças
repressivas, as distensões internas já haviam aprofundado o imenso fosso
entre os insurgentes e parte do conjunto de proprietários brancos nativos que
tinham aderido à revolta a partir de objetivos reformistas. Estes, evadiram-se
da Província, temendo que a atuação dos grupos de rebeldes populares - que
também atuavam na capital- se voltasse contra eles. Tanto é assim, que o
próprio Marechal Manoel Jorge Rodrigues, ainda a caminho para Belém,
registrou a presença de muitos deles nas principais cidades do nordeste do
país. Em ofício à Regência enviado de São Luiz, o Marechal reconhecia que
"o maior número dos imigrados que estão aqui, são vindos depois da morte
de Malcher, de quem eram partidistas e, apesar do seu estado, mostram uma
rivalidade que talvez o tempo não possa apagar"5.
Seja como for, os primeiros "números" a respeito dos presos Cabanos
foram os de Jorge Hurley, apresentados enquanto mera curiosidade estatística,

5 Ofício do Presidente da Província do Pará, Manoel Jorge Rodrigues, ao Ministro de Estado dos Negócios do Império,
de 10 de junho de 1835.
uma vez que o autor não fazia derivar deles nenhum comentário. Assim,
lançando mão de um ofício do General Soares d' Andréa que encaminhava
pela charrua "Carioca" 145presos ao Rio de Janeiro, pôde ele anotar o seguinte
cômputo:

Dos 145 presos 123 eram paraenses e 20 de outras províncias


e dois estrangeiros. Os Cabanas filhos de outras Províncias
estavam assim distribuídos: De São Paulo, 1; Bahia, 5;
Pernambuco, 3; Mato Grosso, 3; Ceará, 2; Minas, 2; Alagoas,
1. Os estrangeiros eram, portugueses, 1 e argentino, 1. Quanto
à raça: tapuios (índios) 52; pardos (mulatos), 38; brancos, 29;
mamelucos, 10; cafuzos (cabras), 8 e pretos 8 (HURLEY, 1936,
p. 182-3).

Embora sejam representativos, os números acima trazem o


inconveniente de referenciarem-se a um conjunto de prisioneiros previamente
selecionados, provavelmente por serem entendidos como menos perigosos
ou portadores de registros que apresentavam delitos mais brandos, o que -
dentro daquela lógica - justificava a aplicação de uma pena igualmente branda.
Assim, o destino dos prisioneiros embarcados para a Corte ou para outras
Províncias do Império era geralmente duplo. Enquanto uns eram deportados
com a incorporação forçada ao exército, tendo que permanecer enquadrados
como recrutas por um período próximo a quatro anos; outros, isentos de
culpa grave ou mesmo inocentados em processos judiciais, seguiam sem
nenhuma outra recomendação que a de não retomarem ao Pará. Nos dois
casos, no entanto, o retorno à Província não era algo difícil de ocorrer e, de
fato, inúmeros Cabanos deportados voltaram posteriormente ao Pará onde
puderam viver sem enfrentar maiores constrangimentos. O registro de Manoel
da Paixão, um dos Cabanos recolhidos ao porão do Defensora é ilustrativo
dessa situação:

ManoeI da Paixão 10 - Natural de Cuiabá, viúvo, lavrador,


idade 39 anos, mulato. NOTA: Veio para bordo em 24 de
julho de 1837. Que tendo sido remetido para a Corte do Rio
de Janeiro, veio no paquete nacional Brasília, no qual ouviram
dizer as testemunhas Antônio de Souza Gomes e Félix de Jesus
que ele foi solto na Corte, assim como outros muitos que para
ali o acompanharam, que só alguns tinham assentado praça e
que o Vinagre e Eduardo tinham ficado presos, porém que
cedo seriam soltos e voltariam, estavam passando otimamente,
que o Sul estava perdido e que quanta tropa lá fosse lá ficaria,
e tudo isso dito com muito prazer, e cuja denúncia fica
arquivada na Secretaria do Governo. Passou para o Arsenal
por portaria de S. Exa de 23 de outubro de 18386•

Na verdade, o argumento do prisioneiro estava correto, já que mesmo


os dois líderes maiores da revolta, Francisco Vinagre e Eduardo Angelim,
tendo cumprido pena de degredo em Fernando de N oronha, retomaram ao
Pará dez anos depois, onde mantiveram-se não só atuantes, mas também
respeitados.
Mais recentes e igualmente dignos de nota são os números levantados
por Moreira Neto, que, como foi dito, vieram corroborar sua tese de uma
preponderância tapuia no mundo amazônico da primeira metade do século
XIX. Neste caso, o autor explora as diferenças internas dos prisioneiros
unicamente a partir do critério étnico, que era o que sua fonte possibilitava.
Da sua lista de prisioneiros, sobressaíram os tapuios e demais "gentes de
cor", frente a um percentual tido como insignificante de brancos:

Do total de 229 Cabanas mortos no Defensora nesse período,


91 ou 39,7% são tapuios; 36 ou 15,7 mulatos; 21 ou 9,1%
mamelucos; 18 ou 7,8% cafuzos; 16 ou 6,9% são brancos; 14
ou 6,1% mestiços; 13 ou 5,6 são índios; 10 ou 4,3 são pretos;
9 ou 3,9% pardos e, finalmente, um não tem indicação de cor.
Como se vê, as populações de cor são a quase totalidade dos
Cabanas presos, à exceção dos 7% de brancos. Os tapuios
representam, como seria de esperar, a categoria mais numerosa
(MORElRA NETO, 1988, p. 67).

Antes de colocar à prova tais números, convém lembrar que estas


fontes são bastante ricas em apresentar as mais variadas matizes étnicas, o que
inequivocamente reflete a importância atribuída à diferenciação "racial" no
âmbito da sociedade amazônica no século XIX. A ênfase era dada, quase
exclusivamente, com base na coloração da pele. Embora alguns termos ali
empregados sejam ainda hoje de utilização corrente, em muitos casos, a minúeia
discriminatória era tão exacerbada que engendrou forte confusãd, capaz de
deixar qualquer forasteiro bastante perplexo. Um deles, tendo chegado ao
Pará em 1848, percebeu logo essa situação:

Os vários tipos de mestiços que agora constItuem


provavelmente a maior parte da população têm, cada um a
sua denominação própria. Mameluco é o mestiço de índio com
branco; mulato, o de branco com negro; cafuzo, o de índio
com negro; curiboca, o de cafuzo com índio, e xibaro, o de
cafuzo com negro. Esses tipos nunca são, entretanto, muito
bem definidos, havendo entre uns e outros todos os matizes
de cor possíveis e usando-se as denominações apenas para
classificá-Ias de um modo geral. O termo crioulo é aplicado
exclusivamente para o negro nascido no país. O índio civilizado
é chamado de tapuia ou caboclo (BATES, 1979, p. 22).

Feitas as ressalvas, parece possível confrontar os dados de Moreira


Neto com a base de dados que aqui se está proponda8, levando a efeito, neste
primeiro momento, a origem étnica. Assim procedendo, chegou-se a um
cômputo que, se por um lado corrobora os anteriores no que diz respeito à
massiva prevalência de indivíduos não-brancos entre os prisioneiros; por outro

7 o códice 974, por exemplo, apresenta entre as indicações de "cor", termos como "meio-branco", "semi-branco",
"atapuiado", "amulatado", dentre outros.
8 O Códice 1131.
lado, sugere a necessidade de relativizar as especificações contidas nos dois
primeiros arrolamentos.
Enquanto os números de Hurley e Moreira Neto atribuem ao
contingente de prisioneiros "de cor" um percentual alto, 80 e 93,1%,
respectivamente, o mesmo ocorre com os dados obtidos através do Códice
1131, que aponta para a existência de 77,8% de não-brancos entre os
pnslonerros.
TABELA 1: Presos, por sua condição Étnica-Social
Condição ..," "Condição Frequ""e'ncl"a Percentual
Et,n"lca-Soc"lal Frequencla Percentual "
Etnica-Social
Brancos 167 22,2 Tapuios 44 5,8
Mulatos 131 17,4 Pardos 41 5,4
índios 123 16,3 Mestiços 21 2,8
Mamelucos 94 12,5 Crioulos 03 0,4
Cafuzos 78 10,4 Outros 02 0,3
Negro/Preto 49 6,5 Total 753 100

FONTE: Elaborado pelo autor a partir do Códice nO 1131, do APEP.

Por sua vez, o fato de Moreira Neto ter chegado a um percentual tão
baixo de brancos (6,9% contra 20% e 22,2%) prende-se à própria natureza
do material por ele recolhido, diz respeito aos presos falecidos a bordo da
corveta Defensora. Aqui, a objeção vai no sentido de que, pelo menos por
causa de três fatores distintos, o número de brancos aparece minimizado.
O primeiro fator - que também parece ser o mais óbvio - diz respeito
ao fato de que as populações brancas do Grão-Pará possuíam as maiores
oportunidades, tanto econômicas quanto sociais, para firmarem-se enquanto
grupos dominantes, uma vez que não só ocupavam cargos e posições de
destaque, mas também isentavam-se da execução de ofícios mais penosos e
desgastantes. Tudo isso favorecia o desenvolvimento e a manutenção de um
padrão de vida melhor frente aos demais habitantes.
Em segundo lugar, as populações brancas pareciam responder melhor
frente às epidemias, sofrendo, em conseqüência disso, um número menor de
contágios, o que corrobora as observações de Spix e Martius que haviam
chegado a Belém pouco depois de um desses contágios:
Quando a epidemia estava no auge, morriam diariamente 36 a
48 pessoas, e mais vitimados eram os índios e mestiços de
índios; menos perigosa foi a epidemia para os negros e ainda
menos para os europeus, isto provavelmente porque entre os
brasileiros [leia-se índios] o pavor agrava a doença. É fato
conhecido ser a raça americana mais sujeita a contrair todas as
doenças agudas da pele: sarampo, escarlatina, etc., e
particularmente a varíola, que conhecem trazida da Europa e
que, desde sempre tem feito terrível devastação entre eles
(SPIX; MARTIUS, 1981, p. 39).

Por fim, o tratamento dispensado aos prisioneiros brancos foi


diferenciado. A quase totalidade dos indivíduos que aparecem na fonte como
sendo "presos de muita consideração" era constituída de brancos que, além
do mais, possuíam funções políticas QU econômicas de grande importância.
Esse tipo de "consideração" lhes valia não só ficarem a bordo "sem ferros"9,
muitas vezes ocupando locais privilegiados da embarcação (como a coberta,
para onde foram enviados, por exemplo, os padres e os juizes de paz) e,
possivelmente, recebendo uma ração diária de comida e água maior do que a
dos presos comuns, o que os afastava do escorbuto. Muitos presos nestas
condições, além de receberem licenças generosas de até três meses para
cuidarem de suas defesaslO, ganhavam com maior freqüência "a cidade por
homenagem", o que significava ter o direito de ficarem presos em terra, em
suas próprias residências, apresentando-se apenas uma vez a cada semana ou
a cada mês na Secretaria do Governo.

9 o uso de "ferros" ou grilhões era prática corrente na carceragem do Defensora, embora seu uso fosse recomendado
com maior freqüência para os presos escravos.
10 Nesse sentido, o registro seguinte é ilustrativo, exatamente por conter deferências jamais concedidas aos prisionei-

ros de uma condição social inferior: "Manoel da Conceição Vilhena - Natural da Vigia, solteiro, negociante, idade
31 anos, branco. NOTA:Veio para bordo em 31 de agosto de 1837, remetido pelo Juiz de Paz de Monsarás por se
achar processado naquele Juizo. Praticou roubos escandalosos na Ilha de Marajó, fez fogo às Forças Legais e
assassinou um homem nesta capital como consta do seu processo. Por portaria de S. Ex' de 14 de outubro de 1838
foi-lhe concedido sessenta dias de licença para ir a Marajó para tratar de sua defesa, indo à Secretaria do Governo
para receber a ordem que se deve ali apresentar ao respectivo Comandante Militar e no mesmo dia foi para a terra
apresentar-se na Secretaria do Governo a fim de receber as ordens. Por portaria de S. Ex' o Sr. Presidente de 24 de
dezembro de 1838 foi-lhe mais concedido pelo mesmo Exmo. Sr. 30 dias de licença, visto não ter sido bastante a
primeira que lhe concedeu para tratar de sua defesa". Códice f!3 f.
É possível sustentar que, embora a participação dos contingentes
brancos na revolta tenha sido importante, ela respondia, grosso modo, a
interesses diferenciados daqueles externados pelos demais rebeldes" de cor".
Uma distinção desse nível não deve ser encarada, obviamente, com muita
rigidez, já que ela admite exceções freqüentes. A vivência de indivíduos brancos
e não-brancos não se dava sem a presença de contradições internas e
interpenetrações de outra ordem que não a pautada no viés da etnia.
De qualquer forma, a distinção entre Cabanos brancos e Cabanos
"não-brancos" (ou "de cor") é bastante perceptível nos discursos do poder
que perpassam os registros carcerários. Nesse sentido, é já uma primeira
distinção possível entre os rebeldes, a ser analisada posteriormente, quando se
discutir as penalidades atribuídas a cada um dos grupos étnicos que estiveram
na revolta.
Com relação à participação numérica dos tapuios, as diferenças
apresentadas entre as três fontes parecem ser igualmente relevantes, sendo
que enquanto Moreira Neto registra a presença de 39,7% dos presos como
tendo aquela condição étnica, no Códice 1131 este percentual cai para apenas
5,8%. Hurley não apresenta um cômputo isolado para esse segmento, já
que em sua estatística, tapuios e índios são vistos em conjunto, perfazendo
35,8% do total de presos. A princípio pensou-se que a discrepância numérica
residia exatamente neste ponto, ou seja, na pouca clareza com que as
autoridades procediam o reconhecimento entre indivíduos que, tendo a
mesma origem étnica, diferenciavam-se a partir de indicadores outros que
não o do próprio tipo físico. Muito embora tais dificuldades de identificação
fossem efetivas e aparecessem com clareza nos códices que foram
compulsados - uma vez que em muitos casos indivíduos citados como
índios em uma relação aparecem como tapuios em outra e vice-versa -, tão
logo procedeu-se um cômputo onde essas variáveis (tapuios/índios)
apareciam conjugadas - como na descrição de Hurley -, as diferenças se
mantiveram importantes, embora tenham caído de 33.9% para 23.2%.
Se forem levados em consideração outros grupamentos étnicos-
sociais, como mamelucos, cafuzos, mulatos, pardos e negros, diferenças
menores entre as três relações de presos podem ser percebidas. Com relação
aos presos negros ou miscigenados a partir desse segmento (mulatos, pardos,
cafuzos), cabe salientar que seu elevado percentual- aproximadamente 40% do
total- parece confrontar de forma muito significativa as referências de época,
que apontam para uma insignificância numérica deles no seio da população
amazônica. Spix e Martius, por exemplo, reconheciam em 1820 que "são menos
numerosos os mulatos e negros, porque até meados do século precedente se
empregava exclusivamente índios para o serviço da lavoura e das obras públicas"
(1981,p. 39).
Essa distância entre uma participação percentualmente maior na rebelião
que no conjunto da sociedade, fortalece a hipótese de que nem todos os segmentos
étnicos-sociais guardavam as mesmas expectativas, sendo de se esperar que para
os negros - cuja condição social inferiorizada tendia à imutabilidade em função
do estatuto da escravidão - a revolta geral da Província, muito mais que qualquer
outro movimento isolado de simples resistência, ensejava expectativas concretas
de libertação, configurando-se numa oportunidade que não deveria ser perdida
ou desprezada.
A freqüência com que a população negra e escrava aparece na relação de
prisioneirosll, bem como a peculiaridade dos delitos em que seviram envolvidos,
deixa claro que eles efetivamente acalentaram a possibilidade de emancipar-se do
jugo escravista, lançando-se ao turbilhão da revolta com a expectativa de fwla
reverter a seu favor.
As relações de presos do Defensora fornecem também indicadores mais
precisos quanto à ocupação dos participantes da Cabanagem, permitindo matizar
asnoções uniformizadoras que apontavam quase sempre para os rebelados como
hordas compactas de miseráveis, que nada tinham a perder. Os Cabanos do
Defensora eram, na maioria das vezes, pessoas conhecidas das autoridades que as
prenderam e também das populações das localidades em que agiram. Por pessoas
"conhecidas", quer-se dizer que tinham nomes, residências e ocupações. Assim,
quanto mais a névoa se dissipa pelo avanço da investigação, a antiga "massa
disforme" ganha contornos mais nítidos.

11 Muito embora para a maioria dos presos a fonte não indique a condição juridica, 48 prisioneiros são explicitamente
citados como escravos e apenas três aparecem como libertos. Na relação, o contingente de escravos é composto da
seguinte forma: 22 pretos, 8 mulatos, 6 cafuzos, 5 pardos, 3 negros e 1 "cabra". Outros três registros não indicam
a cor, muito embora em um deles apareça o termo "africano". O termo "cabra" foi correntemente usado entre os
séculos XVIII e XIX para designar os mestiços de índios e negros, sendo, portanto, sinônimo de cafuzo.
É preciso reconhecer que uma condição social marginalizada influiu
massivamente e foi responsável pela presença esmagadora no interior da rebelião
de elementos pobres ou mesmo despossuídos de quaisquer bens materiais,vivendo
apenas da caridade pública. No entanto, não deixa de ser relevante o fato das
relações de presos apresentarem em seus quadros pessoas que estavam longe de
ser pobres e inexpressivas. "Negociantes", "proprietários", "fazendeiros" e
autoridades civis e militares (quase todos brancos), participaram como rebeldes
na Cabanagem, inclusive ocupando cargos importantes no governo rebelde que
se estabeleceu em Belém, entre janeiro de 1835 e maio de 1836.

TABELA 2: Ocupações dos Presos do Defensora

Ocupações nO % Ocupações nO %
Lavradores 365 50,7 Pescadores 16 2,2
Soldados e 78 10,8 Negociantes 15 2,1
Marinheiros
"Sem Ofícios" 52 7,2 Ferreiros 10 1,4
Carpinteiros 47 6,5 Ourives 8 1,1
Alfaiates 40 5,5 Marceneiros 8 1,1
Sapateiros 16 2,2 Outros 65 9,1

Total 720 100

FONTE: Elaborado pelo autor a partir do Códice nO 1131, do APEP.

De qualquer forma, os dados relativos ao quadro ocupacional


parecem indicar com clareza a preponderância de trabalhadores ligados à
terra, não deixando de refletir o perfil rural que a sociedade paraense
apresentava à época. Muito embora se possa incluir neste cômputo ocupações
pouco citadas na fonte, como vaqueiros (cinco), seringueiros (dois), capatazes
(dois) e pescadores (dezesseis), o grande número de lavradores (365) é que se
destaca e remete para a necessidade de uma maior reflexão.
A grande presença de lavradores entre os prisioneiros, reflete uma
presença igualmente importante deles no seio da sociedade do Grão-Pará.
Na verdade, na Amazônia da primeira metade do século XIX, tornar-se
lavrador não requeria muito mais do que possuir a condição jurídica de
indivíduo livre ou liberto. Há muitos relatos de época que corroboram essa
assertiva e indicam ter sido bastante comum o caminho que diversos indivíduos
trilharam - muitas vezes chegados à região sem nenhum recurso - até se
estabelecerem como lavradores. Esse caminho, em geral, passava
primeiramente por um estabelecimento provisório (e em geral precário) "nos
matos", onde eram desenvolvidas atividades extrativas de simples subsistência.
Tão logo se fazia, com o auxílio dos índios, o aprendizado do manejo da
terra, passavam então a desenvolver algum tipo de cultivo, que daí em diante
os sustinham com maior segurança.
A franca possibilidade de acesso à terra incomodava aos proprietários
e fazendeiros, que não dispunham, à época, de mecanismos jurídicos eficazes
para controlar essa população livre e assim, em seu proveito, transformá-Ia
em mão-de-obra barata. Mecanismos desse tipo só parecem ter se efetivado
na Amazônia nas décadas [mais do século XIX, menos pela aplicabilidade da
lei de terras de 1850 do que pela necessidade de controle das áreas produtoras
de borracha. Enquanto isso não ocorria, restava aos proprietários de terras
locais pouco mais que o direito de queixarem-se da sorte, como fizera o Sr.
Danin, um português estabelecido na margem do rio Una (nos arredores de
Belém), em depoimento recolhido por Henry Bates:

Como todos os proprietários naquela Província, ele só falava


numa coisa: a escassez de mão-de-obra. Parece que se tinha
empregado grande mente para introduzir na região a mão-de-
obra branca, mas seus esforços falharam, depois dele ter trazido
de Portugal e de outros países numerosos trabalhadores que
contratara para seu serviço. Todos eles o deixaram, um após o
outro, pouco depois de sua chegada. A abundância de terras
sem dono, a liberdade que impera ali, a vida descuidosa e semi-
selvagem que as pessoas levam, a facilidade com que se obtém
o próprio sustento com pouco trabalho - tudo isso induz até
mesmo os mais bem-intencionados a abandonarem o trabalho
regular tão logo surja a oportunidade (BATES, 1979, p. 30).

o termo "lavrador" tem sido tradicionalmente associado a uma


condição de inferioridade social e a um modo de vida precário, o que em
regra, parece não fugir à realidade dos fatos. No entanto, talvez se devesse
relativizá-lo um pouco mais, dado que a partir do contexto regional onde ele
se insere, no caso o Grão-Pará, suas prerrogativas deixavam entrever uma
existência diferenciada daquela experimentada em outros pontos do Brasil.
Na Amazônia, a condição de vida de um lavrador podia oscilar desde um
pequeno roçado, de onde derivavam condições mínimas para a execução de
sua simples reprodução; até a existência de uma próspera atividade econômica,
onde até mesmo a produção voltada para a exportação se fazia presente.
De todo modo, mais que em qualquer outra região brasileira, o
lavrador na Amazônia dispunha de duas prerrogativas fundamentais que lhe
possibilitavam uma melhor condição social. Em primeiro lugar, a
disponibilidade e facilidade de acesso à terra, que sempre foi na Amazônia
muito mais franca que em outras áreas do país, onde a consolidação do
latifúndio monocultor e o conseqüente fortalecimento de uma camada
senhorial que soube reverter em termos políticos seu poderio econômico fez
subjugar pela força o enorme contingente de população livre que gravitava
ao seu reçlor. Em segundo lugar, e certamente o ponto que parece ser mais
importante, está o fato de que, fosse o lavrador amazônico de origem ou
descendência européia, a cor da pele o habilitava a exercer um imenso poder
coercitivo sobre um contingente bastante amplo de índios, imediatamente
reduzidos à mera condição de força de trabalho. Tal percepção de uma vivência
diferenciada foi também anotada pelos naturalistas Spix e Martius em passagem
bastante elueidativa:

Os lavradores, chamados de roceiros, divergem menos, nos


costumes e hábitos, dos cidadãos, do que os habitantes de igual
condição nas províncias do sul, os matutos de Pernambuco e
os designados, por escárnio, tabaréus, na Bahia, porque a
diferença entre a civilização das grandes cidades e a simplicidade
dos homens do campo até agora é menos pronunciada (SPIX;
MARTIUS, 1981, p. 25-6).
Como nos relatos de época aparecem descrições que permitem
reconhecer desníveis importantes entre o padrão de vida de diversos lavradores,
é preciso que se tome o registro dessa" ocupação" apenas como um indicador
parcial para se avaliar a efetiva condição de inserção dos prisioneiros na
sociedade paraense. Além do mais, era de se esperar que muitos prisioneiros
tenham declarado possuir tal ocupação como estratégia para fugir do
cativeird ou, como no caso dos índios e tapuias, para fugir da incorporação
2

forçada aos" corpos de trabalhadores", mecanismo pelo qual ficava permitida


a utilização desses indivíduos tanto pelo poder público quanto por particulares.
Para que tal incorporação se efetivasse, bastava que uma autoridade pública
declarasse não ter o indivíduo nem ocupação, nem residência fixa, ficando
assim tutelado pelo Estado que se encarregaria de encontrar o melhor meio
de conduzi-Ias a uma vivência "digna" Oeia-setrabalho compulsório) 13. Na
relação, 52 presos aparecem como "sem ofício" e, portanto, passíveis de ser
aproveitados dessa forma.
Outro grande contingente de rebeldes (78 ou 11%) é o constituído
por marinheiros e soldados, sendo que muitos dentre eles haviam sido
incorporados de forma compulsória, seja no Pará, seja em outras Províncias,
onde formaram-se às pressas batalhões de recrutas com indivíduos que
possuíam uma condição marginal, fossem "desocupados", "vagabundos"
ou prisioneiros. Essa situação precária, fez com que muitos soldados e
marinheiros aproveitassem as possibilidades abertas pela rebelião, desertando
de seus postos e, não raro, passando a engrossar as fileiras rebeldes.
Um número bastante expressivo dentre as ocupações arroladas na
fonte é o dos trabalhadores manuais (artesãos), sendo indicativo de uma

12 Esse parece ter sido o caso de pelo menos um dos prisioneiros arrolados no códice 1131, o cafuz Mauricio, da
região do Mosqueiro, uma vez que este, tendo se apresentado como lavrador, posteriormente confessou a bordo ser
escravo de Romão Moreira, morador de Cametá. Códice 113 I.
13 Soares d'Andréa havia definido a função dos Corpos de Trabalhadores de forma cristalina: "O fim da organização

destes Corpos é sobretudo evitar que haja vagabundos e homens ociosos, e poder dar-Ihes gente ao serviço
público". Neste "Regulamento", dois parágrafos se destacam: o quinto, define que "todos os homens de cor que
aparecerem de novo em algum distrito, sem guia ou motivo conhecido, serão logo presos e enviados ao governo,
para Ihes dar destino, quando a sua culpa não seja outra"; e o sexto que diz que "todo o individuo domiciliado
do mesmo distrito que não se empregar constantemente em algum trabalho útil, será mandado para as Fábricas do
Governo ou alugado a qualquer particular que o precise; e se apesar desta medida, se esquivar ainda ao trabalho,
será remetido ao Arsenal de Marinha, para ali trabalhar pela simples ração, e pelo tempo que se julgar preciso,
segundo a sua conduta". Regulamento dos Corpos de Trabalhadores, p. 27.
vivência mais propriamente urbana que rural 14 , como é o caso dos alfaiates,
sapateiros, carpinteiros, ferreiros, marceneiros e ourives, que juntos totalizam
129 presos, respondendo por 18% do total. Controlar um ofício ou profissão
poderia, em alguns casos, possibilitar uma condição de existência melhor frente
a um percentual relativamente grande de citadinos que, por não possuírem
tais "habilidades", freqüentemente acabavam tendo que sujeitar-se a trabalhos
mais embrutecedores e/ou menos remunerados. Em Belém, por exemplo, a
quase totalidade do trabalho doméstico era realizado pelos índios, pagos a
diária de "três vinténs, além de casa e comida". Spix e Martius observaram
também que "pescadores e carregadores eram dessa raça de homens", é que
os índios, "sob a direção de brancos e mulatos", eram além do mais, os
encarregados das "tarefas do estaleiro, do arsenal e de outras obras públicas"
(SPIX;MARTIUS,1981,p.28).
Dificilmente, no entanto, se poderia crer que o domínio de um
determinado "ofício" fosse condição suficiente para engendrar uma
diferenciação social de vulto entre os dois tipos de trabalhadores urbanos
(qualificados e não qualificados). Na verdade, mesmo para os que possuíam
um ofício, a existência era assegurada por meio de uma labuta diária intensa e
pouco compensadora. O simples fato de nove dos 129 presos listados nessas
ocupações possuírem a condição jurídica de escravos, dá bem a medida dessas
dificuldades.
A existência de "escravos de ganho" em Belém, como estes registros
15,
sugerem reforça a idéia de que o alto valor comparativo de um escravo
negro frente ao preço irrisório da mão-de-obra indígena regional, fazia com
que muitos senhores reservassem seus escravos negros, que representavam
um investimento de capital importante, para a execução de tarefas menos
desgastantes, com vistas a prolongar-lhes a vida útil. Talvez os mesmos motivos
expliquem tanto a existência de um número extremamente baixo de libertos

14 Na verdade a sociedade paraense no contexto da primeira metade do século XIX mesclava ainda muito fortemente
aspectos do mundo rural e do urbano, sendo conveniente lembrar que mesmo em Belém, única cidade da Província
e sua capital, a vida urbana se consolidava em franca articulação com o mundo rural de fazendas, engenhos e
chácaras que existiam em seu entorno.
1\ Dos 9 escravos que aparecem como possuindo um ofício, 4 eram carpinteiros, 2 eram alfaiates, 2 ferreiros e 1 era

sapateiro. Códice 1131.


entre os prisioneiros do Defensora 16, quanto a relativa freqüência com que os
escravos eram devolvidos a seus antigos senhores, mesmo quando acusados
de crimes de morte I?

Os registros de presos que apresentam outras ocupações, revelam,


contudo, uma origem menos modesta e até mesmo de destaque no seio da
sociedade paraense, como é o caso dos proprietários e negociantes que juntos
perfazem aproximadamente duas dúzias de prisioneiros, sendo que a quase
totalidade desse conjunto era constituída de indivíduos brancos (20 dos 22
presos).
No que diz respeito à idade da população carcerária do Defensora,
as informações trazidas na pesquisa são úteis e vêem somar com os dados
anteriormente disponíveis. Mais uma vez coube a Hurley (1936) apresentar os
primeiros números a este respeito, e embora sua base para cálculo fosse
pequena (145 presos), os números ali anotados acabaram sendo confirmados
pela emergência das novas relações de prisioneirosl8.
O cômputo elaborado a partir da base de dados empregada (o códice
1131), utilizou nada menos que 747 registros que, para efeito de comparação,
foram também agrupados em faixas etárias de dez anos. Uma visualização de
seus percentuais, demonstra a proximidade com os números do autor dos
"Traços Cabanas", uma vez que em apenas um único caso - o que se refere

TABELA 3: Distribuição dos Prisioneiros por Faixas Etárias


Faixa Etária Dados de Hurley Códice n'1131 Variação(%)
Até 20 anos 9,6% 16,6% + 7
De 21 a 30 anos 49,0% 48,2% -0,8
De 31 a 40 anos 20,7% 24,2% + 3,5
De 41 a 50 anos 12,4% 7,6% -4,8
De 51 a 60 anos 5,5% 2,7% -2,8
Acima de 60 anos 2,8% 0,7% -2,1
Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dados contidos no Códice 1131 do APEP e em
HURLEY,J. Traços Cabanos, p. 182-3.

16 Dentre os registros do Códice t 13 t, constavam apenas três libertos, sendo que dois deles possuíam a ocupação
de Taberneiros. Essa última característica parece confirmar a hipótese de que "cuidar de tavernas e pequenos
armazéns era atividade preferida pela população forra e mulata". (DIAS, 1998, p, 67).
17 Embora a fonte não revele o destino da maioria dos escravos presos, pelo menos 15 deles foram entregues aos seus

donos. Nesses casos, o despacho do Presidente indica a necessidade do pagamento pelo senhor da quantia diáría
despendida para a alimentação do preso, avaliada geralmente em 240 réis.
18 "Quanto à idade tem-se 14 menores de 20 anos: 71, maiores de 20 e menores de 30: 30, maiores de 30 e menores

de 40; 18, maiores de 40 e menores de 50; 8, maiores de 50 e menores de 60 e 4 maiores de 60 anos", HURLEY,
1936, p. 182-3.
aos presos menores de 20 anos - elas apresentam diferenças maiores que
. .
cmco pontos percentualS.
Se os números apontados podem conter equívocos, é importante
registrar que mesmo uma identificação precisa da idade de cada um dos
envolvidos na rebelião dificilmente possibilitaria grandes extrapolaçães analíticas.
A própria ausência de estatísticas acerca da composição etária das sociedades
amazônicas, ou mesmo brasileira, para períodos anteriores ao século atual
não permitem que se tomem os resultados da amostragem recolhida numa
relação comparativa com o contexto social mais amplo.
Era de se esperar que em um movimento social marcado por um
alto nível de radicalização e por uma configuração de verdadeira guerra de
guerrilha - implicando esforço físico e ampla mobilidade -, tanto as pessoas
mais jovens, quanto as mais idosas, mantivessem um certo grau de afastamento
da ação direta, o que, de forma alguma, significa dizer que não apoiassem o
movimento ou mesmo que não tivessem efetivamente tomado partido em
suas facetas mais radicais. A esse respeito é bastante ilustrativa a observação
anotada por um dos comandantes militares no registro de culpas do preso
Joaquim Esmeraldo da Conceição. Nele, o capitão Francisco de Paula Ozório,
queixando-se ao Presidente da Província que o pai do referido prisioneiro
não parava de elogiar os Cabanos e externava sempre veementes desejos de
vingança contra as forças legais, argumentava que já o teria destruído "se não
fosse sua decrépita idade e moléstias de que é achacado"19.
Deste ponto de vista, parece coerente que metade dos presos estivesse
englobada na faixa etária entre 21 a 30 anos, momento que para os padrões
da época, era significativo de uma vida adulta plenamente conformada. Isso
significa dizer que era bastante comum que os homens antes mesmo de
completarem a idade de vinte anos, já trabalhassem por algum ofício - em
geral aprendido no próprio seio familiar - e constituíssem família.
A trajetória pessoal de alguns dos líderes da rebelião, de quem se
possui dados biográficos mais precisos e confiáveis, reforçam essa precocidade.
Eduardo Angelim, um dos expoentes máximos da Cabanagem, com dezessete
anos de idade já trabalhava como guarda-livros no comércio de Belém,
momento no qual começou a participar ativamente das reuniões políticas dos
"filantrópicos" paraenses. Três anos mais tarde, no auge da agitação
revolucionária (1835), casa-se e, um ano mais tarde, assumia a presidência da
Província, tendo apenas vinte e um anos. De igual forma, os irmãos Vinagre
(Francisco e Antônio), chegam ao poder provincial em 1835 com pouca
idade (23 e 21 anos, respectivamente). Ambos já haviam se tornado chefes de
família e possuíam profissão, sendo que ainda jovens começaram a trabalhar
como lavradores e mais tarde como foreiros de Félix Malcher, outro presidente
Cabano (ROCQUE, 1984,p. 74-80).
Já a trajetória pessoal de Luiza Clara, esposa de Angelim, expressa,
por outro lado, a precocidade da vida adulta feminina. De descendência
portuguesa, casara-se pela primeira vez aos quinze anos de idade e quando
ficou "viúva aos dezessete anos, fIZeram-na ver que não era distinto permanecer
nesse estado sendo jovem e bela" (RODRIGUES, 1936, p. 86). Luiza Clara
casou-se novamente, para logo em seguida enfrentar nova viuvez. Seu
casamento com Angelim, sendo, portanto, o terceiro, ocorreu quando ela mal
tinha completado vinte anos. Como todas as mulheres de posse de sua época,
não exercia profissão ou ofício; "dócil e submissa", assumiu com "resignação
e renúncia" o papel doméstico que lhe cabia (p. 86).
Mesmo que exemplos nesse sentido sejam recorrentes, não deixa de
ser chocante perceber que a repressão não isentava pessoas como João Batista
ou João Francisco, pequenos rebeldes (no dizer das autoridades policiais) de
dez e doze anos de idade, que foram encarcerados no porão da Defensora2o•
Tão impressionantes quanto a prisão destes dois jovens, era a de pessoas com
idade bastante avançada. Há registros de presos com até setenta anos, como
o de "Maria", que não obstante sua dupla condição (idosa e mulher), foi
igualmente aprisionada no porão do Defensora, junto com centenas de
21•
presos

20 o fato de ambos serem negros e escravos explica, em parte. essa atitude repressiva. O fato de terem sido soltos
logo a seguir e remetidos para outra Província, também não diminui a truculência e irracionalidade desse ato.
{ódice 1131.
21 O Defensora não abrigava mulheres e, talvez por isso, Maria tenha sido solta (ou tranferida de presídío) pouco

tempo depois de sua prisão. {ódice 1131.


Pelos números gerais do Códice 1131, percebe-se que a grande maioria
dos presos era composta por solteiros (57,7%), enquanto os casados
respondiam por pouco mais de um terço (39%) e os viúvos somavam apenas
3,3%. Essa preponderância de solteiros parece condizente com as informações
de época que dão conta da grande dificuldade de se estabelecerem
matrimônios na região, devido à carência generalizada de mulheres. Como o
casamento foi sempre entendido como um forte elemento para a fixação e
estabilização dos colonos, desde cedo o Estado mostrou-se preocupado com
a questão e passou a implementar políticas públicas atinentes a resolução do
problema. Basta lembrar que na administração de Pombal, deu-se ênfase na
imigração de casais açorianos, além de se criarem mecanismos legais que
facilitassem o casamento entre brancos e índias.
A escassezde mulheres, não ocorria só no longínquo sertão amazônico,
mas atingia também a capital da Província e asvilas mais densamente povoadas
do Baixo Amazonas. Poucos anos antes da eclosão da Cabanagem, Spix e
Martius chamaram a atenção para a existência de práticas econômicas que
acentuavam "a depravação moral e física" dos índios da cidade. A constante
necessidade de mão-de-obra fazia com que os moradores brancos priorizassem
a vinda somente de homens, o que gerava, segundo os naturalistas, graves
problemas: "Só muito raramente traz consigo o índio casado a família para
a cidade, e também quase exclusivamente empregam-se homens, e com isso
se determina na cidade grande desproporção de sexos, causadora de
imoralidade e de doenças malignas" (SPIX; MARTIUS, 1981, p. 28).

Ainda de acordo com os registros carcerários, somente para


brancos e tapuios, a relação entre solteiros e casados manteve
equilíbrio, ficando a variação resultante abaixo dos três pontos
percentuais. No outro extremo, onde se encontravam por
exemplo, os "pretos", a variação entre solteiros e casadospendeu
fortemente para os primeiros em mais de quarenta pontos
percentuais. Tal assimetria está intimamente ligada ao fato de
no interior desse segmento estarem listados 26 escravos que
também constituíam uma força de trabalho introduzida na
Província numa proporção bastante diferenciada entre sexos.
Além do mais, no caso dos negros, havia como agravante o
estigma social, muito mais exacerbado do que o existente para
com os índios (na verdade a "tolerância" racial era maior apenas
com relação às índias!), sendo que os casamentos inter-raciais
a partir de pessoas desse grupo (negros) eram praticamente
inexistentes. Tudo isso fez com que a proporção de escravos
casados fosse bastante reduzida em toda a região, fato que os
números do Defensora parecem apontar.

Outro recorte importante presente na documentação carcerária é a


identificação do lugar de origem dos prisioneiros. Neste particular, tanto o
recolhimento dos registros quanto sua própria análise mostram-se bastante
dificultosas. A primeira dificuldade é que os registros oscilam, freqüentemente,
entre a generalidade e a minúcia. No primeiro caso, por exemplo, quase 400
presos foram registrados como "naturais do Pará", designação que abarcava
todo o imenso território da Província que, como se sabe, assemelhava-se à
época com a conformação atual da Amazônia brasileira, excetuando o Acre
e o Maranhão. No outro extremo, os registros indicavam como local de
nascimento pequenas freguesias e lugarejos pouco conhecidos. Por vezes,
chegava-se ao detalhismo de indicar não a "freguesia" ou "lugar", mas um
braço de rio, um pequeno igarapé, um sítio ou uma fazenda, o que representava
uma barreira intransponível mesmo para o pesquisador mais atento à
topografia do local.
Seja como for, a esmagadora maioria dos registros demonstra que as
populações envolvidas na rebelião tinham como local de nascimento a própria
Província do Pará, sendo que, nos casos em que a fonte identificava com
melhor precisão a localidade, sobressaíam asvilas do Baixo Amazonas (Cametá,
Beja, Monte Alegre, Mojú, Acará, dentre outras), além da própria capital. No
caso específico dos negros, a fonte indica geralmente a nação de origem
(Caçange, Angola, Mina), embora em alguns casos faça apenas referência ao
continente africano como um todo.
Embora houvesse registros de prisioneiros de quase todas as Províncias
do Império, a maioria vinha do Nordeste, em especial do Maranhão, Ceará,
Pemambuco e Bahia, sendo que boa parte destes presos apresentava registros
de culpas ligados a atos de insubordinação e deserção. Já a presença de
estrangeiros (ingleses, franceses e até portugueses) era mais esporádica no
interior dos contingentes carcerários. Os poucos listados eram marinheiros
que também apresentavam culpas de desertor.
Um outro aspecto a ser investigado a partir do reconhecimento da
origem dos prisioneiros é a confrontação da naturalidade indicada com o
espaço de atuação na revolta, o que propiciaria ter uma idéia, mesmo que
aproximada, acerca da mobilidade espacial de indivíduos e/ou grupos em
luta. Confrontando-se os locais de nascimento com aqueles em que foram
efetivadas suas prisões - o que foi possível ser feito em apenas um quinto dos
registros - chega-se à conclusão de que, na maioria dos casos, os rebeldes
atuavam na mesma área em que haviam nascido. Essa relação acaba por
reforçar a hipótese de que a presença de muitos Cabanos na rebelião se fazia
prioritariamente a partir das contradições e demandas estabelecidas pelo meio
social em que eles viviam e não por força da ação de ideologias liberais e
nacionalistas.
Menos que turbas desgarradas de malfeitores lançados à revolta por
não ter nada a perder, os registros carcerários indicam que a grande maioria
dos acusados possuía residência fIxa e ocupação profissional, impondo-nos a
necessidade de relativizar o discurso repressivo e reconhecer que, na
Cabanagem, a presença popular podia estar ligada à luta por melhores
condições de vida e trabalho.

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