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A pergunta – a história da literatura tem gênero? - pode ser tomada como uma
impertinência diante de um constructo histórico investido de tamanho capital simbólico
quanto é a história da literatura. Consagrada no século XIX como arquivo da
expressão cultural e literária de povos constituidos como comunidades imaginadas
dos estados-nações, as histórias das literaturas nacionais ainda constituem um eixo
de debates em torno do qual giram posições divergentes no campo dos estudos
literários. Nesse contexto, a minha formulação cumpre uma função intríseca à forma
de toda pergunta que é a de articular uma suspeita – será que a história da literatura,
aquela história monumental, concebida como uma narrativa linear e progressiva do
que de melhor foi escrito tem gênero? será que não tem? o gênero tem uma história
literária? Minha intenção, na primeira parte desta intervenção, é explorar o fundamento
da autoridade que me levou a levantar tais perguntas e assim, abrir espaços para
reflexões sobre hegemonias e poderes. Na segunda parte, pretendo ilustrar algumas
das questões decorrentes das reflexões em torno das perguntas formuladas a partir de
algumas publicações de historias da literatura produzidas nas duas últimas décadas
tendo como foco as literaturas latino-americanas.
A pergunta que se impõe e que pretendo explorar ainda que de forma sucinta,
é como se constituiu a origem da autoridade que gerou a hegemonia do masculino na
esfera da ciência e da cultura no ocidente. Todos conhecemos a centralidade das
metáforas da cultura “ o homem da Razão” e sua versão no campo literário, “o homem
de Letras”. Sabemos que as metáforas são da ordem do simbólico, mas seus efeitos
na história do saber são reais na medida em que se imbricam com a formação social
de gênero. Pode-se argumentar que as operações simbólicas que produzem
conceitualmente as distinções masculino/feminino interagem no campo social,
contribuindo para a divisão de gênero e para a formação social da identidade de
gênero. Dessa forma o chamado binarismo masculino/feminino como espelho da
diferença sexual incorpora as duas dimensões de gênero, a simbólica e a estrutural.
Historicizando a questão, gostaria de argumentar que essas duas dimensões de
gênero estão presentes na gênese mesma do pensamento ocidental a partir da
exclusão da mulher do logos filosófico, da razão e do discurso, o que explica o seu
não-reconhecimento enquanto sujeito da história, da representação, da cultura e do
conhecimento ao longo dos séculos. Um dos primeiros textos a codificar as diferenças
de gênero para definir quem é quem na polis é o texto Política, de Aristóteles. É bem
verdade que Aristóletes discorre sobre diferenças entre homem e mulher no contexto
da distinção entre homens e mulheres pertencentes a uma classe social específica, a
classe dos cidadãos, classe essa oposta à classe dos escravos. Cabe destacar o fato
de que os seres humanos são divididos em humanos livres e escravos, mas as
mulheres livres não são consideradas como sujeitos plenos da pólis, ou seja cidadãs,
uma vez que não são capazes de viver vidas que expressem as formas mais elevadas
de virtudes humanas, muito embora tenham a capacidade de procriar, sem a qual a
pólis não teria condições de existir. Portanto, ao falar de homem e mulher, categorias
usadas em oposição à classe dos escravos, Aristóteles não deixa de afirmar a
condição de superioridade do homem livre, pois é ela que lhe dá o direito e poder de
mando, o que reduz drasticamente a liberdade das mulheres livres! A questão
determinante da faculdade da razão emerge nas discussões sobre a alma, constituida
de dois elementos, da racionalidade e da irracionalidade.
1
Na versão em lingua inglesa: “It is all about about fathers and sons, about bastards unaided
by public assistance, legitimate sons, about inheritance, sperm, sterility. Nothing is said of the
mother, and this will not be held against us. And if one looks hard enough as in those pictures in
which a second picture faintly can be made out, one might be able to discern her unstable form,
drown upside down in the foliage, at the back of the garden” p.142-143.
associados à construção da civilização ocidental e, definitivamente, relega a figura da
mãe ao pólo pulsional da cultura, pois como “filha da natureza” é vinculada à matéria,
portanto incapaz das sublimações pulsionais necessárias para o trabalho da cultura,
que, de forma inconteste, é um assunto exclusivo dos homens. Em seu mais recente
texto intitulado The theorist´s mother Andrew Parker apresenta uma releitura de obras
de Marx e Freud na perspectiva de sua relação problemática com a questão da
maternidade para concluir o que muitas estudiosas já sabiam: de um lado, a relação
problemática da filosofia com a maternidade e a relutância em incluir mães como
sujeitos ou objetos de questionamentos filosóficos; de outro, os conundruns da relação
entre psicanálise e maternidade, uma vez que o pensamento freudiano reduz o
feminino ao corpo biológico materno, particularmente na centralidade do complexo de
Édipo, e o pensamento lacaniano exclui o corpo material, a não ser quando se refere à
mãe fálica, uma dimensão do materno que a psicanálise subscrevea porque
relacionada à procriação. Contudo, a observação de Parker é que Lacan somente
reconhece essa dimensão ao se referir à “divinição materna”, a qual diz respeito à
relação direta corpo-a- corpo com o outro, algo que está além do conhecimento
teórico. Mas o que está além não está simplesmente fora do esquema conceitual, pelo
contrário, existe como condição para a psicanálise se sustentar enquanto tal. Para
Parker, o trabalho de intelectuais alinhados com o marxismo e com a psicanálise
pressupõem o reconhecimento e o vínculo com seus pais fundadores de maneira que
há um aspecto constitutivo entranhado em suas molduras téoricas que impossibilita
validar a importância da maternidade. Nesse contexto, perdura o mito soberano da
paternidade calcado no logos e na potência do discurso presente nas heranças
patriarcais que permeiam as esferas do poder político, social, cultural e teórico.
2
Ver, nesse sentido, o ensaio clássico de Maria Lugones “ Colonialidad y genero”. Tabula
Rasa, no. 9, Colombia, julio-diciembre 2008.
podemos dizer que os silêncios nas nossas histórias da literatura são altamente
reveladores da sociedade em que vivemos. Desestabilizar a lógica da totalização
pressuposta na ficção de uma tradição literária única e proporcionar outros
conhecimentos sobre o passado literário dos paises da América Latina, outros
imaginários e outras formas de escritura e interpretação do real, são os desafios de
uma iniciativa ainda não materializada. Refiro-me à proposta ambiciosa de publicação
da Cambridge history of Latin American women´s writings, dividida em quatro grandes
sessões totalizando trinta e oito capítulos e que conta com a participação de trinta e
seis pesquisadoras e sete pesquisadores, procedentes de universidades de vários
países das Américas e da Inglaterra. Ao colocar a questão do gênero como uma
categoria de análise no campo da historiografia literária,3 essa história ainda por vir,
escrita majoritariamente por mulheres e sobre textos de autoria feminina, talvez possa
constituir um ponto de partida para uma história comparativa, dialógica e intertextual
que coloque em cena a autoria de mulheres e homens, as conexões e rupturas,
convergências e diferenças, transformações de tradições e formas de escrita e de
como essas se enriquecem e se influenciam mutuamente.
REFERÊNCIAS
BLOOM, Harod. A angústia da influência: uma teoria da poesia. São Paulo, Imago,
1995.
DARWIN, Charles. Origem das espécies e a seleção natural. Rio de Janeiro, Hemus,
1991.
3
Foi a historiadora Joan W. Scott quem preconizou a utilização da categoria de gênero no
campo da historiografia em seu ensaio, hoje clássico, intitulado “Gender: a useful category of
historical analysis” publicado na obra Gender and the politics of history (New York, Colímbia
University Press, 1988).
DERRIDA, Jacques. Dissemination. Tradução, Introdução e Notas adicionais de
Barbara Johnson. Londres, The Athlone Press Ltda, 1981.
FREUD, Sigmund. Moses and monotheism. New York, Vintage Books, 1967.
FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Porto Alegre, L&PM Editora, 2010.
IRIGARAY, Luce. Speculum of the other woman. Translated by Gillian Gill. New York:
Cornell University Press, 1985.
PARKER, Andrew. The theorist´s mother.Durhan, NC, Duke University Press, 2013.
SCOTT, Joan W. Gender and the politics of history.New York, Columbia University
Press, 1988.
VENTURA, Roberto. Estilo tropical: estilo tropical e polêmicas literárias no Brasil. São
Paulo. Companhia das Letras, 1991.