Você está na página 1de 11

A HISTÓRIA DA LITERATURA TEM GÊNERO?

NOTAS DO TEMPO (IN)ACABADO DE UM PROJETO

Rita Terezinha Schmidt (UFRGS)

A pergunta – a história da literatura tem gênero? - pode ser tomada como uma
impertinência diante de um constructo histórico investido de tamanho capital simbólico
quanto é a história da literatura. Consagrada no século XIX como arquivo da
expressão cultural e literária de povos constituidos como comunidades imaginadas
dos estados-nações, as histórias das literaturas nacionais ainda constituem um eixo
de debates em torno do qual giram posições divergentes no campo dos estudos
literários. Nesse contexto, a minha formulação cumpre uma função intríseca à forma
de toda pergunta que é a de articular uma suspeita – será que a história da literatura,
aquela história monumental, concebida como uma narrativa linear e progressiva do
que de melhor foi escrito tem gênero? será que não tem? o gênero tem uma história
literária? Minha intenção, na primeira parte desta intervenção, é explorar o fundamento
da autoridade que me levou a levantar tais perguntas e assim, abrir espaços para
reflexões sobre hegemonias e poderes. Na segunda parte, pretendo ilustrar algumas
das questões decorrentes das reflexões em torno das perguntas formuladas a partir de
algumas publicações de historias da literatura produzidas nas duas últimas décadas
tendo como foco as literaturas latino-americanas.

Há alguns anos, para não dizer décadas, que o paradigma da história da


literatura como uma narrativa cumulativa de autores, obras e estilos, pautada na
concepção de evolução e explicação causal, entrou em crise em razão do
reconhecimento das limitações do modelo de objetividade histórica e suas
pressuposições sobre totalidade e síntese e que, na constituição das histórias da
literatura, reificou a noção de gênio e de grandes obras designadas como ‘canônicas’.
Importa lembrar que o surgimento de interesse pela história da literatura coincidiu com
o momento de formação das literaturas nacionais e que portanto, o seu projeto se
articulou pari passu com a construção de identidades nacionais, em um momento
histórico marcado por intensos processos de homogeinização e unificação, tendo em
vista a necessidade de universalizar as diferenças e projetar a ideia de um
pertencimento coletivo, pressuposto da formação de uma identidade nacional. Como
aponta Roberto Ventura em seu Estilo tropical, publicado em 1991, a história da
literatura se desenvolveu como uma epopéia da nacionalidade, noção preconizada nos
escritos de Sílvio Romero e, ratificada nas histórias da literatura brasileira escritas no
século XX. Interessa aqui a observação de Ventura de que a história da literatura
brasileira, “se restringiu ao cânone das obras e escritores consagrados pela tradição, o
que levou à exclusão dos textos divergentes do modelo dominante de literatura” (p.
164). Essa constação implica dizer que, muito embora os debates sobre a história da
literatura no cenário nacional tenham alcançado hoje, níveis pertinentes de reflexão
teórica, inclusive em várias edições deste seminário, ainda não foi concebido um
objeto de estudo com uma configuração capaz de incorporar transformações a partir
de questões sobre as quais muito tem se discutido, como o cânone e suas exclusões,
outras linhagens escriturais e tradições marginalizadas. Evoco as palavras de Ana
Pizarro em seu texto “ Historiografia y literatura: el desafio de la outra coherencia”
apresentado em Porto Alegre, em 1988, no 1º. Congresso da recém-criada
Associação Brasileira de Literatura Comparada, no qual se refere à três sistemas
literários, o indígena, o erudito e o popular, na perspectiva de três temporalidades
diversas. Diz Pizarro: “Assediar el discurso literario desde la perspectiva historiográfica
significa em América Latina hoy no sólo desbrozar um campo sino enfrentar um
desafio: significa entrar al vasto àmbito de la pluralidad, de la superposición, de la
heterogeneidad, tambíen de la resistencia, de la identificación, de la construcción de la
palabra en otras condiciones” (p. 279). Em se tratando de história da literatura
brasileira, o desafio então lançado ainda não foi enfrentado e a inovação de um
modelo já ultrapassado permanece tão somente como um desejo insatifeito, à procura
de um objeto.

Com excessão de pesquisadoras com projetos de recuperação de obras de


escritoras brasileiras do passado e que têm colocado em pauta o silenciamento das
histórias de literatura brasileira sobre a produção de autoria feminina, não há
questionamentos mais incisivos ou efetivos na perspectiva do gendramento e
territorialização masculina dos pólos da produção historiográfica e da produção crítica
no contexto mais amplo de uma herança, historicamente constituida como
monocultural e homosocial. É por isso que pensar historicamente a constituição das
histórias da literatura brasileira significa pensar os limites de seus modelos, e no caso
em questão, pensar a partir de questões de gênero. Não se trata de uma atitude trivial
ou leviana porque falar de gênero não é um tópico da vida privada, mas da vida social
em geral, e da vida intelectual, de modo particular. Com isso quero dizer que as
nossas histórias da literatura tem sistematicamente reescrito e afirmado o binarismo
de gênero como dispositivo de controle fazendo da diferença masculino/feminino um
operador ideológico com a função estratégica de defini-la como opositiva e
assimétrica, legitimando a sua codificação na tradição literária através do gênero da
autoria, de certas linguagens, convenções e estruturas textuais que, via de regra,
ratificam poderes hegemônicos nos campos sociais, culturais e políticos.

O reconhecimento da instabilidade das categorias binárias e da sexualidade


como categoria historiamente construída, no rastro do pioneireirismo de Michel
Foucault, bem como o entendimento da identidade como performatividade, efeito de
formações discursivas que codificam socialmente, a relação corpo e gênero, segundo
a filósofa Judith Butler, são relativamente recentes. E mesmo que a historia cultural
registre desvios e exceções com relação à tais codificações, a prática social e cultural
essencializou a diferença entre sujeitos construídos e definidos como
masculino/feminino de maneira que o feminino foi transformado em um tropo de
exclusão. A instituição literária como uma instituição social e política, também participa
desse aparato discursivo/ideológico ao incorporar o que é considerado um dado
inquestionado na cultura.E é nesse sentido que o pertencimento de gênero foi e ainda
se constitui como um princípio de valor enraizado na própria história da cultura
ocidental e o seu efeito mais negativo, do ponto de vista de seu impacto conceitual no
campo literário, tem sido a exclusão da autoria feminina das histórias da literatura.
Nesse contexto, não basta afirmar que a sexualidade é historicamente construida mas
também, reconhecer que a história, ela mesma, é sexualmente construida. Não há
como negar o fato de que a cultura literária masculina, a partir da qual se construiu
modelos de historia literária que ainda tem vigência entre nós, segue a linha de uma
história política dominada quase que exclusivamente por homens, daí a razão pela
qual pode ser qualificada como uma história patriarcal.

A pergunta que se impõe e que pretendo explorar ainda que de forma sucinta,
é como se constituiu a origem da autoridade que gerou a hegemonia do masculino na
esfera da ciência e da cultura no ocidente. Todos conhecemos a centralidade das
metáforas da cultura “ o homem da Razão” e sua versão no campo literário, “o homem
de Letras”. Sabemos que as metáforas são da ordem do simbólico, mas seus efeitos
na história do saber são reais na medida em que se imbricam com a formação social
de gênero. Pode-se argumentar que as operações simbólicas que produzem
conceitualmente as distinções masculino/feminino interagem no campo social,
contribuindo para a divisão de gênero e para a formação social da identidade de
gênero. Dessa forma o chamado binarismo masculino/feminino como espelho da
diferença sexual incorpora as duas dimensões de gênero, a simbólica e a estrutural.
Historicizando a questão, gostaria de argumentar que essas duas dimensões de
gênero estão presentes na gênese mesma do pensamento ocidental a partir da
exclusão da mulher do logos filosófico, da razão e do discurso, o que explica o seu
não-reconhecimento enquanto sujeito da história, da representação, da cultura e do
conhecimento ao longo dos séculos. Um dos primeiros textos a codificar as diferenças
de gênero para definir quem é quem na polis é o texto Política, de Aristóteles. É bem
verdade que Aristóletes discorre sobre diferenças entre homem e mulher no contexto
da distinção entre homens e mulheres pertencentes a uma classe social específica, a
classe dos cidadãos, classe essa oposta à classe dos escravos. Cabe destacar o fato
de que os seres humanos são divididos em humanos livres e escravos, mas as
mulheres livres não são consideradas como sujeitos plenos da pólis, ou seja cidadãs,
uma vez que não são capazes de viver vidas que expressem as formas mais elevadas
de virtudes humanas, muito embora tenham a capacidade de procriar, sem a qual a
pólis não teria condições de existir. Portanto, ao falar de homem e mulher, categorias
usadas em oposição à classe dos escravos, Aristóteles não deixa de afirmar a
condição de superioridade do homem livre, pois é ela que lhe dá o direito e poder de
mando, o que reduz drasticamente a liberdade das mulheres livres! A questão
determinante da faculdade da razão emerge nas discussões sobre a alma, constituida
de dois elementos, da racionalidade e da irracionalidade.

Ao afirmar que no homem predomina a racionalidade e que na mulher a


capacidade da razão não tem autoridade porque facilmente cede à força do irracional,
Aristóteles define o valor relativo das contribuições de homens e mulheres à polis
como sendo determinado pelo valor relativo da alma ao corpo, da forma à matéria.
Enquanto que no homem o elemento divino da alma se manifesta em seu esplendor
na razão - uma relação de correlação e significação natural entre logos e alma - na
mulher ela se manifesta como déficit, de modo que mulheres e escravos têm algo em
comum pois são vistos praticamente enquanto corpos com almas menores e sem
almas, respectivamente. Portanto, em termos de gênero, Aristóteles ratifica os
binarismos associados à divisão da razão X emoção ( irracionalidade), da alma X
corpo, da substância X matéria, o que significa definir a natureza feminina, de forma
categórica, como a de um ser menos humano, incompleto, uma não-presença do ser
pleno, o que confere legitimidade às limitações impostas ao papel da mulher na pólis.
E se a relação entre logos e a voz ( discurso) é originária e essencial – base do
logocentrismo e do fonocentrismo – se compreende o porque das mulheres não terem
tido acesso à voz, visto que a voz é o registro da presença do ser.

Derrida, em seu texto Dissemination, publicado originalmente na França em


1971, apresenta um releitura dos diálogos platônicos para sustentar a sua crítica à
metafísica ocidental e ao fundamentalismo do logos e é interessante observar a
maneira como sua leitura traz à tona o entrelaçamento do logos com a questão da
diferença. No capitulo 2, intitulado “O pai do logos”, Derrida discute a permanência, na
fala de Sócrates, de um esquema platônico que inscreve a origem e o poder do
discurso, do logos, à posição paterna, concluindo que não se trata de dizer que o
logos é o pai, mas que a origem do logos é seu pai, e acrescenta que isso não é
simplesmente uma metáfora, um efeito de retórica. No capítulo 8, intitulado “A herança
do pharmacon: a cena familar” Derrida aborda, mais detidamente, as metáforas
familiares recorrentes na filosofia e conclui: “ Tudo é sobre pais e filhos, sobre
bastardos sem assistência, filhos legítimos, sobre herança, esperma, esterilidade.
Nada é dito sobre a mãe e isso não será jogado contra nós. E se alguém olhar com
bastante atenção como naqueles quadros onde uma outra figura pode ser levemente
percebida, poderá discernir sua forma instável, de cabeça para baixo, entre as
folhagens, no fundo do jardim.”(minha tradução), (p. 142-143).1 Na leitura derrideana,
a presença da mãe é garantida por uma imagem espectral que, entretanto, não
constitui uma presença plena porque nela não há possibilidade da potência do
discurso: é sombra, sem concretude e sem discurso. Como afirma Derrida, é a partir
do logos que se anuncia e se dá a pensar algo como a paternidade. A relação entre
paternidade, discurso e lei (logos e nomos) sustenta o patriarcalismo filosófico cujo
legado se reconfigura na modernidade com o famoso dictum cartesiano “eu penso,
logo existo” uma definição do humano pressuposta nas capacidades de
racionalização, de reflexão e de busca do conhecimento de si e do mundo,
capacidades que, evidentemente, não eram reconhecidas nas mulheres. Já no século
XIX, Jacques Rousseau, no seu Emílio, concebe o sujeito feminino como sendo da
ordem natural, uma condição intermediária entre criança e homem, da mesma forma
que Charles Darwin concebeu o ser feminino em sua Origens das Espécies, visão não
muito diferente da visão de Sigmund Freud que definiu a mulher como um homúnculo.

Impossível ignorar o papel considerável de Freud na sua relação de


continuidade com o legado filosófico patriarcal. Em seu Moisés e o monoteismo, em O
mal estar na cultura, bem como no ensaio “A moral sexual e o nervosismo moderno”,
Freud retoma a questão da paternidade em termos de processos mentais e cognitivos

1
Na versão em lingua inglesa: “It is all about about fathers and sons, about bastards unaided
by public assistance, legitimate sons, about inheritance, sperm, sterility. Nothing is said of the
mother, and this will not be held against us. And if one looks hard enough as in those pictures in
which a second picture faintly can be made out, one might be able to discern her unstable form,
drown upside down in the foliage, at the back of the garden” p.142-143.
associados à construção da civilização ocidental e, definitivamente, relega a figura da
mãe ao pólo pulsional da cultura, pois como “filha da natureza” é vinculada à matéria,
portanto incapaz das sublimações pulsionais necessárias para o trabalho da cultura,
que, de forma inconteste, é um assunto exclusivo dos homens. Em seu mais recente
texto intitulado The theorist´s mother Andrew Parker apresenta uma releitura de obras
de Marx e Freud na perspectiva de sua relação problemática com a questão da
maternidade para concluir o que muitas estudiosas já sabiam: de um lado, a relação
problemática da filosofia com a maternidade e a relutância em incluir mães como
sujeitos ou objetos de questionamentos filosóficos; de outro, os conundruns da relação
entre psicanálise e maternidade, uma vez que o pensamento freudiano reduz o
feminino ao corpo biológico materno, particularmente na centralidade do complexo de
Édipo, e o pensamento lacaniano exclui o corpo material, a não ser quando se refere à
mãe fálica, uma dimensão do materno que a psicanálise subscrevea porque
relacionada à procriação. Contudo, a observação de Parker é que Lacan somente
reconhece essa dimensão ao se referir à “divinição materna”, a qual diz respeito à
relação direta corpo-a- corpo com o outro, algo que está além do conhecimento
teórico. Mas o que está além não está simplesmente fora do esquema conceitual, pelo
contrário, existe como condição para a psicanálise se sustentar enquanto tal. Para
Parker, o trabalho de intelectuais alinhados com o marxismo e com a psicanálise
pressupõem o reconhecimento e o vínculo com seus pais fundadores de maneira que
há um aspecto constitutivo entranhado em suas molduras téoricas que impossibilita
validar a importância da maternidade. Nesse contexto, perdura o mito soberano da
paternidade calcado no logos e na potência do discurso presente nas heranças
patriarcais que permeiam as esferas do poder político, social, cultural e teórico.

No campo das Letras, as histórias da literatura foram territorializadas pelo


sujeito masculino com a institucionalização e valorização da função autoral – a
paternidade do texto - que sustentou a autoridade literária a partir do século XVII,
autoridade essa que exerceu um poder regulador na produção, recepção e legitimação
de obras literárias. Não surpreende que desde o século XIX, muitos críticos brasileiros
tais como José Veríssimo, Araripe Junior, Olívio Montenegro e Alfredo Bosi tenham
atribuido valor a obras definidas pelo estilo viril ou másculo. O fato de muitas das
escritoras do passado terem escrito sob pseudônimo porque do contrário não teriam
seus textos publicados coloca em relevo o drama da legitimidade da autoria feminina
sob a pressão cultural/social que definia a criação, a voz e a linguagem como
prerrogativa dos escritores. É oportuno lembrar o caso de dois expoentes no campo da
teoria e da critica literária que subscreveram, cada qual a seu modo, a metáfora da
paternidade. O primeiro é Roland Barthes em seu O prazer do texto publicado na
França em 1973.Trata-se de um texto irreverente e libertador que, metodologicamente
falando, revolucionou as formas de pensar a crítica literária, a teoria, o texto, a
linguagem e a leitura. Barthes não só coloca em questão o funcionamento do signo na
sociedade de massa e ataca a convencionalidade das formas de representação,
sociais e culturais, como destitui a figura do autor, dizendo: “Como instituição, o autor
está morto: sua pessoa civil, passional, biográfica, desapareceu: desapossada, já não
exerce sobre sua obra, a formidável paternidade que a história literária, o ensino, a
opinião tinham o encargo de estabelecer(...)” (p. 35). Nesse contexto, tão curioso
quanto revelador, é o fato de Barthes afirmar mais adiante, não sem uma certa
nostalgia associada a um sentimento de perda: “A morte do Pai tirará à literatura
muitos dos seus prazeres. Se já não existe Pai, para que serve narrar histórias? Não
se reduzirá toda a literatura ao Édipo?” (p.57). Muitas de suas afirmações traem o seu
alinhamento com códigos fálicos de representação oriundos da psicanálise, o que
explica também, a forma com que o feminino aparece objetificado na metáfora da
língua materna: “o escritor é alguém que brinca com o corpo da mãe” (p. 46). Se, por
um lado, Barthes colocou em questão as noções tradicionais de sujeito, autor, escrita
e representação, o que abriria, em tese, o caminho para outras noções de autoria,
subjetividade, escrita e representação, por outro, a sua adesão explícita aos mestres
da psicanálise, Freud e Lacan, o leva a ratificar a posição do sujeito privilegiado no
sistema ocidental de poder e representação. O segundo exemplo que confirma a
posição de Andrew Parker sobre os efeitos de vinculações conceituais com pais
téoricos fundadores está presente na obra A angústia da influência, de Harold Bloom,
publicada originalmente nos EUA em 1973. É uma obra na qual Bloom busca construir
a noção de uma tradição dos poetas românticos em língua inglesa a partir da
influência de poetas que se tornaram modelos para gerações posteriores,
considerando a reação de poetas mais jovens aos seus precursores. Bloom ativa o
modelo freudiano dos mecanismos de defesa para explicar o conflito entre gerações e
como desse conflito surge a inovação que garante a continuidade da tradição. O
pressuposto de uma tradição única de pais e filhos ratifica o valor simbólico da
paternidade e silencia sobre a existência de mulheres poetas que publicaram tanto na
Inglaterra quando nos Estados Unidos no período. Nesse sentido, a invisibilidade da
maternidade simbólica, ou seja, a autoria feminina, comprova o que a filósofa Luce
Irigaray afirma em sua obra Speculum of the other woman, publicada originalmente em
1974, na França: a de que toda teoria do sujeito, ao longo da história, sempre foi
apropriada pelo masculino.
No atual panorama de descolonização e decentramento das histórias
tradicionais da literatura coladas aos projetos nacionais, há uma produção recente que
busca enfrentar o desafio de criar novas ordens de representação que possam vir a
reconfigurar o campo da historiografia literária ao incorporarem textos, autores e
tradições excluidas. Contudo, a utilização da categoria de gênero na compreensão
cultural dominante de projetos literários nacionais e internacionais bem como suas
implicações na discussão de textos e autores ainda é tímida, particularmente pela
quase invisiblidade da autoria de mulheres e de referências a seus textos. A tradição
cultural e a tendenciosidade de sua herança permeiam essas iniciativas que, sob
vários aspectos, poderiam se qualificar como inovadoras. No excelente artigo initulado
“Latin America Gender Studies in the Twentieth Century” (2009) a pesquisadora Debra
A. Castillo realiza um mapeamento de obras no campo da historiografia literária nas
duas últimas décadas. Tomando por base o seu estudo, apresento o elenco das obras
com alguns comentários, com o objetivo de ilustrar o quanto ainda é preciso avançar
com relação às histórias das literaturas latino-americanas.

The Cambridge History of Latin American History, publicada em 1996 pela


Editora da Universidade de Cambridge em três volumes e organizada por Roverto
Gonzáles Echeverria e Enrique Pupo Walker, segue uma linha histórica mais
tradicional, separando a América hispânica da portuguesa e subdividindo as literaturas
da América hispânica nos dois primeiros volumes e a literatura brasileira, no terceiro
volume. Seria, segundo os organizadores, a primeira história a explorar em
profunidade o período colonial, a integrar o trabalho de escritoras e tradições
marginalizadas, e a incorporar a literatura escrita em espanhol por escritores chicanos-
hispânicos residentes nos Estados Unidos. Contudo, a realização não vai ao encontro
da intenção. Assim, a Introdução faz referências, em um único parágrafo, a Sor Juana
de la Cruz e às escritoras Teresa de la Parra, Rosario Castellanos, Elena
Poniatowska, Luisa Valenzuela e Isabel Allende, nomes que se perdem em meio à
longa lista de referências a escritores, sem qualquer alusão à produção de autoria
feminina no século XIX. No cenário da literatura brasileira, o destaque é dado a
apenas três escritoras, limitadas à área da contística, a saber, Clarice Lispector, Nélida
Piñon e Edla van Steen, em texto de apenas duas páginas, com inclusão de breves
referências a outras cinco escritoras. Assim, na referida história, os textos sobre as
escritoras não chegam a 10% do total de 900 páginas, e dos 929 nomes de brasileiros
citados, apenas 94 são nomes de mulheres.

Em 2004 foi publicado, pela Editora da Universidade de Oxford, a obra Literary


cultures of Latin America: a comparative history, em três volumes e organizado por
Mario Valdez e Djelal Kadir, com Introduções da canadense Linda Hutcheon e da
cubana Luisa Campuzano. Trata-se de um projeo monumental que contou com trinta
coordenadores de sessões e um grupo de noventa e dois pesquisadores que exigiu,
para sua materialização, muita pesquisa sobre o gênero da historiografia literária,
além de vários encontros multinacionais no período 1993- 2001, para discussão e
seminários. Além de oferecer um panorama literário extenso do continente, incluindo o
período pré-colombiano, o projeto propiciou repensar o formato da história literária
utilizando a América Latina como um espaço conceitual. Contudo, nessa história,
apenas 6,3% do número total de páginas (2.136) são dedicados às escritoras.

Coloniality at large: a América Latina e o debate pós-colonial, foi organizado


por Mabel Moraña ( reconhecida por seus trabalhos na área de estudos de gênero),
Enrique Dussel (reconhecido filósofo argentino radicado nos Estados Unidos) e Carlos.
A. Jáuregui, e publicado pela Editora da Universidade de Duke em 2008. Esta história
heteróclita é organizada em cinco sessões, tendo cada uma, de três a cinco capítulos,
totalizando 32 capítulos. As cinco sessões recebem títulos sugestivos: 1. encontros
coloniais, descolonização e agência cultural;2. reescrevendo a diferença colonial;3.
ocidentalismo, globalização e a geopolítica do conhecimento; 4. religião, liberação e as
narrativas do secularismo; 5. pós-colonialismo comparativos; 6. etnicidades pós-
coloniais. Trata-se de uma coletânea multidisciplinar e transnacional que deixa muito a
desejar com relação à representatividade de escritoras dos diversos países latino-
americanas. Muito embora há um capítulo intitulado “Sobre feminismos e pós-
colonialismos” com foco nas transformações culturais e políticas decorrentes dos
movimentos das mulheres, e uma parte de capítulo que aborda as inadequações de
modelos teóricos formulados por homens diante das epistemologias feministas, é
como se as escritoras não existissem.

A intenção de uma perspectiva ampla e inclusão, sinalizada nos três textos, é


efetivamente abortada, e a invisibilidade das escritoras do passado e do presente não
deixa de surpreender. Nesse sentido, é irônico que as discussões sobre uma nova
historiografia permeada pelos influxos de teorias pós-coloniais, tenha silenciado sobre
a mais antiga forma de colonização, a de gênero.2 Este fato só confirma a vigência da
paternidade cultural, não só nos esquemas filosóficos e psicanalíticos, mas como o
grande esquema sociológico do ocidente, na visão do antropólogo Viveiros de Castro.
Deslocar esse paradigma de produção e valoração configura o grande desafio hoje.
Se toda a sociedade se revela tanto mais quanto pretende ocultar os seus silêncios,

2
Ver, nesse sentido, o ensaio clássico de Maria Lugones “ Colonialidad y genero”. Tabula
Rasa, no. 9, Colombia, julio-diciembre 2008.
podemos dizer que os silêncios nas nossas histórias da literatura são altamente
reveladores da sociedade em que vivemos. Desestabilizar a lógica da totalização
pressuposta na ficção de uma tradição literária única e proporcionar outros
conhecimentos sobre o passado literário dos paises da América Latina, outros
imaginários e outras formas de escritura e interpretação do real, são os desafios de
uma iniciativa ainda não materializada. Refiro-me à proposta ambiciosa de publicação
da Cambridge history of Latin American women´s writings, dividida em quatro grandes
sessões totalizando trinta e oito capítulos e que conta com a participação de trinta e
seis pesquisadoras e sete pesquisadores, procedentes de universidades de vários
países das Américas e da Inglaterra. Ao colocar a questão do gênero como uma
categoria de análise no campo da historiografia literária,3 essa história ainda por vir,
escrita majoritariamente por mulheres e sobre textos de autoria feminina, talvez possa
constituir um ponto de partida para uma história comparativa, dialógica e intertextual
que coloque em cena a autoria de mulheres e homens, as conexões e rupturas,
convergências e diferenças, transformações de tradições e formas de escrita e de
como essas se enriquecem e se influenciam mutuamente.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Poética.Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo, Martin Claret, 2004.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Perspectiva,


2004.

BLOOM, Harod. A angústia da influência: uma teoria da poesia. São Paulo, Imago,
1995.

CASTILLO, Debra A. “Latin American gender studies in the twentieth century”.


Comparative Critical Studies 6, vol.2, 2009.

DARWIN, Charles. Origem das espécies e a seleção natural. Rio de Janeiro, Hemus,
1991.

3
Foi a historiadora Joan W. Scott quem preconizou a utilização da categoria de gênero no
campo da historiografia em seu ensaio, hoje clássico, intitulado “Gender: a useful category of
historical analysis” publicado na obra Gender and the politics of history (New York, Colímbia
University Press, 1988).
DERRIDA, Jacques. Dissemination. Tradução, Introdução e Notas adicionais de
Barbara Johnson. Londres, The Athlone Press Ltda, 1981.

FREUD, Sigmund. “A moral sexual e o nervosismo moderno”. In: BRAUNSTEIN,


Néstor A.; FUKS, Betty B. (orgs.). 100 anos de novidade: a moral sexual ‘cultural’ e o
nervosismo moderno, de Sigmund Freud (1908-2008). Rio de Janeiro, Contra Capa
Editora, 2011.

FREUD, Sigmund. Moses and monotheism. New York, Vintage Books, 1967.

FREUD, Sigmund. O mal estar na cultura. Porto Alegre, L&PM Editora, 2010.

IRIGARAY, Luce. Speculum of the other woman. Translated by Gillian Gill. New York:
Cornell University Press, 1985.

LUGONES, Maria. “Colonialidad y genero”. Tabula Rasa no. 9, Colombia, julio-


diciembre 2008.

PARKER, Andrew. The theorist´s mother.Durhan, NC, Duke University Press, 2013.

PIZZARO, Ana. Historiografia y literatura: el desafio de la outra coherencia. In: ANAIS


do 1º. Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada. Vol. 1.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da educação. Rio de Janeiro. Bertrand Brasil,


1981.

SCOTT, Joan W. Gender and the politics of history.New York, Columbia University
Press, 1988.

VENTURA, Roberto. Estilo tropical: estilo tropical e polêmicas literárias no Brasil. São
Paulo. Companhia das Letras, 1991.

Você também pode gostar