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Os machos nos papéis e os papéis dos

machos: masculinidades através da escrita


literária no Piauí do início do século XX
História e masculinidades: a História, o momento atual é aquele de busca de
legitimidade acadêmica para o campo, e não
prática escriturística dos literatos e mais o de reparar as múltiplas exclusões expressas
as vivências no início do século XX. e denunciadas pela “história das mulheres”.1
No bojo desse movimento historiográfico, o
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. trabalho de Pedro Vilarinho vem contribuir para
alargar e diversificar as abordagens, ao enfatizar
Teresina: EDUFPI, 2008. 168 p. a importância dos estudos sobre masculinidades.
Soma-se, portanto, a trabalhos como o de Durval
Muniz de Albuquerque Júnior, anteriormente
apontado pelas historiadoras acima como voz
Pedro Vilarinho Castelo Branco se graduou isolada na região nordestina, e possibilita dar
em História no ano de 1992 pela Universidade novas tonalidades aos estudos de gênero e de
Federal do Piauí (UFPI), deslocando-se para subjetividades, além de apontar, na contem-
Pernambuco onde concluiu o mestrado em 1995 poraneidade, para uma circularidade de ideias
e o doutorado em 2005, ambos em História. Ali e interesses acerca dessa temática no Nordeste
desenvolveu sua pesquisa e escrita relacionando brasileiro, onde profissionais de outras áreas se
mulheres e cidade, e avançou em estudos ligados debruçam sobre as problemáticas de gênero.
às relações familiares e às identidades de gênero Isso fica patente, por exemplo, no prefácio
e literatura, mediante uma abordagem sociocul- da obra elaborado pela professora Teresinha de
tural e sempre privilegiando o contexto da virada Jesus Mesquita Queiroz. Ainda que sua carreira
do século XIX para as primeiras décadas do XX acadêmica seja marcada pela atenção direcio-
no Piauí. Hoje, como professor adjunto da UFPI e nada à literatura, nesse momento ela convida o/
tutor do PET de História, desenvolve atividades de a leitor/a a pensar a escrita dos literatos sob uma
ensino e extensão, além de pesquisas na área perspectiva de gênero, ao contextualizar a
de gênero, como a coordenação do projeto produção das obras piauienses, sinalizar o embate
de pesquisa História e masculinidades, do qual o travado entre escritores/as e analisar os diferentes
presente livro parece ser tributário. discursos literários que tentariam configurar
Tal obra mostra como o estudo das relações comportamentos específicos conforme o sexo.
de gênero vem se desenvolvendo no Brasil. De Articula e instiga a observar, portanto, temáticas
acordo com Raquel Soihet e Joana Maria Pedro, presentes e imbricadas em todo o livro de Pedro
em artigo publicado na Revista Brasileira de Vilarinho, tais como história, literatura e gênero.

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Pedro Vilarinho escolhe como recorte diferentes vertentes, como a de base hermenêu-
temporal o momento de transição do século tica e a de perspectiva pós-estruturalista,
XIX para o XX, ou seja, o intenso período de expressas, respectivamente, nos trabalhos de
modificações e transformações da sociedade Michel De Certeau e Michel Foucault. Mediante
brasileira e, em específico, da piauiense, as ideias e os conceitos trabalhados por esses
marcado pela aceleração do urbanismo e do filósofos, tais como consumo, prática escritu-
avanço do capitalismo, expressos no distancia- rística e subjetivação, haveria a possibilidade
mento do mundo rural, no aparelhamento da de contrastar a produção e a recepção dos
cidade e na busca pela concretização dos ide- discursos, ideia essa que já havia sido sinalizada
ais de civilidade e modernidade. Nesse contex- por De Certeau em crítica à ênfase dada por
to, traça como principal objetivo a análise de Foucault em relação à força e ao alcance das
como os modelos comportamentais foram atin- práticas discursivas.2
gidos pelos discursos proferidos, principalmente, Ainda no tratamento dos escritos de Michel
pelos literatos, os quais, imersos em uma cultura Foucault, é válida uma observação quanto à
bacharelesca, teriam atribuído ênfase às identi- leitura e à atenção dispensada por Castelo
dades femininas e, sobretudo, às masculinas. Branco a esse filósofo. De forma interessante e
No desenvolvimento da pesquisa e no tra- intrigante, ele encontra no autor de Vigiar e punir
tamento das fontes, a vasta produção literária é subsídios para pensar não apenas o sujeito como
escolhida entre obras na íntegra, romances, produto, mas também os processos de subjetiva-
crônicas, contos, além de artigos, notícias e ção, dinâmicos, contínuos e ininterruptos, afas-
comentários em jornais e revistas que expressam tando, assim, a passividade do sujeito.
vários discursos. Paralelamente, o autor busca O autor aponta para uma abordagem
informações nos relatos de vida, concedidos intrigante na medida em que podemos observar,
por meio de entrevistas, nos textos autobiográfi- por exemplo, as antinomias levantadas por Stuart
cos, submetidos à crítica, encarados e proble- Hall. De acordo com esse sociólogo, Michel
matizados como fragmentos e vestígios de Foucault teria passado por três grandes
memória e elucidadores de práticas e vivências. momentos em sua rica produção intelectual e
Seguindo uma forma de escrita dialética, somente na década de 1980, com as duas obras
nos três capítulos do livro ele constrói sua incompletas sobre história da sexualidade, teria
argumentação contrastando as práticas e as se inclinado a pensar o que se chama de “sujeito”:
vivências de homens e mulheres com os discursos Trata-se de um avanço importante, uma vez
elaborados pelos literatos, dando foco especial que, sem esquecer a existência da força
aos conflitos inerentes às identidades masculinas objetivamente disciplinar, Foucault acena, pela
e às suas formas de subjetivação. primeira vez em sua grande obra, à existência
Diante da modernização de Teresina e da de alguma paisagem interior do sujeito, de
adoção de novos costumes e outras sociabili- alguns mecanismos interiores de assentimento
dades, observa-se um conflito expresso na escri- à regra, o que livra essa teorização do
ta literária pela negação do mundo rural e de “behaviorismo” e do objetivismo que ameaçam
seus aspectos diante do progresso do universo certas partes do Vigiar e Punir.3
urbano. Nesse novo espaço, os discursos literários São os posicionamentos contrários que
teriam uma função reformuladora, ao delinea- tornam ainda mais interessantes essas múltiplas
rem as formas de os sujeitos se comportarem no possibilidades de apropriações do pensamento
espaço citadino e prescreverem os modos de de Foucault, tão bem expressas na obra de
a sociedade vir a ser. Formariam uma espécie Pedro Vilarinho e direcionadas para a análise
de teia discursiva com a função de controle das diferentes masculinidades piauienses.
dos indivíduos e de configuração de identidades De forma ampla, as masculinidades são
de gênero. percebidas escalonadas nas diversas fases da
Práticas e discursos representariam o jogo vida dos homens. Nesse sentido, a divisão do livro
dialético (tese e antítese), enquanto as formas em capítulos, tal como as etapas e o desenvol-
de recepção, tratamento e consumo dos discur- vimento do corpo humano, é estruturada a partir
sos pelos indivíduos implicariam diferentes mo- da infância, juventude e fase adulta. Entretanto,
dos de subjetivação, isto é, as sínteses nesses longe de significar linearidade e homogenei-
jogos de gênero e, dessa forma, os objetivos dade, esses momentos apontam para a comple-
maiores da análise de Pedro Vilarinho. xidade, na busca da definição das masculinida-
Para pensar essa dinâmica, o autor des dos indivíduos, expressa nos choques de
fundamenta seu trabalho em estudiosos de perspectivas, temporalidades e anseios.

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É assim, por exemplo, que a escola surge processo, o que se alterava era apenas o modo
como espaço segregado e afastado do mundo como isso era exercido: de forma mais branda
familiar e contribui significativamente para se e menos violenta, pelo menos em termos.
pensar a infância como uma fase específica, Os alcances desses discursos são apresen-
com cuidados e tratamentos específicos às tados pelo autor como paradoxais e contradi-
crianças, antes percebidas como adultos tórios, sinalizando uma realidade dinâmica e
pequenos. Mudam-se, portanto, os discursos e plural na Teresina da virada do século. Os aspec-
as sensibilidades em relação à vida dos infantes tos traduzidos pela permanência de hábitos
e às formas de os meninos se subjetivarem como tradicionais e rurais na cidade, principalmente,
jovens, à medida que eles percebem outros pela presença de características masculinas
elementos valorativos da masculinidade através consideradas anacrônicas, a todo instante, en-
do processo de escolarização. travam em conflito com os discursos dos literatos.
A escola agiria como pêndulos intermiten- O estudo de Pedro Vilarinho vem contribuir,
tes que ligariam as crianças a novas percepções assim, com uma análise mais detida e localizada
de juventude e, em seguida, os jovens à vida das mudanças na sociedade piauiense, que
adulta por meio da faculdade e da cidade, pareciam sinalizar uma crise das identidades de
preparando-os para as novas atividades do gênero e, mais especificamente, de masculini-
espaço urbano. dades, aspecto que, anteriormente, foi aponta-
Os discursos que influenciariam a inserção do por Elizabeth Badinter como uma grande crise
dos infantes no mundo escolar seriam contíguos de masculinidade no Ocidente, entre fins do XIX
àqueles que incentivariam os rapazes a darem e início do XX, na qual a figura do cowboy nos
continuidade aos seus estudos, a se inserirem no EUA e a construção do tipo nordestino macho
universo das letras e, cada vez mais, a se no Brasil seriam formas de reação.4
distanciarem do mundo rural e de seus tradicio- Ainda que os movimentos de valorização
nalismos, isto é, de características masculinas de novas masculinidades sejam apontados de
desvalorizadas na cidade. Em termos discursivos, forma ampla e genérica, o estudo de Castelo
o aprendizado obtido através da cultura escrita Branco denota a importância das análises mais
seria de suma importância para os novos modos localizadas, do escrutinar da atividade do
de condução das famílias e para a ocupação historiador. E é somente a partir dessa ação que é
dos empregos urbanos e dos inéditos espaços possível marcar a peculiaridade e a diferença do
de lazer e sociabilidade materializados na Piauí em termos de gênero na região nordestina.
moderna Teresina do início do século XX, tais Se tomarmos, por exemplo, os estudos
como o footing, o futebol e o cinema, espaços comparativamente, poderemos observar que
e dinâmicas que ofereciam outras formas de tanto em Durval Muniz como em Pedro Vilarinho
subjetivação masculina aos jovens. há a argumentação de que houve um processo
Feitos homens, na idade adulta, os discursos reacionário, expresso nos discursos dos literatos,
incidiriam principalmente sobre os novos sentidos contra a feminização da sociedade. Para
atribuídos à paternidade e às relações afetivas, Albuquerque Júnior, a tonalidade dos discursos
além das preocupações em torno da formação literários era a de condenar as transformações
do homem produtivo ligado à ideia de trabalho, sociais e valorizar o passado patriarcal. Houve
de comportamentos ordeiros e disciplinados, um resgate dos elementos que compunham a
que deveriam compor a cena urbana, o masculinidade rural diante da frivolidade do
espaço público, de caráter eminentemente mundo urbano.
masculino nessa nova configuração moderna. No Piauí, todavia, essa configuração
Em suma, o que marca as diferentes fases ocorreu de forma diferenciada. A proposta dos
da vida dos homens (a infância, inclusive, literatos era a de afastamento do mundo rural,
inventada nesse meio) é a tentativa de de aproximação com o mundo das letras e de
modelação discursiva de suas experiências a configuração de novos homens urbanos e
partir da atividade literária, que, a todo custo, intelectualizados. Enquanto o Movimento
buscava se distanciar dos elementos e do Regionalista em Pernambuco, do qual Gilberto
tradicionalismo rural, através da transformação Freyre fazia parte, via na figura do homem de
dos aspectos que compunham a masculinida- letras a ameaça do patriarcalismo rural e a
de. Esses discursos, ainda que tentassem alterar feminização da sociedade, os literatos do Piauí
o que era tido como ser macho, guardavam enxergavam nesse mesmo homem novas
em seu bojo uma essência indiscutível: a formas positivas de ser masculino. Enfim,
dominação masculina sobre a feminina. Nesse delinearam-se expectativas de masculinidades

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distintas para uma mesma região, o Nordeste, DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano:
que, assim apontadas, denotam a importância artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
da continuidade de pesquisas sobre essa HALL, Stuart. “Quem precisa de identidade?”. In:
temática na atualidade. SILVA, Thomaz Tadeu da (Org.). Identidade e
Notas diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. P. 103-133.
1
Rachel SOIHET e Joana Maria PEDRO, 2007.
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. “A
2
Michel DE CERTEAU, 2008.
emergência da pesquisa da história das
3
Stuart HALL, 2000, p. 125.
4
ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2003. mulheres e das relações de gênero”. Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 27, p.
Referências bibliográficas 281-300, 2007.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de.
Nordestino: uma invenção do falo. Maceió: Mário Martins Viana Júnior
Edições Catavento, 2003. Universidade Federal de Santa Catarina

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