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Denilson Lopes
A história da homotextualidade na literatura brasileira ainda está por se fazer, apesar de artigos e
teses pontuais. Mesmo um trabalho fundamental sobre a homossexualidade brasileira, Devassos no
Paraíso de João Silvério Trevisan, no qual foi incluída uma apresentação da produção cultural, não
ultrapassa muito os limites de um levantamento introdutório.
A questão inicial e condutora para este trabalho remete a uma pergunta clássica mas inevitável: em
que um olhar crítico homoerótico acrescenta à cultura brasileira e como a representação da
homossexualidade se torna ou não estrutural a sua literatura. Partimos do pressuposto de que a
sexualidade entra na definição do texto, e não só por aspectos ideológicos ou biográficos, bem
como para além da determinação dos topoi eróticos (ver STOCKINGER, J.: 1978, 2). Há,
freqüentemente e com justiça, a justificativa de que a história de grupos oprimidos resgata uma
memória fundamental para se entender o preço da história dos vencedores, mas para além do
ressentimento ou mitificação de uma história de resistências, a construção de memórias
alternativas se constitui em um referencial político central para a constituição de uma sociedade
multicultural. Nesse sentido, a normalização da heterossexualidade no Brasil, travestida por uma
aparente flexibilidade sexual, seja por parte das elites, seja por parte das classes populares, ganha
novos contornos para compreender as relações entre poder e sexualidade, seus processos de
exclusão, seja no quadro das identidades individuais, seja no de uma identidade nacional. Se a
cisão entre homossexualidade e heterossexualidade é central para o processo modernizante
ocidental a partir do século XIX, como ficaria então a problemática gay onde nunca houve um
projeto moderno hegemônico?
Para tanto, estamos procedendo a um levantamento, que se não se pretende exaustivo, mas tão
completo quanto possível, de como a problemática das relações homoeróticas emerge através de
personagens, comportamentos, temas. Mesmo que isso não seja estrutural a obras estudadas ou só
repetição de estereótipos das ideologias oficiais, é importante, ao menos num primeiro momento,
não descartar esses momentos literários, verdadeiros traços, ruínas de uma história sufocada,
residual. Evidentemente, isso não é suficiente, é necessário buscar construir o solo que possibilitou
a emergência decisiva de uma homotextualidade de qualidade, para além de obras isoladas,
momento que só de dá no interior da literatura contemporânea. Para tanto, ainda estamos
levantando possibilidades de articulação das obras, na moldura de uma historiografia homoerótica,
desconstrututora da dualidade homossexualidade/heterossexualidade, apesar da dificuldade de
encontrar uma bibliografia teórica específica que ultrapasse a problemática de uma história da
homossexualidade ou estudos de casos em moldes antropológicos ou sociológicos. A divisão por
gêneros literários, sugerida inicialmente, parece ser artificial, na medida em que os discursos sobre
a homossexualidade transitam entre os diversos gêneros, ainda que determinadas representações
possam ser mais visíveis num gênero que em outro, como um imaginário pedófilo na lírica, ou a
troca de sexos na comédia de costumes. É necessário também não cair numa soma de
microanálises, nem biografismos fáceis. Sem também repetir visões contextualistas ou teorias de
reflexo, é necessária a delimitação de uma perspectiva sócio-histórica que se construa na
delimitação de constelações de obras, de eixos articuladores e não simplesmente pela utilização de
categorias tão vagas que se perdem nas brumas da ahistoricidade. Portanto cabe aqui a tarefa de
como compor as redes de afinidades sem violentar a especificidade dos textos isolados, mas que
nessa tarefa de composição de linhagens, sejam fornecidos novos elementos para a análise das
obras singulares, que de outra forma permaneceriam pouco visíveis ou invisíveis.
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A exclusão dessa problemática na crítica e história literária brasileiras deve ser vista de forma
nuançada de modo que se procure entender a frágil emergência de um olhar crítico e uma produção
diferenciada no presente, bem como as razões do silêncio no passado, como o medo da
estigmatização e exclusão do establishment. Sem pretender impor ao passado anacronismos
simplificadores, é fundamental estabelecer um movimento de dois sentidos entre o passado e o
presente, que eventualmente atualize obras do passado ou torne obras do presente menos isoladas,
a ponto de ser melhor falar em marginalização do que exclusão, ou mesmo, em processos de
diferenciação simultâneos à maior segmentação da sociedade e do mercado.
Com o Naturalismo, é que se pode falar da emergência de uma prosa homotextual no Brasil, que
terá implicações na representação do homossexual até o presente.
No romance Bom Crioulo de Adolfo Caminha (1895) hoje incensado dentro e fora do Brasil, como
uma obra pioneira, a representação da homossexualidade adquire um elemento central na narrativa
e não só como um dado circunstancial ou estereotipado como vamos ver em tantas outras obras na
literatura brasileira pelo século XX a dentro.
O romance tem como espaço central o navio e como figuras homoidentitárias, todas marcadas pela
ambiguidade, o macho gay, o adolescente e a mulher masculinizada. A associação entre vida
marítima e homossexualidade tem um lugar já bastante marcante no imaginário gay internacional,
de Jean Genet, Kenneth Anger aos desenhos de Tom of Finland, mas em Bom Crioulo , esta
associação está longe de uma atmosfera marcada por voyeurismo e culto do corpo que têm nas
barbies suas representações máximas na contemporaneidade. Diferentemente aqui, trata-se de
uma estória de busca de liberdade. O protagonista, o negro Amaro, encontra na marinha, num
primeiro momento, a libertação de sua condição de escravidão nas fazendas. Mesmo a rígida
disciplina da marinha, a cuja violência somos apresentados já no primeiro capítulo com o uso da
chibata como punição, não apaga a conquista de uma identidade de homem e de homem livre.
Amaro, o Bom Crioulo, faz-se forte no corpo e no caráter, respeitado por todos. Mas depois de 10
anos de trabalho duro, o trabalho na sua rotina se torna em nova prisão. É nesse momento, que se
dá o encontro de Amaro com o grumete Aleixo. O caráter pedagógico que se instaura, faz de Amaro
um introdutor para Aleixo da vida de marinheiro, como um protetor, ao mesmo tempo que a
revelação de desejo abre um novo horizonte para o solitário marinheiro, virgem até os 30 anos (p.
79). A mais livre expressão desse desejo só vai ocorrer no sotão de uma pensão no Rio de Janeiro,
um simples quarto se torna em "museu de cousas raras" (p. 106?), repleto por objetos e móveis de
fantasia rococó (p. 93), anunciador de todo um gosto pelo artifício que se cristaliza com o camp,
mas também espaço de liberdade ainda que privado, momento de pausa na vida à deriva pelo mar,
onde pode se apresentar sem limites essa "amizade inexplicável" (p. 67), paraíso para uma vida
regrada e calma (p. 94), "pequena família" (p. 100) que acaba por implodir diante da entrada da
dona da pensão não como mãe mas como amante de Aleixo, mas que em nenhum momento parece
provocar escândalos entre os personagens com que o então casal estabelece relações. Amaro e
Aleixo andam de "braço a braço" na rua (p. 84) e a dona da pensão em que os dois se hospedam,
Carolina, aceita Amaro, sem mais problemas, como não sendo "homem para mulheres" (p. 91/2).
Apesar do romance ter aparecido num momento em que a constituição da homossexualidade como
doença e crime, nos discursos jurídicos e médicos, pretensamente científicos são difundidos, não há
uma afirmação unívoca desse discurso. No romance, trava-se uma luta entre o narrador que
nomeia, explica e censura e a frágil voz dos personagens, identificando a relação entre Amaro e
Aleixo como "delito contra natureza" (p. 74), "gozo pederasta", "semelhante anomalia" (p. 78), mas
que logra se expressar. Curiosamente para um romance marcado pelo Naturalismo, o discurso
amoroso, transita da fúria erótica, apresentada por metáforas animalescas, afirmadora da cisão
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entre masculino e feminino (touro/fêmea), a uma representação mais próxima do Romantismo, tal
a adoração e devoção que Amaro vota a Aleixo, que culmina num final trágico das grandes estórias
de amor. E disso que se está falando, de um amor mais forte que o desejo e que a própria vida.
Esta seria já uma grande vitória do romance, ultrapassando os preconceitos de uma sociedade
rigidamente hierarquizada, o discurso amoroso mais nobre emerge num personagem negro, pobre
e homossexual. Por sua vez, Aleixo também se emancipa de seu papel de objeto de desejo, fetiche
sem voz, "carnalidade grega" (p. 73), abandonando a timidez do adolescente andrógino -
"faltavam-lhe os seios para que (...) fosse uma mulher" (p. 98), "uma rapariga que se vai fazendo
mulher" (p. 99) - pela desfaçatez ou pragmatismo do adulto que não hesitaria em trocar Amaro por
outro que lhe pudesse dar mais benefícios (p. 110). Para Aleixo, Amaro é "uma boa criatura" (p.
111), mas por quem a estima que sente não é "uma sangria desatada que não acabasse nunca" (p.
109). Amaro passa a ser para Aleixo "o que um animal de estima é para seu dono - leal, sincero,
dedicado té ao sacrifício" (p. 151, confirmar), e por fim, um peso (p. 153/4). A complexidade e
ambivalências do desejo também se expressam em Amaro, no desejo de "encontrar rapariga de sua
cor" (p. 129/30) e na constatação melancólica: "neste mundo a gente vive enganada... Quanto
mais se estima uma pessoa, mais essa pessoa trata com desprezo" (p. 125). Em Amaro, contudo, a
paixão só cessa com a morte, passando pela degradação da bebida, da humilhação e da violência
de ser surrado em público, que o leva ao hospital, cada vez mais longe da "liberdade absoluta de
proceder, conforme o seu temperamento,
amor físico por uma criatura do mesmo sexo que o seu, extraordinariamente querida como Aleixo"
(p. 153/4) Aleixo que iniciara Amaro no amor, fazia-o "sofrer as amarguras de uma vida de
condenado" (p. 158). O hospital, como se vê, longe de lugar de repouso, se constitui para Amaro,
mais do que uma prisão, verdadeiro inferno, em que o vazio interior não se atenua mesmo com a
cura do corpo. O fim de Amaro é composto por uma ressignificação de espaço. A cidade se torna
um labirinto e o quarto, antes "espaço de felicidade", acaba por ser "o túmulo de suas ilusões".
Seguindo a linha dramática, mas não apelativa do romance, já evidenciada no primeiro castigo
mostrado no livro, que é contrastado como uma panorâmica de cinema, com a aragem leve que
passa (p. 30, confirmar), também o final evita closes e detalhismos. Vemos apenas o corpo morto
de Aleixo, mas não a briga, enquanto Amaro segue aprisionado definitivamente pelos rumores e o
poder da cidade.
Na figura de Carolina de "mulher-homem" (p. 118) que vê em Aleixo "algo feminino" (p. 153/4) se
cristaliza uma proto-imagem da lésbica enquanto mulher forte, ativa, seja pela liberdade de seu
comportamento sexual, como na prostituta que seduz Pombinha em O Cortiço de Aluísio Azevedo
(1890), seja por ser associada ao mundo tradicionalmente masculino do trabalho e do poder, na
tradição das donzelas guerreiras, de Luzia-Homem de Domingos Olímpio (1903) a Diadorim do
Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa (1956).
Em contraponto à franca explicitação das relações entre Aleixo e Amaro, bem como o vocabulário
direto, O Ateneu de Raul Pompéia (1888), publicado sete anos antes do que o Bom Crioulo, não
poderia ser melhor, aqui já como uma representação da sexualidade das classes dirigentes. Vítima
de um silêncio da crítica maior ainda no que se refere a sua homotextualidade, temos aqui a
instauração de um outro espaço francamente masculino e fechado, o internato, onde ocorre um
aprendizado existencial do protagonista para o qual é fundamental a construção de sua identidade
afetiva e sexual. O Ateneu é muito mais virulento do que o Bom Crioulo na crítica às sociedades de
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controle e punição. Basta lembrar a caricatura feroz feita do diretor do colégio e a conclusão do
romance, com o incêndio do prédio da escola. Desde o início, a questão da sexualidade se articula
com a do poder, de modo que a divisão entre alunos masculinos e femininos, é também uma
divisão entre fortes e fracos, nitidamente
misógina e homofóbica. O poder sexualizado faz de toda relação uma dependência e uma violência,
em que "os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue" são "as meninas", o "sexo da fraqueza" (p.
28), como anuncia desde o início o aluno intelectualizado Rebelo ao protagonista. Em meio à
imposição dessa dualidade, o sensível protagonista Sérgio, oscilará entre um e outro extremo, de
protegido pelo aluno mais velho Sanches, ao independente marginalizado e solitário, com uma
provável definição para o pólo masculino no final, após a ruptura da amizade especial com Egberto,
a única relação igualitária apresentada no texto, como se a ambiguidade fosse algo, a ser no
máximo tolerada apenas na adolescência ("certa efeminação pode existir como um período de
constituição moral" - p. 72), mesmo assim a duras penas, como uma provação na constituição do
caráter de um jovem, inserido numa sociedade rigidamente dividida e hierarquizada entre o
masculino e o feminino, e por consequência, o que não se ousava dizer então, entre heterossexuais
e homossexuais, estes violentamente silenciados, como vemos no julgamento público de Cândido.
Para o bem da moral vigente, as amizades particulares não devem cruzar o horizonte da
sexualidade, com o risco de sua ruptura como acontece na relação de Sérgio e Egberto, como
também no conto "Frederico Paciência" de Mário de Andrade (1947), no qual a escrita é um ato de
lembrança e ao mesmo tempo afastamento da vida ("A imagem dele foi se afastando, se afastando,
até se fixar no que deixo aqui" in DAMATA, G.: 1968, 99), de forma mais sutil e delicada, na tensão
do desejo entre dois primos em "Prelúdio" de Harry Laus (1989), e de forma igualmente sutil mas
irônica, em "Pílades e Orestes" de Machado de Assis (in DAMATA, G.: 1968) e mesmo em O
Encontro Marcado de Fernando Sabino (1956), em contos de Renard Perez que possuem uma tom
de homossocialidade ambíguo ou de homossexualidade latente, nos quais sempre paira uma
suspeita, uma mistério nos encontros masculinos, "uma secreta pulsação" em "A Visita" (1979, 90),
em que o estranho na noite acaba por se revelar como um amigo do protagonista em "Sábado"
(1979), colocando em cena o bar como um tradicional espaço de afirmação da masculinidade em "A
Bebedeira" (1976) e "Briga de Bar" (1979) ou nos momentos de fraternidade masculina em "Banca
de Jornal" (1979) e "A Farra com Benedito" (1973), neste último, o protagonista atravessa a cidade
para beber com um porteiro. Ao explicitar os não-ditos em Renard Perez, "Madrugada" de Caio
Fernando Abreu in Inventário do Ir-remediável aparece como um texto revelador da homofobia em
espaços masculinizados . Acentuando o estabelecimento de um jogo de sedução e fascínio entre um
homem heterossexual e outro homossexual seria interessante também mencionar "Futebol
Americano" no Banquete de Silviano Santiago.
A crítica aos internatos também se dá na medida em que ela instauraria "uma efeminação
mórbida", uma "letargia moral" (p. 35), hipocritamente escondida. Se a relação de submissão que
Sanches espera de Sérgio é francamente condenada, a relação meio platônica, meio fraternal, que
se estabelece entre o protagonista e Bento já é vista com mais tolerância. Sérgio adulto, o narrador
do romance, afirma sem meias tintas em relação a Bento: "Estimei-o femininamente, porque era
grande, forte, bravo; porque me podia valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não
tivesse ânimo de ser amigo" (p. 72). Sérgio é uma "dama romanceira" e Bento, "gentil cavalheiro"
(p. 84). Relação que acaba com uma "briga inesperada" (p. 106), como uma explosão do desejo
inomeado, após a qual Bento sai do colégio. O romance ataca, portanto, a pouca virilidade desses
espaço, sua permissividade sob a capa de uma falsa moral que valoriza sobretudo a aparência e o
poder do dinheiro. Contudo, algo se representa para além da "comédia colegial dos sexos" (p. 105),
forma com que são vistos com suprema mordacidade os jogos de sedução entre os adolescentes.
Através da relação entre Sérgio e Egberto, retoma-se uma visão idealizada da amizade - "tudo que
nos pertencia era comum" (p. 111) - em que a relação parece um idílio romântico num mundo de
violências. Idílio novamente que termina à sombra da manifestação do desejo. Egberto é envolvido
no caso rumoroso da expulsão de Cândido, que mantinha relações com Emílio, outro aluno do
internato. Simultaneamente ao silêncio constrangido entre Egberto e Sérgio, após o escândalo,
Sérgio se sente atraído pela esposa do diretor. Egberto passa a ser "uma recordação" (p. 117), a
amizade, "coisa insuficiente", como se necessitasse de algo mais, que só uma mulher poderia lhe
propiciar, uma "selvageria amordaçada de afetos" (p. 121). O trajeto se conclui com a exclusão de
qualquer desejo ambíguo. A destruição do Ateneu também é a destruição de um espaço em que a
homossexualidade, malgrado todas as condições, poderia ser vivenciada, ainda que num
homoespaço homofóbico. Nesse sentido se a escola seria um microcosmo e fruto da sociedade a
que ela pertence, como o professor Cláudio defende (p. 128). O lugar da homossexualidade só é
possível enquanto margem silenciada. Na medida em que ela se expressa, só pode ser excluída.
Mas para onde iam os expulsos da sociedade?
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Passados os dois grandes romances de fim de século, quanto mais a modernidade avança a
homotextualidade se apresenta de forma menos ostensiva, presente em contos e poemas, mas que
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Mas antes de entramos decisivamente no período modernista, um nome merece ser lembrado,
como uma alternativa diferenciada aos romances até aqui mencionados: João do Rio. Pelo menos,
em dois de seus contos, "Histórias de Gente Alegre" e "O Bebê de Tarnatana Cor-de-Rosa" (faltam
outros dois contos), o espaço público aparece, particularmente o mundo mundano da alta
sociedade. Não só um novo espaço é vislumbrado, mas a aparição da homossexualidade assume
um tom visivelmente finissecular, decadentista, associada à perversão, cuja distância dos padrões
da moral burguesa atrai (ver "Cidade do Vício e da Graça" de Ribeiro Couto e o carnaval em "Terça-
Feira Gorda" de Caio Fernando Abreu em Morangos Mofados, em que a ambiência aparentemente
permissiva do carnaval explode em violência homofóbica). Seja sob a ironia cáustica de João do Rio
que talvez só encontre um seguidor menor no Darcy Penteado de A Meta (1976), seja sob o humor
de que as situações de confusão sexual despertam, como nas peças de Coelho Neto ("Mistérios do
Sexo"), e de forma mais sofisticada e posteriormente, em Qorpo Santo, a homossexualidade quase
teve seu momento de moda na Belle Époque. É bom lembrar que a figura da bicha afetada como
algo entre o risível e o patético teve uma extrema fecundidade, de Nelson Rodrigues a peças e
novelas televisivas de consumo rápido
Com o Modernismo e na chamada alta Modernidade, não parece ser simplificado dizer que as
possibilidades geradas pelo final do século XIX e início do século XX na constituição de uma arte
homoerótica não são desenvolvidas. Há o predomínio de homotextos breves, sobretudo contos, em
detrimento dos romances e, em geral, isolados nas obras dos escritores. Predominam o silêncio e,
quando visíveis, a afirmação de estereótipos risíveis ou imagens de desejo homoerótico como algo
impossível, destinado ao fracasso, com poucas exceções de qualidade. Talvez ainda, em termos de
conjunto de obras, possa apenas falar na emergência decisiva de uma nova figura da identidade
homoerótica, o culpado, marcado por uma forte angústia religiosa e/ou existencial, que gerou uma
linhagem de relevância. Nesse viés é que podemos situar alguns trabalhos de Otavio de Faria, com
seus personagens torturados pelo pecado, e em um tom menor, de Walmir Ayala, com seu
derrotismo humilhado, bem como a obra-prima de Lúcio Cardoso, Crônica de uma Casa Assassinada
(1959), onde a aparente solidez de uma família patriarcal é corroída por uma linhagem da
diferença, que inclui uma antepassada que se vestia de homem, a amazona Maria Sinhá, a
estrangeira e mulher de personalidade forte Nina, o adolescente andrógino André, último dos
herdeiros, mas que tem sua expressão máxima em Timóteo, travesti isolado no seu quarto, usando
as roupas de sua mãe enquanto seu corpo incha disforme, dilacerado entre a procura da verdade e
da beleza. Personagem magistralmente interpretado por Carlos Krober na adaptação homônima
feita para o cinema por Paulo César Saraceni (1971), encarna, sobretudo a centralidade do artifício
na constituição de uma identidade e uma estética homoerótica, que culmina num ato espetacular
de destruição, como no personagem de "Prisioneiro da Nuvem" de Samuel Rawet: "a morte, uma
ficção" (1981, 67) ou de perda na própria encenação, como diz em outro tipo de registro literário,
já mais naturalista, o travesti Eloína em República dos Assassinos de Aguinaldo Silva /1976, 105):
"eu não teria coragem de dizer que sou um cidadão, porque a verdade é que, após todos esses
anos de confusões e fingimentos, nem ao menos sei mais o que sou". Para além do horizonte
católico, mas dentro do quadro de uma profunda angústia existencial, marcada pela culpa mesclada
à excepcionalidade se situa o trabalho de Rawet, como no conto "O Seu Minuto de Glória" (1967),
em que orgulho e humilhação afloram tensos antes de um espetáculo de transformismo, lembrando
um ensaio do próprio autor: "qualquer especulação sobre a angústia é inferior à angústia" (1978,
24), que encarna a fala de uma outra figura importante na representação da homossexualidade, o
solteirão que se na conhecida obra de Gasparino Damata, justamente Os Solteirões, tem um tom
mais coloquial, na perspectiva de Rawet assume a carga de uma solidão descomunal em meio a um
mundo de esperas vãs: "Passamos a vida inteira à espera de um homem que nos diga algo de
fundamental, e quando percebemos vagamente que talvez ele já nos tenha procurado, não
podemos deixar de concluir com amargura que nós não o soubemos ouvir, e muito menos
identificar. Esperávamos sem estar preparados para a espera. E por acaso, esse homem foi talvez o
único a que humilhamos" (1964, 38). (ver Lya Luft)
Passando mais decisivamente para os anos 60, parece que "foi então que aquela coisa que ele mal
ousava chamar amor, transformou-se em amor" (AYALA, W. in DAMATA, G.: 1968, 265), finalmente
as ruas da cidade se tornam espaço de visibilidade de personagens gays, seja numa tônica entre o
libertário e o panfletário, reveladores até
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do lado odara de tantos super-homens, seja simplesmente com um tom neo-naturalista, que
mescla as questões de sexualidade com as mazelas sociais, econômicas e políticas de uma país que
implementa cada vez mais um projeto modernizante excludente, às sombras de um regime
autoritário. "Para o ser marginal, o deslocamento é, simultaneamente, liberdade da condenação e
um ímpeto para o crescimento idiossincrático, individual" (STOCKINGER, J.: 1978, 8). É nesse
momento que surge a primeira coletânea que privilegia a questão gay na literatura brasileira, ainda
que não seja exclusivamente sobre isso, trata-se de Histórias do Amor Maldito (1967), organizada
por Gasparino Damata, da mesma forma que O Erotismo no Conto Brasileiro, organizado por
Edilberto Coutinho. Como nos lembra o autor do prefácio de Histórias do Amor Maldito, Octávio de
Freitas Jr, num tom afinado com os anos 60, o importante do livro é que ele "expõe dramas
humanos onde se coloca o problema da legitimidade existencial ante estruturas convencionais",
perguntando-se se no futuro "haverá ainda amores malditos" (p. 13). Seguem as coletâneas
organizadas em inglês por Winston Leyland sobre literatura gay latino-americana (1979, 1989),
bem como uma mais recente, voltada para contistas contemporâneos brasileiros, organizada por
José Carlos Honório, O Amor com Olhos de Adeus (1995). O que dá sinal do interesse em relação
ao assunto, dos anos 60 para cá, dentro e fora do Brasil. Mas voltando a primeira coletânea,
Gasparino Damata não se encontra sozinho, autores como Luiz Canabrava (O Sexo Portátil, 1968),
Darcy Penteado (Crescilda e os Espartanos, 1977) e Aguinaldo Silva apresentam uma narrativa
direta, neo-naturalista, sem a intervenção de discursos pseudo-cientificizantes, em busca de uma
imagem que seja algo mais do que uma auto-negação: "Estou farto de ser um espelho. Sim,
espelho, porque quando nos olhavam, no fundo da minhas órbitas nada mais viam senão sua
própria imagem" (SILVA, A.: 1975, 78). Dizer em alto e bom tom o que se é, em tom libertário,
parece marcar o momento do fim da era do silêncio: "Agora sou realmente um só, o mais forte,
aquele que pode dizer sem medo e responder quando perguntado - EU" (idem, 106). Mesmo que o
cotidiano seja bem mais duro, sobretudo daqueles que são lançados num mundo à parte, num
"desordenado império" (SILVA, A.: 1976, 107). Entre uma literatura demasiado presa a uma
intenção de documentar a realidade em meio a um fascínio intelectual pelo mundo do bas-fonds e
recursos alegóricos, transitam esses autores. Merecem ainda destaque trabalhos que colocam em
cena a associação entre repressão política e repressão sexual, tanto por parte dos conservadores,
quanto no cerne dos movimento de esquerda, visto como mais uma desses mundos francamente
masculinos, como o romance Nivaldo e Jerônimo de Darcy Penteado (1981), o pungente e liberador
aprendizado dos sentidos em Meu Corpo Daria um Romance de Herbert Daniel (1984), seja obras
menos convencionais como a de João Silvério Trevisan (Testamento de Davi Deixado a Jonathan,
1976) e Silviano Santiago (Stella Manhattan, 1985), fugindo do tom neo-naturalista ou de
alegorias.
De forma mais periférica e marginal a opções vencedoras na literatura que rimavam sexualidade e
política, poderíamos destacar a obra de Glauco Mattoso, que pela fusão entre o abjeto e a paródia,
dão um novo sentido à poesia obscena, com marcas homoeróticas, cuja linhagem no Brasil vem
desde as obras de Gregório de Matos, inclui poemas de Laurindo Rabelo e a obra redescoberta
recentemente de Paulo Velloso, Paulo e Guilherme Santos Neves, Cantáridas e outros Poemas
Fesceninos. Em Memórias de um Pueteiro de Glauco Mattoso (ver também Jornal Dobrábil) , há um
forte fascínio pela impureza, onde persiste a centralidade do orgânico, especialmente da merda, e
do genital, especialmente o cu ("A merda é mais universal que o Esperanto. As bocas têm muitas
línguas; o cu apenas uma" - 1982, 24) e o pênis, desenhados por todo o texto. O próprio ato de
escrever e pensar é associado a cagar (idem, 27, 42, 49). A merda é resgatada não simplesmente
como resto, resíduo, o menor, mas numa inversão, como central, associável às minorias, cuja luta é
considerada como "maior" (idem, 40), compreensivamente contra o jargão de esquerda nos anos
70, retomando ou colocando na boca de Garcia Lorca a provocação: "tres cosas solas en el mundo,
que el heterosexual no comprenderá nunca: libertad, igualdad y fraternidad" (idem, 48). É na
espiritualização da merda que residiria o próprio segredo da arte (idem, 29) que ganha mesmo um
"Manifesto Coprofágico" (idem, 43):
A impureza encontra do ponto de vista textual um cultivo sistemático da plágio, da citação e auto-
citações explícitas, num gesto de bricoleur anárquico, negador dos valores de originalidade e
novidade, que tanto orientaram o discurso vanguardista. O humor feroz descontrói qualquer dicção
mais elevada ou grandiloquente. "Dorme com menininhos e amanhecerás borrado. Dorme com
meninões e amanhecerás porrado" (1982, 23).
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No quadro de uma trajetória sentimental e existencial, é que podemos situar a passagem de toda
uma homotextualidade marginal cada vez mais para o centro da literatura brasileira
contemporânea, especialmente na apresentação de redes afetivas alternativas à repro-sexualidade,
esta significando "mais do que reproduzir, mais mesmo do que uma heterossexualidade obrigatória,
envolve uma relação com o eu que encontra sua própria temporalidade e realização na transmissão
geracional" (WARNER, M.: 1991, 9), portanto crítica de uma repro-narratividade, "noção que nossas
vidas têm, de alguma maneira, mais sentido por estarem inseridas numa narrativa de sucessão
geracional" (idem, 7), que afirma, historicamente, a sucessão de escritores heterossexuais
brilhantes ou cujo brilhantismo nada tem a ver com questões de sexualidade.
Foi necessário mesmo um ajuste de contas com a infância e a adolescência, cerceada pela família e
pela moral, em narrativas intimistas, entre o memorialismo e o diário, que fazem do adolescente
tímido uma outra figura importante, tanto no Limite Branco de Caio Fernando Abreu (1971) , em
Aquele Rapaz de Jean-Claude Bernardet (1990), quanto nas novelas publicadas por Silviano
Santiago (especialmente "Pai e Filho") em Duas Faces, aparecendo a adolescência genérica e
explicitamente como "a dor coletiva dos que perderam a voz" no conto "Sobreviventes" , publicado
em Troços e Destroços de João Silvério Trevisan (p. 38). Textos, em geral, de formação dos
autores, desajeitados, tolos, belos e necessários não só para a realização de obras maduras, mas
para a implosão de espaços de exclusão e estereótipos. "Sargento Garcia" de Caio Fernando Abreu
(Morangos Mofados, 1982) retoma a figura do adolescente mas já se lançando na vida. O temor não
impede que a iniciação sexual ocorra, nem glamourizada, nem traumatizante, com o sargento que o
dispensa do serviço militar, e da qual o protagonista consegue extrair uma possibilidade. "Meu
caminho, pensei confuso, meu caminho não cabe nos trilhos de um bonde" (p. 92). Como também
acontece em "Pequeno Monstro" (Os Dragões não Conhecem o Paraíso), em que a sensação de ser
diferente no protagonista adolescente se desfaz quando conhece um primo mais velho, com quem
tem uma primeira experiência sexual. Encontro fugaz mas liberador de prisões internas. Memória
incrustada no corpo, esperma na mão. "Sozinho na sala, em silêncio, eu não era mais monstro.
Fiquei olhando minha mão magra morena, quase sem pêlos. Eu sabia que o primo Alex tinha ficado
para sempre comigo. Guardado bem aqui, na palma da minha mão" (p. 146). Quando as energias
utópicas e rebeldes que agitaram os anos 60 e parte dos 70 começam a perder força, um horizonte
pós-moderno constituído e interpretado por desejos e identidades homoeróticas emerge. Paisagens
entre a melancolia e a alegria possível, a deriva sexual e o temor da AIDS, a solidão e a ternura, a
desterritorialização e a busca de novos tipos de relações. É nesse sentido que pode ser entendido o
melhor da obra de Caio Fernando Abreu, o último livro de Silviano Santiago, Keith Jarrett no Blue
Note (1996), bem como trabalhos de José Carlos Honório, Jean-Claude Bernardet, João Gilberto
Noll, Bernardo Carvalho, letras de Cazuza e Renato Russo, poemas de Ana Cristina César e alguns
contos de Edilberto Coutinho.
A dificuldade de um vocabulário institucionalizado que fale e sirva de referência clara a cada nova
geração faz de todo ato de sedução uma educação dos afetos, entre a criação de códigos e
estratégias para se escapar da humilhação, como no conto "O Bem-Amado" de Dalton Trevisan,
onde numa narrativa sintética, um encontro noturno é narrado, da repulsa à aceitação. Já a
visualidade em Edilberto Coutinho não só retoma o exemplo do menino que seduz o mestre, de
Morte em Veneza de Thomas Mann ao "Iniciado do Vento" de Aníbal Machado, mas afirma o caráter
pedagógico da jovem diante do velho em "Azeitona e Vinhos" (1979), como nos lembra Silviano
Santiago em "O Narrador Pós-Moderno" em Nas Malhas da Letra (1989). bem como apresenta os
subtextos homoeróticos nas relações entre homens, como no conto "Rafael Donzela" (1979), onde a
moldura de uma estória contada paralelamente a que está acontecendo, cria um jogo de reflexos
entre os personagens masculinos da estória passada e da estória presente, mas também, de forma
mais explícita, a masculinidade aparece como mais uma encenação em "Sangue da Praça":
"Ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tão viril quanto ele gosta de posar que é" (1983, 67).
A busca da sutileza, da leveza também varia do tom seco, mas elevado dos versos de José Carlos
Honório (1992, 96),
"o momento
para dizer
coisas banais
não é este"
que cria um clima atmosférico, de dúvidas, e desencontros. No fascínio por paisagens em que o mar
na sua indefinição é recorrente, análoga a dificuldade de falar de emoções complexas na sua
dispersão, na expectativa de que algo aconteça, uma definição adiada ("Cansou de parecer feliz
para as pessoas" em "Lim", p. 97), a valorização da atmosfera em Céu Nu e a Biruta de José Carlos
Honório (1990) atinge o limiar mesmo de uma prosa poética , onde o seu melhor está na
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ambiguidade conseguida pela concisão (como "Houve. Agora vai acontecer a minha história:" em
"Em Recusas", p. 85) e no seu pior beira uma verborragia auto-reflexiva, frases grandiloquentes,
discursos explicativos (como "Não sei nomear o que sinto. O sentimento só se nomeia quando o
peito se abre para o quase o infinito que é o mundo" em "Em Recusas", p. 77, ou "A paixão é
somente sexualidade e nunca o não. Meu desejo por, antes de ser um desejo de conhecimento
espiritual, é um desejo de corpo" em "Dois e Fontes", p.114) que suspende a narrativa em função
não só da introspecção, mas de epifanias suaves, em que o corpo se rarefaz, não se explicita na sua
materialidade ou só por breves traços genéricos, substantivos, como em "Lim", "Quando se Parte:
Até", "A Possibilidade", ou ainda mais expressivamente, no encontro poético entre o protagonista e
um menino em "Armando": "Ele bonito e em estado de achar bonito. Tudo é diferente então: tudo
passa a ser mágico. Não tocável" (p.13). Nesse conto que retoma sutilmente a ambiência
homoerótica de um navio, mas que acaba pela concisão verbal por rarefazer o próprio espaço,
desconcretizando-o, o olhar substitui o toque: "Na cozinha Mando era olhado por um menino que só
gostou de olhá-lo" (p.13). No olhar se concentra todo o esforço de compreender o desejo do outro,
de uma comunicação para além do próprio desejo. "Quando se pisca olhos dois e se abaixa os olhos
é porque algo de irremediável aconteceu à alma." (p.14). O olhar pode até se substituir à palavra
escrita ou à fala, mas a evanescência persiste. Não só os dois protagonistas têm o mesmo nome,
Armando, cindidos em Ar e Mando, mas para além de qualquer jogo de duplos ou fusões platônicas
de amantes, tudo parece se desinvidualizar. Figuras sem nome, sem rosto. Mesmo o toque, quando
acontece, desrealiza o corpo em favor da imagem. "Mando levou poucos instantes para abraçar com
as duas mãos a se confundirem, Ar. As costas e o beijo. A boca" (p. 22). A viagem marítima traduz
a deriva dos afetos, a procura do outro. No diálogo, Ar e Mando: "Eu tento entender a felicidade
mas nunca chego à conclusão satisfatória. Eu não quero que você faça nada. Quero que você me
goste. Acho que estou precisando. Preciso que alguém me goste hoje" (p. 24/5). "Eu não quero te
gostar hoje somente. O sempre é muito mas por enquanto ele. Nunca aconteceu isso comigo. Isso
de olhar alguém assim nos olhos e tão súbito" (p.25). Chegada do navio. Despedida. Só mais um
encontro? "Última coisa a ser dita: sempre será assim. Nunca o fim. Sempre o que se quer" (p. 27).
Há talvez um efeito-Lispector na homotextualidade brasileira, que deriva em uma narrativa tardo-
modernista entre o esteticismo de uma prosa poética e uma reciclagem anacrônica de uma prosa
introspectiva para um espaço de estranhamento mais que existencial, existencialista e mais de
deriva espacial entre personagens sem nomes. Desejo conservador de sublime ou de simples
encantamento em meio à banalização contemporânea?
A Aids no contexto homotextual aparece não com uma quantidade avassaladora, mas nada deve
em termos de qualidade, desde trabalhos de militante Herbert Daniel, especialmente suas
"Anotações à Margem do Viver com AIDS" (ver livro), ao relato direto, premente, de uma beleza
dura mas sem sentimentalismo de A Doença - Uma Experiência de Jean-Claude Bernardet (1996) -
"não perder tempo a não ser que seja de modo agradável com amigos. Escrever-lhes ainda que
tarde. Receber cartas deles, ainda que tarde" (p. 31) - passando pelo diálogo imaginário e
memorialista entre um narrador no presente, vítima de uma doença inomeada (como a AIDS, no
início, tal o seu temor) e um tio louco já morto, estabelecendo uma associação de figuras à
margem. Ainda o retorno à casa materna, como um repensar sobre o passado é o foco do conto de
abertura de Os Dragões não Conhecem o Paraíso de Caio Fernando Abreu (1988), "Linda, uma
História Horrível". Mas em Caio, a metaforização da AIDS em "Anotações sobre um Amor Urbano"
(Ovelhas Negras, 1995) não tem a função de ocultar a doença, como poderia criticar Susan Sontag
a partir do seu AIDS e suas Metáforas, mas para expressar uma insatisfação diante de uma pobreza
afetiva generalizada. "Tenho pressa, não podermos perder tempo. Como chamar agora a essa meia
dúzia de toques aterrorizados pela possibilidade da peste? (Amor, amor certamente não.) Como
evitaremos que nossa encontro se decomponha, corrompa e apodreça junto com o louco, o doente,
o podre?" (p. 205). "Até quando esses remendos inventados resistirão à peste que se infiltra pelos
ombros do nosso encontro?" (p. 206). Mais ainda assim persiste o desejo de manter um diálogo que
contrapõe o "eu aceito, eu me contento com pouco" ao "eu quero muito, eu quero mais, eu quero
tudo" (p. 205), uma linguagem afetiva que não teme dizer "gosto muito de você gosto muito de
você gosto muito de você" (p. 207), e mesmo o desencontro não apaga a vitória da procura d´"isso
que não está completo sem o outro" (p. 204), "amanhã não desisto: te procuro em outro corpo,
juro que um dia eu encontro. Não temos culpa, tentei. Tentamos" (p.208), uma estratégia, diria
mesmo ética, de sobrevivência. "Tantas mortes, não existem mais dedos nas mãos e nos pés para
contar os que se foram. Viver agora, tarefa dura. De cada dia arrancar das coisas, com as unhas,
uma modesta alegria; em cada noite descobrir um motivo razoável para acordar amanhã." (p. 207).
Já em conto posterior, "Depois de Agosto" (Ovelhas Negras), a sensação de tudo estar tarde demais
quase se inverte. "Talvez tudo, talvez nada. Porque era cedo demais e nunca tarde. Era recém no
início da não-morte dos dois" (p. 257). A viagem aqui ainda remete à possibilidade do encontro, em
que o Outro (assim mesmo com letra maiúscula), menos como salvador, mas todo moldurado por
uma possibilidade do sagrado no que é de mais cotidiano, emerge como num ritual, numa prece.
Por fim, a série de crônicas publicadas em Pequenas Epifanias (1996), em especial a "Última Carta
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para além dos Muros" em que o anúncio público de ser HIV positivo vem em tom direto e afetivo:
"Aceito todo dia. Conto para você porquê não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim
preciso te dizer: mudei, embora, continue o mesmo. Sei que você compreende" (p. 103). Despedida
feita, entre o amor à vida e a melancolia do tempo que passa, sem perder o humor, como na tirada
final: "futilidade é o que salva a gente" ("No Dia em que Vargas Llosa fez 59 anos", p. 187). Na
deriva afetiva e sexual contemporânea, a AIDS é não só um elemento de afirmação da condição
estrangeira do homossexual mas de redefinição de sua afetividade, de reencontro.
As ruas, mais do que espaço de encontro furtivo traduzem a deriva e instabilidade do desejo, que
do estigma gay passa a ser um lugar-comum da afetividade urbana. "Colhi este rapaz do oco da
noite/entre uma esquina e antigas angústias" ("Noturno" em Quase Sertão de Ítalo Moriconi).
Simplesmente, "preciso da rua/e de seus vértices que não se deixam agarrar" ("O Belo não é senão
a Promessa da Felicidade" em Quase Sertão de Ítalo Moriconi). A cidade não é mais cenário de
desejos mas o próprio desejo lhe é indissociável. Para além dos espaços, no retratamento da tensão
existente na deriva que possibilita encontros e desencontros das disidentidades contemporâneas,
entre as viagens e o desejo de casa, estabilidade, talvez a obra mais representativa seja a de João
Gilberto Noll, que representou nos anos 80 a versão brasileira mais bem sucedida de uma estética
de road movie, emoções traduzidas por imagens secas e vocabulário enxuto. No quadro geral de
uma pan-sexualidade, fica a questão se os encontros entre homens e rapazes ou meninos, como
em "Alguma Coisa Urgentemente" (in O Cego e a Dançarina, 1980), em Rastros de Verão (1986),
no desejo exacerbado de A Fúria do Corpo (1981) e mesmo no jogo de duplos masculinos, no
espaço entre Brasil e Estados Unidos, em Bandoleiros (1985), implicam a constituição de uma
homotextualidade, mas certamente seu último romance A Céu Aberto (1996), constrói um universo
onírico, elíptico, decisivamente homoerótico de uma guerra deslocalizada em que a deriva espacial
se conjuga à deriva do desejo.
Estabelecendo uma interecessão entre o romance epistolar a telenovela, como a orelha do próprio
livro aponta, Os Histéricos de Jean-Claude Bernardet e Teixeira Coelho, aponta para um horizonte
em que identidade frágeis, mas que incorporam questões de homoerotismo, na redefinição de
afetividades mais complexas. O jogo de cartas, de desencontros e encontros, faz dos personagens
seres mutantes, dependendo de quem está falando, mas que buscam algum sentido, alguma
comunicação. A carta aponta para uma certa anacronia, no mundo do telefone e do computador, ao
mesmo tempo que joga com a idéia de sinceridade e intimidade, como bem sabia Ana Cristina
César em A Teus Pés (1982). A histeria do título vem da própria exacerbação dos afetos("por que
recusar o melodrama, se é a única constante que resta de tudo que fazemos?" , p. 172), a
teatralidade ("Nunca quis ser ator, embora em seja um grande ator", p. 175) que leva a um cansaço
("Cansei, só isso. Não exatamente de você: devo ter me cansado de mim através de você". p. 175),
um descontrole que é também um abertura de possibilidades ("Um choro por tudo e por nada, um
choro por uma imensa felicidade, uma devastadora e minúscula tristeza", p. 185).
A tensão entre artifício e excesso dá o tom em "A Valorização" de Bernardo Carvalho em Aberração
(1993), na absoluta artificialidade do personagem chamado de ae (p. 15/6) e seu último desejo de
gastar todo seu dinheiro para lançar balões de gás em plena floresta amazônica, sem ninguém,
exceto o narrador, para presenciar (p. 14 e 26). Gesto excessivo e inútil contado pelo narrador,
entre cúmplice e herdeiro do personagem ae, mas também gesto de memória, ajuste de contas,
pois, sabemos desde o princípio que "esta é uma história de bicha velha. Sempre fui um velho
homossexual, desde garoto, e sei muito bem todo o ridículo que isso acarreta. ae sempre foi um
mau-caráter, desde garoto, desde quando o conheci" (p. 12). A problemática da memória também é
central, no último livro de Bernardo Carvalho, Os Bêbados e Sonâmbulos, no qual o protagonista
tem uma doença que o faz esquecer, ao mesmo tempo, em que ocorre uma busca desesperada de
um passado e presente evanescentes, de uma identidade frágil. Fragilidade que é transposta para o
narrador que aparece como personagem numa segunda parte, que mais funciona como um adendo,
supostamente a origem da inspiração da primeira parte (p. 118). Narrador à deriva entre desejos e
mortos. "Cada morte me despertava uma nostalgia da vida alheia. Eu não ter sido aquela pessoa"
(p. 122). Narrador-escritor que acaba por também se perder na paixão, num outro, que sempre se
lança no mundo, sem refletir, apenas se movendo entre espaços e amantes. "Ao conhecê-lo, anulei-
me por completo, perdi os meus valores em nome dos dele, sexo e dinheiro, as únicas coisas que
existem no mundo, era verdade. Todos os sentidos que até então tinham sustentado a minha vida
desapareceram. De mim não sobrou nada. Só ele" (p. 123). Mundo de procuras e esperas. que só
terminam com a morte.
"Adotei a delicadeza como última arma num mundo de ameaça e agressão permanentes" (AYALA,
W.: 1963, 110 ou 118). È num estilo entre o intimismo clariceano e o alegórico que está a primeira
coletânea de contos de Caio Fernando Abreu, escrita em 1969 e revista para publicação em 1995,
Inventário do Irremediável. A singeleza e emotividade que seriam uma marca forte do escritor já
aparecem em esboço ainda que sob a égide do temor, num mundo onde "ver é permitido mas sentir
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já é perigoso" (p.15) e "existir me dói feito bofetada" (p. 117). Mundo adolescente, povoado de
solidão e dor, como aparece no conto "Domingo" ou "Meio Silêncio". "É tudo tão bonito que me dói
e me pesa" (p. 96). Mas já o encontro começa a suplantar a solidão, mesmo que em palavras
balbuciadas. e gestos tímidos. "Ergue o braço lentamente, afunda as mãos nos cabelos do outro. E
de súbito um vento mais frio os faz encolherem-se juntos, unidos no mesmo abraço, na mesma
espera desfeita, no mesmo medo. Na mesma margem." (p. 98). A recusa da vida, a solidão, o
desejo de fuga para longe de casa aparecem também em Limite Branco, primeiro romance do autor
(1971), em que fragmentos da memórias mesclados a trechos de diário bem se casam nesse
registro melancólico de um adolescente sensível. "Hoje não me sinto menos só, apenas meio triste"
(p. 82). A ternura e uma falta indefinidas compõem o quadro de um introspectivo, mas que não se
rende. "Gosto de tudo o que ameaça morrer e de repente se levanta, mais vivo ainda,
surpreendendo a todos" (p. 84). Ainda em O Ovo Apunhalado (1975), fantasmas alegóricos povoam
os contos, como o protagonista solitário de "Réquiem por um Fugitivo", à espera de um anjo. A
ambiência opressora e um clima contracultural pairam sobre essas estórias de solidão e fantasia,
quase à beira da heroicização da diferença, como no alegórico "Eles". Em "Retratos", o encontro
entre um velho funcionário e um rapaz hippy ecoa a estória de Tadzio e Aschenbach em que o
jovem mostra a vida do mais velho como uma morte, aqui configurada nos retratos sucessivos que
o jovem faz do funcionário e a cada encontro, ele se afasta de sua vida diária, das limitações de
uma vida burocrática e da moral imposta pelos vizinhos. O tom contracultural atinge um registro
mais poético em "Uma História de Borboletas" (Pedras de Calcutá), onde o hospício é o espaço em
que os dois amigos acabam, incapacitados de viverem no mundo comum. "Mas eu sabia que eles
não admitiriam: quem havia visto o que eu vira não merecia perdão. Além disso, eu tinha
desaprendido completamente a sua linguagem, a linguagem que também tive antes, e, embora,
com algum esforço conseguisse talvez recuperá-la, não valia à pena, era tão mentirosa, tão cheia
de equívocos" (p. 106). Dificuldade de comunicação, agora sob o efeito da paranóia em "Diálogo",
conto de abertura de Morangos Mofados (1982):
Ou simplesmente a solidão de "Além do Ponto". Os sentidos e sonhos se esvaem, mas ainda paira
uma frágil possibilidade, na passagem de uma ética do dispêndio, do excesso, das utopias, para a
busca de sentidos possíveis em meio à dispersão, talvez mesmo da ternura e leveza em meio à
violência cotidiana. A maturidade de sua obra dá o seu melhor em personagens afirmativos, não
positivos, mas em disposição para a vida, para além do excesso de referências intelectuais dos anos
60 e 70, como no despudoradamente afetivo, no quase conto de fadas, "Aqueles Dois" (Morangos
Mofados), onde uma amor diferente emerge do cotidiano simples, pouco a pouco, como uma
fatalidade inesperada. Tudo parece caminhar para o encontro, mas não parece haver exagero, e
emociona, bem como a ambígua situação, entre a amizade e o amor, o revelado e o oculto de "Uma
História Confusa" (Ovelhas Negras). Já "Pela Noite", novela publicada em Triângulo das
Águas(1984), sobre o encontro de dois homens num sábado à noite. O que observa (Santiago).
Compulsão à fala , explosão de signos e informações, ser da noite, humor cáustico (Pérsio), ao
mesmo tempo que as palavras se sucedem em longos períodos. Primeiro encontro na sauna, nomes
criados. Muita gente e muita solidão (p. 162). A busca de amor. O tempo passando. "Peças de
museus, nossas emoções. Todas as emoções" (p. 188), fala Santiago. "Medo de ficar só, medo de
não encontrar, medo de AIDS. Medo de que tudo esteja no fim, de que não exista mais tempo para
nada. E da grande peste. Mas hoje não, agora não. Agora só tenho vontade de galinhar um pouco."
(p. 189), fala Pérsio. Entre a melancolia de Santiago e a alegria de Pérsio, todo um leque de
possibilidades, como entre a drag queen Sutherland e a drama queen Malone em Dancer from the
Dance de Andrew Holleran (1978). Mas talvez o conto que faça de forma mais explícita a transição
para longe das obras repletas de alegorias, personagens sem nome, o mergulho na introspecção até
as raias do fantástico, seja "Os Dragões não Conhecem o Paraíso" (no livro homônimo). Aqui um
permanente jogo de ambiguidades entre a existência ou não de dragões, o fato do narrador ter ou
não ter um dragão, não para simplesmente esconder o personagem da vida, fuga bovarista, mas
para lançá-los nos limites fecundos entre o que é realidade e o que é imaginação. O dragão, como o
uso abusivo do anjo em certa narrativa contemporânea, aparece como imagem de leveza e do
sublime, mas também, e de forma diferenciada, como imagem do artifício. Mas longe de um paraíso
harmônico, o dragão é um ser de um mundo de conflito, parecendo trazer em si a própria
necessidade de que ele seja abandonado, enquanto pura quimera, para que a vida impere. "Desde
que o mandei embora, para que eu pudesse enfim aprender a grande desilusão do paraíso, é assim
que sinto: quase sem sentir" (...). Agora apenas deslizo, sem excessivas aflições de ser feliz" (p.
156). Mas a afirmação da vida se faz num ato da escritura, numa estória. Mas que tipo de estória
seria essa? "totalmente verdadeira, mesmo sendo totalmente mentira" (p. 157). Mas isso também
parece pairar sobre uma indecedibilidade, como se na busca do afetos contemporâneos, cheios de
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solidões e voyeurismo, de ternuras brutais e sonhos possíveis, não pudéssemos dissociar os desejos
vividos e sonhados, num espaço que poderia ser chamado de simulacral, se não fosse apenas a
matéria de nossas sensibilidades, outrora, poderia se dizer a realidade nua e crua. Sem afirmações
taxativas, emergem as estórias de amor e amizade, que compõem a alegria na deriva
contemporânea. "Cansado do amor que sinto, e num enorme esforço que aos poucos se transforma
numa espécie de modesta alegria" (p. 157).
Em "Caçada" (Pedras de Calcutá), aparece o espaço dos discos, clubs e bares. A vertigem e a
fragmentação com que as palavras se sucedem ecoam a rapidez dos (des)encontros e o entrecortar
das falas e ruídos. Já em "O Rapaz mais Triste do Mundo" (Os Dragões não Conhecem o Paraíso), o
bar, espaço onde é encenado diante de um narrador quase voyeur, um encontro fugaz entre dois
homens solitários, estranhos a si mesmos e no mundo que vivem. "Alto de noite, certa loucura,
algum álcool e muita solidão" (p. 67). A riqueza sufocante do passado volta insistente por uma
carta para um destinatário distante sete anos, diante de um presente empobrecido, uma falta para
além do próprio pouco amor ("De qualquer jeito, amor, Dudu, embora não mate a sede da gente.
Amor aos montes, por todos os cantos, banheiros e esquinas, p. 87) em "Uma Praiazinha de Areia
bem Clara, ali, na Beira da Sanga":
Diferente de certa ficção gay norte-americana contemporânea, parece estar muito pouco visível na
literatura brasileira, uma ressignificação da casa e da família como espaços não mais de opressão
mas de afetividade e criação de novos tipos de relação, talvez uma exceção interessante seria Meu
Corpo Daria um Romance de Herbert Daniel, onde há uma passagem da insatisfação do sexo em
público ("Tudo bem, você goza garoto. Mas e o amor? L´amour, morou?" - p.162), ainda que
liberador ("Quando comecei a frequentar os lugares de pegação, abusei de trepar anonimamente,
perdendo minha noção de individualidade egoísta para ser estritamente corpo genitalizado, sedutor
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e seduzido, em fodas gostosíssimas e nada além do que o gosto inominado da foda" - p. 327) para
a constituição de relações mais estáveis ("Procuramos - e não é fácil - formar um par, sem
estabelecer um compartimento que nos isole, mas compartilhar a vida. Vivemos juntos e
namoramos outros." - p. 228). Até mesmo um conto de Caio Fernando Abreu, "Triângulo em Cravo
e Flauta Doce" (escrito em 1971 e publicado em Ovelhas Negras), há um predomínio da solidão,
mesmo quando alegre, de encontros furtivos, mesmo quando reveladores. A solidão seria um
último espaço, mesmo no uso insistente de você em Keith Jarrett no Blue Note de Silviano
Santiago, revelando não só um eu frágil, mas sob a forma de um narrador-protagonista
envelhecendo, explorar sua subjetividade sem temor da exposição, nem rebuscamentos formais
que ocultem os afetos, projetar sua própria solidão cotidiana, na deriva por lembranças,
telefonemas, lugares e pessoas. Encontros e desencontros são (re)vividos em meio a uma
atmosfera de possibilidades sintetizada no arrebatador fim : "Se você nunca soube quando tudo
começou, como vai poder adivinhar como tudo vai terminar? é o que você se pergunta" (p. 147). Só
o que não parece mudar é a solidão no presente, nas marcas da ausência do amado ou de uma
falta maior, não importa. "As sombras que crescem devagar sobre o asfalto quente do verão
passado. As sombras, enfim." ("A Perda" in Ovelhas Negras, p. 242).
Ou melhor, a solidão como penúltimo espaço, antes da morte. O cotidiano se firma como uma luta
diária. "Naquele tempo, minha única ocupação diária era tentar não morrer" (p. 243).
"Boca faminta
de si mesma.
Para o beijo? não,
para a morte
de todos os segundos."
Sobrevivência não de ideais passados, a sobrevivência àqueles que morreram antes de nós,
sobrevivência a partes de nós que também se foram. Resta "alguma coisa amarga, alguma coisa
assim: no se puede vivir sin amor" ("Sobre o Vulcão", Ovelhas Negras, p. 243) ou simplesmente à
procura do outro, na passagem do tempo e dos lugares, na deriva: "Aos caminhos, eu entrego o
nosso encontro" ("Bem Longe de Marienbad", Ovelhas Negras, p. 41), ou como se a morte tornada
corpo fosse a última possibilidade de diálogo, troca, conversação:
Bibliografia de trabalho
Naturalismo
Virada do Século
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