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CANTO DO },ÍAL DE ÀMOR

(1s24)

Caminho pelrr c:'c1trc1c

-Qofrenrlo corn rlal-clc-anroi'.


Sr-'rrti que vinhir. . . Seus ltlaços
IIra frrtal me chamavrlm,
Piirti. . . Cheio cle vontade
}L já não tcnho vontade,
Pr:;'corro a noite, llelcorro
 noitc corn nra] de amor...

í:l tirlde ji.l . . . Zero grau.


Ilesito mais, indeciso...
IÍeus ilmãos desaparecern
Nos colreclores com luz
Doncle saltam uir calçada
Mtritos palliaços cle riso,
.'!tó rio... Vaia o jaz.z.
Crrri-rirrl:o pcia ciclLrde
Sofrendo cour rnul-rlc-aruor
Sofrendo corn mal-dc)-amor
Srifren<.lo ccrn rral-cle-amor'
Soflr:nr1o. ,4. Irrase niio prra
i*o rrreio: c:orn rnll-<lc-lllnor.
Irriniu do contrastr:,
1[iiitares ]ir-rhas retas.
1'raçiis clliustros scculalcs
Nriirca rmaste! r)ultcll ailastel
Ntivoir Íilhrr-cle-tr4aria,
J{ér'oa {l'irr. . . r,icla fria. . .

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.I

POESIAS COMPLETAS 235


234 uÁnro DE ANDaÁDE

Vou sigo caminho... é tarde...


Náo valc a Pena ficar É mais adiante! Na esquina! . . .
Torturando a minha carne
Com o cilício da esPerança, Já sei que não é... Aquela
Arrasto gosos Perdidos, Janela sempre acoldada,
Vim busóar os corredores É uma puta me chamando,
Os corredores com luz, Dez milréis, mercadoria,
Alfandega, porto de Santos
E o eco dêsses braços nús Oceano Atlântico, grande
Resvalando no céu baixo,
Âtordoando os meus ouvidos,
Mar monótono monótono,
As ondas que vão e vêm,
Con'o cambaleio azoinam
Os cadáveres dos naufrágios
Meu corPo co{Pos rangentes, Serão jogados na areia...
Estalidos de deseios,
Beiios. ecos estridentes
E ha práias muito bonitas
Com palmeiras guaranis. . .
De'biaços nús me chamando,
Eu quei'o! eu quelo. . . Seus braços As invenções de Alencar
Ficaram muito inferiores
Teus- abraços bóca Pele
á. ôsses oásis das praias
seios olhos seios dentes
Corro. O eco exPlode já Perto Tão verdes, táo verdes, tão,
Muito. Perto muito, forte, Táo horrível solidão,!. . .
Veio pôfume de fome E o mar ondula e desmaia,
Depois me empurra é fatal
Muito forte, müto Perto, O rrar me empurra prà areia
Asora. . . Ela me abre os braços
Sou atirado na práia
Vi'ro a esquina, estendo os braços,
Meus abraços nos esPaços,
Das palmeiras, minha ruâ...
Rua reta, rua reta,
Minha rra das Palmeiras. . .
Rua reta, que deserto!. . '
Vou sigo caminho.. . Longe
Os lampeões bem regulares I\Íeu quarto.. . quarto vazio. . .
Com urir só ôlho. Sáo cicloPes'
Sáo eunucos dum haréra, IJm vago martrlhar de onclas
Oralisca, o lamPeão Pisca, Sai dos meus ouvidos. . . O eco
Não tem mais nada ninguem' " Morreu. Um marulhar cle ondas. . .

O sino cai sobre mim. A miragem se dispersa,


Os braços nem chamam nrais. . .
Sâo três horas iá. '. Percorro
A noite com mal de amor'. '
Perlaços de rninha carne Sangue cla aurora... O pacleiro
Pelos punhais das esquinas Passou.
Vão ficandq vou caminho última esquina.
Sigo... amor'.. Sei que não morro, Pcrto

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POESIAS CO\{PLETÀS ôa7


236 },[ÁRIo DE ÀNDRADE

O ôlho frio clo meu quarto. . . Onde meu pai se acabou.


Nem não tenho carne mais. . . Só mesmo o que é bcur de agola
Carne mais... Sigo. Caminho.. . Possne clireito de lágrima,
Destroços de ossos batendo. . . Sofrer. . . pois sirn, mas lutando
Pcla replanta brotando,
Solrer sim, mâs porém nunca
Triste triste do andarilho SoÊrer puxando memória
Carregando para o quarto Pelo caíó quc secou.
Os lábios secos. Inuteis...
No errtauto quando sucede
N,Iais braba a vileza humana
RECONHtrCIMENTO DE NEMESIS Arranhar na minha porta,
Não sei porque o curumim
(Março de 1926)
Que eu já fui, surge e se bota
Assim rentinho de mim.
l\ íÍo rrrorcnrr ciêle pousa Será que é um anjo-da-guarda?.
I'Jo rlrcrr Irlrrço... Estlemeci. Não sei não. .. Creio que não.
Sclu cir quanclo ci,rr gr.rrí
Ele faz que não me enxergâ,
Iissc garoto feioso. Que não me conhece.. . Àdão
Eu era assirn mesnto. . . Eu era N{orena sempre pousando
Olhos e cabeios só. No meu ombro, aluada muito!
Tão vulgar que fazia <1ó. Até o menino interinho
I.Jeuhuina fruta não viera É que nem cousa perdida
Ir,íadr.rr'ando tenrporir. E não dá tento de si.
Eu era menino mesmo, Possuea vida sem vida
\'Ícnino...Cabelos só, Das sornbras. É assombração.

QLro à custa tic muita escôr,it


E cle muita bril)rarrtina, Remexe por todo o quarto,
\'[e ondulavarl na cabeça Não desloca nenhum traste,
Que nein sapó na Iagôa Se vê bem que não faz parte
Si vem J-rrisando a nra.rihã. Do grupo dos meus amigos. . .
Volta-e-meia vem e pousa
Íigente qtre não comprecnclo No meu braço a mão morena.
Os sauclosos clo passado, É um siiêncio atravessando
Nem cs gratos. . . Relcmbrtnca 0 corpo manso das cousas.
Portr- muito rararnente Eu também si o recorúeço
Nos olhos dos ocupados. É só porque sofro agreste,
Por isso enxergo sem gôsto E embora grudando a üsta
A casa drr minha infancia, No livro, eu faça de conta
Casiro meio espanclongario Que não reparo no tal,

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238 a.rÁnro DE ANDRADE POESIÀS COMPLETAS 239

Nlinha alma espia o menino Ah! malvadeza brutaça


Enquanto a vista devora Dos indivíduos humanos,
Uma sôpa de aletria Dos humanos desta praça!
Feita de letras malucas. Âh! homens filhos-da-puta,
Mas êle não vai-se embora, Gente bem úim, bern odianclo,
E o vulto do curumim, Homens bem homens, grandiosos
Sem piedade, me recorda Na sua inveja acordadal
A minha presença ern mim. Grandiosos na fôrça bruta,
Na estupidez desveladat
Só isso. E por causa disso Que heroismo sem inocência,
Não posso fugir de mim! O do sujeito esquecendo
Não posso ser como os outrosl Do remorso e da conciência!
Riso não pega de enxêrtq ôh! fôrça reta, bem homem,
Ser mau carece raiz... De ser talqualmente os mares,
E confessando que sofro, E os movimentos do mundo!
Não sei si é pela corâgem, Perversidades solares
Mas tenho como uma aragem Da magrém! ser matapau!
E fico bem mais feliz. Sucurí, raio, minuano!
Menino, tu me recordas ForÇura dêstes humanos,
À minha presença em mim! Izuãis na perversidade,
Iãuais na imbecilidade,
. .. primeira vez que veiq
ú calúnia, iguais no ciúme!. . '
Tive uma alegria enorne,
Gostei de ver que já era Concientemente implacaveis!
Bem mais taludo e mais forte Imperiais no riso mau! . . .
Que em pequeno e que possuia Otã, cabra demográficq
Uma alma aquecida pelo fornaleiro do azedume,
-Secreção
Fogo humano do universo. de baço podre,
Segunda vez me irritou. AIma em que a sífilis deu!
Fui covarde, fui perverso, Burrice gorda, indiscreta,
Peguei no tal, lhe ensinei Veneranda. . . Homo ímbectlis,
A indecente dança-do-ombro. Invejado pelo poeta...
Não quis saber, foi-se embora. Viva niolho de salinha!
E quando não o vi mais, Êh! hàme, bosta"de Deusl
Sozinho, me arr"ependi.
A terceira vez é agora
E eu... não sei... não gosto delo Menino, sai! Eu te odeio,
Mas não quero que o ràpaz Menino assombrado, feio,
Me deixe sôzinho aqui. Menino de mim, menino,
Não danço mais dança-do-ombro! Menino trelento, gue enches
Eu recoúeço que sofro! Cnm teus silêncios puríssimos
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240 uÁnro Drr ANDRADE POESIAS COÀÍPLETAS

A bulha clos meus desejos, E tarcle. \/arn<ts clormir,


Que nem a calma da tarde Amanhã esrlcvo o artigo.
\-ence a bulha cla ciclade. . . Respondo cartas, almoço,
Ifenino mau, qlre me irnpêdes Depois tomo o boncle e sigcr
De entrar tambem pro recheio Para o tiabailio... Depois...
Das estatísticas... sai! Depois o mesnio... Depois,
Menino vago, sem nome, Enorranto fóra os rnil]évolos
Que me embebes inteirinho Se prer cirpe-nt c:oi.n ôlc,
Nesta amargura visguenta Vorazes feito cirprinos,
Pelos homens! pelos homens! . . . Nesta rua Lopes Chaves
Teríi um hornem conceltando
Puxa! rapazes, minha alma, As cruzes do seu clestino.
Comprida que não se acaba,
Está negia tal-e-qual
Fruta sêca de goiaba!
Mcrrs olho.s tão gostadcres I\,{ÃE
Nem têrn maís sôsto dc olhar!
( 1e26)
Ii peln primeira vez
O murmurêjo natal Existiretn uriics,
Desta vida está sem gr.aça, Isso /: ur:r caso sério,
E eu só desejo trrna calma Afinnarn que a mãe
Que apagasse até rneus ais! Atrapalha tuclo,
?udo amarga porqile os hcmens E {ato, ela preude
h{e amargaram por deruais! Os êrros cla gente,
Uma tristeza profunda, E era bern rnilhor
Uma fadiga profunda, Não existir mãe.
E ató, miseravelmente,
O plojeto inconfessavel
De parar.. ,
NIas em todo cirso
Quautlo a vida cstá
N4ais dura, mais vida,
N{eninq stril Ninguem como a mãe
Você é o estranho perióclico Pra aguentar a gente
Que me separa clo ritmo Escondendo a cara
Unâuirne desta vida. . . Entle os joelhos dela.
E o que é pior, você relembra que você tem?...
Bm miil o que geralmente -ElaC)bem
que sabe
Se acaba ao plimeiro sôpro: Porém a pergunta
Você renova a presença É pra rlisfarçar.
De mim em mirn mesmo... E eu sofro. Você rnente muito,
rvrÁnro DE ÀNDnÂDE I'OESIAS COMPLETAS

Ela faz que aceita, Que você enxerga bonito


E a desgraça vira Tanta luz nesta"capoeira
N{istério pra dois. Tal-e-qual numa güpiara.
Não vê que uma amante
Nem outra mulher Misturo tudo num saco,
Entende a verdade Mas gaúúq maranhense
Que a gente confessa Que para no Mato Grossq
Por trás das mentiras! Bate êste angú de caroço
Só mesmo uma máe... Ver sôpa de carurú;
Só mesmo essa dona A vida é mesmo um buracq
Que a-pesar-de ter Bobo é quem não é tatul
A cara raivosa
Do filho entre os seios, Eu sou um escritor dificil,
Marcando-lhe a carne, Porém culpa de quem é1...
Sentindo-lhe os cheiros, Todo dificil é faõil,
Pennanece virgem, Âbasta a gente saber.
E o filho tambem. . . Bagé, piché, chué, ôh "xavié",
()h virgens, perdei-vos, De tão facil virou fossil,
Pra terdes direito -- O dificil é aprender!
A essa virgindade
Que só as mães têm! Virtude de urubutinga
D_e enxergartudo do longel
Não carece vesür tanga
LUNDÜ DO ESCRITOR DIFICIL Pra penetrar meu casiange!
Você sabe o francês "singe"
( 1e2u
Mas não sabe o que é §uariba?
)
- Pois é macaco, seu mano,
Que só sabe o que é da estranja.
Eu sou um escritor dificil
Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é facil , MELODIA MOURA
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina ( 1e2B)
Que entra luz nesta ess.rrez.
Quandci&a_s casas baixaremde prêço
Cortina de brim caipora, Lá. na cidade, Laura Moura,
Com teia caranguejeira Uma delas será sua sem favor.
E enfeite úim de caipira, Será num bairro bem central,
Fale fala brasileira Pra que o nosso mistério engane mais.
2,44 À{AIiIO DE ÁNDTlÀDE POESIAS COMPLETá,S 245

Qlrando as casas baixarem cle preço, ôh, que pra 1á da serra caxingam os dinosauros!
Você há-cle ter a vossa, Laura Moura,
Lá na cidade em que trabalho. . . Em breve a noite abrirá os corpos,
Há-de sel born, pousanclo o rosto eur vosso cck;,
r\'Íe entediar feito um clono,
As embaúbas vão se refazer.. .
N{a} escutando as maguas de vocô.
A gente escapa da vontade.
Laura Moura viverá bem sosscgada, Os seres mancham apenas a luz dos olhares,
Iúe servindo, Se sobrevoam feito músicas escuras.
Toda 1:uxada pelo Piauí.
Nurn longing quase born, E a vida, como viola deshonesta,
Comenclo alimentos comprados, Viola a morte do aldor, e se dedilha. . .
Laura N{oura falará de Teresina Fraca.
II das boiadas e dos boiadeiros
E cla polvadeira sêca do Piauí,
TODA
Quando as cilsns baixrrrem de preço,
Laura Moura, plclcla minha, ( 1e32)
Unra clelas será sua sem {tavor.
Lá fóra a bulha cla ciclaCe
Disfarçará rlosso p'razer. . . No outro lado da cidade,
E a gente, luma recle maranhense, Não sei o quê, foi o vento,
Ao som clum jaz bern blue, O vento me dispersou.
Bzrlnncearemos no calor cla noite.
Solhando com o soltão. Viagei por terras estranhas
Entre flores espantosas,
Tive coragem pra tudo
\ICN,{EN'TO No outro lado da cidade,
Sem tomar cuidado em mim.
( 1e2e ) Passeava com tais perícias,
Punha girafas na esquina,
O mundo que se inulda claro em vultcls roxos Quantos milagres na viagem,
No cáos profundo em que a tristura Meu coração de ninguem!
Tange mansinho os ventos aos mulambos. E pude estar sem perigo
,, Por entre aconchegos pagos,
A geute escapa da vontacle. Em que o carinho mais velho
Se sente prazeres futuros, Inda guardava agressão.
Chegar €m casâ, Busquei São Paulo no mapa,
Ileconhecer-se em naturezas-mortas. . . Mas tuclq com cara nova,

16
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246 MARIO DE ANDRADE

Duma tristeza de viagem,


Tirava fotografia. . .
E o meu cigarro na tarde
Brilhava só, que nem Deus.
GRÃ CÃO DO OUTUBRO
Fiquei tão pobre, tão triste
Que até meu olhar fechou.
I _ VINTB E NOVE BICHOS
No outro lado da cidade
O vento me clispersou. (outubro de 1933)

No meu enorme corPo fatigado,


Tcdo mole com as almofadas,
Você se aninha sem beijar.

Estou sem fôrças feito um cáos'


Você é uma via-látea errante
Que não desejo mais valorizar'

Paz. À falsa paz vascila disponivel


Enouanto à sombra da cheia fruteira
Os i,ichos sc alimentam sem cessar'

Um clesespêro me arde, eu te- repilo',


Íl a arraiáda que vem,, é o- sol imundo
Otre vai mostrãr a bicharada
À,rs embolérrs, vinda do cáos'

II _ OS GATOS
(a)
( 14-X-33 )
irt

C)ue bejios cluc cu davit" '


Neo tigi", vôssa boca é mcsmo que um gato
Imitando tigre.
I

248 uÁnro DE aNDnÂDE


PoESrAs coMPLETÀ s 249
Boca rajada, boca rasgada de listas,
De preto, de branco,
Boca hitlerista, (b)
Vossa boca é mesmo que um gato.
( 15-X-33
Nas paredes da noite estão os gatos
Têm garras, têm enormes perigos Mc pus amando os gatos loucamente,
De exércitos disfarçados, ôh China!
Milhares de gatos escondidos por detrás da noite incerta. Mas agora porém não são gatos tedescos,
frão estourar por aí de repente, Trrdo está calmo em plena liberdade,
Se foram as volúpias e as perversões tão azedas,
Já estão com mil rabos além de São Paulq
Nem sei mais si são as fábricas que miam Eu sou cra\,o, tu és rosa,
Na tarde desesperada. Tu és minha rosa sincera,
És odorante, és brasileira à vontade,
Feito um prazer que chega todo dia.
Pcnso que vai chover sôbre os amores dos gatos.
FLrgirão?. . . e só
clr no deserto das ruas Mas eu te cresço em lneu desejo,
Oh incendiária dos nreus alóns sonoros, Ai, que vivo arrasado de notíciasl
Irei buscando a vossa boca, Murmurando com medo ao teu ouvido:
Vossa boca hitlerista, ôh Chinal ôh minha China!. . .
Vossa boca mais nítida gue o amor,
Ai, que beijos que eu dava.. . Tu te gastas sob o meu pêso bom,
Guardados na chuva... Teus lábios estão alastrados na abertula clo reconhecimen,co.
Boiando nas exurradas Teus olhos me olham, me procuram toclo...
Nosso corpo de amor..
Que beijos, que beijos que eu doul Mas eu insisto em meu castigo, ôh China,

Vamos enrolados pelas enxurradas Como um qato clrinês criado através de séculos de posse e
Em que boiam corpos, em que boiam os mortos, de aproveitamentos,
Ern que vão putrefatos milhares de gatos. . . Pnril meu gôso só, pra meu enfeite só de mim,
Das casas cai mentira, Pra mim, pra mim, tu foste feita, ôh Chinal
Nós vamos com as enxurradas, Estou te saboreando, és gato china que apanhei vagamundo
Corn a perfeita inocência dos fenômenos da terra, na ,rua,
Voluphlosamente mortos, oh Chiha! ôh minha triste China,
Os sem ciàrcia mais nenhurna de que a vida Estarei pesando, te fazendo llezar seln rnotivq
Está horrenda, querendo ser, erglrendo os rabos Estou... estava, ôh minha triste sina,
Fnr trás cla noite, em companhia dos milhóes de gatos verdes. Até que fui guardal nos teus cabelos perdidos
Lágrima que não pucle sem chorar.
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250 MARIO DE ANDRADE


porsras coMpLETÀs 251

III _ ESTÂNCIAS IV _ POEMA TRIDENTE

( 15-X-33 ) (Outubro de 1933)

Vosso corpo seria encontrado nos desertos.


(a) Sois tão linda.. . você é a Lei!
Você é tão mal contrária a essas mil leis humanas
No caminho da cidade,
Oh vós, homens que andais pelo caminho, Que avançam cegas insensiveis sôbre o horror...
Você é tal-e-qual, bem polida,
Olhai-me, cercai-me todos, abraçai-me, Sem êrros, cadencial.
Abraçai-me de amor e de amigo, na meiga carícia indecisa,
Cegos, mudos, viris, na imperfeição irremediável!
Õh bêsta Í'era maldita,
Você é mas é um braço esfomeado terminando em faisca de
(b) gládio,
Caindo aqui, varrendo além,
No carninho cla cidacle Voando, cego braçq aterrissando no meio das turbas,
Meus olhos se rasgarn na volúpia de amor, Matando gente, depredando gente, inventando orfanatos,
Tôrres, chnminés perto, notícias, milhões de notícias, Bandos de caravanas de lperosos,
Dôr.. . Este profundo mal de amar indestinado, Exílios pra judeus, pra paulistas, prà estudantada cubana,
Como a primavera qrle fareja a cidade através do sol frio. Eu te amo de um amor educado no infernot
Te mordo no peito até o sangue escorrer
Me dando socos, chorandq chamando de bruto, de cão,
(") O Grão Cáo é: o Mildiabo educado sozinho no infemot
No caminho da cidade
Que estranha ressonância, frautas, membís, andorinhas, Nos debatemos, o braço esfomeado braceja,
Tudo alargou, tudo está erecto de repente, Golpeia aqui, matou centenas de operários,
Minhas mãos penetram no ar reconhecidas, Queima cafezais, trigais, canaviais, desocupados
Desfaleço, meus olhos se turvam, me encosto. Quebra os museus grandiosos,
Usa a Iei de fugir prà estudantada cubana,
(d)
E no esfôrço subrôsso colhendo com o gládio o subsolo da
No carninho da cidade Europa,
Mas não posso esquecerl Abaixo os tiranos! abaixo Afonso XIIIT
ôh meu amor, êste grito avançando através das iclades. . .
O mqr fez maremoto, e convulsivos
Me beijal me sufoca nos teus braços! Nos Ediando no mesmo abrago confundidos,
Eleitos, desesperados na febre de amar
Que eu só desejo ser vencido logo
Para te perÍurar com a cadência do dia e da noite Jorramos em lucilações fantásticas tremendas,
E sermos aulados numa paz sem colisão... Todo o nosso ardor vai se esgotax na seiva!
aJ--

252 uÁnro DE ANDRADE PoEsras coMPLETÂs 253

Você é lindíssima! É polida e cadencial feito uma lei! Lábios, lábios para o encontro em
-que
ca-ntareis fatalmente,
Mas eu sou o Grão Cão que te marquei um bocado com Arneaçados pelà fome que espia detrás da cochilha,
crime dos mundos! A clôr, a cairichosa dôti desoõupaiia que desde milhões de
E agora nem de perdão carecemos existências
No mesmo abraço desaparecidos. Brrsca a razáo de ser.

V_DOR QUARENTA ANOS

(15-X-33) (27-XIi-33 )

A cidade está mais agitada a meidia. À vida é para mim, está se vendo,
Âs ruas devastam minha virgindade Urna felicidade sem rep'ouso;
E os cidadãos talvez marquem encontro nos melrs lábios. Eu nem sei mais si goso, pois que o gôso
N{inlra boca é o peixe nracho e clerramo núcleos cle amor Só pode ser medÍdo-em sc softettdo.
peltrs ruas.
Quc irão fecrrnrlar os ovários cla vida algum dia, Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, períisto em me enganar. . . Eu ouso
Eu venho das altas tôrres, venho dos matos alagaclos, Dizer' (rre a vida foi o bem precioso __
Com meus passos conduzidos pelo fogo do Grã Cáo! Qrie eri adorei. Foi meu pecado... Horrendo
Mas pra viver na cidade de São Paulo escondi na corrente
de prata Seria. agora que a vellrice avança,
A inutil semente do milho, a manivâ, Quo-me" sintci completo e além da sorte,
E enroupei de acerba seda o arlequinal do meu dizer.. . ú" ugur.o. a esta-vida fementida.

E agora apontai-me, janelas do Martinell i, Vou fazer do meu fim minha esperança,
Calçadas, ruas, ruas, ladeiras rodanfes, viadutos, C)h sono, vem!. . . Qr" eu quero amar a morte
Onde estão os judeus de conciência lívida? Com o mesmo engano com que amei a vida.
Os tortuosos iaponeses que flertam São Paulo?
Os ageis brasileiros do Nordeste? os coloridos?
Onde estão os coloridos italianos? onde estão os turcomanos?
ÀdOMENTO
Onde estão os pardais, madame la Françoise,
Ergo, egq Ega, égua, agua, iota, calúnia e notícias,
Balouçantes nas marquesas dos roxos arranhacéus?... (Abril de 1937)

Não vos trago a fala de ]esus nem o escuclo de Àquiles, O rfunto corta os sêres Pelo meio.
Nem a casinha pequenina ou a sombra do jatobá. Só um deseio de nitidei ampara o mundo" '
Tudo escoúdi no caminho da corrente de prata. Faz sol. Fez chuva. E a ventania
Ivlas eu venho das altas tôrres trazido ao facho do Grã Cão, Esparrama os trombones das nuvens no azul'
254 1\{ÂRIO DE ANDIlADIl POESIAS COT\{PLETAS zbi)

Ninguem chega a ser um nesta cidade,


As pombas se agarram nos arranhacéus, faz chuva. Eles, os bandeirantes
Faz hio. E taz angústia... E êste vento violento E falta o boi Paciência, o boi que pertence a Armida,
Traz por guampas os cornos da luna
Que arrebenta dos §rotões da terra humana E um peitoral de turmalinas.
Exigindo céu, paz ã alguma primavera.
Mas êsse vem no outro coração mole,
Não se mostra a ninguem.
O boi Paciência serão treze preguiças assLrstadas,
BRAZÃO No porto do imenso rio esPerandq
Esperando pelos treze caminhos
( 10-xrr-1e37) Das mil cavernas das quarentas mil perguntas.

Vem a estrêla dos treze bicos,


Brasil, Coimbra, Guiné, Catalunha. Ai, que eu vou me calar agora,
Não posso, não posso mais!
! mais a Bruges inimaginavel
E a decadência dos Almeidas.
SONETO
E sôbre a estrêla dos treze bicos
Pesa um coração mole
De prata coticada trezernente, (Dezembro de 1937)
Em cujo campo ha-de inscrever-se
"Eu sou aquele gue veio do imenso rio". Aceitarás o amol como elr o encaro?. . .
. . .Azul bem leve, um nimbo, suavemente
E sôbre o campo do rneu coração,
Todo em zarcáo ardendo,
I Guarcla-te a imagem, como um anteparo
Contra êstes móveis cle banal presente.
Ha em ouro a arca de Noé com vinte,e-nove bichos.blau,
E a jurema esfolhando as folhas derradeiras Tudo o que ha de milhor e de mais raro
Sôbre Mestre Carlos, o meu grande sinal.
Vive em teu corPo nú de adolescente,
A pema assim jogada e o braço, o claro
E a seguir a tronrbeta, essa trombeta Olhar prôso no meu, perdidan-rente.
Insiste pela Catalunha,
Mas desta vez eu que escolhiÍ
'ôh, meus amigos, Não exijas mais nada. Não desejo
Peldão pelos séculos pesados de cicatrizes infinitas, Tambem mais nada, só te olhar, enquanto
Perdão por todas as sabedorias, A lealidade
lr
é simples, e isto aPCI)as'
Pela esfera armilar das conquistas insanas!
Essa trombeta eu que escolhi, toda de prata,
Com treze Iinguas de fogo na assustadora boca, Qr" grandeza... A evasáo total do p'êjo
E a inscrição "Que-dele êles?", Qr" nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce clas adorações serenas.

I
-

POESIÀS COMPLETAS 257


256 ruÁnro DE ,{NDRÂDE
L{as as palmeiras resistem.
Na deformação dos ráios,
AS CANTADAS Templos, gentes, esperanças
Em desmáios
(Rio, 2O-IX_BB) B transposições de níveis. . .
Só as palmeiras resistem
Teras bruscas, céus maduros, Como conciências incríveis!
Apalpam curvas os autos,
Ai, Guanabara, As noites não são bem noites,
Serão desejos Íncautos, As músicas são cansaços,
Ancas pandas, seios duros. . . Açôites
Sentí as curvas dos autos De convites, bôcas, mar,
Nas plríias de Guanabara. Ai, ares de Guanabara,
Vou suspirar. ..
Penetro as fendas dos inorros,
Desafôgos de amor, jôrros Meus olhos, minhas sevícias,
De sensualidades quentes, Minha alma sem resistências,
Ai, nlcs de Guanabara, A Guanabara te entregas
S,ou jogado em práias Iargas, Sem Deus, sem teorias poéticas.
.
Côxas satisfeitas feitas Os aviões saltam dos trilhos,
De ondas amargas. Perfuram morros, ardências,
Delícias, vícios, notícias. . .
Não posso mais. . . Nunca ousara
Pensar cajás, explosões
Aiái, Guanabarat
De melões, Que todo me desfaleço
Por cento e dez avenidas,
Mulatas, uvas pisadas, Pela mulher de em seguida,
Ai. Guanabara, Por teus cheiros, por teus sais,
Tuas noites fatigadas. . . Pelos aquedutos, pelos
Me derramo todo em sucos Morros de crespos camelos
À{alucos de illias Moliicas. E elefantes triufais!

Manhã. Brisas intranquilas Bu não sei si mais gosara,


De volúpias mal ousadas Iáiá, Sereia do Mar,
Passam por ti, Si achara nalma outra clara
Num gôsto naval de adeuses... Glória rara sol luar
Ha deusas. . . Àurora uiára
Ha Venus, ha Domitilas Niágara reafeza
Fazendo guanabaraclas Suprema, eterna surryrêsa,
Por aí... Guanabara!. . .
I,ÍARIO DE ANDRÂDE POESIÂS COMPLETAS

Vence a noite, vence os homens,


LUAR DO RIO Vence as tristezas e os mandos do mundo. . .

(Rio, dezen,bro de 1938) Não acredita náo, José Corrêia,


Que vais te perder, e esquecer, feito estátua,
Olha o balão subindo! A imensa dôr multissecular.
Mas quem foi o louco varrido
Que em novembro se lembrou de o soltar!
CANÇÃO
-Éoluar,éoluar!
(Rio, 22-XII-1940)
E as casas! olha os arranhacéus,
Parece que estão se movendo, ...de árvores indevassaveis
Com tantas janelas a chamar?.. .
De alma escusa sem pássatos
Sem fonte matutina
E êste céu côr-de-cinza, Chão tramado de saudades
E êste mar côr-de-prata, À eterna espera da brisa,
Fl o Cristo clo Corcovado! Sem carinhos. . . como me alegrarei?
Olha! parece uma palhaço,
Parece um filósofo, parece até Cristo mesmo
Na solidão solitude,
Erguido no altar?.. . Na solidão entrei.
E estas minhas mãos inquietas,
E o vento alcoolizado, Era urna esperalrça alada,
E as carícias das ilhas... Não foi hoje mas será amanhã,
Ha-de ter algum caminho
Ráio cle sol promessa olhar
E as narinas cheirando ofegantes, As noites graves clo amor
E essa vela clas práias do norte, O luar a aurora o amor... gue

E um desejo de falar besteira, Na solidáo solitude,


De dançar por aí feito maluco, Na solidão entrei,
Bsquecido de amar?. . . Na solidão

-Éoluar,éoluar! C) agouro chegou. Estoura


No coração devastado
É o luar gue inventa novas árvores e morros, O riso da mãe-da-lua,
Vence as luzes da enorme cídade, Não tive um dia! uma ilusão não tivel
-

260 uÁnro DE ANDRÁDE

'I'ernuras que não me viestes


Beijos gue não me esperastes
Ombros de amigos fieis
Nem urna flor apanhei.

Na solidão solitude,
Na solidão entrei,
Na soiidão perdi-me.
Nunca me alegrarei.

I.IVRO AZUL

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