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O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.
O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.
REMANSOS
Cipreste.
(Água estancada.)
Choupo.
(Água cristalina.)
Salgueiro.
(Água profunda.)
Coração.
(Água de pupila.)
MEIA-LUA
Afastam-se as alamedas,
deixam porém o reflexo.
Afastam-se as alamedas,
deixando apenas o vento.
E um coração pequeno
vai-me brotando nos dedos.
DOIS MARINHEIROS NA MARGEM
1.
Olha a água.
2.
Olha a água.
GUITARRA
Começa o choro
da guitarra.
Quebram-se os copos
da madrugada.
Começa o choro
da guitarra.
É inútil calá-la.
É impossível
calá-la.
Chora monótona
como chora o vento
sobre a nevada.
É impossível
calá-la.
Chora por coisas
distantes.
Areia quente do Sul
pedindo camélias brancas.
Chora flecha sem alvo,
tarde sem manhã,
e o primeiro pássaro morto,
nas ramadas.
Oh guitarra!
Coração malferido
Por cinco espadas.
O SILÊNCIO
Terra seca,
terra quieta
de noites
imensas.
(Vento no olival,
vento na montanha.)
Terra
velha
da candeia
e da pena.
Terra
das fundas cisternas.
Terra
da morte sem olhos
e flechas.
Vento do Leste,
uma lanterna
e o punhal
no coração.
A rua
tem um tremor
de corda
em tensão,
um tremor
de enorme moscardo.
Por toda a parte
eu
vejo o punhal
no coração.
AI!
Ai iaiaiaiai,
vestida com mantos negros!
SAETA
Cristo moreno
passa
de lírio de Judeia
a cravo de Espanha.
De Espanha.
Céu límpido, céu escuro,
terra queimada,
e leitos por onde corre
lentíssima água.
Cristo moreno,
com guedelhas queimadas,
pómulos salientes
e pupilas brancas.
Lâmpadas de cristal
e espelhos verdes.
No tablado sombrio,
a Parrala sustém
uma conversão
com a morte.
Chama-a,
não vem,
e volta a chamá-la.
Os homens
aspiram os soluços.
Nos espelhos verdes
longas caudas de seda
agitam-se.
ESCONJURO
A mão crispada
como Medusa
cega o olho dolente
da candeia.
Ás de paus.
Tesouras em cruz.
Ás de paus.
Tesouras em cruz.
Aperta um coração
invisível — não vês?
Um coração
reflectido no vento.
Ás de paus.
Tesouras em cruz.
MALAGUENHA
A morte
entra e sai
da taberna.
E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.
A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.
CENA DO TENENTE-CORONEL
DA GUARDA CIVIL
TENENTE-CORONEL
Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.
SARGENTO
Sim.
TENENTE-CORONEL
E não há quem me desminta.
SARGENTO
Não.
TENENTE-CORONEL
Tenho três estrelas e vinte cruzes.
SARGENTO
Sim.
TENENTE-CORONEL
O cardeal-arcebispo veio cumprimentar-me
com as suas vinte e quatro borlas roxas.
Sargento
Sim.
TENENTE-CORONEL
Eu sou o tenente. Eu sou o tenente. Eu sou
o tenente-coronel da Guarda Civil.
TENENTE-CORONEL
Que se passa?
SARGENTO
Um cigano!
TENENTE-CORONEL
Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.
CIGANO
Sim.
TENENTE-CORONEL
Tu quem és?
CIGANO
Um cigano.
TENENTE-CORONEL
O que é um cigano?
CIGANO
Qualquer coisa.
TENENTE-CORONEL
Como te chamas?
CIGANO
Isso.
TENENTE-CORONEL
Que dizes?
CIGANO
Cigano.
SARGENTO
Encontrei-o e trouxe-o comigo.
TENENTE-CORONEL
Onde estavas?
CIGANO
Na ponte dos rios.
TENENTE-CORONEL
Mas, de que rios?
CIGANO
De todos os rios.
TENENTE-CORONEL
E que andavas a fazer?
CIGANO
Uma torre de canela.
TENENTE-CORONEL
Sargento!
SARGENTO
Às ordens, meu tenente-coronel da Guarda Civil.
CIGANO
Inventei umas asas para voar, e voo. Enxofre e rosa nos meus
lábios.
TENENTE-CORONEL
Ai!
CIGANO
Embora não precise de asas, porque voo sem elas.
Nuvens e anéis no meu sangue.
TENENTE-CORONEL
Aii!
CIGANO
Em janeiro tenho a flor da laranjeira.
TENENTE-CORONEL (Retorcendo-se.)
Aiiiii!
CIGANO
E as laranjas na neve.
TENENTE-CORONEL
Aiiiii!, pum, pim, pam. (Cai morto.)
SARGENTO
Socorro!
CAMPO
UMA VOZ
Amargo.
As adelfas do meu pátio.
Coração de amêndoa amarga.
Amargo.
1.º JOVEM
Vamos chegar tarde.
2.º JOVEM
A noite cai-nos em cima.
1.º JOVEM
E esse?
2.º JOVEM
Vem atrás.
AMARGO (Calmamente.)
Já vou!
(Pausa.)
1.º JOVEM
Que belos olivais!
2.º JOVEM
Sim.
(Longo silêncio.)
1.º JOVEM
Não gosto de andar de noite.
2.º JOVEM
Também eu não.
1.º JOVEM
A noite fez-se para dormir.
2.º JOVEM
É verdade.
AMARGO
Ai iaiaiai!
Já o perguntei à morte.
Ai iaiaiai!
(Silêncio.)
AMARGO
Na paz de Deus.
CAVALEIRO
Vai a Granada?
AMARGO
A Granada vou.
CAVALEIRO
Então vamos juntos.
AMARGO
Assim parece.
CAVALEIRO
Por que não monta na garupa?
AMARGO
Porque não me doem os pés.
CAVALEIRO
Eu venho de Málaga.
AMARGO
Óptimo.
CAVALEIRO
Os meus irmãos vivem lá.
AMARGO (Displicente.)
Quantos?
CAVALEIRO
São três. Vendem facas. É o negócio deles.
AMARGO
Que lhes preste.
CAVALEIRO
De prata e oiro.
AMARGO
Uma faca não tem que ser mais que uma faca.
CAVALEIRO
Engana-se.
AMARGO
Obrigado.
CAVALEIRO
As facas de oiro entram sozinhas no coração.
As de prata cortam o pescoço como fibra de erva.
AMARGO
Não servem para partir pão?
CAVALEIRO
Os homens partem o pão com as mãos.
AMARGO
É verdade.
(O cavalo inquieta-se.)
CAVALEIRO
Cavalo!
AMARGO
É a noite.
CAVALEIRO
Queres uma faca?
AMARGO
Não.
CAVALEIRO
Estou a oferecer-ta.
AMARGO
Mas eu não a aceito.
CAVALEIRO
Não terás outra ocasião.
AMARGO
Quem sabe?
CAVALEIRO
As outras facas não prestam. As outras facas são brandas, têm
medo do sangue. As que nós vendemos são frias. Percebes?
Entram procurando o sítio mais quente e ali param.
CAVALEIRO
Que bela faca!
AMARGO
É cara?
CAVALEIRO
Mas, não queres esta?
CAVALEIRO
Monta comigo, rapaz!
AMARGO
Ainda não estou cansado.
AMARGO
É a escuridão.
(Pausa.)
CAVALEIRO
Como ia dizendo, em Málaga estão os meus três irmãos. Que
maneira de vender facas! Na catedral compraram duas mil para
adornar todos os altares e coroar a torre. Muitos barcos têm lá os
seus nomes escritos; os mais humildes pescadores da beira-mar
alumiam-se de noite com o brilho que desferem as suas folhas
afiadas.
AMARGO
É uma formosura.
CAVALEIRO
Quem o pode negar?
(A noite é espessa como um vinho de cem anos. A serpente gorda
do Sul abre os olhos na madrugada e há em quem dorme um desejo
infinito de se atirar à magia perversa do perfume e da distância.)
AMARGO
Parece que nos enganámos no caminho.
AMARGO
Com a conversa.
CAVALEIRO
Aquelas não são as luzes de Granada?
AMARGO
Não sei.
CAVALEIRO
O mundo é muito grande.
AMARGO
Como que está desabitado.
CAVALEIRO
É como estás dizendo.
AMARGO
Dá-me um desespero. Ai iaiaiai!
CAVALEIRO
É porque estás a chegar. Que fazes?
AMARGO
Que faço?
CAVALEIRO
E se estás no teu sítio, para que é que lá queres estar?
AMARGO
Para quê?
AMARGO
Que aconteceria?
(Pausa.)
CAVALEIRO
Estamos a chegar a Granada.
AMARGO
É possível?
CAVALEIRO
Vê como os mirantes brilham.
AMARGO
Acho-a um pouco mudada.
CAVALEIRO
É porque estás cansado.
AMARGO
Sim, é certo.
CAVALEIRO
Agora já não te negarás a montar comigo.
AMARGO
Espera um pouco.
CAVALEIRO
Vamos, sobe! Monta depressa. É preciso chegar antes do
amanhecer… E toma esta faca. Ofereço-ta!
AMARGO
Ai iaiaiai!
Em metade do barranco,
as navalhas de Albacete,
belas de sangue contrário,
reluziam como peixes.
Uma dura luz de naipe
recorta no verde amargo
cavalos enfurecidos
e perfis de cavaleiros.
Em cima de uma oliveira
duas velhas soluçavam,
enquanto o touro da rixa
pelas paredes trepava.
Anjos escuros traziam
lenços e água de neve.
Anjos com asas enormes
de navalhas de Albacete.
Juan Antonio, o de Montilla,
rola morto na vertente,
o corpo cheio de lírios
e uma romã na fronte.
Monta agora cruz de fogo
pelos caminhos da morte.
Espadão de nebulosa
brande no ar Sant’Iago,
enquanto o silêncio rompe
dos flancos do céu curvado.
A cidade multiplicava
as portas, livre de medo.
Quarenta guardas-civis
entram a saque por elas.
Todos os relógios param.
O conhaque das garrafas
disfarçou-se de Novembro
para não criar suspeitas.
Um voo de longos gritos
ergueu-se dos cata-ventos.
Os sabres cortam a brisa
pisada já pelos cascos.
Pelas ruas de penumbra
fogem as ciganas velhas
com cavalos sonolentos
e tigelas de moedas.
Pelas ruas empinadas
sobem as capas sinistras,
deixando atrás fugazes
remoinhos de tesouras.
Já no portal de Belém
os ciganos se congregam.
São José, todo ferido,
amortalha uma donzela.
Obstinadas carabinas
soam pela noite fora.
A Virgem cura os meninos
com salivita de estrelas,
enquanto a Guarda Civil
vai semeando fogueiras,
onde jovem e despida
a imaginação se queima.
Geme Rosa, a dos Cambórios,
sentada na sua porta,
com os dois seios cortados
e postos numa bandeja.
Outras raparigas correm
perseguidas pelas tranças,
enquanto estalam no ar
rosas de pólvora negra.
Quando todos os telhados
eram já sulcos na terra,
a manhã moveu os ombros
em longo perfil de pedra.
Violador enfurecido,
Amnón fugia a cavalo.
Negros apontam-lhe flechas
dos muros e atalaias.
E quando os quatro cascos
eram quatro ressonâncias,
David com uma tesoura
cortou as cordas da harpa.
MORTE
Que esforço,
que esforço do cavalo
para ser cão!
Que esforço do cão para ser andorinha!
Que esforço da andorinha para ser abelha!
Que esforço da abelha para ser cavalo!
E o cavalo,
que flecha aguda exprime da rosa!,
que rosa de cinza o seu bafo levanta!
E a rosa,
que rebanho de alaridos e de luzes
ata no vivo açúcar do seu tronco!
E o açúcar
que pequenos punhais vai sonhando em vigília!
E os punhais diminutos,
que lua sem estábulos, que nudez,
pele eterna e rubor, andam buscando!
E eu, pelos beirais,
que serafim de chamas busco e sou!
Porém o arco de gesso,
que grande, e invisível, e diminuto,
sem nenhum esforço!
ODE A WALT WHITMAN
Se tu ouvisses
o loendro amargo chorar,
que farias, meu amor?
Suspirar!
Se tu sentisses a luz
chamar-te quando se vai,
que farias, meu amor?
Lembrar-me-ia do mar.
Se eu um dia te dissesse
— amo-te — no meu olival,
que farias, meu amor?
Cravaria este punhal!
NA MORTE DE
JOSÉ DE CIRIA Y ESCALANTE
Porém eu irei,
embora um sol de lacraus me devore a fronte.
Porém tu virás
com a língua queimada por chuva de sal.
Porém eu irei,
entregando aos sapos meu cravo mordido.
Porém tu virás
pelas turvas cloacas da obscuridade.
Amarga.
Dói-me na planta do pé
o interior da cara,
também dói no tronco fresco
da noite recém-cortada.
Um muro de pesadelos
me separa dos defuntos.
A relva cobre em silêncio
teu corpo, vale cinzento.
Céus e campos
apertam cadeias nas minhas mãos.
Campos e céus
zurzem as feridas do meu corpo.
GAZEL DA FUGA
A rosa
não buscava a aurora:
quase eterna no ramo
buscava outra coisa.
A rosa
não buscava ciência nem sombra:
confim de carne e sonho,
buscava outra coisa.
A rosa
não buscava a rosa:
imóvel pelo céu
buscava outra coisa.
CACIDA DAS POMBAS OBSCURAS