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Poemas

Federico García Lorca

Publicado em Portugal por


Assírio & Alvim
www.assirio.pt

© Herdeiros de Eugénio de Andrade (tradução)


© Porto Editora, 2013

1.ª edição em papel: Novembro de 2013

Assírio & Alvim é uma chancela da


Porto Editora, Lda.
NOTÍCIA BIBLIOGRÁFICA

Esta selecção de poemas de Federico García Lorca publica-se agora


em 5.ª edição, mas as anteriores edições têm-se apresentado com
títulos diferentes: a primeira apareceu em Coimbra, em 1946, portanto
no décimo aniversário da morte do poeta, com o nome de Antologia
Poética, contendo então o volume um poema de Miguel Torga e um
estudo de Andrée Crabbé Rocha. As duas edições seguintes foram
publicadas pela Editorial Inova, em 1968 e 1970, ambas com o título de
Trinta e Seis Poemas e uma Aleluia Erótica. A aleluia era,
naturalmente, «Amor de Dom Perlimpim com Belisa em seu jardim»,
que não comparece na presente edição por se encontrar publicada
num voluminho separado, com essa outra vítima de amores serôdios
que é Dom Cristóvão, do retábulo do mesmo nome. (Campo das
Letras, 1999.) A quarta (já com o presente título) é de 1979.
Aproveitou-se agora a ocasião para rever as traduções pela edição de
«Obras Completas» a cargo de Miguel García-Posada, Galáxia
Gutenberg / Círculo de Leitores, 1996.
Não se corrigiram apenas alguns erros provenientes de anteriores
edições do poeta, também se aproximou a tradução do original,
procurando assim distanciar-me da pretensão de faire plus beau que
nature, pecadilho de que não estavam isentos alguns versos da minha
tradução.

[transcrita da 5.ª edição, 2000]


BALADA DA ÁGUA DO MAR
(1920)

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.

— Que vendes tu, rapariga,


de turvos seios ao ar?

— Vendo, senhor, água


do mar

— Que levas tu, jovem negro,


misturado em teu sangue?

— Levo, senhor, água


do mar.

— Essas lágrimas salobres,


onde te nascem, mãe?

— Choro, senhor, água


do mar.
— Coração, esta amargura
tão funda, donde te vem?

— Amarga muito, a água


do mar.

O mar
sorri ao longe.
Dentes de espuma,
lábios de céu.
REMANSOS

Cipreste.
(Água estancada.)

Choupo.
(Água cristalina.)

Salgueiro.
(Água profunda.)

Coração.
(Água de pupila.)
MEIA-LUA

Pela água vai a lua.


Como o céu está tranquilo!
Vai ceifando lentamente
o tremor velho do rio,
enquanto um ramo jovem
a toma por espelhinho.
ADELINA EM PASSEIO

Não tem laranjas o mar,


nem Sevilha tem amor.
Morena, que luz de fogo!
Empresta-me o guarda-sol.

Pôr-me-á a cara verde


— sumo de lima e limão —.
Tuas palavras — peixinhos —
nadarão em seu redor.

Não tem laranjas o mar.


Ai amor.
Nem Sevilha tem amor!
«NU»

Sob o aloendro sem lua,


que feia estavas e nua.

Teu corpo busca em meu mapa


o amarelo de Espanha.

Que feia estavas, francesa,


no amargo do aloendro.

Sobre o teu corpo atirei


a capa do meu talento.

Vermelha e verde, vermelha.


Aqui somos outra gente!
DESPOSÓRIO

Atira esse anel


à água.

(A sombra apoiou os dedos


nos meus ombros.)

Atira esse anel. Tenho


mais de cem anos. Silêncio!

Ninguém me pergunte nada!

Atira esse anel


à água.
PRELÚDIO

Afastam-se as alamedas,
deixam porém o reflexo.

Afastam-se as alamedas,
deixando apenas o vento.

O vento, na sua mortalha,


jaz debaixo do céu.

Deixou, porém, flutuando


seus ecos à flor dos rios.

O mundo dos pirilampos


invadiu minha lembrança.

E um coração pequeno
vai-me brotando nos dedos.
DOIS MARINHEIROS NA MARGEM

1.

Trouxe no seu coração


um peixe do Mar da China.

Às vezes vê-se passar


diminuto nos seus olhos.

Esquece, sendo marinheiro,


os bares e as laranjas.

Olha a água.

2.

Tem a língua de sabão.


Lava as palavras e cala-se.

Mundo liso, mar frisado,


cem estrelas e um barco.

Viu as varandas do Papa


e doirados seios de cubanas.

Olha a água.
GUITARRA

Começa o choro
da guitarra.
Quebram-se os copos
da madrugada.
Começa o choro
da guitarra.
É inútil calá-la.
É impossível
calá-la.
Chora monótona
como chora o vento
sobre a nevada.
É impossível
calá-la.
Chora por coisas
distantes.
Areia quente do Sul
pedindo camélias brancas.
Chora flecha sem alvo,
tarde sem manhã,
e o primeiro pássaro morto,
nas ramadas.
Oh guitarra!
Coração malferido
Por cinco espadas.
O SILÊNCIO

Ouve, meu filho, o silêncio.


É um silêncio ondulado,
um silêncio
donde resvalam ecos e vales,
e que inclina a fronte
para o chão.
POEMA DA SOLEÀ

Terra seca,
terra quieta
de noites
imensas.

(Vento no olival,
vento na montanha.)

Terra
velha
da candeia
e da pena.
Terra
das fundas cisternas.

Terra
da morte sem olhos
e flechas.

(Vento pelos caminhos.


Brisa nas alamedas.)
ENCRUZILHADA

Vento do Leste,
uma lanterna
e o punhal
no coração.
A rua
tem um tremor
de corda
em tensão,
um tremor
de enorme moscardo.
Por toda a parte
eu
vejo o punhal
no coração.
AI!

O grito deixa no vento


uma sombra de cipreste.

(Deixai-me neste campo


chorando.)

Tudo se perdeu no mundo.


Não ficou mais que o silêncio.

(Deixai-me neste campo


chorando.)

O horizonte sem luz


está mordido de fogueiras.

(Já vos disse que me deixeis


neste campo
chorando.)
SOLEÀ

Vestida com mantos negros


pensa que o mundo é pequeno
e o coração imenso.

Vestida com mantos negros.

Pensa que o suspiro leve


e o grito são levados
pela corrente do vento.

Vestida com mantos negros.

Deixou a varanda aberta


e por ela a madrugada
derramou o céu inteiro.

Ai iaiaiaiai,
vestida com mantos negros!
SAETA

Cristo moreno
passa
de lírio de Judeia
a cravo de Espanha.

Olhai por onde vem!

De Espanha.
Céu límpido, céu escuro,
terra queimada,
e leitos por onde corre
lentíssima água.
Cristo moreno,
com guedelhas queimadas,
pómulos salientes
e pupilas brancas.

Olhai por onde vai!


CAFÉ CANTANTE

Lâmpadas de cristal
e espelhos verdes.

No tablado sombrio,
a Parrala sustém
uma conversão
com a morte.
Chama-a,
não vem,
e volta a chamá-la.
Os homens
aspiram os soluços.
Nos espelhos verdes
longas caudas de seda
agitam-se.
ESCONJURO

A mão crispada
como Medusa
cega o olho dolente
da candeia.

Ás de paus.
Tesouras em cruz.

Sobre o fumo branco


do incenso, tem
um ar de toupeira
e borboleta vaga.

Ás de paus.
Tesouras em cruz.

Aperta um coração
invisível — não vês?
Um coração
reflectido no vento.

Ás de paus.
Tesouras em cruz.
MALAGUENHA

A morte
entra e sai
da taberna.

Passam cavalos negros


e gente sinistra
pelos fundos caminhos
da guitarra.

E há um cheiro a sal
e a sangue de fêmea
nos nardos febris
da beira-mar.

A morte
entra e sai,
e sai e entra
a morte
da taberna.
CENA DO TENENTE-CORONEL
DA GUARDA CIVIL

SALA DAS BANDEIRAS

TENENTE-CORONEL
Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.

SARGENTO
Sim.

TENENTE-CORONEL
E não há quem me desminta.

SARGENTO
Não.

TENENTE-CORONEL
Tenho três estrelas e vinte cruzes.

SARGENTO
Sim.

TENENTE-CORONEL
O cardeal-arcebispo veio cumprimentar-me
com as suas vinte e quatro borlas roxas.
Sargento
Sim.
TENENTE-CORONEL
Eu sou o tenente. Eu sou o tenente. Eu sou
o tenente-coronel da Guarda Civil.

(Romeu e Julieta, azul-celeste, branco e oiro, abraçam-se no jardim


de tabaco da caixa de charutos. O militar acaricia o cano da
espingarda, cheia de sombra submarina.)

UMA VOZ (Fora.)

Lua, lua, lua, lua,


é o tempo da azeitona.
Cazorla mostra-me a torre,
Benameji esconde a sua.

Lua, lua, lua, lua,


Um galo canta na lua.
Alcaide, as suas meninas
andam a espreitar a lua.

TENENTE-CORONEL
Que se passa?

SARGENTO
Um cigano!

(O olhar de macho jovem do ciganito ensombrece e agiganta as


pupilas do Tenente-Coronel da Guarda Civil.)

TENENTE-CORONEL
Eu sou o tenente-coronel da Guarda Civil.

CIGANO
Sim.

TENENTE-CORONEL
Tu quem és?

CIGANO
Um cigano.

TENENTE-CORONEL
O que é um cigano?

CIGANO
Qualquer coisa.

TENENTE-CORONEL
Como te chamas?

CIGANO
Isso.

TENENTE-CORONEL
Que dizes?

CIGANO
Cigano.

SARGENTO
Encontrei-o e trouxe-o comigo.

TENENTE-CORONEL
Onde estavas?

CIGANO
Na ponte dos rios.

TENENTE-CORONEL
Mas, de que rios?

CIGANO
De todos os rios.

TENENTE-CORONEL
E que andavas a fazer?

CIGANO
Uma torre de canela.

TENENTE-CORONEL
Sargento!

SARGENTO
Às ordens, meu tenente-coronel da Guarda Civil.

CIGANO
Inventei umas asas para voar, e voo. Enxofre e rosa nos meus
lábios.

TENENTE-CORONEL
Ai!

CIGANO
Embora não precise de asas, porque voo sem elas.
Nuvens e anéis no meu sangue.

TENENTE-CORONEL
Aii!
CIGANO
Em janeiro tenho a flor da laranjeira.

TENENTE-CORONEL (Retorcendo-se.)
Aiiiii!

CIGANO
E as laranjas na neve.

TENENTE-CORONEL
Aiiiii!, pum, pim, pam. (Cai morto.)

(A alma de tabaco e café com leite do Tenente-Coronel da Guarda


Civil sai pela janela.)

SARGENTO
Socorro!

(No pátio do quartel, guardas-civis espancam o ciganito.)

CANÇÃO DO CIGANO ESPANCADO

Vinte e quatro bofetadas.


Vinte e cinco bofetadas;
depois, à noite, minha mãe
pôr-me-á em papel de prata.

Guarda Civil dos caminhos,


dai-me uma golada de água.
Água com peixes e barcos.
Água, água, água, água.

Ai, comandante da Guarda,


que aí estás, na tua sala!
Não haverá lenços de seda
para me limpar a cara!
DIÁLOGO DE AMARGO

CAMPO

UMA VOZ
Amargo.
As adelfas do meu pátio.
Coração de amêndoa amarga.
Amargo.

(Chegam três jovens com grandes chapéus.)

1.º JOVEM
Vamos chegar tarde.

2.º JOVEM
A noite cai-nos em cima.

1.º JOVEM
E esse?

2.º JOVEM
Vem atrás.

1.º JOVEM (Em voz alta.)


Amargo!

AMARGO (Ao longe.)


Já vou.
2.º JOVEM (Gritando.)
Amargo.

AMARGO (Calmamente.)
Já vou!

(Pausa.)

1.º JOVEM
Que belos olivais!

2.º JOVEM
Sim.

(Longo silêncio.)

1.º JOVEM
Não gosto de andar de noite.

2.º JOVEM
Também eu não.

1.º JOVEM
A noite fez-se para dormir.

2.º JOVEM
É verdade.

(Rãs e grilos fazem a glória do estio andaluz.


Amargo caminha com as mãos na cintura.)

AMARGO
Ai iaiaiai!
Já o perguntei à morte.
Ai iaiaiai!

(O grito do seu canto põe um acento circunflexo no coração dos que


o ouviram.)

1.º JOVEM (De muito longe.)


Amargo.

2.º JOVEM (Quase perdido.)


Amargooo!

(Silêncio.)

(Amargo está só no meio da estrada. Entorna os seus grandes olhos


verdes e cinge ao talhe a jaqueta de bombazina.
Altas montanhas o rodeiam. O seu grande relógio de prata soa
obscuramente no bolso, a cada passo.)
(Um Cavaleiro vem galopando pela estrada.)

CAVALEIRO (Parando o cavalo.)


Boas noites.

AMARGO
Na paz de Deus.

CAVALEIRO
Vai a Granada?

AMARGO
A Granada vou.

CAVALEIRO
Então vamos juntos.

AMARGO
Assim parece.

CAVALEIRO
Por que não monta na garupa?

AMARGO
Porque não me doem os pés.

CAVALEIRO
Eu venho de Málaga.

AMARGO
Óptimo.

CAVALEIRO
Os meus irmãos vivem lá.

AMARGO (Displicente.)
Quantos?

CAVALEIRO
São três. Vendem facas. É o negócio deles.

AMARGO
Que lhes preste.

CAVALEIRO
De prata e oiro.

AMARGO
Uma faca não tem que ser mais que uma faca.

CAVALEIRO
Engana-se.

AMARGO
Obrigado.

CAVALEIRO
As facas de oiro entram sozinhas no coração.
As de prata cortam o pescoço como fibra de erva.

AMARGO
Não servem para partir pão?

CAVALEIRO
Os homens partem o pão com as mãos.

AMARGO
É verdade.

(O cavalo inquieta-se.)

CAVALEIRO
Cavalo!

AMARGO
É a noite.

(O caminho ondulante prolonga em espirais a sombra do animal.)

CAVALEIRO
Queres uma faca?
AMARGO
Não.

CAVALEIRO
Estou a oferecer-ta.

AMARGO
Mas eu não a aceito.

CAVALEIRO
Não terás outra ocasião.

AMARGO
Quem sabe?

CAVALEIRO
As outras facas não prestam. As outras facas são brandas, têm
medo do sangue. As que nós vendemos são frias. Percebes?
Entram procurando o sítio mais quente e ali param.

(Amargo cala-se. A sua mão direita arrefece-lhe, como se agarrasse


um bocado de oiro.)

CAVALEIRO
Que bela faca!

AMARGO
É cara?

CAVALEIRO
Mas, não queres esta?

(Tira uma faca de oiro. A ponta brilha como chama de candeia.)


AMARGO
Já disse que não.

CAVALEIRO
Monta comigo, rapaz!

AMARGO
Ainda não estou cansado.

(O cavalo volta a espantar-se.)

CAVALEIRO (Puxando as rédeas.)


Mas que cavalo este!

AMARGO
É a escuridão.

(Pausa.)

CAVALEIRO
Como ia dizendo, em Málaga estão os meus três irmãos. Que
maneira de vender facas! Na catedral compraram duas mil para
adornar todos os altares e coroar a torre. Muitos barcos têm lá os
seus nomes escritos; os mais humildes pescadores da beira-mar
alumiam-se de noite com o brilho que desferem as suas folhas
afiadas.

AMARGO
É uma formosura.

CAVALEIRO
Quem o pode negar?
(A noite é espessa como um vinho de cem anos. A serpente gorda
do Sul abre os olhos na madrugada e há em quem dorme um desejo
infinito de se atirar à magia perversa do perfume e da distância.)

AMARGO
Parece que nos enganámos no caminho.

CAVALEIRO (Parando o cavalo.)


Sim?

AMARGO
Com a conversa.

CAVALEIRO
Aquelas não são as luzes de Granada?

AMARGO
Não sei.

CAVALEIRO
O mundo é muito grande.

AMARGO
Como que está desabitado.

CAVALEIRO
É como estás dizendo.

AMARGO
Dá-me um desespero. Ai iaiaiai!

CAVALEIRO
É porque estás a chegar. Que fazes?
AMARGO
Que faço?

CAVALEIRO
E se estás no teu sítio, para que é que lá queres estar?

AMARGO
Para quê?

CAVALEIRO (Parando o cavalo.)


Eu monto este cavalo, e vendo facas, mas se o não fizesse, que
aconteceria?

AMARGO
Que aconteceria?

(Pausa.)

CAVALEIRO
Estamos a chegar a Granada.

AMARGO
É possível?

CAVALEIRO
Vê como os mirantes brilham.

AMARGO
Acho-a um pouco mudada.

CAVALEIRO
É porque estás cansado.
AMARGO
Sim, é certo.

CAVALEIRO
Agora já não te negarás a montar comigo.

AMARGO
Espera um pouco.

CAVALEIRO
Vamos, sobe! Monta depressa. É preciso chegar antes do
amanhecer… E toma esta faca. Ofereço-ta!

AMARGO
Ai iaiaiai!

(O Cavaleiro ajuda Amargo. Os dois empreendem o caminho de


Granada. A serra do fundo cobre-se de cicuta e de urtigas.)

CANÇÃO DA MÃE DE AMARGO

Levam-no em meu lençol,


minha adelfa, minha palma.

A vinte e sete de agosto,


com uma faquita de oiro.

A cruz. E vamos andando!


Era moreno e amargo.

Vizinhas, dai-me uma jarra


de latão com limonada.
Nenhuma chore. Nenhuma.
Amargo já está na lua.
ROSA MUTÁVEL

Ao abrir pela manhã


rubra como sangue está.
O orvalho não a toca
com medo de se queimar.
Aberta à luz do meio-dia
é dura como um coral.
O sol assoma nos vidros
só para a ver fulgurar.
Quando nos ramos começam
os pássaros a cantar
e quando a tarde desmaia
nas violetas do mar,
torna-se branca, tão branca
como uma face de sal.
E logo que a noite toca
brando corno de metal
e as estrelas avançam
enquanto se esconde o ar,
no risco fino da sombra
começa-se a desfolhar.
RIXA

Em metade do barranco,
as navalhas de Albacete,
belas de sangue contrário,
reluziam como peixes.
Uma dura luz de naipe
recorta no verde amargo
cavalos enfurecidos
e perfis de cavaleiros.
Em cima de uma oliveira
duas velhas soluçavam,
enquanto o touro da rixa
pelas paredes trepava.
Anjos escuros traziam
lenços e água de neve.
Anjos com asas enormes
de navalhas de Albacete.
Juan Antonio, o de Montilla,
rola morto na vertente,
o corpo cheio de lírios
e uma romã na fronte.
Monta agora cruz de fogo
pelos caminhos da morte.

O juiz, com a Guarda,


chega pelos olivais.
Sangue derramado geme
muda canção de serpente.
Senhores guardas-civis:
aqui passou-se o de sempre.
Morreram quatro romanos
e cinco cartagineses.

Louca tarde de figueiras


e de rumores ardentes
cai desmaiada nas coxas
feridas dos cavaleiros.
Anjos escuros voavam
pelos ares do poente.
Anjos de compridas tranças
e de corações de azeite.
ROMANCE SONÂMBULO

Verde que te quero verde.


Verde vento. Verdes ramos.
O navio sobre o mar,
o cavalo na montanha.
Com sombra pela cintura,
ela sonha na varanda,
verde carne, trança verde,
e olhos de fria prata.
Verde que te quero verde.
À luz da lua cigana,
as coisas estão-na fitando
sem ela poder fitá-las.

Verde que te quero verde.


Grandes estrelas de escarcha
seguem o peixe de sombra
que anuncia a madrugada.
A figueira esfrega o vento
com a lixa dos seus ramos,
e o monte, gato matreiro,
eriça piteiras bravas.
Mas quem virá? E por onde?
Ela segue na varanda,
verde carne, trança verde,
a sonhar ondas amargas.

Compadre, quero trocar


o potro por sua casa,
os arreios por seu espelho,
a faca por sua manta.
Compadre, venho a sangrar
já desde os portos de Cabra.
Ah, se eu pudesse, mocito,
este contrato fechava.
Porém eu já não sou eu,
nem minha é já minha casa.
Compadre, quero morrer
decente na minha cama.
E de aço, se puder ser,
mas com lençóis de bretanha.
Não vês a ferida que tenho
do peito até à garganta?
Trezentas rosas morenas
leva o teu peitilho branco.
Teu sangue ressuma e cheira
em redor da tua faixa.
Porém eu já não sou eu,
nem minha é já minha casa.
Deixai-me subir ao menos
até às altas varandas,
deixai-me subir!, deixai-me,
até às verdes varandas.
Às balaustradas da lua,
aonde rebenta a água.

Já sobem os dois compadres


até às altas varandas.
Deixando um rasto de sangue.
Deixando um rasto de lágrimas.
Tremulavam nos telhados
faróis de folha de lata.
Mil pandeiros de cristal
feriam a madrugada.

Verde que te quero verde,


verde vento, verdes ramos.
Os dois compadres subiram.
O vento deixa na boca
um raro sabor a fel,
manjerico e hortelã.
Compadre!, diz-me onde está
a tua menina amarga?
Quantas vezes te esperou!
Quantas vezes te esperara,
fresca, de cabelo negro,
aqui na verde varanda!

Sobre o rosto da cisterna


agitava-se a cigana.
Verde carne, trança verde,
e olhos de fria prata.
Cristais de neve e de lua
a sustêm sobre a água.
Íntima se pôs a noite
como pequenina praça.
Bêbados guardas-civis
estão a sacudir a porta.
Verde que te quero verde.
Verde vento. Verdes ramos.
O navio sobre o mar.
O cavalo na montanha.
ROMANCE DO INTIMADO

Ai solidão sem descanso!


Olhos breves do meu corpo
e grandes do meu cavalo,
nunca se fecham de noite
nem olham aquele lado
por onde lento se afasta
um sonho de treze barcos;
mas antes, limpos e duros
escudeiros desvelados,
meus olhos fixam um norte
de metais e de penhascos,
onde o meu corpo sem veias
consulta naipes gelados.

Os touros de água investem


pesados contra os rapazes
que se banhavam nas luas
de seus cornos ondulados,
enquanto martelos cantam
sobre bigornas sonâmbulas
insónias do cavaleiro
e insónias do cavalo.

A vinte e cinco de junho


vêm prevenir Amargo:
Já podes cortar, se queres,
as adelfas do teu pátio.
Pinta na porta uma cruz,
põe o teu nome por baixo,
porque urtigas e cicuta
nascerão nos teus costados,
e agulhas de cal molhada
hão-de morder-te os sapatos.
Será de noite, no escuro,
em montes magnetizados,
onde os bois da água bebem
os juncos enquanto sonham.
Pede velas, pede sinos,
aprende a cruzar as mãos,
saboreia os ares frios
de metais e de penhascos,
porque dentro de dois meses
jazerás amortalhado.

Espadão de nebulosa
brande no ar Sant’Iago,
enquanto o silêncio rompe
dos flancos do céu curvado.

A vinte e cinco de junho


abriu seus olhos Amargo,
a vinte e cinco de agosto
estendeu-se para fechá-los.
Homens desciam a rua
para ver o intimado
contemplando na parede
a solidão dominada.
E o lençol impecável
de duro acento romano
dava equilíbrio à morte
com as rectas de seus panos.
ROMANCE DA GUARDA CIVIL

Os cavalos negros são.


As ferraduras são negras.
Reluzem nas suas capas
manchas de tinta e de cera.
Têm caveiras de chumbo,
é por isso que não choram.
Com a alma de verniz,
vêm vindo pela estrada.
Corcovados e nocturnos,
impõem, onde aparecem,
silêncios de goma escura
e medos de areia fina.
Passam, se querem passar,
e ocultam na cabeça
uma vaga astronomia
de pistolas inconcretas.

Oh cidade dos ciganos!


Pelas esquinas, bandeiras.
A lua e a calabaça
com as ginjas de conserva.
Oh cidade dos ciganos!
Quem te viu e não te lembra?
Terra de almíscar e dor,
com as torres de canela.

Logo que a noite chegava,


noite que noite nocturna,
em suas forjas, ciganos
forjavam flechas e sóis.
Um cavalo malferido
às portas todas clamava.
Galos de vidro cantavam
em Jerez de la Frontera.
O vento despido vira
as esquinas da surpresa,
na noite, na platinoite,
noite que noite nocturna.
A Virgem e São José
perderam as castanholas,
e procuram os ciganos
para ver se lhas encontram.
A Virgem anda vestida
com um traje de alcaidessa,
de papel de chocolate
e com colares de amêndoas.
São José agita os braços
sob uma capa de seda.
Logo atrás Pedro Domecq
vem com três sultões da Pérsia.
A meia-lua sonhava
um só êxtase de cegonha.
Bandeiras e lampiões
invadem as açoteias.
Pelos espelhos soluçam
bailarinas sem quadris.
Água e sombra, sombra e água,
em Jerez de la Frontera.

Oh cidade dos ciganos!


Pelas esquinas, bandeiras.
Apaga as lanternas verdes
que chegou a «Benemérita».
Oh cidade dos ciganos!
Quem te viu e não te lembra?
Deixai-a longe do mar,
sem pentes para as madeixas.

Avançam a dois e dois


para a cidade da festa.
Um rumor de sempre-vivas
invadiu as cartucheiras.
Avançam a dois e dois.
Duplo nocturno de pano.
E o céu é a seus olhos
uma vitrina de esporas.

A cidade multiplicava
as portas, livre de medo.
Quarenta guardas-civis
entram a saque por elas.
Todos os relógios param.
O conhaque das garrafas
disfarçou-se de Novembro
para não criar suspeitas.
Um voo de longos gritos
ergueu-se dos cata-ventos.
Os sabres cortam a brisa
pisada já pelos cascos.
Pelas ruas de penumbra
fogem as ciganas velhas
com cavalos sonolentos
e tigelas de moedas.
Pelas ruas empinadas
sobem as capas sinistras,
deixando atrás fugazes
remoinhos de tesouras.

Já no portal de Belém
os ciganos se congregam.
São José, todo ferido,
amortalha uma donzela.
Obstinadas carabinas
soam pela noite fora.
A Virgem cura os meninos
com salivita de estrelas,
enquanto a Guarda Civil
vai semeando fogueiras,
onde jovem e despida
a imaginação se queima.
Geme Rosa, a dos Cambórios,
sentada na sua porta,
com os dois seios cortados
e postos numa bandeja.
Outras raparigas correm
perseguidas pelas tranças,
enquanto estalam no ar
rosas de pólvora negra.
Quando todos os telhados
eram já sulcos na terra,
a manhã moveu os ombros
em longo perfil de pedra.

Oh cidade dos ciganos!


A Guarda Civil afasta-se
por um túnel de silêncio
enquanto te cercam chamas.

Oh cidade dos ciganos!


Quem te viu e não te lembra?
Procurem na minha fronte.
Jogo de lua e de areia.
TAMAR E AMNÓN

A lua gira no céu


sobre uma terra sem água,
enquanto o verão semeia
rumores de tigre e chama.
Por cima dos tectos soam
finos nervos de metal.
O ar encrespado chega
com seus balidos de lã.
A terra entrega-se cheia
de golpes cicatrizados,
estremecida de agudos
cautérios de luzes brancas.

Tamar estava sonhando


aves na sua garganta,
ao som de pandeiros frios
e cítaras enluaradas.
Sua nudez no alpendre,
agudo norte de palma,
pede aos seus ombros granizo,
flocos de neve ao seu ventre.
Tamar estava cantando
toda nua no terraço.
A seus pés esvoaçavam
cinco pombas orvalhadas.
Amnón, delgado e concreto,
da sua torre a espreitava,
cheias de espuma as virilhas
e de oscilações a barba.
Ao estender-se no terraço,
a sua nudez brilhava,
com um rumor entre os dentes
de flecha recém-cravada.
Amnón agora fitava
a lua redonda e baixa,
e na lua via os seios
duríssimos de sua irmã.

Amnón, pelas três e meia,


estendeu-se sobre a cama.
Toda a alcova sofria
com seus olhos cheios de asas.
A luz maciça sepulta
aldeias na areia parda,
ou descobre um transitório
coral de rosas e dálias.
Linfa de poço oprimida,
brota silêncio nas jarras.
No musgo escuro dos troncos
a cobra estendida canta.
Amnón geme na frescura
da roupa de sua cama.
As heras do calafrio
cobrem-lhe a carne queimada.
Tamar entrou em silêncio
na alcova silenciada,
cor de veias e Danúbio,
turva de rastos distantes.
Tamar, apaga-me os olhos
com a tua madrugada.
Meus fios de sangue tecem
folhos para a tua saia.
Deixa-me em sossego, irmão.
Teus beijos em minha espádua
são vespas e fresca brisa,
enxame duplo de flautas.
Tamar, nos teus altos seios
há dois peixes que me chamam,
e na ponta dos teus dedos,
um rumor de flor fechada.

Os cem cavalos do rei


pelo pátio relinchavam.
Sol em cubos resistia
à delgadez da parreira.
Pelo cabelo a prendeu,
já a camisa lhe rasga.
Mornos corais desenhavam
arroios num loiro mapa.

Oh, que gritos se sentiam


pelo cimo dos telhados!
Que espessura de punhais
e túnicas extraviadas.
Pelas tristes escadarias
escravos sobem e descem.
Coxas e êmbolos brincam
debaixo de nuvens quietas.
Em redor de Tamar gritam
jovens e virgens ciganas,
outras recolhem as gotas
de sua flor destroçada.
O rubor nos panos brancos
invade alcovas cerradas.
Rumores de morna aurora
trocavam peixes e pâmpanos.

Violador enfurecido,
Amnón fugia a cavalo.
Negros apontam-lhe flechas
dos muros e atalaias.
E quando os quatro cascos
eram quatro ressonâncias,
David com uma tesoura
cortou as cordas da harpa.
MORTE

Que esforço,
que esforço do cavalo
para ser cão!
Que esforço do cão para ser andorinha!
Que esforço da andorinha para ser abelha!
Que esforço da abelha para ser cavalo!
E o cavalo,
que flecha aguda exprime da rosa!,
que rosa de cinza o seu bafo levanta!
E a rosa,
que rebanho de alaridos e de luzes
ata no vivo açúcar do seu tronco!
E o açúcar
que pequenos punhais vai sonhando em vigília!
E os punhais diminutos,
que lua sem estábulos, que nudez,
pele eterna e rubor, andam buscando!
E eu, pelos beirais,
que serafim de chamas busco e sou!
Porém o arco de gesso,
que grande, e invisível, e diminuto,
sem nenhum esforço!
ODE A WALT WHITMAN

Pelo East River e pelo Bronx


os rapazes cantavam mostrando a cintura.
Com a roda, o óleo, o couro e o martelo
noventa mil mineiros extraíam prata das rochas
e crianças desenhavam escadas e perspectivas.

Porém nenhum adormecia,


nenhum queria ser rio,
nenhum amava as grandes folhas,
nenhum, a língua azul da praia.

Pelo East River e pelo Queensborough


os rapazes lutavam com a indústria,
os judeus vendiam ao fauno do rio
a rosa da circuncisão,
e o céu desembocava por pontes e telhados
manadas de bisontes empurrados pelo vento.

Porém nenhum se detinha,


nenhum queria ser nuvem,
nenhum procurava os fetos
nem a roda amarela do tamboril.
Quando a lua nascer
as polés rodarão para turvar o céu;
um limite de agulhas cercará a memória
e ataúdes serão levados aos que não trabalham.
Nova Iorque de lama,
Nova Iorque de arames e de morte,
que anjo levas oculto na tua face?
Que voz perfeita dirá as verdades do trigo,
o sonho terrível de tuas anémonas manchadas?

Nem um só momento, velho e formoso Walt Whitman,


deixei de olhar a tua barba cheia de borboletas,
os teus ombros de bombazina gastos pela lua,
as tuas coxas de Apolo virginal,
a tua voz como coluna de cinza;
ancião formoso como a bruma
que gemias como um pássaro
com o sexo atravessado por uma agulha,
inimigo do sátiro,
inimigo da vide,
e amante de corpos ocultos por tecidos grosseiros.
Nem um só momento, formosura viril,
que em montes de carvão, vias-férreas e anúncios,
sonhavas ser um rio e dormir como um rio
com aquele camarada que poria no teu peito
uma pequena dor de ignorante leopardo.

Nem um só momento, Adão de sangue, macho,


homem sozinho no mar, velho e formoso Walt Whitman,
porque nos terraços,
agrupados nos bares,
saindo em cachos das sarjetas,
tremendo entre as pernas dos chauffeurs
ou girando nas plataformas do absinto,
os maricas, Walt Whitman, apontam-te.

Também esse! Também! E despenham-se


na tua barba luminosa e casta,
loiros do Norte, negros das areias,
multidões de gritos e ademanes,
como os gatos e as serpentes,
os maricas, Walt Whitman, os maricas,
turvos de lágrimas, carne para chicote,
bota ou mordedura dos domadores.

Também esse! Também! Dedos pintados


apontam a margem do teu sonho
quando o amigo come a tua maçã
com um leve sabor a gasolina
e o sol canta nos umbigos
dos rapazes que brincam debaixo das pontes.

Mas tu não procuravas olhos arranhados,


nem o pântano sombrio onde afogam os garotos,
nem a saliva gelada,
nem as curvas feridas como panças de sapo
que os maricas levam em carros e terraços,
enquanto os fustiga a lua pelas esquinas do terror.

Tu procuravas um nu que fosse como um rio.


Touro e sonho que junte a roda à alga,
pai da tua agonia, camélia da tua morte,
e gemesse nas chamas do teu equador oculto.
Porque é justo que o homem não procure o prazer
na selva de sangue da manhã mais próxima.
O céu tem praias onde evitar a vida
e há corpos que não devem repetir-se na aurora.

Agonia, agonia, sonho, fermento e sonho.


Assim é o mundo, amigo, agonia, agonia.
Apodrecem os mortos sob o relógio das cidades,
passa a guerra chorando com um milhão de ratas cinzentas,
os ricos dão às suas amantes
pequenos moribundos iluminados
e a vida não é nobre, nem boa, nem sagrada.
Pode o homem, se quiser, conduzir o desejo
por veia de coral ou nu celeste;
amanhã todo o amor será rocha e o Tempo
uma brisa que chega adormecida pelos ramos.

Por isso não ergo a minha voz, velho Walt Whitman,


contra o garoto que escreve
um nome de menina na sua almofada,
nem contra o jovem que se veste de noiva
na penumbra da sua alcova,
nem contra os solitários dos casinos
que bebem com nojo a água da prostituição,
nem contra os homens de olhar verde
que amam outro homem queimando os lábios em silêncio.
Mas sim contra vós, maricas das cidades,
de carne apodrecida e pensamento imundo.
Mães do lodo. Harpias. Inimigos sem o sonho
do Amor que reparte grinaldas de alegria.

Contra vós sempre, que aos rapazes dais


gotas de suja morte com veneno amargo.
Sempre contra vós,
Faeries da América,
Pájaros de Havana,
Jotos do México,
Sarasas de Cádis,
Apios de Sevilha,
Cancos de Madrid,
Floras de Alicante,
Adelaides de Portugal.
Maricas de todo o mundo, assassinos de pombas!
Escravos da mulher. Cadelas de seus toucadores.
Abertos nas praças com febre de leque
ou emboscados em hirtas paisagens de cicuta.
Não haja tréguas! A morte
irrompe dos vossos olhos
e junta flores de cinza na margem do lodo.
Não haja tréguas! Alerta!
Que os confundidos, os puros,
os clássicos, os predestinados, os suplicantes
vos fechem as portas da bacanal.

E tu, belo Walt Whitman, dorme nas margens do Hudson


com a barba virada ao pólo e as mãos abertas.
Argila branca ou neve, a tua língua chama
camaradas que velem tua gazela sem corpo.
Dorme, não fica nada.
Uma dança de muros agita as pradarias
e a América afoga-se em máquinas e pranto.
Quero que o ar forte da noite mais profunda
tire flores e letras do arco onde dormes
e um garoto negro anuncie aos brancos do oiro
a chegada do reino das espigas.
SON DE NEGROS EM CUBA

Quando vier a lua cheia irei a Santiago de Cuba,


irei a Santiago,
num carro de água negra.
Irei a Santiago.
Cantarão os tectos de palmeira,
irei a Santiago.
Quando a palma quer ser cegonha,
irei a Santiago,
e quando a bananeira quer ser medusa,
irei a Santiago.
Irei a Santiago
com a loira cabeça de Fonseca.
Irei a Santiago.
E com o rosal de Romeu e Julieta
irei a Santiago.
Mar de papel e prata de moedas.
Irei a Santiago.
Oh Cuba! Ritmo de sementes secas!
Irei a Santiago.
Oh cintura tropical e gota de madeira!
Irei a Santiago.
Harpa de troncos vivos. Caimão. Flor de tabaco.
Irei a Santiago.
Sempre disse que iria a Santiago
num carro de água negra.
Irei a Santiago.
Brisa e álcool nas rodas,
irei a Santiago.
Coral meu na minha treva,
irei a Santiago.
O mar afogado na areia,
irei a Santiago.
Calor branco, fruta morta,
irei a Santiago.
Oh bovina frescura do canavial!
Oh Cuba! Oh curva de suspiro e barro!
Irei a Santiago.
SANGUE DERRAMADO

Não quero vê-lo!

Dizei à lua que venha,


que não quero ver o sangue
de Inácio sobre a areia.

Não quero vê-lo!

A lua de par em par.


Cavalo de nuvens quietas,
e a praça escura do sonho
com salgueiros nas barreiras.

Não quero vê-lo!


Que a lembrança se me queima.
Ide avisar os jasmins
com sua alvura pequena!

Não quero vê-lo!

A vaca do velho mundo


passa a sua triste língua
sobre um focinho de sangue
derramado pela areia,
e os touros de Guisando,
quase morte e quase pedra,
mugiram como dois séculos
fartos de pisar a terra.
Não.
Não quero vê-lo!

Pelos degraus sobe Inácio


com a morte inteira às costas.
A madrugada procura
mas já não há madrugada.
Busca seu perfil seguro,
e o sonho o desorienta.
Busca o seu corpo formoso
e encontra o sangue aberto.

Não me digam para o ver!


Não quero sentir o jorro
cada vez com menos força;
esse jorro que ilumina
galerias e se entorna
na bombazina e no couro
de uma multidão sedenta.
Quem me grita que me assome?
Não me digam para o ver!
Não se cerram seus olhos
quando viu os cornos perto,
porém, terríveis, as mães
levantaram a cabeça.
E nas ganadarias houve
um ar de vozes secretas:
gritam a touros celestes
maiorais de pálida névoa.

Não houve príncipe em Sevilha


a que o possam comparar,
nem espada como a sua,
nem coração tão deveras.
Como um rio de leões
a força maravilhosa,
e como torso de mármore
a desenhada prudência.
Ar de Roma andaluza
doirava a sua cabeça,
onde o seu riso era um nardo
de sal e de inteligência.
E que toureiro na praça!
Que bom serrano na serra!
Que brando com as espigas!
Que duro com as esporas!
Que terno com o orvalho!
Que deslumbrante na feira!
Que tremendo com as últimas
bandarilhas só de treva!

Porém já dorme sem fim.


Já os musgos e a erva
abrem com dedos seguros
a flor da sua caveira.
E seu sangue já vem cantando:
cantando por charnecas e lezírias,
resvalando por cornos transidos,
vacilando sem alma pela névoa,
e tropeçando em milhentas patas
como longa, escura, triste língua,
para formar um charco de agonia
junto ao Guadalquivir de estrelas.

Oh branco muro de Espanha!


Oh negro touro de pena!
Oh sangue duro de Inácio,
rouxinol de suas veias!
Não!
Não quero vê-lo!
Que não há cálice que o contenha,
que não há andorinhas que o bebam,
que não há neve de luz que o arrefeça,
não há canto nem dilúvio de açucenas,
não há cristal para o cobrir de prata.
Não!
Eu não quero vê-lo!
CANÇÃO DA MORTE PEQUENA

Prado mortal de luas,


sangue debaixo da terra.
Prado de sangue velho.

Luz de ontem, luz de amanhã.


Céu mortal de relva.
Luz e noite de areia.

Encontrei-me com a Morte.


Prado mortal de terra.
Uma morte pequena.

Há um cão sobre o telhado.


Só uma das minhas mãos
atravessava sem fim
montanhas de flores secas.

Catedral de cinza apenas.


Luz e noite de areia.
Uma morte pequena.

A morte e eu, um homem.


Um homem sozinho, e ela,
uma morte pequena.

Prado mortal de luas.


Trémula, a neve geme
atrás de qualquer porta.

Um homem, e quê? Já disse.


Um homem sozinho e ela.
Prado, amor, luz e areia.
CANÇÃO

Se tu ouvisses
o loendro amargo chorar,
que farias, meu amor?
Suspirar!

Se tu sentisses a luz
chamar-te quando se vai,
que farias, meu amor?
Lembrar-me-ia do mar.

Se eu um dia te dissesse
— amo-te — no meu olival,
que farias, meu amor?
Cravaria este punhal!
NA MORTE DE
JOSÉ DE CIRIA Y ESCALANTE

Quem dirá que te viu? Em que momento?


Que mágoa de penumbra iluminada!
Duas vozes soam: o relógio e o vento,
enquanto sem ti flutua a madrugada.

Puro delírio de nardo cinzento


invade-te a cabeça delicada.
Homem! Paixão! Choro de luz! Memento.
Volve feito lua e coração de nada.

Volve feito lua: com a minha mão,


ao rio, lançarei tua maçã,
turvo de rubros peixes e verão.

E lá em cima tu, verde e gelado,


esquece-me! E esquece a terra vã,
amigo meu, Giocondo delicado.
A MERCEDES EM SEU VOO

Uma viola de luz hirta e gelada


és agora nas rochas da altura.
Uma voz sem garganta, voz escura
que soa em tudo sem soar em nada.

Teu pensamento é neve resvalada


pela glória infinita da brancura.
Teu perfil é perene queimadura,
teu coração uma pomba desatada.

Canta, canta no ar já sem cadeia,


a matinal fragrante melodia,
monte de luz e chaga de açucena.

Que nós aqui em baixo noite e dia


faremos nas esquinas da tristeza
uma grinalda de melancolia.
GAZEL DO AMOR IMPREVISTO

Ninguém compreendia o aroma


da escura magnólia do teu ventre.
Ninguém sabia que martirizavas
um colibri de amor entre os teus dentes.

Mil potros persas adormeciam


na praça lunar da tua fronte,
enquanto eu enlaçava quatro noites
a tua cintura, hostil à neve.

Entre gesso e jasmins, o teu olhar


era um pálido ramo de sementes.
Procurarei, para te dar, no meu peito
as letras de marfim que dizem sempre.

Sempre, sempre: jardim desta agonia,


teu corpo fugitivo para sempre,
teu sangue arterial na minha boca,
tua boca já sem luz para esta morte.
GAZEL DA TERRÍVEL PRESENÇA

Quero que a água fique sem leito.


Quero que o vento fique sem vales.

Quero que a noite fique sem olhos


e meu coração sem a flor do oiro;

que os bois falem com as grandes folhas


e que a minhoca morra de sombra;

que os dentes da caveira brilhem


e os amarelos inundem a seda.
Posso ver a dor da noite ferida
lutando enroscada com o meio-dia.

Resisto ao poente de verde veneno,


aos arcos quebrados onde sofre o tempo.

Mas não ilumines tua nudez limpa


como entre juncos negro cacto aberto.

Deixa-me na ânsia de obscuros planetas,


mas não me mostres a cintura fresca.
GAZEL DO AMOR DESESPERADO

A noite não quer vir


para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Porém eu irei,
embora um sol de lacraus me devore a fronte.

Porém tu virás
com a língua queimada por chuva de sal.

O dia não quer vir


para que tu não venhas,
nem eu possa ir.

Porém eu irei,
entregando aos sapos meu cravo mordido.

Porém tu virás
pelas turvas cloacas da obscuridade.

O dia e a noite não querem vir


para que por ti morra
e tu morras por mim.
GAZEL DO MENINO MORTO

Todas as tardes em Granada,


todas as tardes morre um menino.
Todas as tardes a água se senta
a conversar com os seus amigos.

Os mortos levam asas de musgo.


O vento enevoado e o vento limpo
são dois faisões voando pelas torres,
e o dia, esse é um rapaz ferido.

Não ficava no ar nem fibra de calhandra


quando nos encontrámos nas grutas do vinho.
Não ficava na terra migalha de nuvens
quando tu te afogavas no rio.

Um gigante de água caiu sobre os montes


e o vale foi rodando com cães e com lírios.
Teu corpo, com a sombra violeta de meus dedos,
era, morto na margem, um arcanjo de frio.
GAZEL DA RAIZ AMARGA

Há uma raiz amarga


e um mundo de mil terraços.

Nem a mais pequena mão


quebrou a porta da água.

Aonde vais, aonde, aonde?


Há um céu de mil janelas
— luta de pálidas abelhas —
e uma raiz amarga.

Amarga.

Dói-me na planta do pé
o interior da cara,
também dói no tronco fresco
da noite recém-cortada.

Amor, inimigo meu,


morde esssa raiz amarga!
GAZEL DA LEMBRANÇA DE AMOR

Não me leves a lembrança.


Deixa-me só no meu peito,

frágil cerejeira branca


no martírio de janeiro.

Só me separa dos mortos


um muro de pesadelos.

Dou mágoas de lírio fresco


a um coração de gesso.

Meus olhos, como dois cães,


a noite toda no horto.

A noite inteira, correndo


por uns frutos de veneno.

Algumas vezes o vento


é uma tulipa de medo,

é uma tulipa doente,


a madrugada de inverno.

Um muro de pesadelos
me separa dos defuntos.
A relva cobre em silêncio
teu corpo, vale cinzento.

No arco do nosso encontro


a cicuta cresce agora.

Deixa-me a tua lembrança,


deixa-ma só no meu peito.
GAZEL DA MORTE SOMBRIA

Quero dormir como dormem as maçãs,


afastar-me do tumulto dos cemitérios.
Quero dormir como dorme o garoto
que queria cortar o coração no mar alto.

Não quero que me repitam que os mortos não


perdem
o sangue;
que a boca podre continua a pedir água.
Não quero saber dos martírios que dá a relva,
nem da lua com boca de serpente
trabalhando antes de amanhecer.

Quero dormir um instante,


um instante, um minuto, um século;
mas que saibam todos que não morri;
que há um estábulo de oiro nos meus lábios;
que sou o pequeno amigo do vento Oeste,
que sou a sombra imensa de minhas lágrimas.

Cobre-me com um véu pela aurora,


porque me arrojará punhados de formigas,
molha com água dura os meus sapatos
para que a pinça do seu lacrau resvale.

Quero dormir como dormem as maçãs,


aprender um pranto que me limpe a terra;
quero viver como o garoto sombrio
que no mar alto queria cortar o coração.
GAZEL DO AMOR MARAVILHOSO

Com o gesso todo


dos campos ruins,
eras junco de amor, jasmim molhado.

Com o sul e a chama


dos céus ruins,
eras rumor de neve pelo meu peito.

Céus e campos
apertam cadeias nas minhas mãos.

Campos e céus
zurzem as feridas do meu corpo.
GAZEL DA FUGA

Muitas vezes me perdi no mar,


o ouvido cheio de flores recém-cortadas,
a língua cheia de amor e de agonia.
Muitas vezes me perdi no mar,
como me perco no coração de alguns garotos.

Não há noite que, ao dar um beijo,


não sinta o sorriso da gente sem rosto,
não há ninguém que, ao tocar um recém-nascido,
esqueça as imóveis caveiras de cavalos.

Porque as rosas buscam numa fronte


uma endurecida paisagem de osso
e as mãos do homem não têm mais sentido
que imitar raízes debaixo da terra.

Como no coração de alguns garotos,


muitas vezes me perdi no mar.
Ignorante da água, vou procurando
uma morte de luz que me consuma.
GAZEL DO MERCADO MATUTINO

Pelo arco de Elvira


quero ver-te passar,
para saber teu nome
e pôr-me a chorar.

Que lua fria das nove


te pôs a face tão branca?
Quem a semente recolhe
da labareda na neve?
Que alfinete de cacto breve
assassina teu cristal?

Pelo arco de Elvira


vou a ver-te passar,
para beber teus olhos
e pôr-me a chorar.

Que voz para meu castigo


levantas pelo mercado!

Que cravo alucinado


entre montinhos de trigo!
Que longe se estou contigo;
que perto quando te vais!

Pelo arco de Elvira


vou a ver-te passar,
para te olhar as coxas
e pôr-me a chorar.
CACIDA DOS RAMOS

Pelas alamedas do Tamarit


aproximam-se os cães de chumbo
à espera que caiam os ramos,
à espera de quebrarem só por si.

O Tamarit tem uma macieira,


a macieira, uma maçã de soluços.
Um rouxinol reúne os suspiros
que um faisão põe em fuga na poeira.

Mas os ramos também são alegres,


os ramos também são como pessoas.
Não pensam na chuva e adormeceram,
de súbito, como se fossem árvores.

Sentados com a água nos joelhos


dois vales aguardavam o Outono.
A penumbra com passo de elefante
empurrava os ramos e os troncos.

Pelas alamedas do Tamarit


há muitos garotos de rosto velado
à espera que meus ramos caiam,
à espera de quebrarem só por si.
CACIDA DA MULHER DEITADA

Ver-te despida é recordar a Terra,


a Terra lisa, limpa de cavalos.
A Terra sem um junco, forma pura
ao futuro cerrada: confim de prata.

Ver-te despida é perceber a ânsia


da chuva a procurar um débil talo,
ou a febre do mar de rosto imenso
sem encontrar a luz da sua face.

O sangue soará pelas alcovas,


chegará com espadas fulgurantes,
mas tu não saberás onde se esconde
o coração do sapo ou a violeta.

Teu ventre é uma luta de raízes,


teus lábios, aurora sem contorno.
Sob as cálidas rosas de uma cama
os mortos gemem esperando turno.
CACIDA DA ROSA

A rosa
não buscava a aurora:
quase eterna no ramo
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava ciência nem sombra:
confim de carne e sonho,
buscava outra coisa.

A rosa
não buscava a rosa:
imóvel pelo céu
buscava outra coisa.
CACIDA DAS POMBAS OBSCURAS

Pelos ramos do loureiro


vão duas pombas obscuras.
Uma delas era o sol
e a outra era a lua.
«Vizinhas, sabeis aonde
está minha sepultura?»
«Nesta cauda», diz o sol.
«Nesta garganta», diz a lua.
E eu que estava caminhando
com terra pela cintura,
vi duas águias de neve
e uma moça desnuda.
Uma delas era a outra
e a moça era nenhuma.
«Águias, sabeis aonde
está minha sepultura»?
«Nesta cauda», diz o sol.
«Nesta garganta», diz a lua.
Pelos ramos do loureiro
andam duas pombas nuas.
Uma delas era a outra,
as duas eram nenhuma.

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