Você está na página 1de 3

-

dl t
:'

P o
i
L). SI A
i. ?
I
,li

I ij

ColxÉrl DA xorrE*
CenpTNEJAR

Não durmo, o sono escapâ


como um presságio.
O fruto retorna à lama do caroço,
recomeçando o sumo
das ruínas.

Tento descansar no lad.o contrário.


Careço de escuro no próprio escuro.
Os objetos vão contornando
a sombra, alforriando os pertences.
A memória é o hábito de trocar os lençóis,
mas há manchas que permanecem
corroendo o tecido. Há manchas que limpam:
o orvalho, o sêmen, a urina,
sobras da nature za-rr,oÍta.

Náo durmo, protegida pelos


punhos cerrados da cama.
O sol da cámisola branca confunde a pele,
avulso, sufocado na colméia da noite.
I-Jm assassino rumina no insone,
sem o perdáo de um dia depois do outro.

Distraio os pensamentos
por alguns minutos. Como ocupá-los
em madrugadas inteiras?

Uma milícia de abelhas assopra as pálpebras,


o assobio das asas.
Assusto-me com o freio das juntas,
ruído das vértebras e vísceras.
Náo encontro recato, velamento,
para aquietar o fermento das veias.

62
-

Náo entendo o silênci


e o subestimo como trégua da fala.
Ele não começa ao cessar as palavras,
não termina ao pronunciá-las.

Corro ao caminhar lenta,


os chinelos arrastados, indecisa âncora,
contrariando o leme e a direção da proa.
A madeira se move, o solo é volúvel
como a ágta. Os ombros carregam
os parentes e as intrigas.
Afundada no sopro, arqueio as costas.
Estou presa à curvatura de um porão
a céu aberto.

Enquanto as horas passam,


o rosto pasta. Boi engordando
o d"eclive do campo.

Amadureci a covardia em sarcasmo.


Posso rir do sofrimento.
Mistérios existem para simular profundidade
Sou rasa, fútil. Náo reverencio a primavera,
a mais sádica das estaçóes.
Desde a inÍà.ncia, ela floresce minha asma.

Posso adiar a morte,


nunca o nasclmento.
É impossível cortar a semente

Catpinejar é awtor dos liuros As solas do sol (Bertrand Brasil,


1998),tJm terno de pássaros ao srl (Esnituras Editora, 2000),Ter-
ceira sede (Escrituras, 2001) e Biografia de uma árvore (Escrituras,
2002), Recebeu uários prêmios como Cecília Meireles 2002, da
[Jniiio Brasileira de Escritores (UBE); Marengo D'Oro, d.e Gênoua
(Ittília); duas uezes o Açorianos de Literatura, edições 2001 e 2002;
Destaque Litertírio - Júri OJ)cial como melhor liuro de poesia da 46"
Feira do Liuro dr Porto Alegre (RS), e Fernando Pessoa, da (Jnião
Brasileira cle Escritores/RJ, em 2000.

63
A xuDEz DE T=l]íA
EusrÁquro CoH,tns

Que espécie de bicho é uma mulher nua? Como é, de fato e à vera, uma ftmea sem plumas?
De repente aquilo passou a ser uma questão crucial para nós. Havia um grave déficit em nos-
so conhecimento do mundo. As informaçóes eram desencontradas, as descriçóes, suspeitas. (
Doca tinha visto uma prima lavar-se no córrego, mâs era íncapaz de dar detalhes. A máe de
Lúcio despira a blusa bem na sua frente, sem que fosse visto, mas aquilo era pouco, e na opi-
niáo de Pedro, abominável. "Mãe náo vale", argumentou. "Nem irmã", disse Lucas, que ti-
nha várias. Uma delas, Telma, tinha-se deixado bolinar atrás da capela. Mas nudez mesmo,
só o fulgor de suas coxas alvas.
Não sei como urdiu-se em mim a idéia do espetáculo de nudez, se ao sopro da leitura de
Alencar (que descoberta!) ou se durante a expediçáo ao bosquinho de pés-de-embira, onde
abrimos uma clareira, e nela, o espaço para um lugar de maravilhas. "Para cantar e dançar",
eu disse. Mas logo: "Náo, para um espetáculo com índios". E em seguida, numâ iluminaçáo:
"Vamos encenar lr^cema".
Foi agradável descobrir que, aberta a clareira, o bosquinho fez curvar amorosamente suas co-
pas e seus liames sobre a terra fofa, dando à sombra um aconchego de alcova. De uma forqui-
lha a outra estendemos caules flexíveis e sobre eles, ao longo e ao largo, folhas de buriti. Ao
rés do chão, tábuas sobre pedras chatas trazidas da beira do riacho: o auditório. No entretem-
po, minhas máos sujas de seiva tinham preparado uma espécie de texto, uns quantos diálogos
e uma dança indígena sacrílega e sensual. Durante os ensaios, eu passeava autoritário a minha
borduna de peroba, um feixe de penas em torno da cintura, um cocâr na cabeça. No dia da
estréia soubemos que o segredo, o pacto de silêncio que havíamos selado tinha-se rompido em
algum ponto. No povoado já se comentava a coisa com ar de mistério. Isto explica por que o
público tomou todos os lugares e desbordou para as galerias. Dois lampiões iluminavam a ce-
na. Mal o espetáculo principiou, ganhou impulso com o dirílogo entre os guerreiros. "Tupá
deu à grande naçáo tabqarutoda esta terrd', disse o guerreiro-chefe. "O gaviáo paira nos ares",
respondeu o jovem gu.*rreiro. "Iracema!", bradou o guerreiro-chefe. Aplausos. Deu-se entáo o
inaudito, o mágico, o miraculoso. Iracema, a virgem dos lábios de mel, irrompeu no palco.
Telma em carne e osso. Nada de plumas, penas, tanga. Nada. Inteiramente nua. As pernas lon-
gas, lisas, terminavam no triângulo escuro, selvagem, púbere. O umbigo era uma flor dilace-
rada contrastando com os seios pequenos. Mas o conjunto, no todo, era harmonioso. A pla-
téia veio abaixo. Os guerreiros congelaram-se no centro do palco. Gritos, assobios, até
palavrões ouvi. E viu-se quando, de um salto, Lucas avançou para o proscênio e baixou o pa-
no, que ere um lençol corrido de uma ponta a outra. E depois, pelos fundos, matagal aden-
tro, arrastou Telma para casa, onde ele e o pai, segundo se soube, a cobriram de pancadas.

Eustá4uio Gornes é auto6 entre outras, das nouelas A febre amorosa (1984), Jonas Blau (1986) e O mapa da
Austrália (1998). O presente texto faz parte do liuro inédito Paisagem com neblina.

64

Você também pode gostar