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TERESA

Manoel Bandeira
A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo


Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada


Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
QUARTO EM DESORDEM
Carlos Drummond de Andrade
Na curva perigosa dos cinquenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor
que não se sabe como é feita: amor,
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar
a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais defeso, corpo! corpo, corpo,
verdade tão final, sede tão vária,
e esse cavalo solto pela cama,
a passear o peito de quem ama.

TECENDO A MANHÃ

João Cabral de Melo Neto


1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

CHUVA NA MONTANHA

Cecilia Meireles
Como caíram tantas águas,
nublou-se o horizonte,
nublou-se a floresta,
nublou-se o vale.

E as plantas moveram-se azuis


dentro da onda que as toldava.

Tudo se transformou em cristal fosco:


as jaqueiras cansadas de frutos,
as palmeiras de leque aberto,
e as mangueiras com suas frondes
de arredondadas nuvens negras superpostas.

O arco-íris saltou somo serpente multicor


nessa piscina de desenhos delicados.

ADORMECIDA
Castro Alves
I
Uma noite, eu me lembro… Ela dormia
Numa rede encostada molemente…
Quase aberto o roupão… solto o cabelo
E o pé descalço no tapete rente.
II
‘Estava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina…
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.
III
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos – beijá-la.
IV
Era um quadro celeste!… A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia…
Quando ela serenava… a flor a beijava…
Quando ela ia beijar-lhe… a flor fugia…
V
Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças…
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!
VI
E o ramo ora chegava ora afastava-se…
Mas quando a via despeitada a meio,
Pra não zangá-la… sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio…
VII
Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
“Ó flor! – tu és a virgem das campinas!
“Virgem! – tu és a flor da minha vida!…”

CANÇÃO MATINAL
Ruy Espinheira Filho
a Ricardo Vieira Lima

Acorda bem cedo o homem


da casa de telha-vã
e abre janela e porta
como se abrisse a manhã.

E eis que a vida não é mais


nem triste,nem só,nem vã.
É doce:cheira a goiaba
e brilha como romã.

orvalhada.E ele caminha,


o homem,com passos de lã
para em nada perturbar
a quietude da manhã.

Já não há mágoas de perdas


nem angústias de amanhã,
pois a alma que há na calma
entre a goiaba e a romã

é a própria alma do homem


da casa de telha vã,
que declara a noite morta
e acende em si a manhã.

DA CALMA E DO SILÊNCIO

–Conceição Evaristo
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar


se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés


abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

“Poemas da recordação e outros movimentos”. Belo Horizonte: Nandyala, 2008.

UMA OURIÇA
João Cabral de Melo Neto
1
Se o de longe esboça lhe chegar perto,
se fecha (convexo integral de esfera),
se eriça (bélica e multiespinhenta):
e, esfera e espinho, se ouriça à espera.
Mas não passiva (como ouriço na loca)
nem só defensiva (como se eriça o gato);
sim agressiva (como jamais o ouriço),
do agressivo capaz de bote, de salto
(não do salto para trás, como o gato):
daquele capaz de salto para o assalto.

2
Se o de longe lhe chega em (de longe),
de esfera aos espinhos, ela se desouriça.
Reconverte: o metal hermético e armado
na carne de antes (côncava e propícia),
e as molas felinas (para o assalto),
nas molas em espiral (para o abraço).

(1962 – 1965) Não-Nordeste (b); in: A educação pela pedra

O OURIÇO
Ana Martins Marques
Para Carlito Azevedo

Um poeta me conta que certa vez,


em Berlim, caminhando na companhia
de uma amiga alemã,
encontrou num parque
um ouriço ferido.
A amiga rapidamente telefonou
para uma instituição de proteção animal
que recomendou que chamassem
um táxi e enviassem o ouriço
para a sede da entidade.
Para não se ferirem ao pegá-lo –
uma nuvem de espinhos que cabe
na palma da mão tiveram
que embrulhá-lo num suéter.
Sempre penso – diz o poeta –
nesse ouriço
atravessando a cidade
sozinho dentro de um táxi
armado com seus espinhos
envolto em meu velho suéter azul claro
subvencionado pela maior economia europeia
e ainda assim infinitamente
desprotegido.

PLANTÃO 24 HORAS
Luciana Tornelli
São vinte e quatro horas para fechar
a conta do dia.

São vinte e quatro produtivas eficazes competentes horas


de sono e vigília.

São vinte e quatro velozes horas computadas


na planilha de metas.

São vinte e quatro horas de conceitos restritos


e respostas em linha reta.

Depois que isso passar, essas vinte e quatro horas


não se sabe o que virá.

Talvez um pouco de vida

Tão instável e precária, tão gratuita


tão aflita
talvez por isso tão temida.

TONELLI, L. Flagrantes do tempo: poema-reportagem na Pauliceia

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