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o signo do mar nas
vertigens agrestes
de uma carícia. só
os marinheiros amantes
são dignos do vento.
2. POEMA IV **
receptáculo de flores.
3. ACORDANDO OS AMANTES **
duas folhas
são apenas uma
ao raiar da manhã
dois amantes
são apenas um
deitados à sombra da árvore
o mundo é apenas um
só o amor se multiplica
pelas folhas, pelos amantes
e pela manhã que se anuncia.
4. POEMA XI **
o espelho ínfimo
cai sobre os cordões flácidos
das árvores.
calo-me e sossego-me.
quem sabe Deus não é apenas
I.
nada existe mais glorioso
que derramar sangue em
estado de graça:
nenhum poema escrito dará a entender o que quer que seja. nenhuma palavra cortada às
fatias, como se de sílabas fosse feito o corte. e o sangue. apenas um homem. e a história
milenar de todos os homens que habitaram dentro dele. para quê a vida se todos os
outros se poderiam libertar.
nada, mas mesmo nada é deixado ao acaso. a sombra é o reflexo do astro. e o astro o
reflexo da faca deixada no lugar da humanidade.
III.
as palavras são vertigens de noite
encontradas no meio da rua -
tropeçam, deixam cair, doem,
amanhecem com a dor dos homens
e das plantas que crescem nos
telhados.
nos telhados, não se ouve o chão, é talvez preciso deitarmo-nos, arrastarmos os olhos e
ouvirmos. não se ouve com o corpo, ouve-se com os olhos e com o sexo. as palavras
escorrem, fazem birras, deitam-se connosco. morrem de enfarte e olham as nuvens que
se estreitam entre os alvéolos da atmosfera e as cordilheiras do chão.
tu dizes: quando fodo, tudo o mais foge. árvore, plantas, folhas, cedros, todos os
animais que me permito inventar. quando fodo, não consigo fingir. é mais um
arrepio de alma, a única sombra de realidade que me é possível. é talvez sentir o
mesmo que um actor ou uma actriz. será que eles inventam. ou fingem. ou são. ou
são num sentido em que não se pode ser, em que se desaparece quando se é. talvez
seja uma actriz. ou uma prostituta das palavras.
as palavras nunca se prostituem. são como as pessoas. nunca se vendem nem nunca
se encolhem. deixam de estar, apenas. deixam de ser. um vulto entre o vulto. uma
pessoa entre uma pessoa. um modo de escrever entre um modo de escrever. e,
enquanto o sexo vibra, acha e acontece, a palavra é a única que pode violar a alma.
V.
responde-me se ouvires os pássaros, ou se do teu interior a voz é de guerra, um silvo
constante, o boum das palavras grandes, das palavras santificadas pelo uso, mesmo
que o uso seja o apanágio da noite - aquela noite que não pertence a ninguém, é
apenas nossa e da paisagem que nos cerca:
uma casa,
a ribanceira entre as casas,
um abrigo onde o pastor se alimenta,
o caminho milenar por entre as águas do rio,
a casa: grande pombal de pele. no dizer do jovem poeta. grande habitação branca,
onde os antepassados vivem e contam histórias, velhas histórias, daquelas que o
demo nos guardou e afastou de deus para que o santo nome da lareira não invocasse
o pão e o inverno. a casa: senzala de pretos e senhores da terra, nome de poetas e
território imaginado. a utopia dos livros abertos quando nos ausentamos do sentido.
a raíz da mãe.
VIII.
espero o nagual. a única sombra de luz que alimenta o grande poema branco. espero
ser comido por algum animal das árvores. deito-me e surjo defronte dos troncos,
como se fosse um antepassado de poder, ou o que resta das palavras antigas do rito.
surjo defronte da pegada dos tigres, que saíram em revoada pelas águas lá em baixo,
onde o homem primitivo construiu a sua casa.
sei que o poema é a génese do encontro. mas os animais gritam e a terra vibra seu
inconsciente vital.
IX.
a noite abrir-nos-á naquilo que vomita. naquilo que fere. naquilo que fica depois. é
assim tudo o que transcende a sombra. aquilo que ela representa. o múltiplo de dois.
a essência vestida ao contrário.
não é. a sombra é tudo aquilo que não conseguimos dizer pelo corpo. a roda. a
ciranda dos pássaros. a beleza da esteva em noite de caminheiros: tudo isso existe
sem que a palavra alimente.
X.
alguém pensou:
abriremos o nosso corpo ao rio
e escreveremos palavras de desejo
claro: a luz e o amor não fazem
sentido fora do poema.
o sublime mistério
o ardor quando os dedos
tocam a esfinge
há um ardor metálico
nas vielas que rompem da pele:
o espaço entre os espaços,
os dedos entre o limite dos dedos
I. KETHER
no alto da cabeça,
um receptáculo de fogo.
a divindade.
IV. CHESED
sagrado.
V. GEBURAH
a cidade procura-me
no atrito dos corpos caídos
não morri,
mas olhei de perto os
passos de um deus em fogo.
IX. YESOD
montségur, lá no alto,
agiganta-me no pranto
e lança tudo sem ao menos
perguntar a lágrima.
12. ALÉM-TEJO
Aproximo-me.
1
RIBEIRO, Manuel - A Planicie Heróica. 5º edição. Lisboa: Guimarães & Cª Editores,
1979. 205 pp.
13. POEMA XIV
a voz transparente,
acalentada pelo desejo
de seguir a rota do
verso
palavra-luz só quebra
quando da violação dos corpos
nascer o domingo claro
e a flor branca da areia
dois corpos
abraçando-se
baloiçando secretamente
no término da chuva.
a manhã suspende as lágrimas
e encosta o silêncio
na muralha de tecido branco.
18. POEMA XVI
I.
como um
noivo acabado de falecer
como uma
rocha sedosa, sem história sem memória
sem o cante
e o longo abraço do
vento, e o punhal
dançando, dançando
sobre o ventre das asas feridas.
22. CANTO SEFARDITA
"A vida volta ao seu foco, a forma desintegra-se, a compaixão destrói-lhe o poder para o
mal e o ódio cessarem com o amor2"
2
Annie Besant
23. CORPOS
o tecto
a abóboda celeste
descaindo por entre
as asas das andorinhas
pousadas na janela
a alva desce do
rumor do voo
dos pássaros e
faz crescer a tensão
entre os dois corpos
que se entregam,
no último minuto
da sua intimidade.
24. POEMA DOS QUATRO VENTOS
(dedicado aos quatro cavaleiros do despocalipse: José Gil, Constantino Alves, Filipa
Leal e o JAG). Menção honrosa a José Félix por ser a fina flor da poesia portuguesa.
(Sintra, 2004)
25. ANTÓNIO MARINHEIRO
NICOLE BLACKMAN3
3
BLACKMAN, Nicole – Blood Sugar. Incommunicado Press: [New York], 2000. 153 p. ISBN 1-
888277-17-3
27. SOROR
4
SOUSA, Gonçalo Bruno de – Memória. in Antologia Escritas. Cacém: Encontro de Escritas, 2004.
ISBN 972-9039-80-1. p. 39.
29. BRUMA
toda a vertigem
é um chamamento para
o lugar dos mortos.
34. NOITE DOS SENTIDOS
I. DESAPEGO
1.
2.
ou se é apenas a criação de
um demiurgo grego, sem
rosto, ou capacidade de
tocar
a
pele.
3.
o único,
aquele que me traz ao mundo dos vivos
e ao relevo de pele que me promete,
talvez o desejo,
talvez o amor,
talvez um modo subtil
de subjugar o corpo
à dimensão sacerdotal da memória.
III. A INFINITUDE DOS CORPOS
uma linha. duas. o choro. a tentativa de choro. esquecer-me que sou uma linha
misturada numa infinidade de outras. o rebento.
descobrir um aglomerado de frases numa única sílaba. o requiem. a canção dos mortos.
o estremecimento dos vivos quando me deixo escrever. a mão esquerda.
o risco
o anjo.
VIII. MEDITAÇÃO SOBRE DUARTE LOBO II
uma vogal. duas. três. os cinco dedos de uma mão. a minha mão.
o fulgor religioso de uma superfície plana. escrever. não escrever. o
eclipse.
o Anjo
o Entendimento
o luar.
a estrela
Índigo
Oração
não sei de onde nasci, mas olho o espaço com os olhos dos homens. o
deus. a terra de todas as religiões. jacob. isaac. abrãao.
Ur
o primeiro poema
o verbo
IX. O PRANTO DE LÚCIFER
o meu nome é lúcifer. o portador da chama. o deus babilónico das monções. nasci para
que a palavra morresse, para que não mais encantasse. para que servisse apenas para
alimentar as árvores e a pele do corpo. o corpo e a cinza. o deus vilipendiado pelo
estrume das folhas mortas. acabadas. erguidas ao nível da lava e da pedra.
sou o deus do rochedo e do outono. do inverno que não acaba. do natal sem os
presentes, sem o menino jesus, com as meias enforcadas numa moeda já gasta. acabada.
sou o devorador das coisas humanas.
se morresse, tu esperarias o meu regresso e nunca mais acordavas. sei que és criança e
que vives no limiar do tempo. uma esfinge como a águia serena de tebas. a cidade do
enigma. dos adultérios e dos incestos. o pai e a mãe. o irmão e a irmã. o perfume
celebrado na luz dos sentidos. espero pelo orgasmo da noite.
sei que estou prestes a chegar e que morres lentamente. e que esperas pelo fim dos
tempos. és santificado. és uma luz no interior da palavra, o deus persegue-te. eu
lamento-me pelo teu verbo. e pelo teu rosto. sei que estou prestes a chegar. e que não
partes. dormes na mesma cama, com os lençóis no mesmo olho escondido. acaso tens
olhos? e boca? e prazer? és um homem santificado e o prazer persegue-te como uma
larva.
a tua noite é a minha noite. e sem o teu corpo, cairei na desolação. faz de conta que sou
o anjo e que te amarei em todos os séculos. o tempo todo está para vir, apesar dos meus
olhos serem frios e os meus cabelos de ferro. prometo que te amarei e que te empurrarei
para o abismo. não há prazer sem queda. orgasmo sem choro. palavra sem silêncio.
já cheguei e ouço a tua voz. ela não existe. é um fogo mais intenso que todas as fontes
caiadas que encontrei pelo caminho. todos os caminhos levam aos teus dedos. aos dedos
que esfacelam, que assassinam, que roubam a alma. que existem. chego e ouço o teu
choro. ele pede por deus. ele pede pelo anjo. pelo devorador das monções e dos deuses
pagãos. choras e pedes. escondes-te no armário mais secreto e escreves o teu medo.
apesar do sangue que cai. e da comida estragada. e dos assaltos. o deus as
salta-te como uma pomba inflamada. leva-te para junto dele. tu vais. não morres.
já cheguei, mas não ouço nada. nem o simples respirar do sexo. tu não podes ter prazer.
ou tens. és carne e fogo como todos os homens, mas és mais do que eles. és a
humanidade que vive na sua noite. o deus que não acaba. o anjo que não esquece. o
santo que faltava nascer. vives da pele e morres na escrita. és o grito asfixiado da
humanidade, não tens voz. tens todas as vozes que já existiram.
cai a manhã. não morres. e acabas de chorar. alguém te ergue pelos olhos e diz-te que o
tempo vai próximo. nunca cheguei porque o teu corpo é impenetrável. sou o deus das
monções e do inverno sem fim. sou lúcifer. o anjo descaído. não sou santificado. como
tu. sou o eterno fim. a filosofia. a letra inacabada.
carne viva
um pedaço de pele abandonado pelos abutres
tudo o que não existe
e que, sem cessar,
alimenta toda a humanidade.
X. CABO DO MUNDO
lá. onde o mar acaba e a terra começa, alimentam-se os peixes da pele humana. do riso
dos outros, de todos os outros. de todas as figuras saindo de um quadro quinhentista. de
um fresco. o pequeno quadro em grandes episódios, ensinando a história bíblica. o
enamoramento de jacob por raquel o sacrifício do filho pródigo o combate de israel pelo
fogo sagrado
lá. onde a areia não é mais do que um nome. e onde os conceitos não possuem palavras,
mas símbolos. como a casa. o pátio. a palavra esquecimento. e a palavra fértil. lá. onde o
"navegueiro" não rompe mais as ondas. as cavalga. e dobra. e as esconde perante a
música sinuosa da sereia. ela adormece. ela foge do meu colo e assume a posição de
vestal, protegendo o templo da deusa. ela adormece. nasce e adormece. e morre outra
vez. outra e mais outra.
aqui. onde permanece o fauno. e o sátiro. e o homem sentado vestido de verde. com que
cor te surgirá o teu primeiro amor? com a cor da gaivota voando em passo acelerado
para as ondas? com aquela cor que usaste no dia em que sacudiste o mar com os dedos?
não acabes. fica. fica só e aqui. no cabo do mundo e no cume da europa, roubando do
meu sangue a minha frágil, mas tão trágica, imensidão.
XI. MATINAS
podia escrever mais do que um poema. ou não escrever nenhum. ou escrever a galope,
sem me deter, não travando o impacto que a escrita tem na carne e no sangue.
dizem: a poesia é um acto de contrição. não explica nada, nem mesmo se o mundo é um
globo gigante da altura dos nossos dedos, ou se somos nós que abarcamos o mundo, do
interior da casa.
escrevo as paredes e o velho caramanchão, onde observo o mundo todo e em que medito
se é luz, se é cor, se são sombras as realidades que extravasam o sentido da pedra.
algures, num tempo antigo, aprendi a juntar as palavras e descobri que o sentido não se
quebra, nem se fecha numa casa. nem nas paredes que alimentam a memória.
esqueço-me de abrir as portas do carro. elas estão presas ao pó que circunda o pátio da
casa. vou sair. ligo o ar condicionado e espero que a rádio transmita aquelas palavras
que, muitas vezes, repetem ao longo da manhã. bom dia. o trânsito está encerrado na
estrada 43 e não é bom dia para passear. melhor seria ficar em casa e comemorar a
solidão, olhando as pequenas folhas que teimam em se movimentar em pequenos
círculos, como se puxadas por um cordel imaginário. lá fora, vivem as pessoas e o seu
estranho ceptro de relações. ligo o carro e aperto o cadafalso à pedra. muita distância
separa o teu corpo das inúmeras sensações que o prazer provoca, mesmo que este seja
uma forma nada subtil de enganar a solidão. aperto-me ainda mais na sensação de ter de
me movimentar estrada fora e admirar as mulheres que me pedem para adormecer numa
gasolineira triste e decadente. é lá que vivem as mulheres que querem partir para a
estrada 43 sem, ao menos, se importarem se estão despidas ou se são apenas aquilo que
a rádio espera que elas sejam: as futuras estrelas do conglomerado urbano.
páro o carro. meto gasolina e vou embora. não. apetece-me levar alguém comigo,
mesmo que seja inocente e não se possa deter na estranha forma das pessoas crescerem
o corpo. nesta cidade, não existe dimensão nenhuma que seja de fácil percepção. tudo se
resume ao modo como as pessoas fogem. a estrada é apenas o meio. e não o fim.
chama-se violet e tem nome de flor. e também do chakra de ligação com deus. mas,
talvez não seja isso porque deus não tem corpo e as flores não têm mais nenhum cheiro
do que aquele que movimenta o ecossistema das plantas. apetece-me fodê-la. não a flor,
mas a rapariga que tudo abarca e que tem o corpo junto à porta do carro. para onde
partes. para a california. procurar ouro. não, os garimpeiros morreram quando o deserto
ainda não existia e quando o jim morrison nem sequer prometia poemas ou viagens
xamânicas ao deserto. não faças o ouro, faz a carne e deixa que ela te apodreça. se tu
apodreceres, foderei um cadáver e já poderei ser mais do que um homem. entra. ela
entrou. escusado será dizer que não falámos nada. os meus pensamentos falaram tudo.
nunca me dirigi a um cadáver mas a quem nunca tinha nada a perder, como eu.
levei-a a casa. fez as malas rapidamente apenas com o essencial. e partimos. nunca
prometas nada que não possa ser cumprido, se quiseres podes cortar o mundo às postas
e transformar o meu pequeno mundo numa selva de esperma e de calos. não falo nada.
apenas penso. mas penso com o lado iluminado do meu rosto. olho a paisagem que se
desenrola como um filme. ela adormece. a rádio ilumina as árvores que se estendem no
limiar das casas. beautiful. gordon lightfoot. uma pauta no silêncio numinoso da
paisagem americana. nunca é demasiado discreto pedir o amor quando ele só pode dar a
solidão. aproximo a mão da pele e os olhos fecham-se e abrem-se. o olhar é uma flor
desgastada que se abre quando pressionada pelo toque da pele. tudo se resume ao fogo
do prazer e ao movimento da estrada.
páro o carro e saio para fora. o corpo e mais a pele. já é noite acendida e os carros
movimentam-se como faróis no meio do mar e dos peixes. os peixes somos nós. que
abrem a boca quando querem ejacular o líquido amniótico que se esquecem de escrever
enquanto crianças. tiro as calças e deixo que ela engula o que restou de mim enquanto
estive na casa. e o que sair será para ela uma forma encantatória de enganar a solidão.
porque provavelmente o amor será apenas isso, quando engolimos e deixamos sair. e
vomitamos. e voltamos ao estado do leite virginal. e deixamos que o corpo se relembre
disso. até cairmos e termos a sensação de que acabámos com a inocência de quem
queria apenas partir e não jogar o seu futuro nas estradas e nos corpos alheios. o corpo é
só nosso quando perdoamos as nossas faltas. e se a solidão e o amor são o lamaçal da
pele, nunca deixamos de ser cadáveres. e fodemos pelos nossos mortos como fodemos
pelo nosso sabor metálico. mas lá estou eu a pensar. provavelmente, é mesmo amor,
mas com uma diferente intensidade. a partilha da pele e do esperma. só a nossa
inocência é que sabe.
35. OS QUATRO ELEMENTOS
I. TERRA
é agosto, eu sei,
as fábricas estão fechadas
mas o corpo permanece
no rasto de suor que
alimenta as rochas.
"Whatever is said, the same monotonous noise replies, and quivers up and down the
walls until it is absorbed into the roof. "Boum" is the sound as far as the human alphabet
can express it, or "bou-oum," or "ou-boum," utterly dull. Hope, politeness, the blowing
of a nose, the squeak of a boot, all produce "boum.”
(E. M. Forster)
boum.
36. LONDINIUM
37. AS CRIANÇAS
5
baseado em “Lisboa que Amanhece”, de Sérgio Godinho.
as crianças que se estendem nas clareiras da terra
dormem sob o sol quente.
encostadas umas às outras, com as pernas dormentes,
dançam silenciosamente nos seus sonhos.
38. BIBLIOTECA
tenho uma casa e uma folha de papel
onde vou construir uma biblioteca
apagada no cinzeiro dos teus ombros.
tenho uma caneta que revolve a escrita,
que a desenvolve, que a constrói, que a
supera.
39. A SARAH
num ápice, tu partiste
e levaste o vento pelos ombros
os olhos sempre ao largo, sempre distantes
o horizonte no caule das tuas mãos
as mãos no segredo de qualquer deus enganador
que leva consigo as deusas da terra
e as deixa estendidas na memória dos homens.
40. A NOSTALGIA DAS CORES
o casulo do verso
é a apoteose do sentido
a imaginação de tudo acontecer
no interior do olhar
fechado.
54. AOS MEUS AMIGOS
a vivência do amor
dá-se no signo do
olhar
quando as palavras já
não se juntam nem se
iniciam.
nada é perfeito
como a flor selvagem,
húmida, flexível ao
rebentamento das águas
a respiração da escrivaninha
fechada
do sangue.
58. VÁRZEA
na várzea desabitada, um
vento mais forte se levanta
e faz crescer nas pedras o
temor de Deus
(Jose Gil)
se não permanecer no
meu centro, toda a
sombra chamará
do meu corpo
o anjo é o limite do
filho - o som que diz
do círculo em redor
do covil.
69. POEMA XXVI
toda a arquitectura
todo o rosto em roda
é maleável na lágrima
de quem se submete ao deus que desce.
71. DIONISOS II
felinas vozes
abrindo das mãos
a sua eterna vontade
e prazer
toda a fauna
imensa caindo no humano
e abrindo do círculo
um mantra ruminante
de sons.
72. DIONISOS III
6
excerto da canção “i fall to pieces”, cantada por patsy cline.
74. POEMA XXVII
há um instante quando a
agulha penetra a pele
e o dragão é a única verdade
do sangue
há um instante
[e há toda a eternidade]
quando o terreiro sagrado
se ilumina com os pés
das águias.
75. POEMA XXVIII
não há
nem pode haver memória
que o corpo possa suportar,
apenas a ânsia de vida
e de calor humano
a água evoca,
mas não oscila
um canto inconcluso
de giesta
nas margens sorrateiras do aluvião.
77. POEMA XXX
[apenas reluz]
saúdo o desejo
o amor
a geografia da terra,
a planura dos corpos
no cálice imaculado
da ilha negra, a bela,
a mais bela
sem nome
7
cantora norte-americana de folk alternativa
8
referência ao cantor de folk alternativa, devendra banhart.