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POEMA I **

procura e encontrarás
o signo do mar nas
vertigens agrestes
de uma carícia. só
os marinheiros amantes
são dignos do vento.
2. POEMA IV **

deixa crescer a manhã


e lança-te ao abandono
das águas.

iemanjá molhará os lábios


na saliva da areia e fará
do teu corpo um

receptáculo de flores.
3. ACORDANDO OS AMANTES **

duas folhas
são apenas uma
ao raiar da manhã

dois amantes
são apenas um
deitados à sombra da árvore

o mundo é apenas um
só o amor se multiplica
pelas folhas, pelos amantes
e pela manhã que se anuncia.
4. POEMA XI **

o destino nunca se constrói


nem gilgamesh pode encerrar
o seu futuro numa única flor

talvez aquele que suba possa


viver outra vez. com uma nova
luminosidade, uma nova utopia,
um novo modo de pressentir
aquilo que só cabe aos pássaros

gilgamesh só existe em si próprio,


e não nos deuses
nem na árvore,

que é apenas um caule murcho


calcetado pelo som do deserto.
5. POEMA XII *

pergunto às águas que passam


novas do meu amigo

as águas respondem que passam,


o vento trá-lo consigo

o vento traz mau tempo,


traz vela que sozinha voa

meu corpo é o meu pranto,


meu amigo nas águas voa

meu amigo nas águas chora


por perder a vida no fossado

aqueronte leva-o na proa

pra junto da divina cidade.


6. PÍTIA

o deus aparece-me em sonhos,


minha voz já não consegue distinguir
o que o corpo quer – se o corpo da
divindade se o desejo inconfessável
de ser mulher

não posso ter filhos


limito-me a pressentir o fogo

todos sabem que o amor fica lá atrás,

nos lugares onde apolo não habita.


7. POEMA XIII

o espelho ínfimo
cai sobre os cordões flácidos
das árvores.

ouço o canto virgem dos pássaros


e adormeço o meu olhar.
meço as suas palavras
por entre os meus dedos.

calo-me e sossego-me.
quem sabe Deus não é apenas

uma marioneta puxada pelas andorinhas.


8. SÃO MARCOS DA ATABOEIRA **

os cães ladram em são marcos,


sentem o chocalhar da chuva na terra seca.
amanhã, cairá a tempestade sobre a
aldeia. já não existem aldeias completamente
habitadas nem completamente desertas.
o céu é a própria habitação das casas,
as nuvens o silêncio demorado
das mulheres que olham o infinito.

no campo de futebol, jogadores cansam


as pernas dançando ao sabor da chuva.
o esférico rola como uma lua derretida
pelas águas que se movem do interior do
céu. a trovoada ergue-se ao fundo do monte,
como um tambor avassalador. quero correr,
atingir o limiar da aldeia para ver um pouco
de televisão e esquecer o combate inglório dos
elementos. e assim morrem as estrelas, deixadas
ao acaso e remetidas à correria desenfreada dos
homens que brincam com elas como se elas
fossem um esférico de porcelana.

os cães ladram, eu não os ouço,


ouço apenas a trovoada e o silêncio que cai entre
os trovões. é nesse silêncio que eu pressinto
o calor agreste da memória. que memória têm
as árvores? terão as árvores saudade? será
o silêncio o momento em que estamos mais
vulneráveis a essa memória e a essa saudade?

aproximo-me do portão da casa. a chuva. todo


o alentejo que pede lágrimas aos deuses. penso em
ti. és tu a chuva que cai das árvores em silêncio. és tu

que pressentes o silêncio ausente das minhas palavras.


9. NOITE QUE ABRE **

I.
nada existe mais glorioso
que derramar sangue em
estado de graça:

assumirmos que somos aquilo


que deus nos fez. seres de
terra. e não de fogo.
com mãos que crescem
e que sentem prazer. com
dedos que esfolam e que
vomitam debaixo de um poema.

existe sempre um grito,


um grito claro e de voz acesa,
que exalta e assume a morte -
a morte que é nossa e dos outros,

e de quem ousar entrar no domínio


dos nossos olhos.
II.
ontem matei um homem. nada mais do que isso. nenhuma cintilação dos ossos.
nenhuma ânsia em experimentar o que quer que fosse. apenas o desejo íntimo de
descriar através do sangue. toda a morte é uma procriação ao contrário. vive-se e entra-
se de novo na vida. a vida de dentro.

nenhum poema escrito dará a entender o que quer que seja. nenhuma palavra cortada às
fatias, como se de sílabas fosse feito o corte. e o sangue. apenas um homem. e a história
milenar de todos os homens que habitaram dentro dele. para quê a vida se todos os
outros se poderiam libertar.

nada, mas mesmo nada é deixado ao acaso. a sombra é o reflexo do astro. e o astro o
reflexo da faca deixada no lugar da humanidade.
III.
as palavras são vertigens de noite
encontradas no meio da rua -
tropeçam, deixam cair, doem,
amanhecem com a dor dos homens
e das plantas que crescem nos
telhados.

nos telhados, não se ouve o chão, é talvez preciso deitarmo-nos, arrastarmos os olhos e
ouvirmos. não se ouve com o corpo, ouve-se com os olhos e com o sexo. as palavras
escorrem, fazem birras, deitam-se connosco. morrem de enfarte e olham as nuvens que
se estreitam entre os alvéolos da atmosfera e as cordilheiras do chão.

só assim é possível a liberdade.


IV.
(para a asia argento)

podia ter acontecido ontem. não aconteceu. ou aconteceu, ou talvez dobrasse, ao


fundo da esquina, o que parecia ser um vulto de palidez solitária, daqueles que se
encontram quando a noite promete um rosto e uma persiana de abrir.

e um espaço entre os corpos, quase um milímetro de sangue ou de ar corporificado.


nunca é fácil escrever quando se finge com o sexo e se inventa o vício de todos os
escritores que viveram e amaram debaixo de um lençol de pedra.

tu dizes: quando fodo, tudo o mais foge. árvore, plantas, folhas, cedros, todos os
animais que me permito inventar. quando fodo, não consigo fingir. é mais um
arrepio de alma, a única sombra de realidade que me é possível. é talvez sentir o
mesmo que um actor ou uma actriz. será que eles inventam. ou fingem. ou são. ou
são num sentido em que não se pode ser, em que se desaparece quando se é. talvez
seja uma actriz. ou uma prostituta das palavras.

as palavras nunca se prostituem. são como as pessoas. nunca se vendem nem nunca
se encolhem. deixam de estar, apenas. deixam de ser. um vulto entre o vulto. uma
pessoa entre uma pessoa. um modo de escrever entre um modo de escrever. e,
enquanto o sexo vibra, acha e acontece, a palavra é a única que pode violar a alma.
V.
responde-me se ouvires os pássaros, ou se do teu interior a voz é de guerra, um silvo
constante, o boum das palavras grandes, das palavras santificadas pelo uso, mesmo
que o uso seja o apanágio da noite - aquela noite que não pertence a ninguém, é
apenas nossa e da paisagem que nos cerca:

uma casa,
a ribanceira entre as casas,
um abrigo onde o pastor se alimenta,
o caminho milenar por entre as águas do rio,

um trovão é apenas isso: uma voz sobre o alentejo,


um rumor que rompe o guadiana e nos sobra de pele
e de versos entre os relâmpagos.

sei que tudo sobra, mas a casa é só minha.


VI.
eu digo: chamaremos as mulheres e invocaremos o sacro império do corpo. não
existe pedra maior (ou mais bela) do que aquela onde dioniso se esconde, o deus
entre os homens, a pedra ante a gélida raíz dos antepassados. formaremos uma roda
e imitaremos o som de todos os animais. todo o poema é proibido: só a origem, a
hierofania do ritual e da pele contra pele.
VII.

a casa: grande pombal de pele. no dizer do jovem poeta. grande habitação branca,
onde os antepassados vivem e contam histórias, velhas histórias, daquelas que o
demo nos guardou e afastou de deus para que o santo nome da lareira não invocasse
o pão e o inverno. a casa: senzala de pretos e senhores da terra, nome de poetas e
território imaginado. a utopia dos livros abertos quando nos ausentamos do sentido.
a raíz da mãe.
VIII.

(para o rolando toro e para josé neves)

espero o nagual. a única sombra de luz que alimenta o grande poema branco. espero
ser comido por algum animal das árvores. deito-me e surjo defronte dos troncos,
como se fosse um antepassado de poder, ou o que resta das palavras antigas do rito.
surjo defronte da pegada dos tigres, que saíram em revoada pelas águas lá em baixo,
onde o homem primitivo construiu a sua casa.

sei que o poema é a génese do encontro. mas os animais gritam e a terra vibra seu
inconsciente vital.
IX.

a noite abrir-nos-á naquilo que vomita. naquilo que fere. naquilo que fica depois. é
assim tudo o que transcende a sombra. aquilo que ela representa. o múltiplo de dois.
a essência vestida ao contrário.

amanhã, acordarei e escreverei um poema onde possa dizer: alimenta-me de silêncio


e escreve-me um poema sem palavras. iremos juntos ao cinema e abrirei o véu da
tela para que possas descortinar o céu atrás das ruas da cidade. os olhos serão
pedaços de chamas deitados na pedra-mármore ou na escrita-papel. não há ruas que
possam existir se não puderes abandonar a escrita e chamar pelo meu nome. a
sombra só será verdadeira se o poema for o único modo de existir.

não é. a sombra é tudo aquilo que não conseguimos dizer pelo corpo. a roda. a
ciranda dos pássaros. a beleza da esteva em noite de caminheiros: tudo isso existe
sem que a palavra alimente.
X.

(para richard e nancy murrian)

não há poema que perturbe o grito amarelo-branco-suave, o que tenho debaixo da


pele. o amor é um canal, uma flor enxuta e despida, já sabes que o teu nome tem
apenas uma fenda entre os braços. e dois dedos a vomitar as neves.
XI.

alguém escreveu que a trovoada


é um lugar à volta do corpo:
a pele ou um círculo de som
abrindo o espaço entre os dedos.

alguém pensou:
abriremos o nosso corpo ao rio
e escreveremos palavras de desejo
claro: a luz e o amor não fazem
sentido fora do poema.

alguém morreu e nasceu


no preciso juntar das sílabas.
escrevo o anjo como escrevo
o tempo mau - todos os gestos
morrem e sufocam na giesta.
XII.

dizem que a poesia é um modo


de chamar os homens,
de aspirar ao corpo,
de ser esse corpo,
de transformar esse corpo
em bruma de palavras

o sublime mistério
o ardor quando os dedos
tocam a esfinge

a lua dourada que sai da


terra e aspira ao sexo.
XIII.

há um ardor metálico
nas vielas que rompem da pele:
o espaço entre os espaços,
os dedos entre o limite dos dedos

por entre ou para além do


corpo, a voz sussurra
silêncios.
XIV.

no interior de cada um dos


órgãos do corpo, anoitece
o sexo e a terrível vertigem
das casas.

o que morre deixa-se ficar nos


olhos que não fecham.
XV.

entre as montanhas do velebit


e os lagos de plitvice,
os maravilhosos lagos de água
silenciosa e pura
que tornam famosa toda a região
nordeste da croácia,

entre essas cordilheiras brancas,


que protegem a costa do vento,
e os lagos: imensos socalcos de
árvores e jardins, turistas e
jovens homens de negócios,

entre o cume do mundo


e o ar da chuva que consome plantas,
animais, seres do interior da terra
e dos livros de fantasmas de toda
a região norte,

entre esse mundo e o outro


mais perfeito,
muitas campas rasas escolhem
o seu lugar junto à estrada.

dizem: não houve dinheiro para fazer


um jazigo que pudesse celebrar
a vida daqueles que, em tempos,
trabalhavam de solo a solo e que
amavam, dançavam, riam e comiam
no ajuntamento das estrelas,

entre as montanhas do mundo mais


à frente e dos lagos que tocavam os
seus dedos,

dizem: não houve tempo para


celebrar e para regressar à
verdadeira génese das plantas
e dos solos. apenas
se amontoam crianças, velhos
e os homens que amavam e riam
e dormiam no colo dos pais.

entre as montanhas do velebit e as


águas de plitvice, não há mais
lugares de memória.

10. A ÁRVORE DA VIDA

I. KETHER

no alto da cabeça,
um receptáculo de fogo.

a fuga para um lugar inviolável,


onde a génese da palavra se

esconde e se manifesta com


a permanência do verbo.

o deus invade-me e viola-me


na minha secreta autoridade.
II. CHOKMAH

o actor inventa-se no palco


e cria o seu ritual de encantamento.

a sua sabedoria consiste em inventar


um corpo só, vivendo numa multiplicidade

de universos. faz de conta que existe


e descobre a sua própria sensibilidade

no coração de uma pedra. todas as


pedras são o palco de um corpo

revolvido e deixado à mercê do deus.


acima do destino, apenas o brilho da

essência das coisas. a permanência do


teatro é a autoridade do verbo.
III. BINAH

não posso escapar ao infinito,


bem o sei, e renunciar ao verbo.

a palavra entendimento, o signo


do logos através do qual a existência

foi pensada antes de mim. todo o


poder majestático dos anjos é um

poder de síntese: o universo está todo


lá, sem arquétipos, a verdade do amar

e ser amado. a palavra encantamento. não


posso renunciar à palavra sem abandonar

a divindade.
IV. CHESED

reescrevi todo o teu amor,


sem ao menos rezar.

a verdade do que é nos homens


não se assemelha em nada ao

amor divino. refaço na árvore


o que em mim subsiste de mais

sagrado.
V. GEBURAH

a cidade procura-me
no atrito dos corpos caídos

aspiro às ruínas das pedras velhas


à calçada gasta pelas olheiras dos
lábios

são dois os corpos que se encontram


em mim não existe dualidade

senão no julgamento infinito do


teu rosto.
VI. TIPARETH

não negues a beleza da sacerdotisa branca,


aquela que do mar se revelou encapelada.

não a submetas ao teu olhar indiscreto,


como se do teu corpo saísse uma rocha,

invasora e tenebrosa. o rosto do abismo


na lenta aspiração do mar.

esconde os teus olhos para que se possa


cumprir o amor – o ritual na pedra,

o desejo no lado errado da História.


as vestes voam enquanto tu te escondes,

os seios molhados na iniciação carnal


da religião.
VII. NETZACH

a roda no momento calado da primavera


é o caminho que leva ao deus do fogo

os teus dedos entrelaçados na janela –


a vitória do espírito sobre o corpo, sem

a matéria doce o saborear da árvore


o rio em frente mais a casa. não descubro

no teu pranto o aproximar da verdade.

sei apenas de um riso breve e da conquista


de uma palavra mais suave – a subtileza do

teu lento murmurar. em setembro arde a


primavera.
VIII. HOD

a poesia nasce de um acto de amor


inacabado entre o deus e o anjo.
dioniso espera, apenas sussurrando

as vestes e erguendo o verdadeiro


sentido de liberdade que só ele
conhece.

não morri,
mas olhei de perto os
passos de um deus em fogo.
IX. YESOD

assim como em baixo, também em cima,


o fundamento de sermos apenas homens,
e não seres votados à magia.

deixemos os anjos murmurar as nossas


preces e vivamos incólumes ao medo:
se vacilarmos, apenas resta o desconsolo

de quem viveu acima da praia, na vertigem


das arcadas, pedaços de pedra transparentes,
sem pele.

sou inteiro em baixo como o sou em cima,


revejo-me no silencioso embaraço que tudo
esconde sem nada demonstrar.

para quê o cosmos se tenho em mim o


fundamento de toda a existência? a
roda do meu destino.
X. MALKUTH

o rei desperta. sem as silvas a silenciar


a fonte apenas um olhar sorrateiro ao
redor das águas. caminha comigo por entre
os corpos que te envolvem e traz a taça
dourada. olha-me nos olhos e inventa-te no
gesto.

sê pescador de almas e escreve-me um poema


de rochas.

não há genocídio no interior da pedra.


apenas a voz do cego e do louco que
sabe tudo sem se ver.
XI. DAATH

se eu pudesse apenas imaginar as coisas


e não apenas escrevê-las, restaria pouca
da minha carne, o meu sangue seria o sangue
dos outros, emprestado, quase um verbo que
se descobre na mudez da palavra.

o abismo do amor é o abismo de quem cai


e não se levanta. não imagino, rompo
o sangue com a vontade das palavras.
11. MONTSÉGUR

entrega a flor boa


e viola-me, como se eu
fosse um castelo sem pedras
e sem lugares. ama-me como
se dissesses adeus e te despedisses,
sem renunciares ao ínfimo sacrifício
da paixão.

ficou-me da lembrança clara dos


mortos a cantiga que desfolhaste
ao cair do teu amor. lembro-me das
chamas, dos olhares sem corpo,
do lírio vergastado e do amor
empilhado.
os parfaits julgavam
olhar no meu sorriso sem paz
o re.aproximar do canto. sem uma
voz que socorra a chama e a invoque.

venham de mim todos os mortos


e todos os sacrifícios e todas
as pedras encostadas ao deus
moribundo. apenas visto a cor
da cinza, com os lábios encostados
em nada, senão em tudo.

montségur, lá no alto,
agiganta-me no pranto
e lança tudo sem ao menos
perguntar a lágrima.
12. ALÉM-TEJO

Para além do Tejo, o céu azul à minha frente.


Um azul dourado, da cor do Sol.
Lá longe, crescem vastas as planícies,
Não consigo correr, não consigo percorrer todo o caminho
Por mais que tente, por mais que os meus braços
Abracem o vento.
Tentarei chegar à colina mais à frente,
Esconder-me-ei no interior deste moinho abandonado.
Ninguém me encontrará: poderei, então, permanecer neste recanto
Escondido durante toda a noite sem que ninguém, na vasta planície
Ou nas casas brancas que se erguem para lá do monte, dê pela
Minha ausência.

Sou o próprio Deus que ilumina os campos vastos.


Sou a própria chuva que cai, sou a própria Terra que dá pão ao país
Inteiro.
Sou o acompanhante das lentas jornadas pelos campos no Verão.
Sou vento suão, sou toada de Portalegre, sou o cante dos trovadores
Que se ergue pelos campos arredor.
Sou o campanário da igreja abandonada, sou a criança que brinca
Nos pátios da aldeia e que se esconde, inocentemente, em velhos
Moinhos abandonados, ao cimo de uma colina.

Abraçarei tudo: campos, árvores, montanhas, planícies.


Chorarei ao vosso lado,
Ouvirei as vossas cantigas e serei o vosso companheiro nas frias
Noites de Inverno.
À vossa lareira ficarei sentado, se vocês o permitirem: serei o velho
Que vos pede guarida, com eterno olhar de criança,
Com a sua capa de lã estendida sobre o chão seco.

Ao longe, o cante dos trovadores ressoa pela planície adentro.


Cantares tristes, às vezes confundem-se com as rajadas de vento
Ou com a imensidão dos céus.
O meu olhar vagueia. De onde as vozes? O fim do campo não se vê.
As suas vozes provêm, decerto, de muito longe.
Muito para além do local de encontro das cores do arco-íris.
Saio de casa, a minha capa sobre o meu corpo. As vozes ouvem-se
Nítidas, como se o assobiar de velhas locomotivas se ouvisse a milhas
De distância.
Serei o único que as ouve? Não vejo ninguém a percorrer o caminho.
Talvez porque o dia esteja frio e porque ninguém se atreverá a percorrer
Os vastos campos em dias frios de Inverno.

Para além do Tejo, o céu azul à minha volta.


O vasto campo e as planícies como um todo,

“lá longe, torrejava, adormecida, uma vaga cidade de mármore,


miragem quimérica de um sonho oriental1”

Aproximo-me.

As vozes tornam-se mais nítidas à medida que percorro o meu caminho.


Será ali o local de confluência das cores do arco-íris?
As vozes dos trovadores ouvem-se perto. Soam tristes, abandonadas.
As oliveiras e os sobreiros surgem frondosos. Os jardins de Alá não
Seriam tão belos se eu próprio não me misturasse no velho cantar dos
Trovadores, tão antigo e tão belo como os próprios montes arredor.

A cidade surge como um manto de rosas púrpuras.


Belos os dias em que cantes de trovadores me levam ao cimo dos
Céus, ao altar de Deus feito campo e planície, cidade e Paraíso.

Ao longe, o céu azul à minha frente.


Os vastos e alegres campos perante o meu olhar de criança.
Arrasto-me por entre o fragor da multidão, as vozes chamam-me.
Ergo-me. Sou todo vosso.

1
RIBEIRO, Manuel - A Planicie Heróica. 5º edição. Lisboa: Guimarães & Cª Editores,
1979. 205 pp.
13. POEMA XIV

que aguarde, a flor silenciosa


o seu lento murmúrio de
folhas,

a voz transparente,
acalentada pelo desejo
de seguir a rota do
verso

a flor de esteva amanhece


e rompe os passos do
anjo em ascensão
14. UN CHIEN PORTUGAIS

escrevo um poema da visão


ou de como os sentidos básicos
são devastados pela postura
iniciática da faca.

o poema é o que fica por detrás,


ou a arte ou a dança ou o
murmúrio saliente da base
dos dedos, quando se enrolam
na esteva.

flor giratória, cabeço de visão,


toda a palavra [voz] serve
para abrir o olho aberto
de cores.
15. SONG FOR MISSY

palavra-luz só quebra
quando da violação dos corpos
nascer o domingo claro
e a flor branca da areia

o único corpo que pode segurar


a vida é aquele que da imensidão
das rochas se moveu
- sémen de sons e partículas
elementares, rombo na pele,
deixa chorar quantu(m)
do mar se despede na entrega.
16. CUBO

(para o eugénio outeiro e o vincenzo natali)

pergunto-te a ti, sara, se da voz


te fazes labirinto e procura incessante
dos dedos. pergunto-te se sentes
dúvidas, se amas a água, o cubo
fechado, o não sei quê de irracional
que se encontra no interior do
ventre materno.

pergunto-te se calas os homens


quando te aproximas com um
alguidar branco, às vezes é difícil
amar quando as perguntas que
fazemos não formam eco: a empatia
do corpo e dos olhos

pergunto-te, sara, se a fortaleza


existe, se somos estrelas ou bem-
aventurados no interior de um
labirinto sem chão: o ventre materno
permeia a água e dá um pouco
de si à chuva que cai abundantemente
da minha / tua janela.

pergunto-te se os rios que correm


fazem perguntas: um poema não
precisa de respostas nem de velhos
pontos de interrogação que evitam
a sua fragilidade intocada.

todo o labirinto / cubo / espaço mágico


é um misto de peles e de pontos
sagrados: não se permite conhecer,
apenas sobrevoar pelo dom da vida.
17. POEMA XV

dois corpos
abraçando-se
baloiçando secretamente
no término da chuva.
a manhã suspende as lágrimas
e encosta o silêncio
na muralha de tecido branco.
18. POEMA XVI

na vertigem incandescente das águas,


sobram os amantes e as rosas que
vagarosamente silenciam o seu
amor.

ofélia morreu mais uma vez.


19. DO AMOR

I.

"Um poeta está proibido de ter medo" (Gonçalo B. de Sousa)

estou proibido de ter medo e de


desejar de forma mais grandiosa
que as minhas reais capacidades
de escrever

a absolvição surge do perfume da


flor que cresce na montanha. e que os
místicos desenham, como se desenha
um verbo fácil, onde o enamoramento é
a condição essencial para se alcançar
a labareda. do fumo nascem as mãos e
a necessidade de recriar todo o universo
que não tem constância nenhuma, apenas a
dos peixes

tudo se transforma no interior de uma pedra


filosofal absorta em imensos lençóis
de ouro

estou proibido de ter medo e de temer


o inferno. as minhas altitudes são as
rosas em fogo, que quebram quando se
sentem ameaçadas por dentro. não quero
ser o caminheiro que se despede da montanha,
nem o asceta que chora a absolvição dos pecados

apenas quero murmurar o meu amor por ti,


temendo o teu desaparecimento e o
meu, com as rosas pretas por guarida.
II.

sê o sangue que me faz cair


num extenso rio branco:

a limpidez da água misturada


com a ferida aberta. a rosa.

dança até que a flor se despeça


dos teus olhos. e brinca-me.

todo o meu amor por ti nasce do


poema e adormece sem pronunciar
a semente. uma sereia cria-te
ao redor do teu corpo. a rosa
no caule dos teus cabelos fere
as minhas palavras: o verso.
III.

toda a minha noite é uma noite de fé.


IV.

minhas mãos: todo o descampado


afogado pelas unhas

como um
noivo acabado de falecer

como uma
rocha sedosa, sem história sem memória
sem o cante

sem o castelo sem a voz firme


de um pássaro azul.
V.

quem vive no corpo dos outros


dorme sempre no nevoeiro das paredes.
VI.

há uma sagrada melancolia


na praia ao fim da tarde,
antes que o verão roube as
gaivotas e as viole no seu
calor de aves.

há essa melancolia e esse fim


de tarde. esse quadro que qualquer
pintor desejaria pintar. sem a
confusão das cidades grandes,
em que a tarde se mistura com
a tarde de outras cidades e
deixa de se recriar como
elemento natural do cosmos.

há esse pintor e essa praia.


há a tinta que é a tinta do
seu quadro. há a arte e há o
momento, uma certeza fotográfica
de que o amor nunca fica só.
apenas através do quadro se eterniza e
se consome.
VII.

o meu amor por ti só se desenha


no futuro das montanhas.
VIII.

não me deixem ser sepultado em terra


consagrada. não sou anjo de deus. sou
demónio de barro refazendo o teu corpo
violado pelo poema.

não existe verdade mais subtil do que


aquela que transcende os limites do
tempo. a fotografia, o acréscimo de
luz no coração da esteva.

um poema abre-se: diz-se da consagração


e do ritual de fertilidade. quando dois
corpos se unem, não existe mais o sol e
a memória fotográfica da sua luminosidade
artificial. consagra-te e deita-te na
terra dos teus avós, faz de conta que
somos irmãos e que percorremos juntos
as árvores e as calosidades do solo. se
não posso adormecer no meio dos caminhos,
que reconhecimento esperarei eu?

indiferente ao rosto dos humanos,


a giesta conta a história do universo.
IX.

de beja a silves vai um lento caminho,


bem o sei, mas as flores partem sempre
em direcção ao vento leste.

o caminho do suão é o caminho do


eterno retorno.
X.

resta apenas uma pequena celebração


a liturgia dos corpos sem o pão sem
o vinho sem o olhar indiscreto das
ábsides que tudo escondem na sua
solenidade sagrada

talvez seja belo esse silêncio: o


silêncio de uma gazela perseguindo
o cervo como nas páginas de um livro,
com imagens roubadas de caravaggio,
mas com a humanidade de giotto

se os poetas fossem homens, morreriam


antes dos deuses e inventariam uma
nova forma de escrever o amor, talvez
mais solene e mística. aquilo que nunca
foram nem nunca serão

o grau zero do amor


como na prisão de vincennes
onde todos os desejos são cumpridos
mesmo contra a própria carne.
XI.

se te aproximares de silves, a bem-amada,


destapa os olhos e cresce na promessa do
mar. atrás de ti, a planície é apenas um
ajuntamento de almas. não se ouvem as
vozes, mas eu sei que a ausência é um
sentimento forte, ainda que seja verão
e o campo cresça ao raiar da vindima

não cantes a vontade que te faz pertencer


ao passado. o país não se inventa nos
teus gestos nem nos meus, nem nos poemas
que porventura escreveres em memória
silenciosa

abraça apenas a bem-amada silves e ouve


a procissão a passar. destapa os olhos
e repara que da cidade antiga só resta
o castelo e a cisterna. as ruas de pedra
e o célebre poema de al'mutamid.
as pessoas, elas passam como passa a água
do arade, sem um destino certo

o resto da cidade só é teu quando te


abandonares e te esqueceres que existem
casas e que a cisterna fica cá em baixo,
sob a alçada do tempo já descoberto

só assim o mar te será prometido.


20. SALMODIA

acompanha-me um ser sem luz:


anjo samael que oculta a minha
bruma, destruindo
o brilho essencial que rompe a
minha poesia

nada é perfeito e volátil como o


solo. a salmodia cantada são apenas
palavras que os Antigos inventaram
para se re-criarem e para abraçarem o
rito

o resto remonta à origem.


hierofania.
o solo sagrado onde
quetzalcoatl, a serpente dos céus,
me consagrou às larvas e ao recriar
da dança.
21. O VENTRE DAS ASAS FERIDAS

são espadas, punhais


presas à carne

com rios de vida


a percorrerem o ferro

e o longo abraço do
vento, e o punhal

dançando, dançando
sobre o ventre das asas feridas.
22. CANTO SEFARDITA

"A vida volta ao seu foco, a forma desintegra-se, a compaixão destrói-lhe o poder para o
mal e o ódio cessarem com o amor2"

ao longe, o olhar sísmico de um horizonte aberto,


com as formas desintegrando-se no esconder de uma
nuvem, misturada com a terra e com o sol.

as formas são meras invenções


de quem as desenhou em tempos que já não existem.
e que não existirão nunca, mesmo que os passos sejam
feitos de pedra e de barro.

ao largo, um velho cantar sefardita,


no fogo do horizonte e no levantar da jornada.
não existe serenidade na jornada nem na voz,
apenas um murmúrio escondido e uma espécie
de adormecimento dos sentidos.

são as névoas dos meus dedos que se descobrem


nas enxadas duras. são os rios e o olhar sísmico
que eu ilumino através das palavras.
a música, essa, repete-se em cada acento,
em cada declamação, em cada recriação
da linguagem.

são os olhos a verdade imorredoira da existência,


os olhos que esperam em presença, mas que, ausentando-se,
adormecem perante o seu castelo de versos.

2
Annie Besant
23. CORPOS

o tecto
a abóboda celeste
descaindo por entre
as asas das andorinhas
pousadas na janela

a alva desce do
rumor do voo
dos pássaros e
faz crescer a tensão
entre os dois corpos
que se entregam,
no último minuto
da sua intimidade.
24. POEMA DOS QUATRO VENTOS

(dedicado aos quatro cavaleiros do despocalipse: José Gil, Constantino Alves, Filipa
Leal e o JAG). Menção honrosa a José Félix por ser a fina flor da poesia portuguesa.

quando o meu amor, do alto da madrugada,


se atirou para o vento,
levou consigo os seus cabelos e girou

girou as pálpebras e fechou os pensamentos


apenas pensava que era vento. e nada mais
para além do alto da madrugada
que ventava a altas horas das estrelas

quantas luzes as cidades roubam quando,


em festa, se encharcam em desejo
quanto silêncio se afasta do carimbo da estrada
quando o farol se aproxima da aldeia?

apenas o vento canta e amanhece


do alto dos cabelos das oliveiras.

(Sintra, 2004)
25. ANTÓNIO MARINHEIRO

dos teus olhos o mar profundo,


uma profundidade feita pelo que é
sagrado e inconcebível. para lá do
teu amor.

uma mão em cruz colocada, molhada


pelo riso que seca as lágrimas e se
coloca à guarda dos homens. tenho
em mim toda a Saudade.

a terra é um imenso mar, mais vasto


porque acautela e guarda a tua voz
e me faz morrer em mim esta dor atroz.
26. LONDINIUM II

"and I don't care what you are


because I'll make you
into whatever I need,
and will stroke you to sleep
while I murmur and burn"

NICOLE BLACKMAN3

transformo-te em fogo. para desapareceres.


e lançares a confusão no olhar das aves
enquanto te incendeias sorrateiramente no
refúgio da cidade.

transformo-me em ícaro invertido, no secreto


retomar da morte. todo o amor revolta e toda
a saudade esfola. saio de mim e penetro na
tua própria intimidade.
---------------
abandono a memória da casa
e abraço a alienação da
paixão.

3
BLACKMAN, Nicole – Blood Sugar. Incommunicado Press: [New York], 2000. 153 p. ISBN 1-
888277-17-3
27. SOROR

o meu corpo entreguei ao guadiana.


e a ti, meu amor, te deixo
mais do que isso.
se algo restar mais do que o leito do rio,
mais do que planícies secas e despidas
de qualquer religiosidade.

o meu corpo entreguei ao guadiana.


será ele a minha torre de menagem.
prestarei vassalagem apenas aos caçadores
de pérolas que encontrar no meu lento
caminho em direcção ao mar.

o meu corpo entreguei ao guadiana


e por mais que as minhas águas
banhem todo o alentejo, chorarei.
e será minha toda a cidade que vier de ti
e que, em mim, viveu desperta para
além de toda a santidade e pecado.

o meu corpo emprestei ao guadiana.


e o darei, numa noite de nevoeiro,
ao primeiro homem que aparecer.
se algum homem ainda viver
na cidade de deus.
28. CAMINHEIRO

“triste não é a morte física, mas


a desaparição da memória que guardamos das coisas.
Não se herda um voo de pássaros pela madrugada”

Gonçalo Bruno de Sousa4

não guardo os teus olhos


senão na imensidão da praia onde
os dedos se reconfortavam no próprio
silêncio dos corpos

tenho medo de esquecer se o teu


silêncio era para mim ou para toda
a vastidão das rochas que se digladiavam
no caminhar do horizonte.

tenho medo de ser mero caminheiro


esquecendo o rosto dos passos
que percorrem a estrada da paixão.

4
SOUSA, Gonçalo Bruno de – Memória. in Antologia Escritas. Cacém: Encontro de Escritas, 2004.
ISBN 972-9039-80-1. p. 39.
29. BRUMA

as casas e os degraus que


nascem do suão perdem-se
nos confins da mouraria.

relembro o voo do corvo no


momento da crucificação.
30. IRA I

o poema proclama como quem grita:


amanhecer de peles,
tômbola de flores,
unha-carne-raiva por descobrir

já sei que a palavra não diz nada,


mas as pedras permanecem na
promessa da voz.
31. IRA II

rompe do réptil o reassumir


da imagem da faca

nada fica por detrás


tudo é claro tudo
se alimenta no latido
dos cães.
32. IRA III

a voz pesa como alimento


alimento de glande e de poder demiúrgico
o grito o chumbo o peso
da ira não assumida

deus nunca falou


os anjos nunca existiram
apenas existe o grito
o olho a ser descoberto
no alimento da voz.
33. IRA IV

porque a palavra não é mais


porque se quebrou o sentido
do nosso corpo

toda a vertigem
é um chamamento para
o lugar dos mortos.
34. NOITE DOS SENTIDOS

I. DESAPEGO

1.

Não sei libertar-me


das paredes que me prendem
ao pólen,

o vasto conhecimento das


flores, o cabelo repartido
pelos cantos da casa.

o corpo. será que ele existe


na memória do amor, ou
tudo é uma ilusão de pele?

a roda da visão: uma


catarse de seiva e de
fogo

apenas resta o corpo que


se escapa ao amor.

2.

vivo o desapego como quem


vive a morte: não sei se
ela existe,

ou se é apenas a criação de
um demiurgo grego, sem
rosto, ou capacidade de
tocar
a
pele.

os corpos são trevas a(s)cendidas


de branco
com um receptáculo de sangue
a ferir os olhos.

3.

a roda de samsara fecha-se


nas minhas mãos - uma treva
arde - a combustão
do teu riso no meu.
II. MONASTERIUM

a chama mais alta do teu corpo


apenas é vestida quando a
luz se cruza com o espaço,
sendo o espaço uma tábua de
madeira revestida a pele,
na absolvição do corpo que
se encolhe e se desfaz.

canto as horas e espero pelo


fim dos dias, quando a letargia
dos sentidos me prometer um simples
olhar vago,

o único,
aquele que me traz ao mundo dos vivos
e ao relevo de pele que me promete,

talvez o desejo,
talvez o amor,
talvez um modo subtil
de subjugar o corpo
à dimensão sacerdotal da memória.
III. A INFINITUDE DOS CORPOS

"Tu és uma vírgula na multidão"


(Alice Macedo Campos)

não há vazio que separe, em duas


metades, o texto transformado em
holocausto de tinta, a tinta
vermelha da pele, a roupa
que é mudada quando os astros
subvertem o seu verbo iniciático

tu és o múltiplo de milhares de corpos


que já passaram. não te lembras,
mas eu sei: morreste apenas no
texto, não na palavra.
IV. GEOMETRIA SAGRADA DAS PALAVRAS

o corpo é um todo simbólico


apenas limitado pela ausência
forçada das palavras: o silêncio,

o momento sagrado da unificação


do divino e do humano. se tu
escreveres, apenas saberás que
os cabelos limitam
o prazer e que as palavras ditas
sempre interpretam o nome de deus,
mesmo que não o saibas e o teu corpo
não to transmita.

a pausa para respirares é uma vírgula


apenas, onde páras o sangue que te
rói a pele. e enches as palavras
de espanto. crias as chagas e inventas
os teus limites.

não existe um altar onde possas demorar


o teu olhar. recria a ábside e a nave
como se fosses sagrado e imperecível.

tu és a tua própria catedral


a pedra
o rio que, lentamente, alimenta
os corpos e os beija quando, nus,
inventam a árvore da vida
no recriar constante do nome
de deus.
V. CÁLICE

deixa respirar o corpo como se fosse um poema


muito antigo com o vazio dos séculos erguendo-se
do colo dos teus lábios prova o vinho e deixa-o
escorrer das tuas lágrimas a terra antiga leva-nos
a memória dos nossos avós e dos antepassados que os
precederam

leva um cântaro à tua amada. escorre o vinho no


interior dos seus seios e escreve as nuvens com
os olhos. provavelmente, irás sentir que o peso
do teu corpo é mais leve do que o peso da memória
e que não existe realmente vazio, senão a divindade
que abraça todas as grutas, todos os pequenos buracos
de pele que a terra alimenta

deixa-te chorar e abrir o rio. se, do interior das


ondas, te deixares invadir pelo mar, vê-te vela,
nau, caravela, o movimento dos astros, as urnas
dos antigos guerreiros que partiam para a guerra
com um rochedo na ponta dos lábios.
ninguém sabe amar se viver o vazio da areia.
sê a própria areia que voa na direcção dos barcos.
VI. AMURADA

se sentíssemos o peso dos barcos,


debruçar-nos-íamos sobre a amurada
e contaríamos histórias tristes
às gaivotas que caíssem das nuvens

faz sol e o rio adormece no estuário


da cidade, onde as pessoas nascem
e crescem e alimentam-se do ritmo
das pedras, aquelas pedras que
o velho compositor inventou para
multiplicar o silêncio do piano,
em quatro minutos,
em três,
em duas palavras escritas da mesma
forma que escreves o teu nome

o molhe está silencioso, os barcos adormecidos


por entre redes de rochedo. se abrires os
olhos, verificarás que não existe piano
nem chuva nem água que possa limpar a sede
das estradas.
VII. MEDITAÇÃO SOBRE DUARTE LOBO I

uma linha. duas. o choro. a tentativa de choro. esquecer-me que sou uma linha
misturada numa infinidade de outras. o rebento.

descobrir um aglomerado de frases numa única sílaba. o requiem. a canção dos mortos.
o estremecimento dos vivos quando me deixo escrever. a mão esquerda.

o coração entre as palavras


o embrião
a palavra nascida
do ventre

o risco

a serpente no início do corpo


a origem

o sentido que não passa por mim,


mas que é em mim
nos cantos da casa

o anjo.
VIII. MEDITAÇÃO SOBRE DUARTE LOBO II

uma vogal. duas. três. os cinco dedos de uma mão. a minha mão.
o fulgor religioso de uma superfície plana. escrever. não escrever. o
eclipse.

todas as folhas são uma montanha sem a superfície do lago, movem-se à


altura das mãos, com os olhos presos. o número. a cabala.

o Anjo

quatro vogais. o desenho. os quatro lados do poema. o fim. o


princípio.

o Entendimento

cinco vogais. a estrela de cinco pontas. o arroubo do corpo no acto


de escrever. a ave. o pássaro cintilante que te move os pés. o grito,
apenas o grito de uma cantilena suada. sem fim.

o luar.
a estrela

Índigo

o lugar onde nos sentamos na hora das refeições. a partilha do pão. o


tabernáculo. o novelo incessante que alimenta o chão. a vertigem da
terra. a raíz.

crescer em torno de uma bússula. os pontos cardeais. norte. sul.


este. oeste.

Oração

o momento claro da idade de ouro. a infância. o patriarca.

não sei de onde nasci, mas olho o espaço com os olhos dos homens. o
deus. a terra de todas as religiões. jacob. isaac. abrãao.

Ur

o primeiro poema
o verbo
IX. O PRANTO DE LÚCIFER

o meu nome é lúcifer. o portador da chama. o deus babilónico das monções. nasci para
que a palavra morresse, para que não mais encantasse. para que servisse apenas para
alimentar as árvores e a pele do corpo. o corpo e a cinza. o deus vilipendiado pelo
estrume das folhas mortas. acabadas. erguidas ao nível da lava e da pedra.

sou o deus do rochedo e do outono. do inverno que não acaba. do natal sem os
presentes, sem o menino jesus, com as meias enforcadas numa moeda já gasta. acabada.
sou o devorador das coisas humanas.

se morresse, tu esperarias o meu regresso e nunca mais acordavas. sei que és criança e
que vives no limiar do tempo. uma esfinge como a águia serena de tebas. a cidade do
enigma. dos adultérios e dos incestos. o pai e a mãe. o irmão e a irmã. o perfume
celebrado na luz dos sentidos. espero pelo orgasmo da noite.

se tu me esperares, promete-me que anoiteces o mundo. e que não tens qualquer


esperança. o pranto é a desolação do homem que se rouba. que grita. e que assassina o
seu filho dentro da lágrima caída. sou o deus da lágrima e da desolação.

sei que estou prestes a chegar e que morres lentamente. e que esperas pelo fim dos
tempos. és santificado. és uma luz no interior da palavra, o deus persegue-te. eu
lamento-me pelo teu verbo. e pelo teu rosto. sei que estou prestes a chegar. e que não
partes. dormes na mesma cama, com os lençóis no mesmo olho escondido. acaso tens
olhos? e boca? e prazer? és um homem santificado e o prazer persegue-te como uma
larva.

a tua noite é a minha noite. e sem o teu corpo, cairei na desolação. faz de conta que sou
o anjo e que te amarei em todos os séculos. o tempo todo está para vir, apesar dos meus
olhos serem frios e os meus cabelos de ferro. prometo que te amarei e que te empurrarei
para o abismo. não há prazer sem queda. orgasmo sem choro. palavra sem silêncio.

já cheguei e ouço a tua voz. ela não existe. é um fogo mais intenso que todas as fontes
caiadas que encontrei pelo caminho. todos os caminhos levam aos teus dedos. aos dedos
que esfacelam, que assassinam, que roubam a alma. que existem. chego e ouço o teu
choro. ele pede por deus. ele pede pelo anjo. pelo devorador das monções e dos deuses
pagãos. choras e pedes. escondes-te no armário mais secreto e escreves o teu medo.
apesar do sangue que cai. e da comida estragada. e dos assaltos. o deus as
salta-te como uma pomba inflamada. leva-te para junto dele. tu vais. não morres.

já cheguei, mas não ouço nada. nem o simples respirar do sexo. tu não podes ter prazer.
ou tens. és carne e fogo como todos os homens, mas és mais do que eles. és a
humanidade que vive na sua noite. o deus que não acaba. o anjo que não esquece. o
santo que faltava nascer. vives da pele e morres na escrita. és o grito asfixiado da
humanidade, não tens voz. tens todas as vozes que já existiram.

cai a manhã. não morres. e acabas de chorar. alguém te ergue pelos olhos e diz-te que o
tempo vai próximo. nunca cheguei porque o teu corpo é impenetrável. sou o deus das
monções e do inverno sem fim. sou lúcifer. o anjo descaído. não sou santificado. como
tu. sou o eterno fim. a filosofia. a letra inacabada.
carne viva
um pedaço de pele abandonado pelos abutres
tudo o que não existe
e que, sem cessar,
alimenta toda a humanidade.
X. CABO DO MUNDO

lá. onde o mar acaba e a terra começa, alimentam-se os peixes da pele humana. do riso
dos outros, de todos os outros. de todas as figuras saindo de um quadro quinhentista. de
um fresco. o pequeno quadro em grandes episódios, ensinando a história bíblica. o
enamoramento de jacob por raquel o sacrifício do filho pródigo o combate de israel pelo
fogo sagrado

lá. onde a areia não é mais do que um nome. e onde os conceitos não possuem palavras,
mas símbolos. como a casa. o pátio. a palavra esquecimento. e a palavra fértil. lá. onde o
"navegueiro" não rompe mais as ondas. as cavalga. e dobra. e as esconde perante a
música sinuosa da sereia. ela adormece. ela foge do meu colo e assume a posição de
vestal, protegendo o templo da deusa. ela adormece. nasce e adormece. e morre outra
vez. outra e mais outra.

aqui. onde permanece o fauno. e o sátiro. e o homem sentado vestido de verde. com que
cor te surgirá o teu primeiro amor? com a cor da gaivota voando em passo acelerado
para as ondas? com aquela cor que usaste no dia em que sacudiste o mar com os dedos?
não acabes. fica. fica só e aqui. no cabo do mundo e no cume da europa, roubando do
meu sangue a minha frágil, mas tão trágica, imensidão.
XI. MATINAS

podia escrever mais do que um poema. ou não escrever nenhum. ou escrever a galope,
sem me deter, não travando o impacto que a escrita tem na carne e no sangue.

podia escrever a casa. e as paredes. e a escrivaninha em que não escrevo, em que


observo a figura austera de um velho professor de letras. ali mesmo, observando se a
minha carne e o meu sangue vivem ou morrem no prometer da palavra ainda nascente.

dizem: a poesia é um acto de contrição. não explica nada, nem mesmo se o mundo é um
globo gigante da altura dos nossos dedos, ou se somos nós que abarcamos o mundo, do
interior da casa.

escrevo as paredes e o velho caramanchão, onde observo o mundo todo e em que medito
se é luz, se é cor, se são sombras as realidades que extravasam o sentido da pedra.

algures, num tempo antigo, aprendi a juntar as palavras e descobri que o sentido não se
quebra, nem se fecha numa casa. nem nas paredes que alimentam a memória.

não é a pedra, e nem a natureza que tudo abarca.

apenas o poema tem o dever de aliviar o sangue.


XII. VIOLET

(a Vincent Gallo e Chloe Sevigny)

esqueço-me de abrir as portas do carro. elas estão presas ao pó que circunda o pátio da
casa. vou sair. ligo o ar condicionado e espero que a rádio transmita aquelas palavras
que, muitas vezes, repetem ao longo da manhã. bom dia. o trânsito está encerrado na
estrada 43 e não é bom dia para passear. melhor seria ficar em casa e comemorar a
solidão, olhando as pequenas folhas que teimam em se movimentar em pequenos
círculos, como se puxadas por um cordel imaginário. lá fora, vivem as pessoas e o seu
estranho ceptro de relações. ligo o carro e aperto o cadafalso à pedra. muita distância
separa o teu corpo das inúmeras sensações que o prazer provoca, mesmo que este seja
uma forma nada subtil de enganar a solidão. aperto-me ainda mais na sensação de ter de
me movimentar estrada fora e admirar as mulheres que me pedem para adormecer numa
gasolineira triste e decadente. é lá que vivem as mulheres que querem partir para a
estrada 43 sem, ao menos, se importarem se estão despidas ou se são apenas aquilo que
a rádio espera que elas sejam: as futuras estrelas do conglomerado urbano.

páro o carro. meto gasolina e vou embora. não. apetece-me levar alguém comigo,
mesmo que seja inocente e não se possa deter na estranha forma das pessoas crescerem
o corpo. nesta cidade, não existe dimensão nenhuma que seja de fácil percepção. tudo se
resume ao modo como as pessoas fogem. a estrada é apenas o meio. e não o fim.

chama-se violet e tem nome de flor. e também do chakra de ligação com deus. mas,
talvez não seja isso porque deus não tem corpo e as flores não têm mais nenhum cheiro
do que aquele que movimenta o ecossistema das plantas. apetece-me fodê-la. não a flor,
mas a rapariga que tudo abarca e que tem o corpo junto à porta do carro. para onde
partes. para a california. procurar ouro. não, os garimpeiros morreram quando o deserto
ainda não existia e quando o jim morrison nem sequer prometia poemas ou viagens
xamânicas ao deserto. não faças o ouro, faz a carne e deixa que ela te apodreça. se tu
apodreceres, foderei um cadáver e já poderei ser mais do que um homem. entra. ela
entrou. escusado será dizer que não falámos nada. os meus pensamentos falaram tudo.
nunca me dirigi a um cadáver mas a quem nunca tinha nada a perder, como eu.

levei-a a casa. fez as malas rapidamente apenas com o essencial. e partimos. nunca
prometas nada que não possa ser cumprido, se quiseres podes cortar o mundo às postas
e transformar o meu pequeno mundo numa selva de esperma e de calos. não falo nada.
apenas penso. mas penso com o lado iluminado do meu rosto. olho a paisagem que se
desenrola como um filme. ela adormece. a rádio ilumina as árvores que se estendem no
limiar das casas. beautiful. gordon lightfoot. uma pauta no silêncio numinoso da
paisagem americana. nunca é demasiado discreto pedir o amor quando ele só pode dar a
solidão. aproximo a mão da pele e os olhos fecham-se e abrem-se. o olhar é uma flor
desgastada que se abre quando pressionada pelo toque da pele. tudo se resume ao fogo
do prazer e ao movimento da estrada.

páro o carro e saio para fora. o corpo e mais a pele. já é noite acendida e os carros
movimentam-se como faróis no meio do mar e dos peixes. os peixes somos nós. que
abrem a boca quando querem ejacular o líquido amniótico que se esquecem de escrever
enquanto crianças. tiro as calças e deixo que ela engula o que restou de mim enquanto
estive na casa. e o que sair será para ela uma forma encantatória de enganar a solidão.
porque provavelmente o amor será apenas isso, quando engolimos e deixamos sair. e
vomitamos. e voltamos ao estado do leite virginal. e deixamos que o corpo se relembre
disso. até cairmos e termos a sensação de que acabámos com a inocência de quem
queria apenas partir e não jogar o seu futuro nas estradas e nos corpos alheios. o corpo é
só nosso quando perdoamos as nossas faltas. e se a solidão e o amor são o lamaçal da
pele, nunca deixamos de ser cadáveres. e fodemos pelos nossos mortos como fodemos
pelo nosso sabor metálico. mas lá estou eu a pensar. provavelmente, é mesmo amor,
mas com uma diferente intensidade. a partilha da pele e do esperma. só a nossa
inocência é que sabe.
35. OS QUATRO ELEMENTOS

I. TERRA

no princípio, a matéria juntou-se


ao corpo e criou o chão mátrio
do qual nascem todas as coisas.

ainda não havia homens na terra,


apenas um globo de luz vermelha
prendia a árvore e a raíz.

os olhos de plutão são sempre brilhantes


e mais claros que a argila escorrendo
o vaso.
"Fine vapors escape from whatever is doing the living" (John Ashbery)

em agosto, não há fábricas,


as mulheres vestem aquele tom
rosado que sempre as caracteriza,

- será a distância da memória,


de um tempo em que as
meninas de renoir eram a imagem
do corpo esperando o fruto? -

os homens nadam sobre as algas


esperando o adelgaçar das ancas
e dos peitos.

é agosto, eu sei,
as fábricas estão fechadas
mas o corpo permanece
no rasto de suor que
alimenta as rochas.
"Whatever is said, the same monotonous noise replies, and quivers up and down the
walls until it is absorbed into the roof. "Boum" is the sound as far as the human alphabet
can express it, or "bou-oum," or "ou-boum," utterly dull. Hope, politeness, the blowing
of a nose, the squeak of a boot, all produce "boum.”

(E. M. Forster)

havia apenas uma gruta


e o temeroso som

um eco que entrava e entrava


e se fundia à pele
como se todos os seres,
homem e mulher,
fossem parte da pedra
e a queimassem
e a devorassem
com os dedos,
com o sexo,
com a luminosidade escura
e frágil do verbo
que preside ao chão.

a mãe segura no filho e apenas


diz:

boum.
36. LONDINIUM

a alva que desce na cidade


sossega teu corpo murmurante.
silêncio.

o sol que se desprende


dos cabelos, o murmúrio da voz que
se despede. em prece. promessas de
uma noite talvez distante.

os olhos que se despedem do amante.


a alva na cidade a renascer.
tua voz percorrendo as calçadas.
londinium seca, murmurando
a manhã que se quer assim, como dantes.
como se o silêncio fosse vento ondulante.

o autocarro que dobra a tua esquina,


a pressa de chegar e de partir.
o vento que move teus cabelos,
o tempo que é mais do que um amante.
o vento.
alento.
a saudade da alva a descobrir.

lá longe, na planície, os galos cantam.


os poetas sonham a alva o sol que há de vir.
os amantes, como névoa, murmuram
murmuram a noite por partir.

londinium, lá longe, é sentinela.


teu corpo encostado na janela.
a vela. os olhos. os cabelos que
murmuram sonhos vivos,
promessas de uma noite a descobrir.

teu corpo, em sobressalto, acorda.


o telefone entre o corpo dos amantes.
serenos, como se uma noite fosse um
manto de rosas pretas, deitadas no olhar
agreste da cidade.
a vida.
mais um dia a descobrir.

teus olhos esverdeados são como a lua.


londinium no teu corpo a sorrir.5

37. AS CRIANÇAS
5
baseado em “Lisboa que Amanhece”, de Sérgio Godinho.
as crianças que se estendem nas clareiras da terra
dormem sob o sol quente.
encostadas umas às outras, com as pernas dormentes,
dançam silenciosamente nos seus sonhos.

um anjo disse-lhes que da terra se fez sinfonia,


e do sol um andamento suave e lânguido
como as pétalas que caem lentamente nos seus joelhos.

ao longe, nasce fumo do horizonte.


as nuvens permanecem fechadas, o rumorejar da chuva distante,
já não se ouvem os trovões que cercaram a planície no dia anterior.

a terra permanece molhada,


é tão belo o sabor dessa terra chamuscada pelas chuvas de Inverno.
só o Deus delas sabe porque fez a chuva parecer tempestade
e claridade luz.

porque nem a tempestade nem a luz se encontram na natureza,


nem as crianças sentem o sussurrar da água que corre
pelos seus braços e pernas. dormem apenas.
nos seus sonhos, o Aajo disse-lhes que da terra se fez sinfonia
e da sinfonia, oração. e da oração, um cantar suave e distante
que se dilui na tempestade como se uma sereia dos céus
cantasse ao longo dos trovões e levasse consigo
o espírito das crianças.

38. BIBLIOTECA
tenho uma casa e uma folha de papel
onde vou construir uma biblioteca
apagada no cinzeiro dos teus ombros.
tenho uma caneta que revolve a escrita,
que a desenvolve, que a constrói, que a
supera.

tenho um tempo e tenho um limite,


que cresce à medida que a noite descai
no recanto dos meus olhos sempre adormecidos
e sempre presentes, tal como o fogo que nasceu
do caule das mãos em perpétuo movimento.

tenho uma morte e tenho uma casa feita de cinzas,


apagadas no papel e relembradas no sereno
murmurar de uma estante, lá longe,
perdidas no deserto quase incólume
de uma biblioteca esquecida.

39. A SARAH
num ápice, tu partiste
e levaste o vento pelos ombros
os olhos sempre ao largo, sempre distantes
o horizonte no caule das tuas mãos
as mãos no segredo de qualquer deus enganador
que leva consigo as deusas da terra
e as deixa estendidas na memória dos homens.
40. A NOSTALGIA DAS CORES

pinto o meu deus com as cores da terra,


a mão ceifando e limpando o trigo,
por detrás do sol, em busca do azul do mar.

pinto uma caravela e pinto pescadores.


minto se em peregrinação me juntar
aos navegadores que, seguindo a tela do céu,
velejam em direcção a uma índia reconquistada.

pinto em branco sobre uma vela.


com tinta transparente, pinto o vento e pinto a
água.
e pinto cada homem com tintas retiradas do empíreo
onde deus e os anjos e alguma coisa qualquer que
domina o homem
vivem adormecidos na sua própria criação poética.

pinto os braços e pinto as pernas que caminham no convés.


pinto a tinta da madeira que, lentamente,
vai surgindo do escorbuto dos séculos
e que vai renascendo como uma concha.

pinto o fogo que sant’elmo retirou dos deuses


para o dar aos portugueses.
pinto o medo em branco espanto
em telas claras de pranto
sobre a madeira e sobre o mar.

pinto o meu deus com as cores da terra,


a mão silenciando o sabor das lágrimas
que caem sobre a pele do quadro
e que se despedem com saudade
de portugal.
41. ARAGEM

não, não existe o silêncio.


apenas penumbra que se expele
da aragem do mar.
das curvas das rochas e do canto dos pássaros,
que surgem desfraldados no nevoeiro seco.
em círculos infinitos.
em busca da água.
e do peixe, sempre o peixe, que se esconde
nos mastros das algas.
42. NEVE

I. a brancura inerte da montanha


empurra as pétalas para os montes arredor.
sementes caem ao sabor do vento.

II. a sombra projectada da lua,


como vela desfraldada pela noite,
ergue-se dos penhascos. um farol.
43. UM FADO

há um pouco desta alegria


nas esquinas sujas de lisboa,
na promessa quente do fado
que, no colo de uma guitarra
voa e se torna triste.

há um pouco de canto e de poesia


na estrela mais alta
da madrugada,
no verso mais triste de lisboa
que é pássaro sem fogo de saudade
que voa e se torna triste

há um rasto seco na cidade


rasto de vida e de paixão,
que brilha e se alegra
quando voa.
44. FEDERICO GARCIA LORCA

fendeste o céu com a poesia imaculada,


ergueste o bastão da palavra
diante do sol. em terras de
espanha, muito para além de granada.
recordo as tuas passadas,
indo muito para além dos
caminhos trilhados pelos camponeses.
ouço as suas palavras, na tua própria voz.

granada. dois rios. um de lágrimas outro


aspergido com o sangue lavado dos poetas.
regam a roupa suja dos deuses.
com o próprio corpo. como o teu.
infalível na sua própria bondade,
antigo na sua humanidade. em noites de

lua-cheia contando as estrelas e


ouvindo cantar os rouxinóis como
rezam todas as lendas. e todas as
cantigas d’amigo ou d’amor, sob o olhar atento d’
alhambra, encostado à beleza dos jardins
envoltos na sua névoa de séculos.
45. NASCIMENTO

não sou protegido de deus,


nem sou daqueles que sonham o verbo às escondidas,
protegido pelo luar das aparências.

não me refugio na escarpa agreste do olimpo,


nem sigo a fenda de lava nas arestas do vesúvio.
sou apenas um floco de neve.
que o vento lança
e que os pescadores caçam nas águas escarpadas
do oceano.

em redobradas ânsias de maré, caio no chão


e floresço. esvoaço na atmosfera da terra
e desapareço.
até voltar a florescer
quando os abutres da serra se esqueçerem da sua fome
e seguirem o encalço das estrelas.
46. MANSÕES

a estranha sensação de ouvir uma voz,


ainda que pronunciada nas mais variadas formas.
um poema, um esconjuro, o grito de um lobo.

a estranha sensação dessa voz se ouvir mais perto.


o coração abater. mais rápido. mais suave.
mais lento que uma pluma beijando a pedra.

a estranha sensação de o meu coração desaparecer.


todo o meu corpo desaparece, só resta a pedra.
abatem-se os corpos ao som da enxada do espanto.

a estranha sensação de tudo acontecer.


todo o meu corpo é uma mansão,
com imensas escadas de Ser.
só resta a pedra.
47. ESPLANADA DAS MESQUITAS

arrasto o meu corpo pelo chão,


de nova iorque para o inferno é só uma passagem.
não permaneço, não me sustenho nas pernas.
sou uma víbora encarnada à espera que chegue o inverno
para adormecer no teu regaço.

sou um altar de compras a crédito no infinito,


débito/crédito, débito/crédito,
não posso inventar o amor quando a névoa da saudade
ainda existir, quando a fé imaginada submergir
no teu colo. ainda a dormir, beijo a tua boca.

aproximo a minha mão que toca na tua pele,


encarnada porque o sol é tão vermelho como
a cor do meu próprio sangue espalhado pelo chão.
na esplanada das mesquitas, beijo a tua boca
e adormeço na tua pele.

e o vento sopra, sobre a igreja que se despede,


sobre os arbustos que caem e que desaparecem.
sobre o campanário que se corrói,
sobre mim.
que adormeço como um livro aberto sobre o teu
próprio corpo. de nova iorque para o inferno é
só uma passagem.

a morte é um divórcio consentido, quase por momentos,


pela palavra de deus.
48. MADRUGADA NA PLANÍCIE ALENTEJANA

cresce vasta a planície


ao redor de mim.
todos os meus sentidos despertos,
todo o silêncio encoberto pela
lenta ascensão da madrugada.

a lua vai alta,


o céu uma barreira intransponível
para todos aqueles
que desenham círculos nas nuvens,
através da imaginação.

a água descansa no orvalho da noite,


plantas rastejam na camuflagem espessa da erva molhada.
todos os animais dormem,
ao longe rajadas de vento espreguiçam-se nos sobreiros secos.

na solidão dos campos sem fim,


crianças e velhos rezam a st. bárbara
que anda pelo céu armada
de sombras cintilantes e de noivas ondulantes
que, para sempre, voam
de nuvem em nuvem,
de castelo em castelo,
de árvore em árvore,
de avejão em avejão.
dançando na noite
e recriando o sibilar do vento.

cresce vasta a planície ao redor de mim.

desenho no espectro das árvores


uma noiva eterna transformada em oliveira.
para sempre noiva, cantando
sibilos de vento rasgados de silêncio.
aqui, no meio do alentejo,
no limiar do mundo.
49. VÉSPERAS

os dois irmãos caminham lado a lado,


olhar reticente, labareda e fumo
no lugar do coração.
os seus braços dançam pela aurora,
entrelaçados uns nos outros,
um ritual de tecidos de veludo
em sintonia com o vento que ameaça.

verde é a cor dos teus olhos nas vésperas da partida.

e, em breve, cantarei junto da memória de estevão.


com o sangue lacerado pela voz,
e preso às ligas do tempo
que se despede, como uma ruína
e uma treva em noites de verão.
ouvirei para sempre a voz rouca de hipona.

os dois irmãos adormecem lado a lado,


junto ao muro que transformou o dia em rosas e noiite em
sabores de vento.
cai o milagre por entre os seus olhos,
acorda todo o corpo,
a mão que se levanta em jeito de despedida,
das rolas que voam e se entrecruzam no horizonte.

em vésperas de partida para lugar nenhum.

e, em breve, dormirei preso à pedra,


junto da memória de estevão. e ouvirei os pássaros.
e os passos da multidão que se digladia, que personifica
e transfigura os dois irmãos que se erguem lado a lado
perante os olhares indefesos dos homens.
acordarei sob os olhares redentores de hipona.

os dois irmãos que se estendem lado a lado.


a sua capa que voa,
sopra como tu voas,
vê como tu vês.
desaparece como tu desapareces.
e deixas de ser tu e passas a ser silêncio,
junto da memória que se ergue como uma igreja
em noite de vésperas.

e, em breve, dormirei ao teu lado,


sopra o vento junto dos dois irmãos
e a capa dos sentidos e do amor voa,
voa em direcção das ruelas indefesas de hipona.
50. MONTANHA

para o gonçalo b. de sousa

a montanha desenha os seus rios de neve na escuridão


surgem como faíscas, risos de sois e de luas enclausurados
na noite.
de Inverno, o riso transforma-se num lento murmurar,
aragem e vertigem de rochedos que respiram à medida
que a madrugada avança
um imenso lençol de presença adensa-se.
deus está visível, apesar de transformado na mais maleável
das criaturas. neve.

nos dias frios de inverno, surge com um manto branco


a iluminar a montanha.
no verão, desaparece com as chuvas e vai circundar toda a terra,
com os seus braços e pernas sob a forma de oceanos.

talvez seja, por isso, que a montanha não precise


nem de místicos nem de iluminações momentâneas
e nem de uma pretensa redenção. surge apenas com
s forma de neve, colada à pele das mulheres e dos
homens incautos.
porque a iluminação, a transmissão de luz implica sempre
a presença anterior da escuridão e do desassossego.
o que não acontece com a montanha.

ela mantém sempre presa à sua garganta aquele lençol branco


que se despede do caminha quando ele calcorreia descalço sobre
o abismo.
51. AMOR

poderei amar-te num tempo não propício,


poderei amar-te em recolhimento, em silêncio, oferecendo
o meu corpo como holocausto.

poderei amar-te de noite, com a candeia acesa,


com uma vela branca ao pé da janela e com
um lenço pousado nos joelhos.

poderei amar-te todas as meias-noites, dia após dia,


ano após anos, silenciando-me e silenciando-te a ti
como uma treva.

poderei amar-te como uma flama ardente, jamais perecível,


levantada pelos ventos e iluminada de soslaio pelo sol.

poderei amar-te e gritar incessantemente por mais amor,


oferecer-te uma rosa ao pequeno-almoço
e juntar todas as pétalas caídas no chão
e daí preparar uma refeição magnífica.

poderá o meu amor ser avesso a prodígios, a milagres.


cessam-me todas as palavras quando o dia se transforma em
noite,
o prazer em vida, o sexo em algo mais transcendente.
não sei do sol fazer chuva, da aurora tempestade,
do ferro seco e duro ouro,
da morte vida nem de deus o diabo.

poderei amar-te como o sol ama a lua, como a aurora ama a


manhã, como o céu ama a sua pomba.

mas, prefiro amar-te apenas pelo teusorriso sempre


que os nossos olhos de juntam, cada dia pela manhã.
52. AMOR II

o amor é uma espécie de caça.


os dois amantes, em posição vertical, erguem
as suas flechas em sinal de desafio.
os corpos, luminosos na escuridão, fingem
que se ferem e lançam-se ao abandono.

abandonam a própria vontade, o próprio desejo.


o desejo não é mais do que o espelho do outro.
o espelho a imagem indistinta de um sentimento,
de múltiplas formas, como as sombras projectadas
na parede, com a lareira iluminando o quarto.

o amor é presa e conquistador.


onda dos sete mares, súplica dirigida a deus.
vento em espiral calcando as planícies do novo
continente.
brisa suave, encarcerada na palma das mãos,
libertada pelos batimentos suaves do coraçãoe
e pelo vento que sibila à medida que a flecha
rasga o horizonte.
53. POEMA XVII

o pensamento no fulgor da língua


perde as suas palavras maiores

o casulo do verso
é a apoteose do sentido
a imaginação de tudo acontecer
no interior do olhar
fechado.
54. AOS MEUS AMIGOS

disseram-me que, de manhã,


se ouve o tejo todo,
e que as pessoas transportam em
si aquela imensidade vasta,
como quem é feito de história
e não sabe porquê

disseram-me que o tempo não


volta ao lugar onde nasceu, e
que os amigos que se perdem são
como o areal à volta da minha casa:

os retalhos, as migalhas, a presença


sempre ausente das águas em
combustão

e a sensação de que sempre foi assim,


com aquelas mesmas pessoas,
com aqueles mesmos rostos,
por dentro da história
e com o tejo debaixo dos braços.
55. POEMA XVIII

todos os homens são ilhas e o meu amor por


ti rompe todo o mar dos açores e cai na lenta
luminosidade do alentejo.
56. MYSTICA

a vivência do amor
dá-se no signo do
olhar
quando as palavras já
não se juntam nem se
iniciam.

nada é perfeito
como a flor selvagem,
húmida, flexível ao
rebentamento das águas

a união mística dos corpos


é o desembrulhar dos olhares
parados

da flor resta apenas a corola


em fogo.
57. RAMAGEM

deixa que a casa se revele

como um véu inacabado

o casamento das paredes com

a respiração da escrivaninha

fechada

abre as cartas e limpa as

mãos ao cobertor deixa-me

ser os olhos de quem não vê

o verso exposto na ramagem

do sangue.
58. VÁRZEA

na várzea desabitada, um
vento mais forte se levanta
e faz crescer nas pedras o
temor de Deus

se colocares os ouvidos à escuta,


não te ergas perante a ermida,
que é antiga e não diz nada
senão o que vem de fora,
trazido por vento viageiro,
lá longe, das cercanias da
planície funda

abriga-te no olhar doce do


Santo e entrega em romaria
o que restar do teu dia de trabalho

nas tuas mãos habita a várzea


e a consciência de a tudo pertenceres
como se fosses um receptáculo de
pedra, e a pedra fosse o teu nome
e o teu nome duas letras
marcadas a ferro

não te sangres já: abraça


a várzea na ausência da
tua voz.
59. ARIDEZ

"Esta mulher não tem boca


no lugar dos lábios
uma planície árida
de carne"

(Jose Gil)

no lugar da alma a campa de


pedra o olhar assim feroz
árido de deus e dos homens

nunca carregues o meu corpo


aos ombros porque sou feita
de areia e ela desfaz-se quando
a alma morre

a alma morre antes do corpo e as


mansões eternas quebram

nada conheço para além da clausura


dos meus olhos.
60. UM NOME APENAS

não existe uma dimensão sacerdotal


do amor as vestes são as mesmas
que enfeitam a ramagem de um
carvalho antigo, com o peso dos
séculos aglutinados pelo céu
defronte dos olhos.

não existe nem pode existir uma


pedra que determine as andanças
das estações. o carvalho antigo
é a semente e o profeta a dimensão
poética da palavra vivida.
61. MONTE MARIPOSA

no vale, a dança é a estrela


que brilha no alto do terraço
sob o céu partilhado

as mãos dão-se e a água


vibra como terreno fértil
de um abraço simples

deus olha e sossega a alma


de quem se entrega no
céu do algarve

com a fogueira da culatra


iluminando as palavras de quem
se despe de si.
62. POEMA XIX

(para o David Fernandes, a Hope Sandoval e a Rachel Goswell)

perguntas-me se alguma vez escrevi poemas


com gente dentro ou se era apenas a voz da
linguagem a inventar nomes, lugares, sons,
a emoção no dedilhar dos dedos plenos

(como todos os livros ensinam)

perguntas-me se alguma vez haverá algum


homem como johnny ou se o velho ethan
encontrará paz num qualquer lugar bem
longe de monument valley

(talvez seja este o lugar dos sonhos)

perguntas-me se alguma vez escrevi


poemas de amor ou se as pessoas
(as vozes dentro do poema) existiam
como existe o silêncio crescente das neves

perguntas-me o que fica por detrás


mas o velho jeremiah nunca pensou sequer
em palavras quando dormia junto com as
estrelas.
63. POEMA XX

tocarei ainda a pele


o tom cristalino do vinho
na margem sempre chã
do corpo

quando espero os dedos,


espero sempre a escrita
a respiração vinda de dentro
como se o amor e o prazer
fossem palavras e as sílabas
ritmos contrários de nascimento

renasço perante o fogo


e o ritmo crescente da
erva fina - a relva onde
nos deitamos e onde o
gemido é uma gazela pronta
a nascer. palavras chãs
ritmos de aquém-poesia

tudo o mais são as larvas


e o tecido genital dos olhos.
64. POEMA XXI

contem histórias. simples lugares de palavras. partículas amanhecidas de silêncio. com


peles que se possam dobrar, esconder, entregar. todo o poema é um acto de palavras. e a
caligrafia amanhece no solo de quem a vê com os olhos fechados.
65. POEMA XXII

o meu amor chegou


chegou com as folhas
e com palavras de ramos gastos

o meu amor dorme


adormece no pesar dos olhos
e das pupilas esconde os dedos,
que são o poema todo
a lenta invasão da carne
a chama - visão clara
do chão.
66. POEMA XXIII

se não permanecer no
meu centro, toda a
sombra chamará
do meu corpo

a palavra [secreta voz] do


réptil.
67. POEMA XXIV

debaixo do vestido, não há religião


nem nada se religa a nada:
escreve-se o poema como se escreve:
a água caminha torta
pelos aluviões espessos de luz.
68. POEMA XXV

o anjo é o limite do
filho - o som que diz
do círculo em redor
do covil.
69. POEMA XXVI

quando disseres pedra, diz antes poema


quando disseres rosa, diz antes semântica
quando disseres homem, diz antes linguagem
quando disseres veia, diz antes sílaba
quando disseres montanha, diz antes palavra
quando disseres dança, diz antes:

o verso é tudo o que de real existe


e auto recria-se sempre no sangue.

quando disseres livro, diz antes ilusão


quando disseres papel, diz antes morte
quando disseres ordem, diz antes a treva
quando disseres apolo, diz antes controlo.

quando disseres poema, diz antes vida.


70. DIONISOS I

o teu corpo líquido


tem o caudal das ondas,
uma forma de canto
amanhecendo e deixando-se
fugir

uma certeza inabalável


de que não existem limites
para as águas - construções
messiânicas dos céus - nem para
os dedos abertos de espuma

toda a arquitectura
todo o rosto em roda
é maleável na lágrima
de quem se submete ao deus que desce.
71. DIONISOS II

há aqui um corpo assombrado


no grito
dos animais

felinas vozes
abrindo das mãos
a sua eterna vontade
e prazer

há aqui um trono líquido


raíz dos dedos
e do sexo pulsando
de dentro

toda a fauna
imensa caindo no humano
e abrindo do círculo

um mantra ruminante
de sons.
72. DIONISOS III

sinto o chão que piso


a barriga dos animais
a mátria oracular que é
das hienas e das vozes
transparentes do sexo

sinto o vaso transbordante


a raíz fresca e boa
o orgasmo, a vida pulsante
abrindo e celebrando
do corpo

sinto a fértil vertigem


as casas abrindo-se aos dedos,
um sono líquido, distante
abrindo do deus
a minha certeza.
73. DO AMOR II

"i fall to pieces


each time i see you again"

(hank cochran / harlan howard)6

se eu amasse o corpo de uma mulher


mais do que a mim mesmo,
jamais pertenceria a poema algum
porque de silêncio é feito o
ímpeto dos corpos

se os poemas quebrassem e rebentassem


e abrissem clareiras entre os pensamentos,
destruindo-os e criando-os
e tornando a rebentar,
talvez o meu olhar fosse de uma
sibila ardendo

[ou queimando dos olhos]

se a poesia fosse toda dos homens


e das mulheres
e das vozes discordantes
que enchem a calçada das minhas cidades,
talvez as palavras respirassem vida
e dos cálamos
saíssem veias
e artérias de fogo
e deuses trespassados de som

mas a poesia é isso


palavra ígnea
ou não-palavra
palavra antes da palavra,
quando ainda aspiramos ao dom
de poder morrer de amor.

6
excerto da canção “i fall to pieces”, cantada por patsy cline.
74. POEMA XXVII

há um instante quando a
agulha penetra a pele
e o dragão é a única verdade
do sangue

há um instante
[e há toda a eternidade]
quando o terreiro sagrado
se ilumina com os pés
das águias.
75. POEMA XXVIII

não há
nem pode haver memória
que o corpo possa suportar,
apenas a ânsia de vida
e de calor humano

e de uma escrita capaz


de atingir a mais radical
profundidade da pele.
76. POEMA XXIX

a água evoca,
mas não oscila

e o riso perene das criaturas


é o riso do verso ainda por vir,

dos limites da terra,


os limites do corpo,
do corpo ainda fechado
e sem forma,

um canto inconcluso
de giesta
nas margens sorrateiras do aluvião.
77. POEMA XXX

saúdo-te, minha irmã de paraíso,


grande ser das árvores
eva nascente de ventres
e de marés,

saúdo-te sem esperar a palavra


nem desejar que essa palavra
sustente o mundo
o mundo de homens e mulheres
o mundo de vivos e errantes
procurando o compasso
da areia

saúdo-te sem esperar nada,


sem desejar nada,
nem o amor,
muito menos o amor,
talvez o paraíso de ser
ou de viver das árvores,

saúdo-te, irmã de paraíso,


ser das montanhas
amantes e prenhes do movimento
pulsante e do cálice vivo
e que canta e diz e não diz
e ama tudo e não ama nada

[apenas reluz]

saúdo-te, pomba dos rios em cascata


dos homens que cercam
e dos homens que amam
e dos homens que vivos são em mim
e em ti

saúdo o desejo
o amor
a geografia da terra,
a planura dos corpos
no cálice imaculado
da ilha negra, a bela,
a mais bela
sem nome

saúdo-te, irmã de paraíso


e espero que o Rosto
nos aquiete
na calma tranquilidade
da roda.
78. POEMA XXXI

(para larkin grimm)7

certa noite, o devendra disse-te:


a tua música é como uma prisão
é estar fechado num lugar
muito escuro e ouvir o som

eu digo-te: nada do que tu cantas


ou exprimes pela voz pode ser uma
prisão, talvez um ponto pequeno
na grande planície branca

(ou um ponto, uma esfera


demoníaca que dissesse ou soubesse
de tudo)

certa noite, disseste ao devendra8:


faz-me uma tatuagem no braço direito,
afinal és o arauto de deus, tens uma
barba plena e todos os homens que forem
como tu saltarão por cima de silvas amarelas
e cantarão da voz e dos caminhos do sal

porém, nada disso me interessa


quando ouço a grande voz americana
soletrando uivos de coiote

é provavelmente porque sou animal


de poder numa cidade em desintegração.

7
cantora norte-americana de folk alternativa
8
referência ao cantor de folk alternativa, devendra banhart.

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