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Nominata morfina

Fabiano Calixto

Nominata
morfina
– livro de gravuras –

1a reimpressão

2014
Nasci sem dinheiro, mulato e livre.
A minha esperança está no milhar 47875. Se ele não der, não sei como
salvo esta bodega.
Lima Barreto

Yo quería seguir poetizando


Pero se terminó la inspiración.
La poesía se ha portado bien
Yo me he portado horriblemente mal.
Nicanor Parra

Todos los poetas, entonces, vivirán en comunas


artísticas llamadas cárceles o manicomios.
Roberto Bolaño

If you’re listening to this song


You may think the chords are going wrong
But they’re not
I just wrote it like that
The Beatles
Abertura

Ao abrir o livro, por que a voz se perde? O que na garganta estan-


ca a frase que, a flux, não mais se faz foz? A dor da deserção da
sentença implica a morte do suicida sagaz e seu salto em direção
à sua própria carniça? Abro o livro e algo vaza, não a voz, mas a
hipótese de sua explosão – como se dos estilhaços de sua melo-
dia, um muro, da tímida progressão harmônica, interrompesse.
Ou uma fábula, logo nas primeiras linhas: uma pequena dríade
que do centro da página me fuzila com dois olhos azuis de luz ze-
nital. Mas agora há apenas uma tempestade que irriga o contexto
enquanto escrevo que o cigarro que fumo contém mais de 4.700
substâncias tóxicas. Uma janela por onde o coração cinza da tar-
de bombeia sua pequena eternidade sobre as camisetas coloridas
ainda úmidas no varal. Depois disso, estamos plúmbeos, pesados
(como a palavra plúmbeo) e, à esteira dos nossos próprios uivos,
sombras esgueirando-se, entristecidas em seu ofício de autoas-
sassínio. As lágrimas não mudam nada em lugar nenhum – não
nos encaminham outra vida, nem segunda via, não acendem as
lâmpadas da sala, não nos poupam da inevitável solidão de sen-
tirmos (inevitável) a solidão, não movem montanhas nem os sal-
mos soltos sobre o criado-mudo. Numa espécie de profilaxia dos
eventos do dia a dia, o telefone sempre esteve ocupado e jamais
abrimos aquela velha Encyclopædia Brittanica que enchia duas
prateleiras na estante que, junto a um sangrento Sagrado Coração
de Jesus, imaginávamos que nossos avós nos deixariam como he-
rança. Penso no aroma dos vinhos feitos nos mosteiros franceses
por monges que sonham em vagar pelo mundo até que a planta
de seus pés fique em frangalhos e depois parar, respirar, respirar,
e vestir sungas verdes com listras brancas e caminhar por algu-

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ma praia da Califórnia, entre garotas com 220 ml de silicone em
cada teta, aguados coquetéis de kiwi e música havaiana feita em
Guadalajara. Imagino os oceanos vistos da lua por um pedreiro
– numa hipotética excursão espacial popular – e os movimentos
fazendo-o lembrar a agitação efervescente do sal de frutas num
copo d’água gelado, num dia de ressaca qualquer. Imagino Ruth
Goldemberg, a garota mais quieta e tímida da Washington Squa-
re, falando sem parar durante mais de setenta horas. Não há co-
mo endireitar à força a curvatura dos horizontes e, na garganta
das manhãs, quando ainda trincam nos mapas da consciência as
últimas sendas do sonho, sua mão ainda sua na minha. Na pri-
meira noite não dormimos. Um escutava a respiração do outro.
Perto do alvorecer, as estrelas se transformaram em bem-te-vis.
Um deles se pôs a cantar e outro, mais longe, a responder. Era
isso o que eu queria escrever a você. Daí a manhã e uma profusão
de crisântemos cuspiu uma primavera inteira no espaço entre o
meu e o seu pensamento. Eu havia conhecido uma pianista. Seu
sorriso me fazia pensar nos microcânions na pele tecnicolor de
uma salamandra e nosso primeiro assunto foi sobre a beleza de
um campo de gerânios e a rouquidão dos velhos relógios de pa-
rede. “Perdoar é uma grandeza feminina”, ela me disse. Silenciei
longamente. Disse-lhe sobre a imaginária existência de uma carta
geográfica que indicasse apenas uma cidade esquecida, ou, mais
ainda, um cemitério abandonado no coração da cidade esquecida,
onde os mortos brincam de construir presságios e declamam os
cem mil cantos de um esquecido poema épico sobre um hipermer-
cado abandonado onde vive uma ave terrível. Eu caminhava por
uma alameda da cidade extraindo dos plátanos secos uma música
cortante. O ar, o sol em seu furta-cor roxo-ensanguentado, pássa-
ros, carros, pessoas e o azul-arsênico daquela flor incomparável.
É quando a gente começa a se matar a todo instante na tentativa
insana de domesticar a morte. “Você sempre foi, com um inabalá-

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vel nó na garganta, uma muçulmana em fúria silenciosa”, pensei
em voz alta. Quem (ou o quê) nos esqueceu? Um riso rasgou-me
o rosto. Ouvia os derradeiros batimentos cardíacos da tarde – que
ia se guardando na velha caixa de sapatos do tempo para que a
noite, vestida de fome e perfumes, pudesse, apressada, bela e pu-
ta, apodrecer todas as nossas preces.

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Entr’act

O outono desaba sobre as flautas-azuis da casa azul com portão


branco (como numa fotografia eslovena) e tenta fazer com que o
amarelo das frutas ao fundo se intensifique para iluminar a noite
que vem trazendo você nos lábios. Chega aqui, entre a leitura de
El Lissitzky e as palavras lavadas de um telegrama de despedida
– e também pelo hálito da garota vestida de camiseta verde do
outro lado da rua (e que, magnífica, mima dois oceanos no ros-
to). Um mistério triste mora nas coisas que não possuem mila-
gre. Descontinuidade de estações: pensar no seu olhar escondido
atrás de tantos megapixels negados como a beleza das flores da
estação oposta caladas sob finas películas de gelo de outro he-
misfério. Ou, como marca d’água da próxima taquicardia de um
homem que preferiu esquecer seus santos na seção de achados e
perdidos. Não imagino como fundir os dois mares de púrpura e
embriaguez – o ponto de fuga das suas mãos levitando o minical-
deirão de delírio supremo de um deus beberrão e libertino que
edifica orgasmos frente à assexia dos anjos. Ou, num atrapalho
linguístico, derrubado do sétimo andar do prédio e ileso pro-
nunciar kiêits (por Keats) ou íts (por Yeats) – só porque, na so-
lidão longínqua de um páramo andino (silêncio carmim de suas
unhas), alguém possa dizer que sabe que você lê poemas. (E se
amanhã formos papear em alguma cafeteria da cidade, podemos
comunicar ao sol que sua esperança de estar para todos não se
reflete em nós, que não estamos para ninguém. E se depois de
povoar sua pele com os arrepios que escolhi a dedo entre meu
vasto repertório de incêndios, tudo neste mundo é mera l’eau de
rose para divertir endomingados humanos). Há novas maneiras
de ver as coisas a partir do primeiro contato com seu sorriso e

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a possibilidade de sentir ternura novamente é, do meu mirante
N.8 em Fá maior Op.73, fitar o que porventura possa ser um mo-
nograma solar que pode salvar a noite dela mesma – recusando a
cambada de consoladores e as pessoas fáceis de consolar. Se nem
mil meandros da mente valem seu sorriso (mais que a delicada
violeta de Cummings – ou como uma oração sexy e vertiginosa à
Harmonie en rouge de Matisse), é possível dizer daqui de longe,
observando-a como quem ao ventre de uma maçã, que seu sor-
riso poderia facilmente derreter a palavra neve que cobre tudo
nesta noite.

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Desapropriação para Camilo Torres

Lo mataron cuando iba por su fusil


Camilo Torres muere para vivir
Víctor Jara

Era uma vez, pássaros – pássaros, pássaros, pássaros. Voavam


em círculos concêntricos – voavam, voavam. Sou revolucionário
como colombiano, como sociólogo, como cristão e como sacer-
dote. Jamais a planta dos pés plantavam na terra. Porque ainda
não havia terra em lugar algum. Como colombiano porque não
posso estar alheio às lutas do meu povo. Aos milhões faziam mi-
lhões de círculos no espaço, anéis de luz e relâmpagos simétricos.
Como sociólogo porque graças ao conhecimento científico que
tenho da realidade, cheguei à conclusão de que as soluções téc-
nicas e eficazes não são alcançadas sem uma revolução. Não ha-
via verão, pois as andorinhas ainda não possuíam a chave que o
abria. Como cristão porque a essência do cristianismo é o amor
ao próximo e somente pela revolução se pode conseguir o bem
da maioria. Circos siderais com mil trilhões de cores, diagramas
antimatéria e ventres-mandala onde deuses, xamãs e poetas nas-
cerão. Como sacerdote porque a entrega ao próximo que a revo-
lução exige é um requisito de caridade fraterna, indispensável
para realizar o sacrifício da Missa, que não é uma oferenda in-
dividual, mas de todo o povo de Deus por intermédio de Cristo.
Nenhum Sol, nenhuma Terra, nem Vênus, nem Marte, Urano, Ne-
tuno, Saturno. Apenas o voo. O voar. Realizada a eternidade in-
teira no irrealizável, o mais antigo de todos os pássaros perdeu-se
no labirinto do tempo e o silêncio guardou todo o seu canto. Não
havendo terra, onde sepultar o corpo que do vácuo desocupou-se?

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Ser revolucionário é ter consciência de que na Colômbia não se
pode dar de comer, nem vestir ou morar às maiorias. Isto por-
que aqueles que detêm o poder constituem uma minoria econô-
mica que domina o poder político, o poder cultural, o militar
e, desgraçadamente, também o poder eclesiástico. Aprender a
lavrar, na morte, uma espécie de pórtico. Todos os pássaros. Um
ao outro; ao círculo que se construía largo. Espirais expandindo
o imenso azul mastigado do cosmo. É lutar pela integral eleva-
ção do ser humano. É repelir toda repressão injusta e toda tira-
nia. É lutar contra a fome. Não se trata de nos perdermos em
discutir se a alma é mortal ou imortal, pois a única coisa que
sabemos é que o ser humano, sim, é mortal. Não havendo terra
onde enterrar o corpo de seu ancestral, o pássaro órfão, em cujo
coágulo uma luz ardia, enterrou o pequeno cadáver em sua pró-
pria cabeça e deu à luz a memória.

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Nominata morfina

Palavra us. por aquele que fala ou escreve para se referir a si mesmo,
quando gramaticalmente é o sujeito da oração. Providos das mais
insuperáveis técnicas, os homens do mundo solucionam a equação
da vida pelo viés da vitória. Eu me lembro de você. Mas você anda,
sem dúvida, bem zangada. Você me ama como as mulheres da po-
esia grega arcaica – mais que beijar muito, você me beija mil vezes.
Você era um farol e agora é apenas um camundongo perdido entre
os caranguejos no mangue. Uma borboleta entre pântanos e cuspi-
das de ácido sulfúrico. Tudo é pouco. Pouco. Pouco. Quando estiver
velha, pegue este livro, sente-se ao lado da lareira e leia com calma
e zelo. É aqui que mora seu coração. Será impossível evitar o cosmo,
o veludo verde. A pira que respira o fogo eterno não terá dó dos
seus grunhidos. A vida é o caderno de anotações de um astronauta.
Adv. até agora, até este momento (presente) até então, até aquele
momento (passado) ainda agora, agora mesmo; em tempo recen-
tíssimo (passado) até lá, até esse tempo (futuro). Naqueles imensos
campos de café, onde, calças curtas e mangas de camisa, o sol nos
cozinhava o sangue e as tripas dos espantalhos. Ali, entre as estrias
na terra e os abismais monstros de nuvens, íamos tentando iludir
a descrença, embriagando-a pela raiz. Era ali que a vida começa-
va a dar sentido a um caderno de anotações de um caminhoneiro
que coleciona velhos compactos de cantores de quem jamais ouviu
falar. Pequenos, insignificantes, apontamentos que, mesmo rasga-
dos, no lixo, jamais lidos, serão a coloração de todos os próximos
crepúsculos. A vida é o caderno de anotações de um dono de bar.
O poeta *** Strinttberg quis ler uma oração, quis comer bananas,
disse que amava uma garota com a qual ia se casar, que não gosta-
va de canções romenas, que não queria morrer. Implorou piedade.

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Antes de assassinar o poeta *** Strinttberg, *** Björnson recebeu
um telefonema da namorada. Conversou suavemente e, ao final,
pediu para que ela locasse Poltergeist, disse-lhe que chegaria lo-
go e que levaria amêndoas salgadas e cerveja belga. Pron.p. da se-
gunda pessoa do sing., caso oblíquo, átono, equivalente a, entre
outras definições, pron. p.; obj. dir.; obj. ind.; compl. nom. Não há
apenas o lobo que uiva entre um brinde e outro em Contraponto.
Há muitos lobos. Há muita sede. E há ilhas de coágulos por todo
o quarteirão. Chamaríamos os derradeiros navegantes? É com o
sangue dos mortos de todos os tempos que regamos nossas flores.
Estamos distraídos e sempre perdemos o último trem. Naquele
último vagão está o nosso amor, o nosso desejo, o nosso caderno
de caligrafia, a medalha de participação nos Jogos Abertos do In-
terior, a primeira repetência, o violão de segunda mão, o asco por
buchada ou caviar, nosso primeiro orgasmo, a canção preferida
que nunca mais tocará no rádio, a primeira composição em inglês,
o que gostaríamos de ser quando crescer, o nosso remorso etc. Os
gatos de olhos vermelhos devorando meteoros sobre as coxas do
anjo mórbido que fita o anjo da reprise. Por querer e por recusa.
Foi ao ver aquele derradeiro trem partir que percebi que o milagre
é uma miragem tátil. Jamais vi o Cruzeiro do Sul. Todas as noites
era esquartejado por uma Quimera com unhas de gilete e dentes de
caco de vidro e ela também atendia por Esperança. Um piano feito
de cristal toca música-fantasma para cadáveres. É justo o poder
de um ser humano sobre outro ser humano? O grão terror da eco-
nomia, radiadores vomitando crianças mortas. Forma de intera-
ção psicológica ou psicobiológica entre pessoas, seja por afinidade
imanente, seja por formalidade social. O acaso é o ritmo íntimo
do mundo. Aqui, embriagados, sabemos que a sombra se esconde
para morrer, como os bichos doentes, e, no porão de trevas, rimos
baixinho e passeamos um no outro com os olhos rasgados como
em fuzilamentos.

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O coma de Cronos

Não sabia mais se as lâminas dos ponteiros ou os cristais de sal


do sol da excitação que riscavam as retinas. Ela, então, se des-
piu. Todo seu corpo gerava em mim um desespero de náufrago.
A passagem dos nanossegundos cavava uma sintaxe silenciosa,
uma salivação no corpo todo, um choque de alumbramentos.
Nua, deitou-se na cama – e pôs Cronos em coma. As mãos, naca-
radas conchas permitindo pérolas às íris, dois delicados e imagi-
nários palácios místicos cuja iluminação lunar, ao cruzar-lhes a
perfeita geometria, indica o caminho a seguir. Sua pele possuía
brilho, perfume e veludo meticulosamente elaborados, do mes-
mo modo com que o oceano ao canto noturno das baleias, aos
corais, cavalos-marinhos e estrelas-do-mar – ela diria, como que
afinando violinos: a natureza das coisas inesquecíveis. Pegou
minha mão e, com um mínimo arco rubro no rosto, convidou-
me ao seu peito. Ao repousar minha cabeça, imaginei o esfor-
ço que mil exércitos bárbaros, sem entender a língua helênica,
despenderiam para tê-la como única razão para fazer jorrar um
oceano inteiro de sangue. Então gauleses, bretões, eslavos, ger-
mânicos, lombardos e visigodos, não saberiam mais dizer onde
nasce o sol, nem onde haveria tantos peixes para saciar a fome da
comunidade. Famintos, morreriam devorados pela escassez de
gafanhotos, frutas silvestres e mel. E eu estava ali, cuidado por
ela, morador do instante onde cantam as flautas atrás de cortinas
azuis. Com as duas mãos, levou meu rosto junto ao dela. Eu ouvia
seu coração quando me lembrei d’O rapto de Prosérpina. Por um
instante me senti imenso e neste mesmo instante, ridículo. Outro
beijo, e nosso testamento se inscreveu em todos os nascimentos
e em todas as mortes. No derradeiro momento, guardado dentro

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de ti, uma magnólia, que apenas ao coração ouviu, rompeu com
o enigma da forma. Toda a existência guardou-se meditativa no
recesso das linhas do meu e do teu rosto.

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Instruções para compor um folk

Para Fabrício Corsaletti

Na Teodoro, me parece, nenhum momento é insignificante o bas-


tante, como queríamos crer. A qualquer instante, entre vendedo-
res de doces ou filmes pirata e algum grupo fazendo piadas com a
nova estrela do futebol paulista, encontramos aquela garota com
olhos cheios d’água carregando um pequeno vaso com flores da
Nicarágua. Então ficamos em dúvida se deixamos na secura do ar
aquela memória triste ou se a encharcamos com cerveja gelada
– naquela lanchonete que vende os salgadinhos mais vagabun-
dos da cidade, mas tem as mesas limpas e três ou quatro belas
reproduções de Rothko. Inevitável não lembrar daqueles folks
que falam dessa vida maltratada que levamos neste planeta. Ali-
ás, para retomar aquele assunto sobre a composição de um folk,
penso que, para compor um, precisamos do repouso pós-degus-
tação das inflorescências femininas do cânhamo, da Berenice das
insônias de Murilo, de rimar kiddin’ you com didn’t you. Preci-
samos de oferendas e arranjos florais. Precisamos nos imaginar
Jean-Luc Godard vendendo, em um qualquer sebo parisiense, os
livros autografados por Valéry roubados ao valerianum (a ilustre
biblioteca de seu avô). O tema é tão antigo quanto um sorriso,
homens decapitados e ervas daninhas. Tão conhecido quanto a
caganeira de Pedro i, a gagueira de George vi e a demência do
Führer. (Aliás, rimar esfíncter com Hitler daria uma boa fluidez
à composição, além de funcionar como uma poderosa alegoria).
Antes de cruzar a avenida e entrar na Oscar Freire, imagino que
as pernas nuas da mulher amada poderão dar um perfume acús-
tico à melodia. Mas, sabe que é estranho compor um folk? Há

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uma certa urgência, um desmentir, uma espécie de não-lugar
fantasmagórico. Veja só: o que terá nomeado primeiro o pri-
meiro poeta? Ao percorrer com as retinas alumbradas Vieira da
Silva, conseguiremos desadoecer a lâmina que insiste renomear
nossa jugular? Que ansiedade porta um poliedro de fogo quando
sabemos que poliedros de fogo não nos servem? E, nesta praia
de ossos, onde a inspiração? Não tendo como responder a isso,
é necessário sujar os dedos de sangue. Não se deve ter medo das
metáforas, já que a apregoada “morte da metáfora” é, por si, uma
metáfora. Se isso não for possível, talvez um sorvete de frutas ver-
melhas que, derretendo-se, escorra sua calda açucarada sobre a
mão esquerda num domingo de sol enquanto se diz à namorada
que nem os mais altos e complexos malabarismos da mente va-
lem uma violeta. Mas, para ser mais preciso, insisto, seria mais
bacana sangue. Ser duro (às vezes, cruel). Saber que a tristeza
é a primeira flor do tempo, que nela é que, queiramos ou não,
viveremos intensamente o suicídio de nossos desejos. Um a um.
Então a morte novamente dará as cartas. Isso nos dissolverá. É
muito válido, para compor um folk, uma nova reunião. E outra.
Mais outra. De versos, de beijos, de amigos, de nãos, de figuri-
nhas da Copa da Espanha. Ter a perfeita noção de que as pesso-
as a quem se destina o folk estarão interessadas exclusivamente
em situações inesquecíveis. Pois quem já tocou a pele de seda e
vidro moído da vida sabe que só o alumbramento vale o vexame
de definhar-se, dia após dia, frente às contorções de tantas datas.
Comprar certas brigas, respeitando sempre aquilo que nos eleva
a nós mesmos e que, por isso, nos leva leves aos outros. Por exem-
plo: não precisa ser pró-Cuba nem anti-Cuba para entender que
esta noite milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo etc.
Um folk, meu caro amigo, é um silêncio brutal, é um hesitar, evi-
tando relações com gente de temperamento sórdido, quando os
vermes da alta patifaria endinheirada dizem que “o que fazemos

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não presta, porque andamos com uma roupa sovada e o colari-
nho sujo”. Sim, eu sei, éramos o tipo de garoto que não costuma-
va chorar, nem mesmo sobre pesados invernos onde cai pesada,
dentro da sessão da tarde, a solidão. Creio que, para compor um
folk, não é preciso estudar numa escola rural e depois ingressar
num seminário. Não é preciso trabalhar como tipógrafo, nem ter
morado em Petrogrado. Não são necessários arranjos florais ou
oferendas, nem padrinhos ou projetos aprovados pelo ministério
da cultura. Conversar com Mársias sobre possíveis parcerias, sim
– afinal, as flautas! Não é preciso devorar a comida siciliana, mas
vale muito a pena comer as mil cortesãs de Corinto. Não é preciso
rodar as ruas e vielas do Rio, como um zumbi, trincando de bêba-
do, à caça de Luísa Porto, nem é preciso emular as extravagâncias
de William Cannastra. Lembra-se quando falei sobre o sangue?
Pois então, levemos Iessiênin para passear pela Praça da Repú-
blica: Adeus, amigo, sem mãos nem palavras etc., imagine um
poetic gore movie, imagine as curvas no rosto da garota Podolski
quando caligrafava e desenhava O país onde tudo é permitido.
Para compor um folk, turvos de amores e horrores, observando
andorinhas chocando balas de fuzil, nós, indecisos pobres ossos
de nós mesmos, na arena dessa desgraça portátil, tendo ou não
colhido tulipas negras ou dálias azuis, devemos compreender que
o horror não nos divide, o horror nos cerca. Observar a precisão
astronômica dos moai do Pacífico Sul e ter em mente que todas
as regras de construção só são válidas para os poemas que são
cópias de outros poemas. Por isso: caminhar, caminhar – saben-
do que, quando a ave sangria cantar três mil vezes, entraremos
no império do transe e do delírio, onde, diria um carbonário, o
planeta entra na órbita do coração.

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Sulfúria

Em memória de Eduardo Collen Leite

Parte I (Um inferno na temporada)

O sândalo aqui não perfuma a serra elétrica.


Facção Central

A plateia basbaque foi fazer fé na boca de um demônio com den-


tes de ouro e muito vivo. Depois de um tiro no cu, o filho da puta
corrupto ficou esperto e instruiu-se na artimanha de cagar fini-
nho para salvar a própria pelanca. E o embaixador se escondeu
debaixo da língua do crocodilo. Depois de ter perdido a derradei-
ra prata, o alquimista roto, caminhando cambaleante pela av. Rio
Branco, corta em três partes o pão que dividirá com o vira-lata
e com sua amiga morta de fome. Meu amor aumente o volume
da voz e crave aqui seus dentes, dilapidou-se. De quantas vidas
fazemos parte? – questiona o carbonário, enquanto, benzidos
pela ira, afiamos nossos machados, carregamos nossas .40, cha-
mamos os amigos e convertemos a vida escrava em vida ávida,
arrancamos a quinta roda do carro da humanidade, extinguimos
a criadagem social. Todos sabemos que o monopólio leva o tra-
balhador à merda e que, nesta vida abstrata, nesta cidade seca,
fétida, sem poemas escondidos, sem parques, sem ar, é rigoro-
samente verdadeiro afirmar que o primeiro vive dos despojos do
segundo. Ali caminham as experiências do nada nas nódoas do
nunca. Não só enterrar os mortos, mas também apagar as pega-
das. A concorrência é a guerra civil; e o monopólio é o massacre

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dos prisioneiros. Qual episódio? Escrevo do alto desta quitinete,
frente ao céu cinza, escrevo. Escrevo. Escrevo. Enquanto Eugê-
nio ama Jezebel num estábulo e estuda mentalmente seu pró-
ximo afresco e a nevasca adorna a noite com dunas. A mesma
nevasca, aliás, que o faz retornar impávido ao circo centrífugo
de sua amada. Ainda assim, com a sexy sinuca sinuada da sin-
taxe, estamos na esquina mais escura do mundo. Ainda assim,
com o estômago cheio, nada nos fará quebrar a roda viva da in-
sanidade. Ainda assim. The world is a beautiful place to be born
into if you don’t mind happiness not always being so very much
fun. Ainda assim. Formigas na boca e farofa nas mãos – farofa
nas mãos e formigas na boca. Os dias se passam muito tranquilos
– ainda que estejamos no ano de 2011 e, cheios de um desespero
high-tech, todo mundo está feliz aqui na Terra. Réplicas, ecos.
Dente por dente. A plateia continua basbaque e o extraordinário
demônio, com seu rosto de sexo ambíguo, deu o fora.

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Parte II (Infernal Overkill)

Alguns cientistas acreditam que, por ser tão abundante, o hidrogênio é o


elemento básico do universo. Discordo disso. Digo que há mais estupidez
que hidrogênio. A estupidez é o elemento básico do universo.
Frank Zappa

A praia estava a pino. O sotaque das banhistas coradas da Zona


Sul, o bronze das banhistas da Zona Sul, a carta geográfica de su-
as marquinhas de biquíni. No ônibus, duas jovens vestindo ma-
lhas (uma bege, com uma flor bordô bordada do lado esquerdo;
e outra carmim, lisa), uma, no rosto, um grande óculos escuro
com armação grossa e, as duas, duas sacolas com alfaces, cebo-
las, coentro e agriões cobrindo os panfletos contra o massacre ca-
pitalista na América Latina e, logo abaixo, livros de Marx, Lênin,
Che, Florestan. O poente sob um obus é extremo demais para
quem ajeita pequenas pedras em hortas do interior. A guerra não
é brincadeira. Isadora tinha namorada. Querida Eugênia, escute,
por favor, tente não se preocupar. Eles estão me tratando mui-
to bem por aqui. Assim que a guerra terminar, serei libertada.
Sã e salva. Garanta que a pequena Antonia pegue o selo desta
carta para juntar à sua coleção. Te amo muito. A não existência
de Antonia permitiu que Eugênia arrancasse o selo e nele lesse,
sob a estampilha comemorativa dos 50 anos da Semana de Arte
Moderna (mimo da ditadura de Garrastazu Médici à poesia bra-
sileira), a senha: Eles cortaram minhas pernas fora. Não havia
mais como sentar a Beleza nos joelhos. Apenas a amargura, essa
síntese de pêndulos, dando norte ao rosto. Quando o batalhão
do Papa chegou, a poça de sangue já criara uma película escu-
ra, onde algumas moscas se alimentavam rente ao corpo ainda

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quente da jovem de olhos verdes cujo nome estava escrito em-
baixo da morte. Jug Jug para orelhas cortadas, para olhos perfu-
rados, para queimaduras de cigarros, para humanos empalados
com cabos de vassoura. Não poderia ser possível que um agente
as descobrisse. Logo ali? Naquela rua de subúrbio, entre infelizes
famílias de operários, desempregados, poetas e escroques de to-
da sorte. Entre os esquecidos do país. Sim, logo ali, entre os blin-
dados para a felicidade. Mas logo ali? Colocava à prova sua arte
do silêncio quando, após o telefonema, o tiro, peregrino, aden-
trou-lhe a flor do peito, como um pássaro migratório ao imenso
jardim da primavera.

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Modigliana

Para Juli

Eu imaginava que todas aquelas andorinhas, nos fins de tarde,


levavam os olhos das moças da cidade para um estranho para-
íso, onde a neve era muito macia e branca, e os olhos delas to-
das sumiam-se porque fracassavam em sua missão de absorver a
própria beleza. Ao vê-la caminhar com seus passos curtos, como
a contradançar com a brisa do verão, eu sentia que em algum
lugar em mim, entre a pele que cobre minha carne e o coração
soltando sua marreta no esboço de anatomia que Leonardo nos
ensinou a usar como escopo, abria-se um campo imenso e, por
conta de uma metáfora que busquei a vida toda e que aqui ten-
ta se fazer presente, porque me é servida em um prato púrpu-
ra, nevava! Sem parar. E uns pinheiros iam aparecendo numa
margem e noutra e de uma extremidade à outra, deixando vazar
uma alameda em meu peito que descia até o abdome e parava à
altura do púbis. E é nesta alameda que você gravaria seus passos
de bailarina. Sua dança distraída, infinita afim do infinito. E an-
tes que meu corpo, sob exaltada pulsação, iniciasse a estação do
degelo, escolhi colher seus passos um a um. Buquês no bosque
onde meu coração cava um abismo em cada batida. A partir de
seu caminhar eu construí uma cosmogênese, onde no início não
havia trevas, nem hostilidade, mas um casal apaixonadamente
desvairado, bailando na cidade dos reis que tocavam tambores,
fumavam maconha e usavam gravatas floridas. Foi então, entre
epifania e susto, que percebi, entre tantos idiomas e matizes: vo-
cê só poderia ser modigliana. E que, mesmo no simples ato de
olhar para os lados ao atravessar a rua, você parecia interromper

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a movimentação de um oceano, a escritura de um verso, a que-
da da Bastilha. Que caminhando você germina todos os meses
de abril. Que de sua respiração tudo nasce. Você não era apenas
mais uma moça da cidade cujos olhos sumiram. Eu sabia de cor a
sua alma. Por isso seus olhos sempre se fizeram tão fascinantes.
Com eles eu aprendi a mais perfeita definição da palavra mágica
– que você, por acaso, havia colocado (na noite anterior) entre a
minha e a sua mão.

26
c17h19no3

Senhoras e senhores, por favor, ao adentrarem o inferno, guar-


deis vossas lágrimas no cabide à esquerda, vossos risos amare-
los no armário ao lado da banheira da Condessa Bathory. Vossos
relógios de meio milhão, vossas pontes de safena, vossos dentes
de ouro, vossos olhos de vidro, vossos anéis de brilhantes, vossos
consolos de diamante, vossos paus moles, vossas bucetas secas:
os demônios do riso se encarregarão de dar jeito. Não esqueceis
vossas senhas, sem as quais vossas ricas senhorias poderão se
foder por aqui. Vossa corrupta grana não vale merda nenhuma
neste território sagrado, portanto, nos poupeis de vossas su-
jas tentativas de suborno. Não alimenteis as gárgulas, pois elas
apenas devem ser alimentadas pelos incubus escolhidos e pelos
cordeiros de Deus. Não incomodem a paz dos caminhantes no-
turnos, nem lhes peçam o pó cósmico de suas caixinhas de rapé.
Senhoras e senhores e vossos supurentos tumores, nos poupeis
de vossos louvores. Cavalgueis o raio até o limite de Mäelstrom e
conheçais as harpias de Piva, os anjos de Rilke, as feiticeiras de
Shakespeare, a caligrafia de Artaud, a lâmina de Villon, as pesso-
as de Pessoa e os demônios de Dante. Senhoras e senhores das
bolsas de valores, lembrai-vos: são as bucetas que vertem a hi-
dromel da poesia! Anotai: todas essas lindas mandrágoras nasce-
ram da menstruação das novas deusas. Senhoras e senhores dos
podres estertores, aprendeis os versos da Nova Vida, saibam que
Dido fundou Cartago depois de um porre homérico e que Tur-
ner criou todos aqueles sóis devassos e estupendos para o deleite
dos coraçõezinhos mais bêbados do planeta. Abram alas para que
Baudelaire desfile com os dois magníficos Satãs e a Diaba de ex-
traordinárias coxas grossas de colegial cavala. Senhoras e senho-

27
res genitores de vis corruptos e estúpidos estupradores, preparais
vossos rabos para que Vlad, O Empalador, sacie sua gloriosa e
insana fissura: depois da mais plena penetração, até a goela serão
preenchidas vossas crateras com vidro moído e vômito das qui-
meras. Senhoras e senhores parasitas estupores, vos apresento
nossas meigas flores carnívoras: Lucrécia Bórgia, Lady Bathory,
Geórgia – A Carniceira, Madame Satã e Vampirella. Senhoras dos
senhores, preparem vossos ventres para a chegada dos filhos per-
feitos, louvores dos louvores: fetos de ratos farão de vosso útero
novo lar, visto que nada poderia separar a matéria fecal de sua
fétida fragrância, e já que ratos sempre parirdes deste largo cor-
po porco, por que não mais ratos de novo e de novo no orco?
Senhores das senhoras, preparem vossas hemorroidas: serão de-
volvidas para dentro pela força da pica forte do Ciclope. Agora
(ritos em riste) estamos quase quites, senhoras e senhores trastes
tumores: escutem! escutem!!: não é qualquer alguém que rege o
canto noturno das baleias! e neste canto, só de luas cheias, onde
se recusa a obviedade dos cinco sentidos (que mexem todo o xa-
drez de estrelas), só a podridão tão certa, da precisão de, quando
aberta, a pálpebra que conjuga os ébrios, os anjos e os presságios.

28
10 de abril de 1970

Ouvindo os Beatles

Parar de fumar aos quarenta. Pintar lagos com nenúfares e ba-


nhistas nuas, praticar muay thai e prestidigitação. Ler antigos
textos em aramaico aos quarenta e dois. Minha filha dormindo
na almofada azul no sofá da sala. Chovia. Um silêncio ensurdece-
dor enrugou o maço de cigarros. Quatro caminhos a seguir e ne-
nhum ânimo. O anônimo desalento sorveu de uma só vez todos
os Steinhäeger daquele minúsculo café em Praga. Todas as luzes
de repente se apagaram em Londres. Não parava de chover em
São Francisco Xavier. Em Jacarta, um ancião criava na pedra mil
braços para Buda. O vento vestia a icterícia de Budapeste. Yaou-
ndé dormia em silêncio, desvestida para o sonho. Uma jovem
caminhava, sob persianas d’água, pelas ruas de Manhattan. Ela
poderia se chamar Haydée Tamara Bunke Bider, Greta Garbo,
Maria Ângela Alvim, Heloise ou mesmo Gertrude Ederle. Tal-
vez tenha cruzado o Canal da Mancha a nado, ou mesmo tenha
sido multada por atuar na peça Sex. Ela era também uma ga-
rota linda e apenas caminhava, com seu belo mantô preto, seu
chapéu à Chanel, com um bilhete apertado entre os dedos (que
se ia desmoronando entre palavras, suor e água da chuva), jun-
to à sua angústia recente: Life is very short and there’s no time
for fussing and fighting, my friend. Após ouvir o sinal, o jovem
prodígio do mais assistido programa de variedades da Noruega
apertou o botão vermelho e, com o rosto deformado pela energia
empregada pela tensão dos músculos, emudeceu completamente.
O jovem pintor, sentado no meio-fio, observando o movimento da
Via Láctea, recordava da última notícia de jornal que lera – em

29
1969, Winston Bourne, renomado toxicologista de São Francisco,
pesquisou cinco mil cédulas de dólar provenientes de bancos dos
cinquenta estados norte-americanos, tomando mais de duzentas
cidades diferentes; apenas trinta e seis dessas notas não apresen-
tavam traços de cocaína – e chegava à conclusão de que jornais
só servem mesmo para sujar o pensamento. Ainda agora, São
Paulo parecia uma garota aos prantos procurando desesperada-
mente a cabeça de sua boneca perdida pelo quarto. A decapitação
parecia um sentimento geral. A rua foi encharcando-se cada vez
mais. Os embrulhos de hambúrgueres, as latas de cerveja vazias,
os cartazes de promoções, chicletes mascados, tudo navegava na-
quele chorume público. Uma cidade triste, onde mulheres alemãs
com meias pretas caminhavam lentamente carregando sob os bra-
ços algum exemplar da Times Magazine. Onde um cineasta que
havia feito o primeiro filme estrelado por marcianos triturava na
mente o pasmo que sentiu quando terminou a leitura de Madame
Bovary e resolveu comprar um lp na primeira loja de discos que
encontrasse e que naquele lp ele entenderia que o tempo é uma
visita rápida e cheia de gente dizendo adeus. Naquele tempo to-
do mundo tinha vinte e dois anos. E ninguém precisava esperar
o carnaval chegar. A Escócia é onde meus dedos podem tocar a
suprema simplicidade – embriagados pelas lágrimas do compo-
sitor popular sentimo-nos apenas um verso mínimo, manco, da
epopeia de nossa vida. Minha filha esfregava os olhos depois que
a última canção acabou. A noite vestia grosseiras nuvens cinza
naquele dia em que os alquimistas, cada qual por seu caminho,
voltaram definitivamente para casa.

30
Buceta mundo

Vi moças gritando nas deliciosas pequenas mortes de minha mo-


cidade. O que elas diziam eram gostosuras obscenas que eu escu-
tava e logo devolvia. Vi moças bailando sobre violetas azuis. Eu
corria os dedos e era só umidade e, levando à língua, um gosto
de mel. O idílio na boca me extasiava. Havia, naquelas noites, um
silêncio incrédulo em cada estrela. Vi outros enigmas nos botões
de rosa. Vi uma rã saltar na lagoa e pude ouvir o inventabrisa
rumor de água. Essa rã de mim nada levava, além de um segundo
de minha eternidade. Na mais completa harmonia, concluí que
eram aqueles sorrisos que faziam todo o azul fazer sentido. Vi as
carnes macias das moças tornarem-se fúria e fúcsia. Vi saias fan-
tásticas e pernas tão belas que, sozinhas, poderiam acender todas
as manhãs daquela temporada. Guardei seu terceiro coração. Foi
assim que comprei a solidariedade do crepúsculo: com oito mo-
edas de chuva. O mundo, gigante belo de tristeza e alegria, que
somente aos nossos olhos faz sentido, continua a existir. E que
exista! Exista! A cada dia mais, exista! Buceta, mundo, buceta,
mundo. Agora, depois de curtir as palavras em flores furtaluz,
deixo-as voar pela tarde onde invisíveis papiros pousam nos ga-
lhos da figueira do outro lado do rio, e, junto aos frutos, deixam
um imenso rastro de perfume. O caminho que conduz à sabedo-
ria não é aquele que leva às barricadas. Há muitas parábolas a
traduzir e laranjas no pomar. Por isso, do alto grito dessa procis-
são de marteladas dentro do peito, à caça que estou do seu mais
secreto coração, desintegro-me, explodo, acabo.

31
Santa Cecília by Night

É quando as sombras escrevem seu manifesto dos dias terríveis.


A lágrima como sistema. O corpo, absorto e extasiado, perscruta
sua própria matéria de cinza e pós-guerra, de fala surda e pos-
sibilidade de telefonema de última hora. Somente porque em
algum momento desta manhã desapontada alguém se lembrará
dos imensos sinais nas plantações de trigo do sul da Inglaterra
e dos zumbis bombardeados de crack do centro da cidade entre
pombas que comem restos de hambúrgueres e bebem viscosas
cusparadas. Passamos a outro caso, a destruição como sinal de
vida. Na fotografia do russo radicado há décadas em São Pau-
lo, observamos tripas claustrofóbicas. O ferido que a hostil gle-
ba atra escarva. Como uma arraia que aparta dois mundos (tal
qual um piano de calda) ao cruzar as lâminas de sol que rasgam
o sinfônico azul dos oceanos. O último solilóquio dos suicidas. A
realidade é apenas o rastro do rato no sótão. Pressupor dádivas
maduras caídas do céu estrelado é crer que a noite, com seus coi-
ces, cheire a flor.

32
Fellini feiticeiro

Quando nos negou a todos por três inúmeras vezes, Pedro jamais
imaginara que Roberto escreveria: “Inferno, Purgatório e Paraíso
são uma coisa só. Mastigue cogumelos e Veja”. Quando os inte-
lectuais, com as devidas migalhas de pão na lapela, resolveram,
cientificamente, todos os problemas do mundo e depois foram la-
var os banheiros e engraxar os sapatos dos excelentíssimos sena-
dores e deputados eleitos, não contavam que Eduardo chegaria
dizendo: “Aplaudam nosso Houdini no picadeiro / Serrando em
duas partes o corpo do banqueiro”. Quase uma ilusão, quase um
filme, uns oito tubos de cocaína e do pó do chão à baba. Na pausa
para os comerciais, entre o banco que furta humanitariamente e
dois cânceres com alface, queijo, cebola, picles, molho especial
num pão com gergelim, Cortez declarava que “antes que os na-
vios pudessem se juntar, queimei dezesseis povoados, prendi e
levei para o acampamento quatrocentas pessoas, entre homens
e mulheres, sem que me tivessem feito qualquer mal”. Pensando
nisso, fuzilar o lirismo é fundamental. É com sangue do planeta
que a ampulheta vai anotar o tempo, como um lince dilaceran-
do os próprios olhos, num estranho lance de lâminas. Enquan-
to Gentileza limpava o suor do rosto de Lázaro, perdido de seu
pandeiro e recém-aceito no circo dos horrores, Batista mandava
entregar, para fora do bunker, um pedaço de salmão com molho
de mostarda, mel, alcaparras e vidro moído para matar a fome
do arlequim.

33
Lápis-lilliput blues

Para Letícia Ferro

Era natal em Herisau e nevava. Há um corpo na rua Aurora. Um


cão dormindo à sombra do edifício Andrauss. O corpo é mais sua
sílaba que sua prática. Sob a copa das árvores, sobre o limo dos
blocos, sobre os riscos das unhas dos desesperados no limo dos
blocos – suas polaroides doloridas. O gélido gelo gelado o derra-
deiro colchão. O sangue já apodrecendo dentro da carne ainda
opera linguagem. A guerra, que havia acabado há mais de uma
década, jamais acabaria. A aflição de faias e o corpo do poeta em
sua última senda. Os sinos esticando nos tímpanos o silêncio con-
sentido da geração que pulverizou seus poetas. Poderia, talvez,
ter acabado de comer um hambúrguer no Bob’s. Deve ter tomado
água torneiral numa jarra azul de acrílico. As crianças enquanto
buscavam olhos, bocas, orelhas para seus bonecos de neve en-
contraram o homem que se escondeu da vida. Seria a morte um
imaginário passeio de gôndola através de uma gélida linguagem?
O afago de um sarcófago e seu já extinto arco de histórias? Pa-
rece que estava de cueca – uma cueca vermelha, de grife cara,
um cueiro de elite. Um dos personagens de Tolkien se recusava a
aprender cores e isso causava imensos transtornos para as estra-
tégias de defesa. Tolkien, sabe-se lá por que diabos, recusou-se a
escrever esse fato em sua obra. O Instituto Benjamenta publicou,
em seu boletim anual, o que os irmãos Simon, Klaus, Hedwig e
Kaspar escreveram sobre a morte de Robert Walser. Estava lá, à
página 7: “Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio
de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avi-
sar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto,

34
as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves
nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem
ouvido nem sensações.” O cinema pornô estava vazio, apenas o
leão-de-chácara, curioso, observava o pobre sebastião de cuecas,
ali, rodeado por zumbis, enquanto o farol avermelhava a manhã
amarela. Pode ser que tenha passado pela sua mente dizer a seu
amor que o calor das noites de verão os obrigaria a manter aber-
tas as janelas do quarto, apesar dos insetos noturnos. Por conta
de tal recusa, dizem que Kafka riu – de gargalhar! Riu um riso de
todos como se fosse seu. Era singularmente delicada a palavra
que jamais se formou naquela garganta. Coração à parte, todos
choravam naquela noite. E cada lágrima era um fragmento de
um espelho daquelas todas imagens que nos escaparam entre
dedos, dentes e medos. Se Susan Sontag morasse em São Paulo,
escreveria um ensaio contra o bolor (e a podridão) à memória
daquele morto. Aquele que certamente dera de comer aos uru-
bus e que, ouvindo Paul Celan regendo a orquestra do inferno,
certamente escrevera em seu diário: “Minha mãe, que não tive,
me dava conselhos; meu pai, que nunca vi, corria atrás de mim.
Depois, todos na minha rua corriam atrás de mim. E de tanto
correr parei aqui para descansar.” No continente flutuante de sua caligrafia, no castelo
da Silésia, poderia dizer que corvos lhes bicam as unhas como um ciclone desaparece no peito, atrás de uma

veia, perdido num músculo ou num minúsculo curto-circuito inexorável. Escrever num quarto
de pensão, demitido da vida por justa causa. A massa branca da
barata como única hóstia. Busca. Jamais soubera de Tchetchelnik
e seus mil pogrom – e o exílio de Clarice. No cômodo dos fundos,
havia alguns filmes pirata – filmes policiais com roteiros assusta-
doramente simples. Se ordem, por paradoxo, chama Hölderlin, o
quartinho de fundos guarda a memória daquilo que algumas pes-
soas chamam de solidariedade – como não lembrar do carpin-
teiro Zimmer? Como não pensar, nesta manhã úmbria em São
Paulo, sobre aquela noite suíça iluminada pela lâmpada fraca da

35
lua – onde, no palco principal, perdas escritas por sombras. Lá
e aqui, nos avessos intranquilos, magnólias florescem em nossa
extinção.

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Há uma literatura

Para Roberto Bolaño

Há uma literatura para cadernos de caligrafia


Há uma literatura para Messias enforcados
Há uma literatura para devoradores de tarântulas fritas com fa-
rofa temperada
Há uma literatura para escovas de dente verdes com borrachi-
nhas macias para não machucar os dentes
Há uma literatura para padres pedófilos que usam perucas acaju
Há uma literatura para jogadores de futebol pretos que se acham
brancos
Há uma literatura para atrizes de gang bang
Há uma literatura para comunistas de Higienópolis
Há uma literatura para patos de borracha que gostam de ler em
banheiras de ouro com sais de banho misturados com cocaína
Há uma literatura para serial killers
Há uma literatura para personagens de Samuel Beckett
Há uma literatura para viciados em crack, viciados em catupiry
e viciados na bunda de Sasha Grey
Há uma literatura para coprófagos, misóginos e simbióticos
Há uma literatura para polvos que ficam no fundo do mar reco-
lhendo pedras brilhantes para construir jardins subaquáticos
Há uma literatura para fãs do Chaves, dos x-Men e do Klaus Barbie
Há uma literatura para mulheres com buço fino
Há uma literatura para mulheres com buço grosso
Há uma literatura para bonecas de silicone ruivas importadas do
Japão que já vêm com calcinhas sabor tequila
Há uma literatura para limpadores de cu de lutadores de sumô

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Há uma literatura para esqueletos do naufrágio do galeão por-
tuguês Santíssimo Sacramento que descansam no fundo do rio
Vermelho, em Salvador
Há uma literatura para boqueteiras desvairadas engolidoras de porra
Há uma literatura para leitores do semanário nazi
Há uma literatura para pastores evangélicos fascistas que não
concordam com Mussolini
Há uma literatura para pastores evangélicos neoliberais que con-
cordam com Mussolini
Há uma literatura para estupradores, senadores da república e
humoristas stand up
Há uma literatura para judeus videntes que trabalham na Boves-
pa para não morrer de tédio
Há uma literatura para alienígenas tradutores de literatura chi-
nesa da dinastia Yuan
Há uma literatura para eruditos que usam cueca fio dental
Há uma literatura para palhaços falidos que pedem carona na
Via Dutra
Há uma literatura para garotos da zona sul que gostam de jogar
caranguejos da pedra do Arpoador nos finais de tarde
Há uma literatura para filhos da puta comedores de carniça
Há uma literatura para meninas peitudas que gostam de sorvete
de chiclete
Há uma literatura para morsas, homens-ovo, escritores que implo-
ram para que editores aceitem seus livros, submarinos amarelos,
médicos que vendem anfetaminas e são amigos de Thelonious Monk
e Charlie Parker, para garotinhas que habitam o céu com diamantes
Há uma literatura para quem toca na banda dos Corações Solitá-
rios, para quem já se embriagou no Riviera, para quem caminha só
pela praça do Ipiranguinha e lembra onde ficava o rosto do índio
Há uma literatura para bêbados, charros, lustras, lúmpens, es-
croques, punguistas, gualpécas e vira-latas encardidos

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Há uma literatura para quem cultiva orquídeas e canta baixinho
velhas canções do Van Morrison para poder ouvir o silêncio chorar
Há uma literatura para quem coleciona velhas revistas de heavy metal
Há uma literatura para mestres sorveteiros que procuram a al-
mejada receita do sabor amor
Há uma literatura para cafetões que leem Camões para suas putas
mais sentimentais e crupiês que batem na mãe por causa de mistura
Há uma literatura para poetas imbecis – principalmente os que
têm medo de peidar nos jantares de Goethe, nos piqueniques de
Rilke e nas missas de Eliot
Há uma literatura para quem pinta as unhas de verde-gretchen,
come salada de caroço de chuchu e decora os conselhos literários
da Ana Maria Braga
Há uma literatura para cristãos que leem a bíblia de manhã, en-
quanto a mulher troca o absorvente no banheiro, à tarde, enquan-
to o irmão se contorce pra expulsar o cabrunco, à noite, enquanto
estupra o filho de 3 anos
Há uma literatura para novos e velhos nazistas, fãs de show de
calouros, para as sete faces do Dr. Lau
Há uma literatura para agentes do fbi, da cia e do mib
Há uma literatura para jogadores de bocha, para caçadores de
elefantes, para pintores de rodapé, para apreciadores de bandas
de rock brasileiras que querem ser bandas de rock inglesas que
imitam bandas de rock americanas
Há uma literatura para gargalhadas herméticas e tubarões voadores
Há uma literatura para índios Araweté, para comedores de perfume
Há uma literatura para caçadores de elefantes, para evangélicos
do partido comunista, para estupradores do conselho tutelar
Há uma literatura para melhorar o humor de Bob Dylan
Há uma literatura para sapos reais em jardins imaginários
Há uma literatura para zumbis deprimidos por não terem sido
aprovados em nenhum dos longas de George Romero

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Há uma literatura para os dedos caídos dos zumbis deprimi-
dos por não terem sido aprovados em nenhum dos longas de
George Romero
Há uma literatura para asfaltar a sombra e para acompanhar
drinques de óleo diesel com guaraná
Há uma literatura para piromaníacos que se deliciam ao tocar
fogo em Roma, no Palácio do Reichstag e nas favelas da cidade
Há uma literatura para Godot, Raskólnikov, Julien Sorel, Corin-
ga, Coronel Antonio Bento e Gabriela
Há uma literatura para Baudelaire dentro da Matrix
Há uma literatura para Baudelaire fora da Matrix
Há uma literatura para lutadores de muay thai fascinados por
Seinfeld, para kastrúnferas, quervídrolas, terrábiles e urtêmbrolas
Há uma literatura para sósias de Gil Grissom, cartunistas esqui-
zofrênicos falidos do sul do Pacífico e imitadores do Gil Gomes
Há uma literatura para Gene Simmons ler antes de comer a pró-
xima groupie
Há uma literatura para nerds do Vale do Silício e torturadores do
vale do silêncio
Há uma literatura para tradutores, revisores e preparadores de texto
Há uma literatura para que cada um, em sua Troia particular, se
sinta um gênio da interpretação
Há uma literatura para crocodilos homossexuais, garotas que so-
nham em ser trapezistas e para quem caga pelado
Há uma literatura para quem é fissurado por almôndegas
Há uma literatura para quem tem artrite, artrose, arteriosclerose
e osteoporose
Há uma literatura para compor coquetéis molotov
Há uma literatura para a total falta de literatura
Há uma literatura para quem ama literatura
Há uma literatura para quem odeia literatura
Há uma literatura para quem

40
Há uma literatura para
Há uma literatura
Há uma

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Perda (língua)

A boca saliva alívio e, viva, a sílaba dá início à livra do cicio a boca


abre a língua que não derrapa e depara em lenga-lenga bota o mar-
co zero do lero-lero bifurca o caminho que estira a lira e bole a bile
suga cega a saga e segue descosturando culturas dando tilt em kilt
arremesso de maços cigarros em pizzas de alienígenas em passos
passa a língua cruza anticrista a casca grossa da fossa o gerânio o
arsênio os domínios dos demônios os anjos marmanjos as tulipas
rezando evitar pântanos nos tímpanos e estrias nas estrelas.

42
A mesa

A mesa está aqui, quatro patas e um retângulo – de forte madei-


ra. São quase duas da tarde e tenho uma consulta médica. Mas a
mesa está aqui, e sobre ela uma toalha de crochê feita na Bahia.
Há flores e um suave verde, com o saleiro e o pote de amêndoas.
A mesa é esta, redonda e dobrável. Não mais aquela – retangular.
O que quero com a mesa é a memória. Não quero escrever sobre
a linguagem – não há mais o menor interesse nisso. Mas há a
memória. E, o mais importante, a mesa. Acendo outro cigarro
tentando acalmar a fissura. Descanso os cotovelos na távola –
escrevo no ar o nome do meu prato preferido e lembro de alguns
trechos de Ponge (pois se é da mesa que falo e a chamo de távola
e meus cotovelos descansam em sua superfície difícil). Escavo
a memória antiga e, sus!, Marilyn Monroe foi fodida nesta me-
sa pelo presidente da república dos Estados Unidos da América.
Para alcançar a festa matinal, lembremos do leite, do leite para
o branco, daí para o ar, de ar para umidade, daí para o outono.
Eu gostava de comê-la pela manhã, antes do café da manhã. É
imprescindível que não se confundam as mesas. É esta, aqui. Não
aquela outra (redonda e dobrável), nem a primeira (retângulo de
forte madeira). Mas todas têm quatro patas. A não ser esta, que
tem duas em l. A não ser aquela outra, com o rapé Imburana, o
pen drive, os lápis, as canetas, a agenda telefônica, a impressora,
a tela, o teclado e as Ficções de Jorge Luís Borges. Eu adorava
comê-la pela manhã, em cima dessa mesa, o pau entrando e sain-
do lentamente de sua bucetinha. Todas elas são amigas fiéis, mas
para tanto deve-se ir até elas, pois não se deslocam sozinhas – as
mesas não são gafanhotos, mas podem se parecer com um. Nesta
mesa há um lugar. Qual o lugar de enunciação desta mesa? A

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mesa está entre o corpo e a palavra. Há, portanto, uma relação
simbólica. Na moldura, esta mesa é uma imitação da mesa mate-
rial que por sua vez é a imitação da ideia de mesa – a obra do es-
pírito só existe como ato, diria Valéry. Há articulações tensas de
uma a outra; o outro do outro. A mesa comunica e é preciso estar
atento. Se o trovão é uma pessoa, então tudo comunica. Por isso
esta mesa: porque a partir dela podemos ter a noção de que a úni-
ca coisa que importa no mundo é o mundo. E quando estou es-
crevendo um poema sobre a mesa, em verdade estou escrevendo
um poema sobre o mundo. Por isso também sempre curti muito
comê-la pelas manhãs, sobre esta mesa, porque ali, enquanto a
comia, eu também estava escrevendo um poema sobre o mun-
do. Um poema é um poema e a mesa tem alucinações. O mundo
também tem alucinações – e, às vezes, seu grito desesperado só
consegue dormir sob a mesa. Existe uma terra fantástica quan-
do a mesa é cruzada por uma formiga que carrega um cristal de
açúcar. Um minuto, agora tenho que sair. Mas a mesa continua
aqui, a seu dispor. O sol e o asfalto sujo também. Retomando,
enquanto não anoitece. Nesta mesa, foi autopsiado o corpo de
Tânia, quer dizer de Haydée Tamara Bunke Bider. Nesta mesma
mesa, enquanto o corpo de Tânia, quer dizer de Haydée Tamara
Bunke Bider, descansava da vida, soube que ela foi assassinada
pelo exército fascista boliviano em Vado Del Yeso e seu corpo foi
encontrado boiando no Rio Grande, perto de Macicuri. Na mesa
há incensos e uma caixa de joias com duas pequenas hds. Um
lembrete: terminar as traduções de Yépez, Prado, Rexroth, Jodo-
rowski e Huidobro. Adormeci e sonhei que havia dois arbustos
e neles dois abutres e havia dois frutos, mas eram de um metal
pastoso, que pulsava e emitia um som estranho, como se dois
caminhões batessem de frente numa autoestrada à noite. Um
abutre ouvia o outro abutre que falava na linguagem dos abutres.
Falavam da fome na linguagem dos abutres. Os abutres estavam

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só a carcaça. No meio do sonho, meu dente começou a latejar
e apareceu a página 24 do Um atrapalho no trabalho, livro de
John Lennon, em tradução de Paulo Leminski, onde uma mada-
me gorducha, de vestido vermelho, segurando uma sombrinha
xadrez, olha-me nos olhos e diz: Também tenho um dente desses
que doem para diabo. Eu acordei da dor de dente e dei de cara
com dois arbustos onde havia dois abutres e dois frutos que eram
de um metal pastoso e pulsavam emitindo um som estranho, co-
mo se dois caminhões batessem de frente numa autoestrada de
madrugada. Quando acordei, estava com a cara colada à mesa,
completamente suado e era noite alta. Não soube mais dos dois
arbustos, nem dos dois abutres ou dos dois frutos. Voltei minha
atenção à mesa e li, não lembro em qual livro, que tudo acontece
ao redor da mesa. Sei que era uma mesa de futebol de botão, com
uma linha grossa verde-claro seguida de outra, verde-escuro. E
lembrei da mesa de pebolim do bar do meu pai. Os dois times
(vermelho e azul) e a agilidade e a força bruta para marcar gols.
Mas na mesa de pebolim não seria possível ler os niilistas sa-
tyasiddhi – para quem nem meus olhos sobre a prosódia, nem
meus cotovelos sobre a mesa, nem a mesa, nem os dharmas são
reais. Comê-la pela manhã, sobre a mesa, era minha poética.
A mesa conjuga o slogan dos grevistas da Lip: produzir outra
coisa, de outra maneira. Uma canção de Neil Diamond escorre
sobre a mesa. Eu amava comê-la sobre a mesa pela manhã. A
mesa é múltipla. A mesa do brócolis, arroz, feijão, salada de bata-
tas, água Caxambu, ternura e paz. A mesa onde se encontra uma
página solta de um dicionário perdido onde o vocábulo artista
vem com as seguintes acepções: 1. Todos farsantes; 2. rasurado;
3. Mulher artista só pode ser devassa. Falta uma lasca de fór-
mica no canto esquerdo da mesa. A mesa do bar, do petisco, de
quem faz um pentagrama com o número 4. Nesta mesa, quando
estava na quarta série, escrevi com um estilete a expressão meia

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pataca. A página do dicionário era de um livro de Flaubert. Na
mesa de estudos, lê-se, cingida a estilete, moriens tua mors ero –
que ecoa certamente Lutero (rima-fantasmagórica) e quer dizer:
morto, serei tua morte. Na mesa de jogos (que é outra, diferen-
te de todas as outras anteriores), temos dois dados e um acaso
enorme para resolver. Nesta mesa não se fala de poesia. Colinas
espantadas não existem sobre a mesa. Penso que se construísse
uma mesa holográfica não poderia observar o inverno guardando
o sol de mais um dia no interior espesso de sua enorme teoria do
frio. Falo da mesa como se falasse que não há outro mundo possí-
vel. Sentados, de um lado, eu, de outro, você, e sobre a mesa, suco
de laranja e as guloseimas da eternidade. Um radinho de pilha,
calado, imóvel. A mesa é a arena de Molière. Penso no gozo, no
silêncio da floresta sem esta mesa. Falamos de boca cheia, xin-
gamo-nos mutuamente. A mesa está posta – com pratos e talhe-
res emprestados, mas limpos. A coisa que eu mais amava na vida
era estar com ela, pela manhã, ao redor desta mesa.

46
Autobiografia

Meu nome é Fabiano Calixto. Nasci em Odessa, na Ucrânia. Te-


nho 51 anos. Criei três filhos legítimos – o primogênito está preso
no Canadá, o segundo é tradutor de poetas renascentistas italia-
nos, e a última é puta em Milão. Casei sete vezes – com sete mu-
lheres que nasceram no mês de julho. Criei outros quatro filhos
adotados – um é pedagogo em Brasília, outro foi pra Guadalajara
trabalhar com compra e venda de automóveis, a terceira é pu-
blisher de uma das maiores editoras espanholas e cocainômana
convicta, o mais jovem ninguém mais neste mundo teve nenhu-
ma notícia. Depois de me criar na cidade do Recife (para onde fui
com um ano e sete meses), morei no Rio de Janeiro. Passei por
Belém do Pará, Passo Fundo, Cabrobó, Vargem Grande do Sul,
Milho Verde e São Paulo. Publiquei um romance experimental
chamado Ted Bundy nos infernos bebendo coca-cáustica e uma
coletânea de poemas que intitulei Falas perdidas de São Mateus.
Na área de crítica, publiquei em livro um longo ensaio chamado
“This is the Zodiac Speaking”: Into the Mind of a Serial Killer.
Fiz mestrado e doutorado no Departamento de Ciências Sociais
Aplicadas da Faculdade de Educação da unicamp. Vivi por dez
anos no sul de Nevada, Las Vegas. Numa temporada na Etiópia,
após tostar ópio, comer brotos de bambu temperados com co-
nhaque e ouvir In the Court of Crimson King sem pausa durante
dois dias seguidos, entrei num transe em que, por semanas, an-
dei pelas ruas de Adis Abeba (a nova flor) em companhia dos
poetas Liev Gumilióv e Arthur Rimbaud, que me perguntavam, a
cada dez segundos, quem diabos era Allen Ginsberg e o que os
nazistas estavam fazendo com a América Latina. Na infância me
interessei por filosofia da matemática, astronomia e biografias de

47
presidentes africanos. Trabalhei como repórter policial em Sa-
cramento, na Califórnia, pedreiro em Santiago do Chile e fumei
maconha jamaicana antes de participar de um ciclo de leituras de
poesia vodu no Haiti. Numa noite de 1992, eu e o poeta Evandro
Siqueira fomos encarcerados, na cidade de Santo André, após
trocar socos e cadeiradas por conta de uma discussão sobre A
sociedade do espetáculo de Guy Debord. Uma vez visitei a Escue-
la Superior de Mecánica de la Armada (esma), o grande cemitério
de dissidentes políticos localizado ironicamente à esquina da
Avenida del Libertador, em Buenos Aires – calcula-se que lá fo-
ram brutalmente torturadas e mortas mais de cinco mil pessoas.
Voltei a Odessa (por uma única derradeira vez) por conta da lei-
tura dos maravilhosos contos de Isaac Babel, que li em edição
inglesa. Sob a inspiração desses contos, escrevi e publiquei um
livro de cartas ficcionais cujo remetente era Possidônio Cezimbra
Machado e a destinatária, Inge Genefke. O livro se chama Ne-
nhuma vítima especula o paraíso – com esse trabalho obtive o
Prémio Camões de 2014. Antes disso, em 2011, publiquei uma
plaquete de poemas intitulada Vagabundo, com apenas sete po-
emas e 77 exemplares – que hoje são raridades bibliográficas e no
site britânico de livros raros The Book of the Century o seu valor
alcança mais de 5 mil euros, são apenas sete exemplares disponí-
veis no site: 1) o mais caro, por 5.379 euros, está autografado ao
poeta e roteirista Jorge de Barros (o caríssimo George of the Jun-
gle), que esqueceu o livro no balcão do pub The Old Bell, por
onde bebeu quando esteve em Londres em 2013; 2) autografado
para Bono Vox; 3) autografado para Mariano Marovatto; 4) auto-
grafado para Gregorio Duvivier; 5) com um autógrafo falso meu
(escrito num charmosíssimo espanhês por Enrique Vila-Matas)
para Diego Armando Maradona; 6) autografado para a “inesque-
cível Paula” (de Lovelock, Nevada); e, 7) sem autógrafo. Publi-
quei, ainda, um segundo (e último) livro de poemas, intitulado

48
Sanguínea (2017), cujos últimos e raríssimos exemplares foram
queimados por Guy Montag no romance Fahrenheit 451, de Ray
Bradbury. Tive um desmaio em 1988. Aprendi russo em 1991 e
esqueci o latim no mesmo ano. Vendi meu Ferrorama xp-500 em
2002. Escrevi prefácios aos seguintes livros: El estupor del suici-
dio (1980), de Eduardo Tijeras; Essays on Roman Satire (1982),
de William Anderson; Hegel, a razão quase enlouquecida (1990),
de Leandro Konder; lætitia,sp (2011), de Gabriel Pedrosa; a uma
edição de 2012 de Íslands Minni, de Bjarni Thorarensen; Com-
plete Works of Alan Moore (2014), de Alan Moore; a um box
(com livro, cd e dvd) chamado L’Homme de merde (2017), de
Christophe Tarkos; A nyugati gondolat kalvária-ja (2022), do
filósofo húngaro László Csongrádi; 世界のすべての血液 (2025), de
Minami Eri Ogasawara; Riflessioni sul male umano: la Terza
Guerra Mondiale e il suo teatro di sangue (2036), de Giulliana
Dossena; Dialogue sur la violence: la catastrophe de la Troisiè-
me Guerre Mondiale (2037), de Camille Ludvine Bossis; The
End of Life: an Essay on the Consequences of World War iii

(2037), de Phillip A. Reedway; e Después de todos los muertos:


un análisis de la destrucción de la Tercera Guerra Mundial en
América Latina (2038), de Marina Arizaga Leguía. Em 2018, fiz
uma adaptação para hq da canção “Orgasmatron”, de Lemmy
Kilmister, com desenhos de Diego Sazzo. Considero a mais bela
obra de meu sacro lavoro. O título da graphic novel era: Orgas-
matron – Dois mil anos de tortura e miséria em meu nome. Fiz
um curso sobre a fenomenologia da orelha em Santo Stefano Bel-
bo, e lá conheci um bancário fanático pela James Gang que era
sobrinho do tio de um avô do amigo de infância de Cesare Pave-
se. Minha livre-docência, apresentada na Universidade de
Portland, intitulou-se Horror as an Outlaw Genre: a Dialectical
Reading of Stephen King’s Work, sobre, claro, o mestre do sus-
pense da prosa norte-americana – que assistiu à arguição e com

49
quem, depois, fui beber cerveja vermelha, comer coração assado
recheado com pimenta, fatias de fígado fritas à milanesa e salsi-
chas de Viena e destilar uma prosa sobre moda africana, poesia
marginal francesa, Adam Worth, Johnny Weissmuller, Piotr
Kropotkin, Tobe Hooper, Xavier de Maistre, Joseph McCarthy e
seu fantasminha camarada (red scare), John e Bruce Wayne,
Madame Blavatsky, um outro Wayne (o Gacy), Sousândrade e a
crescente dementia que assola a cabeça do planeta. Vendi minha
coleção de selos ao baixista Roberto Barranova. Passei uma longa
tarde em Amsterdã, em companhia de Natalia Ginzburg (que
acabara de lançar Vitta Immaginaria, 1974), onde tomamos ca-
fé, degustamos muitos pedaços de space cake e conversamos so-
bre a Revolução dos Cravos, sobre o patrocínio da cia ao massacre
de milhares e milhares de sul-americanos vítimas das ditaduras
no continente (que puxou a máxima do poeta Juvenal sobre quis
custodiet ipsos custodes, que puxou assunto sobre outros poetas
latinos, como Gracio Falisco, Marcial, Lævius, Celio Sinfosio e
Ovídio), e, quando a noite ponteava suas primeiras estrelas no
céu da Holanda, falamos sobre o livro Le Pain et le cirque – So-
ciologie historique d’un pluralisme politique (1976), de Paul
Veyne – que anos mais tarde escreveria um belo livro sobre a
erótica romana: L’Élegie érotique romaine – L’amour, la poésie
e l’occident (1983). Sempre fui uma espécie de vagabundo trans-
cendental, à parte isso, conheci muitas pessoas espetaculares. Vi,
num início de noite de verão, Charles Bukowski, bêbado e falan-
do sozinho, no canto de um bar sujo de Los Angeles, fui conver-
sar e disse-lhe que gostava de sua prosa e de seus poemas, no que
ele respondeu: – O que quer que eu lhe diga? Que estou impres-
sionado? Numa festa na casa de uma amiga italiana, conheci Mi-
ckey Rourke que só falava de bucetas, cocaína e futebol americano.
Vi John Forbes Nash Jr. uma vez no Aeroporto Internacional
John F. Kennedy (ny) e ele me disse que havia um gnomo lendo

50
Niels Bohr e balançando as botas em minha lapela. Patrícia ba-
lançou a cabeça e riu. Numa violenta crise de abstinência, onde
passei seis meses no Alasca, escrevendo um longo poema épico
que jamais chegaria a publicar e lendo toda a tragédia grega no
original, cheguei à conclusão de que somente através do anar-
quismo a vida se tornaria possível. Outra feita, almocei com meu
grande amigo João Alexandre Barbosa, ocasião em que falamos
muito sobre Herman Melville, João Cabral de Melo Neto e os po-
etas russos do século xx. Inspirado nesse encontro, escrevi um
artigo sobre Dmitri Mendeleiev, tratando de sua versão da tabela
periódica dos elementos químicos e a ligação com a Revolução de
Outubro. Na área da música, compus, em parceria com o poeta
Marcelo Montenegro, uma sinfonia dodecafônica chamada Fu-
mando maconha na grande área, onde os instrumentos eram
bafo de pastel de queijo de feira, sons dos toques da chuteira de
Mané Garrincha extraídos dos vídeos do Canal 100, samples de
falas aleatórias extraídas de Deep Throat (clássico de Gerard Da-
miano, de 1972), guitarras afinadas em oitavas de doze meios-
tons, tamboriladas em caixa de fósforos e mesas de bar e colagens
das leituras de poesia de Ezra Pound na Itália. A letra era baseada
num bizarro gol de José de Assis Aragão num Santos x Palmeiras
de 1983. Bob Schneider gravou a parte em inglês da letra – que
depois seria sobreposta à parte em português na mixagem final.
Muitas turbulências e atritos com os mitos da vida. Fui acusado
pelo incêndio da biblioteca Florestan Fernandes e pela série de
assassinatos de pós-graduandos em Letras da Universidade de
São Paulo na década de 2010. Mas não houve provas que me in-
criminassem – afinal, não tive nada a ver com o episódio. Por
conta desses assassinatos em série no campus da universidade e
pelo erro da investigação (apontando meu nome entre os suspei-
tos apenas por eu ser um estudioso de criminalística), obtive
enorme popularidade. Chegaram a atribuir a mim a célebre frase

51
de Henri Blot (“Todo homem tem seu próprio gosto. O meu é
cadáveres.”), mas é claro e factual que essa frase jamais sairia de
minha boca, afinal, nunca dei aulas no Departamento de Teoria
Literária, apesar da insistência da comunidade acadêmica. No
bojo dessa popularidade de sangue, resolvi escrever minha única
peça de teatro: A bile e a serra (2006) – sobre a vida de um ira-
cundo serial killer russo (Blokhin), que matava criancinhas com
foice e martelo, depois as cozinhava usando as dicas da renoma-
da romancista brasileira Ana Maria Braga (cujo último romance,
cheio de receitas e estilística, havia acabado de sair na França – o
serial killer russo lia francês). Nesta peça apliquei todos os meus
conhecimentos de criminalística e de estética. E foi um estrondo-
so sucesso de público e crítica. A peça foi traduzida para mais de
trinta línguas e, em 2009, o diretor norte-americano Quentin Ta-
rantino adaptou a peça para o cinema com o título Blood and
Rhyme (no Brasil: O diabo vermelho) – no papel do assassino
Blokhin foi escalado o ator e diretor norte-americano Sean Penn,
fato que muito me honrou. Traduzi muito, uma vez uma vez uma
vez era uma vez. Dentre minhas traduções, destacam-se a versão
italiana que fiz para o “Prefácio interessantíssimo” de Mário de
Andrade – que serviu de texto-base para um famoso ensaio sobre
a obra do modernista paulista; também se destaca uma versão
búlgara para O púcaro búlgaro, de Campos de Carvalho; uma
versão espanhola para poemas de Orlando Parolini, e uma versão
em inglês para Fluxo-Floema de Hilda Hilst. Para o português,
verti trabalhos de Laurie Veidt, Kenneth Rexroth, Minna Canth,
George Andrew Romero, Heriberto Yépez, Pietro Aretino, Ovidiu
Dumitresco, Roy Thomas, Dan Kovacs, Daniel Defoe, Leonardo
Padura Fuentes, Teruyoshi Nakanishi, Dashiel Hammet, Robert
Graysmith, Paul Nyilasi, Helmut Patzke, Yasunari Kawabata,
Jorge Luis Borges, Phillip Phantom Lord, Heinrich Heine, Fer-
nando Fallada Redondo, Bela Kiss, Timothy Mofolorunso Aluko,

52
Michel Foucault, Aleister Crowley, William Blake, Alejandro
González Iñárritu, Neil Gaiman, Luis de Góngora y Argote, Paul
Thomas Anderson, São João, Jonathan Dreiberg, Gayatri Chakra-
vorty Spivak, Accius, F. W. Murnau, Konstantínos Kaváfis, Den-
nis Lehane, Pablo Neruda, entre muitos outros. Passei uma
temporada em São Tomé das Letras e lá escrevi meu derradeiro
trabalho, um ensaio de 84 páginas sobre o livro de Claudio Mar-
tyniuk, chamado esma – Fenomenología de la desaparición
(2005), publicado na edição de agosto de 2060 da revista Notre
Dame Philosophical Reviews. Depois mudei-me definitivamente
para Lisboa. Lá, além de caminhar pelas ruas com a poeta Júlia
Hansen, aprendi mais sobre o perfume do mar, estudei a poesia
de Cesário Verde e sentia ecoar, trazidos pela maresia azul do
crepúsculo da vida, aqueles versos de Yeats: Um homem velho é
apenas uma ninharia, / Trapos numa bengala à espera do final
– em bela tradução de Augusto de Campos. Meus últimos inte-
resses intelectuais se situaram no estudo e pesquisa da língua
copta, na culinária esquimó e no cinismo experimental. Sempre
mantive acesa a chama da procura por novos modos de viver,
mesmo que a minha vida inteira venha a ser apenas essa busca.
Havia parado com a poesia há mais de quarenta anos, quando
senti a dor do universo numa fava e morri, depois de reler, ainda
uma vez, as Memórias póstumas de Brás Cubas, numa manhã de
sol de uma sexta-feira, 13 de dezembro de 2068.

53
Poeta

Para Helio Neri

O coração do Poeta é um hospital


Onde morreram todos os doentes.
Augusto dos Anjos

Como deve ser o pôr do sol visto de uma casa bombardeada em


Sarajevo? Pergunto-me nessa sala vazia, no interior da tarde caí-
da da janela desse mundo transgênico. É uma vida sem lágrimas,
tal como a choramos. O impossível do possível, como as fotogra-
fias de Manágua liberta no sépia da memória. Na noite passada,
cuja forma era a de um uivo de lobo, pensei naquele lance do
princípio do cinema em Nossa música: ir até a luz e apontá-la
para a nossa noite. Sabemos que os álamos não bebem sangue,
que a crueldade vem trajada de plumas e que as pessoas sem
imaginação creem que os outros também levam uma vida me-
díocre. Então, ela abriu o Zero Hora e comentou comigo, assim,
meio por cima, enquanto eu lia o Monodrama, que a democracia
moderna pressupõe uma nova modalidade de fascismo. Neste
imenso viveiro do desespero humano, nunca é demais lembrar
que o fascismo vem disfarçado de progresso – e deseducação de
massa = progresso do regresso – e que eram liberais todos aque-
les que defenderam a entrada do fascismo no congresso italiano
em 1922. A paz não brota no jardim com câmera e sensores /
Bem-vindo ao espetáculo do circo dos horrores, canta o poeta.
Aquela garota de dezessete anos, vinda do Daguestão, portando
uma pistola e deixando escapar dois olhos castanhos do reces-
so do véu negro, explodida junto com as estruturas de concreto,

54
plástico e aço do metrô de Moscou, levando consigo outras tan-
tas almas, sabia que era viúva de um islâmico da república do
Cáucaso, morto em 2009, e que o que o exército russo chama de
operação especial é na verdade matança. Os álamos não bebem
sangue. As senhoras católicas, os comunistas, os comerciantes
são piedosos, mas os poetas, os hackers e aqueles que cantam
sambas antigos não podem ser. Alimento continuamente meu
espírito terceiro-mundista para não ser tragado pela corrente
contagiosa do Velho Mundo. Ainda verei a chama do espírito
latino-americano brilhar bem alto, para dar ao novo mundo
que nasce o testemunho vivo do verdadeiro humanismo. Ainda
hei de ver o esplendor de nossa cultura dizer bem forte o quan-
to tínhamos para dar, mas, infelizmente, os donos do mundo
nos impediram. O possível do impossível. O poeta chama todos à
função, pois o coração do rico é o ovo do inferno. A democracia
entendida como governo efetivo da maioria é algo estúpido, ilógi-
co e irrealizável, tanto quanto à brisa de outono carregar moedas
a folhas secas. Enquanto as rosas menstruam em jardins mons-
truosos, o poeta persegue a liberdade dentre os escombros, põe
a mão sobre a arca santa e solta os demônios famintos do desejo.
Quebra as tábuas da velha aliança, jogando aos porcos todas as
pérolas podres dos antigos e dos torpes. Enquanto uma multidão
de párias se alimenta de tecnofilia, o poeta (pianista arrombador
de cofres), tomando cerveja e jogando fubeca, sente o hálito da
bomba crestar sua camisa de flanela e, coração em frangalhos,
corre para testar sua alma no deserto. Nenhuma nênia em seu
coquetel molotov.

55
Perda (ternura)

Para Patricia Augusta Corrêa

Com as últimas chuvas você se foi e então acreditei que para a


casa mais tediosa do subúrbio não haveria primaveras nem ou-
tonos nem invernos nem verões. Nunca mais. Mas ainda imagino
duas andorinhas comendo batom nos seus lábios. Eu sempre be-
bi todo aquele oceano de conhaque de propósito. Precisava pro-
var a mim mesmo que a destruição era a única maneira de abrir
novas clareiras. Que a vida sempre me prendou com as tormentas
mais cruéis. Morrer todo dia me parecia uma maneira de manejar
essa carcaça e dar-lhe alguma textura para a música triste que a
acompanhava. Então eu cultivei coisas tolas como escrever po-
emas lumpens, colecionar filmes de terror b ou velhos discos de
heavy metal. E em cada cômodo da casa mais tediosa do subúr-
bio rabisquei um epitáfio. O que mais gosto é o do quarto (escrito
por um padre ao pintor Rafael): Aqui jaz Rafael; enquanto viveu,
a / Mãe Natureza temia, por ele, ser / vencida; agora que está
morto, / Ela receia morrer também. Uma noite, enquanto eu pe-
gava água quente do chuveiro para cozinhar um miojo, lembrei
que, nas proximidades do convento de Saint Jacques, existiam
alfaiates, monges e poetas que admiravam as ale bitter, pois os
cereais e os ésteres deixavam um aroma frutado e doce. Claro que
sabíamos que a vida só valeria a pena pelo sabor forte dos afetos.
Quando percebemos que os trilhos que nos levaram à espinha de
todas as estações desapareciam logo após o apito de partida, nos
perdemos. Sabíamos que não era apenas o trivial de mais uma ma-
nhã que nascia. Lutávamos rodeados pelo aroma do café amar-
go – como a vida – e a porta necessitava apenas da paciência em

56
achar as chaves. Todas as portas do mundo estavam uma lágrima
a menos. Nunca jamais consegui talhar uma clareira nestes so-
los. Sempre carreguei comigo estas poucas notas rotas, este gosto
de sal na boca e, para segurar a barra debaixo desta tempestade,
vez em quando, dava a mim mesmo alguma alegria liliputiana,
uma alegriazinha guardada numa caixa-forte, insolente e men-
dicante, que sempre me embaraçou. Hoje, na casa mais tediosa
do subúrbio, repleta de manuscritos rasurados e incompletos, re-
lembro das imensas noites de sábado, quando fazíamos pizza ca-
seira, tomávamos cerveja vermelha e ouvíamos no rádio os mais
selvagens rocks de todos os tempos. Tenho a sensação de que,
enquanto a vila toda dorme, a vida, intensa e inesquecível, se faz
outra vez no doce aroma noturno que a memória germina e que
nos mostra rostos nas rasuras entre as estrelas.

57
Poesia

A bala no cérebro de Maiakóvski. A tuberculose de Álvares de


Azevedo. O seppuku de Yukio Mishima. A miséria de Orides Fon-
tela. A orelha de Van Gogh. A roupa puída e suja de Edgar Allan
Poe. O tráfico de fogo de Arthur Rimbaud. A pindaíba de James
Joyce. Os processos de Allen Ginsberg. O gás de cozinha de Tor-
quato Neto. A cirrose hepática de Paulo Leminski. O vômito de
Jimi Hendrix. O manicômio de Antonin Artaud. O salto de Ana
Cristina Cesar. O tiro de espingarda de Hunter S. Thompson. A
mágika sem lágrimas de Aleister Crowley. A gravata de Santos
Dumont. O Hotel Inglaterra de Serguei Iessiênin. O desespero
idílico de Werther. A convicção de Carlos Marighela. O cárcere de
Rubin Carter. Os narcórticos e o forno de Sylvia Plath. O maligno
plano virtual de Yoñlu. A heresia de Giordano Bruno. O mar sal-
gado de Hart Crane. A extradição de Olga Benário Prestes. O tiro
natalino no peito de Raul Pompeia. A morfina de Jack London.
As ondas de Violeta Parra. O Sena de Paul Celan. O desespero de
Walter Benjamin. O hospício de Lima Barreto. Os cinco frascos de
arseniato de estricnina de Mário de Sá-Carneiro. A conversão de
José Vicente. A forca de Ian Curtis. A crucificação de Jesus Cris-
to. A tara de Pier Paolo Pasolini. O silêncio de Buda. As quarenta
doses de uísque de John Bonham. O chumbo na massa encefálica
de Kurt Cobain. Os flagrantes delitros de Fernando Pessoa. O
copo de vodca sobre a cabeça de Joan de William Burroughs. Os
romances de Roberto Bolaño. A queda do helicóptero de Randy
Rhoads. Os últimos batuques na mesa de cabeceira de Noel Ro-
sa. A coragem de Ernesto Che Guevara. As janelas de vidro de
Unica Zürn. A calma do bosque de Wendy O. Williams. A sífilis
nervosa de Manuel Laranjeira. A Praça da Glória de Pedro Nava.

58
O câncer de próstata de Mario Monicelli. A gentileza do Profeta.
A solidão do Tartaristão de Marina Tzvietáieva. Os radiogramas
de João Cândido. O ataque cardíaco de Antonio Calixto. Os úl-
timos tostões para Regine de Søren Kierkegaard. A decapitação
de Zumbi dos Palmares. As proposições factuais da Primeira
Guerra de Ludwig Wittgenstein. O esfolamento e o monóxido de
carbono de Stuart Angel Jones. A queda de cinco andares de Je-
anne Hébuterne. Os dedos triturados de Victor Jara. Os trilhos
do Engenho Novo de Marcelo Gama. Os dezesseis tiros de calibre
38 e 45 no coração de Malcolm x. Os dentes no estômago de Joa-
quim Câmara Ferreira. O violento traumatismo craniano de Ste-
ve Biko. O rebolado de Harvey Milk. A copa do álamo de Frei Tito.
O câncer no ovário de Clarice Lispector. O sonho de Martin Luther
King. O fim do sonho de John Lennon. As 32 fugas, os 73 processos,
os 530 inquéritos por roubos assaltos e estelionatos e as 28 facadas
no corpo de Lúcio Flávio Vilar Lírio. A angústia de Graciliano Ra-
mos. A cadeira elétrica de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti. O
tiro no coração de Jacques Rigaut. A valentia de Frank Zappa. Os
109 dias de tortura de Eduardo Collen Leite. A cabeça desapare-
cida de Antonio Conselheiro. O misticismo de Guimarães Rosa.
Os mais de cem tiros na carcaça de Cara de Cavalo. A cachacinha
e o torresminho de Hélio Oiticica. A arma (presenteada por Fidel
Castro) de Salvador Allende. A estrela no buraco dos olhos e o
diálogo da tristeza com o fim de Cesare Pavese. A overdose de
barbitúricos de Alejandra Pizarnik. A coragem, o amor, Dorine
e André Gorz.

59
It’s time to taste what you most fear

Aprenda a falar os nomes dos jogadores da Copa do Mundo! Gi-


sele Bündchen aconselha a fazer xixi no banho! Geisy Arruda
detona emissora por rejeitá-la em reality! Benny Novak ensina
espaguete com vôngole! Palpite sobre a lista da Fazenda 3! Frete
sempre grátis! Procure viver o dia com mais tranquilidade, não
vai dar pra resolver tudo de uma vez! Pequenas chateações diá-
rias têm tudo a ver com falta de clareza ao dar ordens ou sugerir
encaminhamentos! Valorize-se mais e curta a vida! Conheça as
opções de pousadas e spas holísticos para deixar o estresse de
lado neste feriadão! Qual o tipo de perfume combina com sua
personalidade? Relembre as gafes dos famosos e escolha a me-
lhor! Baixe os hinos do seu time do coração no celular! Fale com
nossos corretores on-line! Por que não morar em Nova York?
Pato está com nova namorada, a atriz Débora Lyra! Em busca
do seu ídolo favorito? Kara DioGuardi deixará American Idol!
Siga @victorfasano no Twitter! Ômega-3 protege mesmo o co-
ração? Quer saber mais sobre a cadeia produtiva do petróleo?
Clique aqui! Sua webcam não está funcionando? Você é super
fã de Justin Bieber? Faça o teste! Escreva pra gente dizendo que
tema você gostaria de ver no programa! Oi, você quer me ver?
Um novo conceito em namoro on-line! Grave vídeos com dis-
crição com um elegante relógio! Orar pode mudar tudo! Igreja
Universal inaugura novo templo em Nairóbi, no Quênia! Bebês,
separações, hospital e novos namoros marcam a semana! Os 100
melhores artistas da década! Tudo sob medida, escolha!

60
Café em companhia do tímido Francisco

Quando certa manhã g. s. acordou de sonhos intranquilos, encon-


trou-se em sua cama metamorfoseado num simpático rola-bosta.

61
Voz-off

fazer da anarquia um
método & modo de vida
Roberto Piva

Não espero nada. Nem deste outono frio lavado pela garoa, nem
de você, nem dos neurônios perdidos. Nomear é preciso quando
nenhum nome resta. A coisa o coiso. O mar coral deste fim de
tarde: vermelho de mínio ou vermelho demônio? A espera entre
as letras do teu nome ou esta espada de São Jorge riscando meu
último epitáfio? Entre os fonemas, uma dose de cachaça, uma
saudade que tritura, um abismo, uma conclusão. As sílabas sua-
das entre os dedos como ciladas na garganta. O teórico sabe, por
experiência, que certas premissas enunciadas na teoria preen-
chem as condições necessárias para que esta se aplique a certos
dados da experiência. As ondas do mar de Vigo quereriam abrigo
no meu testigo? Mas, como, se nomear é dar paz, é estar morto?
Vocábulos deliciosos como: peiote ou minarete. Qual experiência
escrita é válida, se já nem sei o meu/seu/nosso nome? A função
semiótica é, em si mesma, uma solidariedade: expressão e conte-
údo são solidários e um pressupõe necessariamente o outro. Não
espero nada. Nem deste sono quente chapado com a garota que
gosta de Win Wenders, nem deste derradeiro cigarro, nem do
sabonete líquido, nem da biografia do Chico Picadinho. Para mi
tristeza violeta azul, cravelina roja para mi pasión. Y para sa-
ber si me corresponde deshojo un blanco manzanillón. E de que
a tristeza? Eu sou o homem que bebe água da chuva do pinheiro
dos enforcados. Gosto de conhaque de ameixa. Mastigo coentro e
arruda enquanto imagino a maravilhosa cena onde, estourado o

62
fio de aço do guindaste, a estátua de Saddam Hussein esmagaria
a cabeça de George W. Bush em plena mentirobelicosa oratória.
Toda autoridade é cômica. Uma palavra: solidariedade. É por
solidariedade que a nêspera também se chama mônica. Eu me
lembro de Torquato Neto indo buscar seu pulôver no manicômio.
Porque, às vezes, um botão ou um rato também acreditam que a
vida é uma sombra suada num bar que toca jazz a noite inteira,
uma Vênus de Milo cheia de dedos. Não espero nada. Nem do
calendário, nem das caixas de sapato, nem dos projetos de lei. E
caminho. Um lobo perdido, acuado pela neve, entre as colinas, a
lua enorme e os ruídos de sua própria dor.

63
O palerma

O palerma passeia pelas ruas de Higienópolis e vai tirar xerox


na floricultura. O palerma já foi trinta e quatro vezes aos Esta-
dos Unidos. O cérebro do palerma é no ânus. O palerma minis-
tra aulas no departamento de ferro-velho da teoria literária. O
palerma, antes de ministrar aulas no dito departamento, for-
mou-se em história, direito, biologia, matemática, marketing e
administração de empresas. O palerma gosta da poesia correta.
O palerma, acima do bem e do mal, decide (com seu martelinho
esburgado, obtido a corrupção e conchavo) como deve ser a vida
dos outros demonstrando na prática a sua gloriosa conduta ra-
tazana. O palerma é sempre diretor, doutor, juiz, promotor, ca-
pitão, general, chefe, editor, peste, almirante, dono – o estupor.
O palerma é sempre filho da puta, fascista, idiota, débil mental,
covarde, porco pulha. O palerma está sempre lambendo os ba-
gos alheios. O palerma se descabela na mesa de debates, perde a
linha, sua, cega, definha, caga fininho. O palerma é um capacho
de linha albanesa. O palerma fundou a polícia poética e o parti-
do nazi-esquerdofrênico. O palerma diz, em palestras na Europa,
que a poesia brasileira não presta. O palerma diz em palestras no
Brasil que a poesia brasileira é mó legal. O palerma veste paletó
e gravata. O palerma é míope e surdo, mas fala pelos cotovelos.
O palerma é o porta-estandarte do remorso. O palerma escreve
ensaios barrigudos para revistas universitárias. O palerma pensa
que faz parte do debate, mas não faz. O palerma, pantafaçudo,
não tem nenhuma iguaria para repartir. O palerma é um velhaco
velhoso seboso. O palerma fede a podre bafosa. O palerma estra-
ga os poemas alheios quando tenta traduzi-los. O palerma inu-
tiliza os alunos quando tenta explicar o que é poesia ou por que

64
as tripas moles dos peixes fedem ou por que o cabrito caga re-
dondo. O palerma estraga o ar quando respira. O palerma morre
de inveja do cantor popular, do bêbado habilidoso, do mendigo
transcendental. Como um lagarto imundo, estúpido e comprido,
o palerma é provinciano, mas pensa que é cosmopolita. O paler-
ma, cria do esperma da merda, é, antes de tudo, um covarde – e
se cerca de covardes. O palerma, na vertiginosa transformação da
arte humana, explana hoje seus pensamentos de anteontem – to-
tum extra ordinem temporis. O palerma, apesar de sua prosápia
sabichona, é de uma ignorância crassa. O palerma é filho de todo
mundo. O palerma é um tosco treçó traste triste. O palerma é um
bosta de fúria escrofulosa – nó cego um sebo só no boçal cerebelo
– pária de pança policiaca – irmão legítimo da merda da ameba
– uma nhaca. O palerma é um verme – um palerme. O palerma é
a cloaca máxima. O palerma, rebotalho humano, é capaz de tudo,
mas não presta pra nada.

65
Meu pé de laranja mecânica

Para Pedro Galé

O inferno ainda quente aqui na Terra, entre setembro (que se foi) e


este outono aceso a fósforo. Meu amigo, entre a décima quarta e a
décima quinta cerveja, se divertindo com um comunista da Vila Ma-
dalena. A noite nunca acaba. Cerveja nas tripas, Bach em “A Whiter
Shade of Pale”, Vila-Matas tomando café com Bolaño enquanto falam
de cidades fantasmas e da prosa de Alan Pauls. Insurgência. E aque-
la moça na mesa ao lado (belíssimas pernas) que lê uma biografia de
Charles Chaplin. O caos é nossa mais bela natureza – penso, enquanto
aguardo o garção de costeleta trazer outra dose de cachaça. A garota
de belíssimas pernas mexe com a libido pública. Chega outra cachaça,
chega outro tiro no soneto e, claro!, a lista dos melhores mais fantásti-
cos livros maravilhosos brasileiros do século xxi! Lembro das belíssi-
mas pernas da moça. Lembro de fechecler. Lembro de Flaubert:

O sucesso, o tempo, o dinheiro e a impressão estão relegados


no fundo de meu pensamento a horizontes muito vagos e per-
feitamente indiferentes. Tudo isso me parece infantil e indigno
(repito a palavra: indigno) de vos perturbar a cabeça. A impaci-
ência que têm os homens de letras de ver-se impressos, repre-
sentados, conhecidos, elogiados espanta-me como uma loucura.
Eu não sou de modo algum virtuoso. E, embora tenha grandes
necessidades (das quais não digo palavra), antes me tornaria vi-
gilante em um colégio que escrever quatro linhas por dinheiro.

Está escrito. Um brinde a Dionísio, pois a vida e a libertinagem


exigem altas qualificações. Versículo é coisa de cristão (a busca

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louca pela morte), versão é coisa de bandido (a busca louca pela
felicidade). A versão é a história do mundo. Todo mundo sabe
que o vizinho sempre ouvirá música imbecil. E vai ouvir a mal-
dita música imbecil até que os azulejos de seu apartamento tam-
bém se tornem imbecis, até que a poluição lá fora se torne ainda
mais imbecil, até que o pai, o filho e o espírito santo se tornem
também imbecis. Estamos todos fodidos. Resta-me pedir que
a palavra rockbridgeíta acenda meu cigarro nesta noite de um
milhão de metáforas e fragores. Já estava no trem e era a hora
em que vendedores de flores murchas ou de amendoins quentes
irrompiam nos vagões, com suas cestas cheias até a boca com
velhas rosas, tulipas tristes, gerânios rabugentos, dálias desola-
das, cravos cansados etc., lata fervente com cones amarelados,
suores fortes, como o de animais feridos. Os pegajosos punguis-
tas, camelôs tonitruantes, bêbados de equilíbrio precário, moças
vestindo saias e elogiando os perfumes baratos e os incensos da
Índia vendidos no Brás. A vida num vagão de trem suburbano é
sempre apagada. Os traficantes de felicidades fugazes, cegos ven-
dendo bilhetes de loteria, aleijados de todos os tipos, tocadores
de violão aproveitando da bondade boçal da plebe, insuportáveis
estrambóticos de toda a espécie anunciando o fim do mundo ou
a volta deste ou aquele salvador.O povo vivendo vida de asno
atolado nas delícias da sociedade industrial até as narinas. Barra
Funda. E pesada. Recuso-me a pendurar cadáveres de crianças
em pinheiros de plástico no meio da estúpida sala para sustentar
uma tradição execrável. E outra: ninguém tem saco para “poe-
mas” que sofrem de seção áurea – poemas-cagalhões ou poemas-
fedorentos –, se gostam de cheiro de esterco e de leite que se
esbaldem! Faço poemas sem qualidades para afugentar deuses e
poetas… e sigo em linha reta. Se encontrar Beckett, leia Beckett.
Gorki, leia Gorki. Petrônio, Petrônio. Não perca tempo com bo-
bagens da poesia pau mole, de verso pau mole para miolos moles.

67
Aqui nesta terra, onde canta a jandaia nas frondes de carnaúba.
Pois bem. Ela falava como uma harpa chinesa tocada no fundo
de um antiquário – enterrara o pai pescador no fundo do mar,
por amor. Onde era primavera agora é treva – glicínia seca, rosa
mutilada, crisântemo escarrado. Um nariz corcunda é realmen-
te bizarro, disse Natsume Soseki, num de seus romances, sobre
a ninfomaníaca de Alexandria. Se o nariz de Cleópatra tivesse
sido um pouco menor ela teria mudado o curso da História – o
que na verdade não significa nada, visto que a história se repete,
vira espaguete, frango assado no fatídico domingo da existência.
Sempre há um pouco de loucura no amor, porém sempre há um
pouco de razão na loucura. O que fazer com esse odor de loucura
na raiz dos dentes? Estes espasmos de insanidade nos músculos?
Ela e sua janela. Ela e seu laptop. Ela e sua felicidade de suíno
no cocho. Ela e sua cegueira. Prefiro ler as laudas escritas por
patas aptas de um vira-lata no cimento úmido da calçada da rua
Dona Marta. Lendo ********, imagino o monge que, anos a fio
em meditação, teve as pernas torneadas por tapurus. Se a dor
não fizesse ruídos tudo seria mais fácil. Mas ela grita. Seja no
fiapo de lã nos meus cabelos seja na página cinco, do capítulo
um, do tomo três, desta porra de livro que me lê há tantos anos.
Ao pegar o último trem, sobra esta casa vazia, o coração batendo
com uma gilete costurada por dentro. Esquecer o mundo e ser
por ele esquecido. A vida é esta gosma cuspida por mil demônios
que mascavam framboesa dois minutos antes, enquanto namo-
ravam os bombardeios em Grozny. Sempre há uma opção – já
que dentro do corpo há inúmeras mortes para uma única vida.
Baudelaire teria desejado ser alternadamente carrasco e vítima,
para saber quais sensações se experimenta nos dois casos. Deus
e o diabo, sujeito e objeto. Um silêncio: cânfora. O sol se põe so-
bre as costelas daquele herói morto, sobre a faixa de pedestres,
de quem restou apenas a poça de lágrimas e sangue, a hóstia da

68
história e a carteira do pis. Tudo é possível. E por falar em poesia:
todo poeta deveria saber disso. Habitar a Boca do Sapo (Buraco
Quente, Mooquem, Pedra do Sono, Sítio dos Vianas, Empalados
ou Brejo das Almas) e ter a certeza de que há mais de mil labirin-
tos na língua anfíbia. Meu pulmão exposto à visitação cósmica, e,
entre a escalada da palavra rota no esôfago (a palavra escrota no
teatro de Éfeso) e um cansaço permitido: estrelas. O bacana no
poema é que a gente pode fazer o que quiser.

69
Biografia de J. R. Andrade

Sempre a mesma trajetória, como as promessas que as pessoas


oferecem aos tantos santos, em busca de uma ilusão forte que dê
um rosto definido à vida. A noite estava lá, como sempre, espe-
rando o trem e devendo deuses a todo mundo. A camiseta preta,
o tênis cano-alto, escuro e encardido pelo pouco de morte que
vai crescendo ali nos tornozelos. Sempre alguns discos de velhas
bandas de rock em sacolas plásticas. Como sempre faz, pega um
deles e admira incansavelmente, enquanto as meninas de seus
olhos parecem compor mínimos silêncios de ninar a uma alegria
escondida, que não se consente sentir, por remorso ou sabe-se
lá que tamanho cansaço. A solidão desse homem dobra violen-
tamente como se dois mil sinos desesperados tentassem acordar
algum deus de seu cochilo eterno. Ao vê-lo descer do velho, estú-
pido e provinciano ônibus azul, nenhuma embalagem de chiclete
se move. Nada muda de lugar. Nem o vento, nem o número da
casa, nem os olhos da garotinha que cochila no sofá. Ele caminha
curvo e as sombras, que lhe vestem como um sobretudo, parecem
construir pequenas pontes sobre um rio cujas águas esquecidas o
levam para uma janela de onde ele pode sentir a brisa do tempo
em que queria mudar o mundo apenas mudando de assunto. O
mundo não precisa de nossa ajuda para mudar – pensou, na-
quela tarde chuvosa, enquanto tentava tirar de ouvido “Going to
California”. Não era Naishapur e havia um esplendoroso final de
primavera que se esvaía, pétala a pétala. A ampulheta sobre o
criado-mudo guardava os restos mortais de sua avó que ainda lhe
contava histórias do tempo – somos pobres carneiros a brincar
sobre a relva, enquanto o açougueiro está a escolher um ou ou-
tro com os olhos, pois em nossos bons tempos não sabemos que

70
infelicidade justamente agora o destino nos prepara; doença,
perseguição, empobrecimento, mutilação, cegueira, loucura,
morte etc. Sempre quis criar uma fotonovela para entreter mos-
cas. Acabou formando-se em jornalismo. Tentara o suicídio há
dez anos. Repetira a dose há poucos meses. Sua velha guitarra
silenciava sobre o guarda-roupa. Ouvia constantemente vozes e
essas sempre entoavam “Metal and Steel”. Quando criança, que-
ria ter um aquário redondo com um escafandrista vermelho cui-
dando de um tesouro perdido e um peixe chamado Campeão.
Mas o pai sempre ameaçou pôr amoníaco na água e lhe surrar,
caso se repetisse a “maldita imbecil ideia”. Viu, certa vez, no jor-
nal da província, uma reprodução do rosto de Goya, e notou que
este era a cara de um tio bebum que morrera atropelado numa
madrugada chuvosa na Avenida Perimetral. Só lia romances po-
liciais. Sentia sempre um gosto de sal na boca e os dentes sempre
sangravam. Jamais faltara à escola por pouca ocasião. Quando
tinha que enfrentar sua hipopotomonstrosesquipedaliofobia,
imaginava, como alívio, idêntico inferno a ratos e reis, como se
essa sua tortura, roendo aqui ou acolá, fosse também a desgra-
ça de Satanás e de seus mirmídones. Aos dezenove anos trepou
com a boliviana do apartamento ao lado (mãe de um conheci-
do seu). Nunca mais usou camisinha. Certa noite, após assistir
a um velho faroeste, quebrou a vidraça do apartamento vizinho
com um copo abarrotado de merda. Casou e viveu com r. por
sete meses. Ela abortou o futuro descendente cujo cadáver risca
silhueta longínqua a um nome de menina que, agora, dezessete
anos depois, teria nome de flor ou de santa. No pouco tempo de
redação só corrigira textos de economia. Nunca comprou uma
máquina fotográfica. Se sentia sono durante o expediente ia ao
banheiro e cochilava sentado na privada. Aos domingos pedia ao
padre para embrulhar a hóstia e bebia o vinho que ele próprio
levava – sentava na primeira fila, olhos sempre fixos no genufle-

71
xório. Foi à praia duas vezes e uma vez ao Rio de Janeiro. Tentou
envenenar o pai numa noite de natal. Achava futebol uma bosta
e odiava “picos” da Vila Madalena. Quando decidiu morar numa
fotografia, trajava uma camisa de botão, amarela, com um botton
de Joey Ramone no lado esquerdo. A noite estava clara e crente,
como nunca antes. Todo mundo estava feliz aqui na Terra. Um
novo fantástico livro era lançado do outro lado da cidade, uma al-
mofada vermelha em forma de coração era comprada numa loja
de departamentos, uma bagana era arremessada ao outro lado da
rua escura. Percebe-se ao fundo um velotrol, uma amoreira san-
grando seu açúcar e um vira-lata balançando desesperadamente
sua cauda. É na imensa solidão desse homem, onde queima uma
ferida cujo grunhir é capaz de talhar, no mármore de nossa mais
profunda agonia, um cânion onde morreremos (sem jamais ser-
mos descobertos) segurando a metade de um mapa para lugar
nenhum. Nosso delírio de redenção.

72
Autópsia abstrata

Tel ùrico symbiose papyrus aggregados photosphéras elégia


philosopho morcêgo roêl-os ancia rachitica pôdre elephantiasis
monturos anonymo rhapsôdo paes baptismo brazileira scismas
vitellus bocca suggestionador cráneo árdega hottentótes noctur-
no esbordôa aquelle budhismo córte gutturalidade facas gelati-
na polygamo amor rhum muito frio sombrio ethereo symboliso
trilhos lianas cahiam bilis corda damninha reapparece enxota
morphéa soffriam cidade nirvana aza archaica palavra terremo-
to cháos objecto sina accêda pyramide juxtaposição desillusão
paralyse céo azeite ultima calma fôres estrellas pôdre alfaia jun-
quilho phónico corrupião nervos ar diástoles scéptico cathedraes
chimera hyenas aziagas zigzags sycomoros amarellos perfume
praga cháos luctas supplanta immerso arco aclare encéphalo ro-
er-nos exhortas amorphia aguarda

73
Ruas de um anarquista noturno

É quase um crime que devolve o refúgio. Parecia evitar, sem con-


seguir, o que não era mais meu. De todas as maneiras possíveis.
Atordoado – mas, escavando. Ajoelhado frente a um vaso de ro-
sas brancas, esperei que cada pétala se despedisse. Que cada uma
derrubasse de si para si a palavra longe, sob o acalanto de pai-
sagens incríveis e eternidades breves. A palavra longe sai já em
decomposição da minha boca – já é morte. Um outono inteiro
cruzou-me com sua saudade cingida de folhas secas e a extrema-
-unção de um céu numa vasilha rasa. Talvez tenha entendido, na-
quele início de tarde, o orquidário que a memória construiu para
atuar seus espasmos. O veludo do vento, o mesmo que comove
navios arrependidos a beira-cais, tocava-me a pele. Na garganta,
o gosto de mar que imaginei ser o mesmo das lágrimas de um
afogado – that sail away on a wave of mutilation. Quando me le-
vantei, percebi que era impossível ser mais miserável. Os sonhos
não valem nada… Dois pardais alçavam voos ornamentais cos-
turando os túmulos às árvores nuas deste outono de ossos secos.
Parecia um pedaço do infinito instalando-se no corpo. Cansados,
pousavam no túmulo de mármore escuro, onde um pires esque-
cido, com alguma pouca lagoa que a chuva miúda borrifara, lhes
matava a sede. A estrada chegara ao fim. A minha blusa abraçou-
me fortemente, e eu entendi o que a peripatética garoa queria me
dizer. Levantei-me e lentamente cruzei todo o ambiente, quadra
a quadra, sépia a sépia. Estilhaçado, lembrei-me de uns versos
de Allen Ginsberg – No point writing when the spirit doth not
lead. Tornei-me mais selvagem naquele instante, pois era a única
oração que eu sabia. E escalando as gélidas montanhas de tanta
desventura, pensei nesse ofício difícil de mimar a memória. Saí

74
enquanto uma velhinha acendia uma vela como se abrisse, na fe-
bre de sua pele, a suprema brisa da redenção. Ninguém podia ler
minha via crucis. Uma borboleta azul pousou sobre uma lápide
e quase se sumiu entre tantas lágrimas. Sigo o caminho, trivial
como lama na lagoa. A vida à queima-roupa.

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Verde azul amarelo rosa e branco

Para Flora Assumpção

¨ ária: vivo, volve: alvo em alta alvura: entra, penetra, espelha


mil ilhas nas pupilas: orbita como quem espalha o olho pelo es-
pelho: adentra: pés, mãos, unhas, articulações: caminha: olhos,
lábios: presságio epifania: duplo doublet: medo à capela. Solta,
desata, amarra e agarra. Terra nos olhos: planeta água – dinâmi-
ca. A serpente que cria, a serpente que cala. Verde azul amarelo
rosa e branco. Movimenta-se ­– infinito círculo: nos seios dos sé-
culos os ciclos: ciclos: ciclos: bemsemsomsolsalmal: céucemcom-
cordordarmar: urgência-regência – ao movimento. Mo-ver-se:
onde: areia concretiça: a arquitetura faz frente e afronta o front
da mente: que responde ao inventar um épico Blake a encher o
estômago da neblina faminta que povoa a floresta: uma outra:
uns: outros olhos abertos: anarquitetura: textura: poéticas. Ain-
da: olho do furacão. Ou: um ensaio sobre a modulação, ossatura,
simetria, tessitura: casamentos perfeitos: rimas que embebedam
as línguas: que se enxugam-excitam umas às outras: como ser-
pentes aninhadas: alojadas no jogo sexo-semântico: céu e hell. A
língua: a língua: livro de som e saliva: cedo ou tarde: (de Vênus
ou Marte): das profundezas da alma da carne: à capela: a poesia
(vinho da vida) desabotoará o vestido do tempo: deixando esca-
par a libido eterna: fazendo a chuva cair na terra: extrai corais:
extrai pérolas: e com a ira das íris d’Osíris: arco-íris. Moenda de
escamas geométricas: sob um céu opala que (a todos os olhos):
mandala. Ou: diagramas de cacos de vidro: à saída revolta: en-
capelado. A serpente sedenta sorve o céu: o céu cede, sedento,

76
à serpente: sem cessar, a serpente sorve o céu que a serve: o céu
que serve cede à sede da serpente que o sorve: a serpente sedenta
sorve o céu. O bote de uma ária no último músculo do crepúscu-
lo: serpentário: serpentária:

77
Delirismo – um poema sobre o tempo
(para vozes)

O Cacto Mentecapto
As mexericas pesam mais no verão. Como toda e qualquer cilada
semântica, a prioridade do sentido mora no avesso de seu discur-
so. Porque meus olhos estão aqui, olhando os discos voadores no
céu da Macedônia. E o tempo todo o tempo passa, o tempo todo
passando no vão entre o que vi e os ovnis.

O Respeitável Público
Lilás com becortopneia!

Uriah Heep
Lilás com gonorreia!

O Cão Celeste
Lembrei-me de Gorazde. Só se pode prosperar à custa de muita
desgraça. Mas muita mesmo…

O Cacto Mentecapto
Caro Sigmund, eu só penso em mares de cerveja. Em oceanos de
cerveja! Até nos sonhos! E almôndegas ao molho de tomate com
manjericão!

Uriah Heep
Quando cheguei a Petrolina não quis mais voltar. Enterrei meu
coração num beco da rua Joaquim Pedro de Andrade. Esqueci…

O Cacto Mentecapto
Tras mucho estudiarla se me figuraba que más que una caligrafía
aquello era un tatuaje.

78
Uriah Heep
Bon Scott! Bon Scott!! Bon Scott!!!

O Respeitável Público
Adernar a estibordo!

O Cacto Mentecapto
Queriam invadir a biblioteca. Queriam devorá-la com a fome do
cão. Todos só pensavam nisso: invadir a biblioteca! Tomá-la de
assalto, sequestrá-la, mantê-la refém. Mas como fazer, se fecha-
da? Qual o plano, se em greve? Teria que ser à tardinha, durante
as aulas da pós-graduação. Por que não de noite? Na mais alta
madrugada? Porque isso é coisa de ladrão. Nós somos sambis-
tas, nós somos sonhadores e temos discos do Jorge Ben. Ladrões
jamais roubam bibliotecas. Ladrões vivem de coisas úteis. Biblio-
tecas não são coisas úteis. A biblioteca está onde o povo não está.
Viva Joaquim de Sousa Andrade!

Uriah Heep
O silenciador transforma o disparo num suspiro.

O Cacto Mentecapto
Vou assassinar Auerbach! Vou rasurar Oehler! Vou cuspir em
Friedrich! Vou cagar em Hegel! Vou devorar Zumthor! Vou dor-
mir com Berardinelli! Vou amar Paz! Eu vou pôr no cu desses
filhos da puta! Ah, se vou!

Uriah Heep
Tanto faz.

79
Nicole Kidman
Não creio que morrerei agora, aqui, neste porto de merda. Não vira-
rei puta. Abrirei as janelas. Todas elas. Deixarei entrar os anjos para
que eles me ajudem a soltar os demônios. É nessa orgia transcen-
dental que construirei meu mosaico.

Charles Baudelaire
Ela se acha. A garotinha pedante e peituda.

Helinho Neri
Pode crer, truta!

Uriah Heep
O mago! Olhe para si mesmo. Dê um rolé no tempo. Vivendo de
boa. Boníssima! Pense na justiça do poeta. No círculo das mãos.
Toda minha vida tentando tragar o demônio-arco-íris. Paraíso, o
encanto. O mago!

O Cacto Mentecapto
O Tiago já sabe disso?

Uriah Heep
O Rui foi comer sete mistos-quentes, disse que volta na sexta, por
volta das 21h00. O Tiago está traduzindo Sophie Podolski junto
com a Ju.

O Cacto Mentecapto
O Driguetes está bêbado?

Uriah Heep
Dos dez contos ou do jogo de truco? Não me venha com suas in-
diretas sarnentas! Não me venha com xurumelas!

80
O Cacto Mentecapto
Do facínora que fatiou Ritinha Sonho-Coletivo depois de ter cer-
teza de que as ideias fora do lugar deveriam ser postas em algum
lugar. Para isso, esquartejou Ritinha e, até a chegada da polícia,
tentou achar, em sua carcaça, lugar para as ideias fora do lugar.
Coisa de toc, saca?

O Velho Marinheiro
Onde há uma tomada?

Gil Grissom
Ali, logo ali. Mas, cuidado, a tecnologia nos tornará obsoletos.

Buck Mulligan
Absolutos obsoletos. Quem rouba ao pobre empresta a Deus. As-
sim falou Zaratustra.

Montezuma
Amuletos-esqueletos na natureza morta. Sob o sol dos sacrifí-
cios. Muita coisa mudou desde a chegada de Deus.

O Cacto Mentecapto
Eu sei que há muito pranto na existência
O homem por sobre quem caiu a praga
A rua dos destinos desgraçados
Chama-se a Dor e, quando passa, enluta

Jethro Tull
Posso aplaudir?

Uriah Heep
Flauta, ô Jethro, flauta!

81
Jethro Tull
De pé ou sentado?

Lemmy Kilmister
Líquida ou sólida?

Jethro Tull
A cana?

João Guimarães Rosa


Cana de açúcar. Aço doce. Pãos ou pães, enfim…

O Cacto Mentecapto
Ser, agora, um homem sensato, daqui a pouco um louco e dentro
em pouco um animal. Muito estranho, truta. Cada copo a mais é
maldito e tem um demônio por ingrediente.

Jethro Tull
Vou buscar o pó!

Uriah Heep
Vou me vestir de homem-rã e me lançar à lagoa.

O Cacto Mentecapto
Prefiro cães com caudas descortadas.

Uriah Heep
Podemos encerrar o poema?

O Cacto Mentecapto
Isto é um poema?

82
Uriah Heep
Tem tudo para sê-lo.

O Cacto Mentecapto
Se você diz que é um poema então: é um poema!

Uriah Heep
Isto é um poema.

O Cacto Mentecapto
Quem poderia guardar a chuva no bolso esquerdo da calça de
veludo?

Virgílio
Isso é um poema?

Jim Brass
Pode ser que seja um poema, depende das evidências.

O Cacto Mentecapto
Mudando de assunto, você viu que subiu o preço do feijão, da
pasta de amendoim e do papel higiênico?

Uriah Heep
Culpa da poesia. Não se pode misturar poesia com literatura, dá
nisso, aumento do feijão, da pasta de amendoim e dos Blu-Ray.

O Cacto Mentecapto
Ande logo, velho! Não posso esperar até o Juízo Final!

Uriah Heep
O Jethro Tull já está fazendo isso só pra sacodar a barra da galça.

83
O Cacto Mentecapto
Não sou de São Paulo, não sou japonês, não sou carioca, não sou por-
tuguês! Não sou de Brasília, não sou do Brasil, nenhuma pátria me pariu!

O Respeitável Público
(aplausos)

Uriah Heep
Demônios e magos em Salisbury. Rezando pelo vegangelho da
Nova Vida.

O Cacto Mentecapto
Fecharei as cortinas, pois tudo existe para acabar numa conta
bancária.

Uriah Heep
Mallarmé ou Maomé?

Capitu
ac/dc ou Motörhead?

O Cacto Mentecapto
A ponte da teoria perdida no cu da traíra.

Uriah Heep
Mas a crítica não tá com tudo e tá hipermegaplus prosa?

O Cacto Mentecapto
Realmente, como é natural, à primeira vista, de fato, é bem verdade.

Uriah Heep
Mas o que é o teatro?

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Roland Barthes
Uma máquina cibernética.

Occam
Tanthoqeo jesuítaradevasso apresenteou os flússeres da Baixa
Califórnia com carálias da Nova Guiné, e se derreteu num ateu
sorrisafado beliperante Anna Belzebu. Ana, rosebud.

Clone do Jaguadarte
Delicigozo pescoço que fluturva todorresto do mundomini mun-
domanna. Borrifa, irriga, jorra, verte, esporrirradia.

Uriah Heep
Apocalipsis litteris…

O Cacto Mentecapto
Lista de supermercado: arroz, the wörld is yours, feijão, sounds of
violence, sal, day of reckoning, macarrão, abrahadabra, molho
de tomate, blood of the nations, pimenta-do-reino, schizophrenia,
água com gás, deth red sabaoth, bis, circle of the wagons e ervilhas.

Lúcio Flávio
Gente como nós ou vira santo ou maluco ou revolucionário ou
bandido. Como não havia verdade no êxtase nem no poder, fiquei
entre escritor e bandido.

Uriah Heep
Tive a noite passada um curioso sonho, e há muito que não so-
nho, desde que tomei alcalinos. O sonho foi: oyepé kurumi’ wasu
tapayuna opoú se *** e quase ***. Coisa singular: hoje durante
o dia estive me lembrando daquele rapazinho que era escrevente
do a. de b. e que orekó oyepé *** osúakanga. Estou ficando com

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saudades do Brazil, e a minha solitária ilha, e as noites quietas
que eu ali passei, e a poesia daquele clima intertropical, formam
alguma coisa peculiar que é impossível de obter aqui em Lon-
dres, com todas as incontáveis vantagens desta enorme terra.

O Cacto Mentecapto
Apesar de as coisas serem assim, entretanto, fica maravilhosa-
mente claro que nem o espírito supremo, donde procede o verbo,
é verbo de si mesmo nem o verbo é o espírito do qual é verbo.

Macbeth
Dentre os vários conceitos que as fábulas, em sua origem, consti-
tuem, foram o muito mesclado tecido do conhecimento humano,
narrativas verdadeiras, falsas e severas, há alguns determinados
ao uso puro a priori num pot-pourri.

O Cacto Mentecapto
Se o tempo é curto para a acumulação de valor uma pessoa car-
rega-o na precedência da expectativa. Lembro-me de cor. De co-
ração. Um depois um depois um outro outro um depois um outro
outro um não muitos cinco ou seis depois outro…

Niccolo d’Arezzo
E se tudo isso ainda lembrar alguém ou uma canção?

O Cacto Mentecapto
O que diria sobre revolução?

Uriah Heep
Vulva a revolução!

86
O Cacto Mentecapto
O que diria sobre censura e repressão?

Uriah Heep
Naturalmente, só um dogmático da pior espécie sustentaria que
a censura e a repressão aberta são preferíveis à precária e trai-
çoeira democracia de que gozamos agora. Mas, por outro lado,
somente um tolo pode ignorar que esta mesma democracia tem
criado novos álibis, armadilhas e dilemas para aqueles que se
opõem ao sistema.

Emma Goldman
Não choro, meu segredo é que sou moça esforçada. Massacro
meu medo. Desmascaro minha dor.

Uriah Heep
A anarquia é 300, é 350!

Luke Cage
Abram alas e façam silêncio, porra! Diga, Piotr.

Piotr Kropotkin
Cidadãs e cidadãos! Já vos fizestes essa pergunta: “De onde vem
a fortuna dos ricos? Vem de seu trabalho?”.

O Silêncio

Os Dados da Imbecilidade Humana


Para se fazer um casaco de peles de comprimento mídi é preciso
que sejam brutalmente mortos, dependendo do gosto do imbecil

87
que vai usar o casaco: 125 arminhos, 100 chinchilas, 70 martas
zibelinas, 30 ratos almiscarados, 30 sarigueias, 30 coelhos, 27
guaximins, 17 texugos, 14 lontras, 11 raposas douradas, 11 linces
e 9 castores.

Uriah Heep
A vibe guilhotina-já não é pra já?

Piotr Kropotkin
A origem da fortuna dos ricos é a nossa miséria.

A mãe
Deixe de tolices. Não recomece com histórias de dinheiro.

Os Dedos do Pé da Espectadora Loira com Sapatos Vermelhos e


Batom Fúcsia Sentada na Primeira Fila
Ela não fala de dinheiro, sua estúpida! Fala de…

O Cacto Mentecapto
Miséria…

Os Dedos do Pé da Espectadora Loira com Sapatos Vermelhos e


Batom Fúcsia Sentada na Primeira Fila
Isso!

Gregório de Matos e Guerra


Terra de imbecis! País de pasguates e facínoras!! É o fim! Sempre
foi! Desde o princípio!

Roger Waters
Money is a crime.

88
O Cacto Mentecapto
Sobre a linha do horizonte, um abutre colide com o estrondoso
suicídio da tarde. Aqui, neste interminável domingo do mau gos-
to, o fascismo ressurge na vitrine do horror, na ferida das dores,
no parco de Osíris, no parque do mau agouro, na cínica sesta.

O Bandido da Luz Vermelha


Nem me fale em miséria, mano, que miséria é isso aqui ó. Aqui
todo mundo é totalmente devagar, na paira. Tem treta o dia todo,
truta. A barra é totalmente funda e pesada. Só caga quem é rei,
morô? Eu tô aqui, de boa. Explodindo o terceiro mundo via celu-
lar, truta. Faz 7 anos que vivo de gasolina. Tomo 2 litros por dia.
Uma vez, tentei me matar com tinta óleo. Não deu certo.

Candy da Canção de Iggy Pop


Os anjos de Rilke e os pivetes de Piva continuam dando o cu no
mictório.

Os Dois Sujeitos da Propaganda Antiga de Automóvel


Pois é!

Uriah Heep
Não esqueça: dormir é um reducionismo, e está superado pelo
malhar, pela filomenalogia, pelo consumismo-indie-cristão, pelo
marxismo-mastercard, pelo neo-vampirismo norte-americano,
pelas estatísticas estilísticas russas, pela crítica estética das dan-
çarinas de forró universitário, pela boquística e pela philosophia
das formas simbólicas.

O Cacto Mentecapto
Engravido o silêncio com o sêmen de minhas sílabas. E digo isso
à meia voz. E isso é poesia.

89
Uriah Heep
Isso é poesia?

O Sabichão
Pô, Uriah, pô! Isso é um erro crasso!

A Garota da Propaganda de Cerveja


Com cerveja pode ser que seja.

John Cage
É poesia, sem dúvida.

Uriah Heep
Obrigado a todos pela compreensão. I like Ike de cu é rola. Falou!
Eu vou pela sombra.

Torquato Neto
Esses filmes servem a quê? Servem a quem? Essas peças: ser-
vem? Pra quê?

Candy da Canção de Iggy Pop


Eu acredito em milagres…

Lemmy Kilmister
Eu não…

O Bandido da Luz Vermelha


Meu fraco é mortandela.

Román Ramírez
Vocês escutarão como começa esta canção: to tell you that I really lo-
ve you. Canções de padre continuam fazendo milagre. Lavro e dou fé.

90
Roberto Bolaño
Naquele tempo eu tinha 20 anos e estava louco. Perdi um país,
mas ganhei um sonho.

Roberto Barranova
Nas nossas ruas, ao anoitecer, há tal soturnidade, há tal
melancolia…

Roberto Bolaño
No México, me contaram a história de uma moça do mir, que tor-
turaram introduzindo ratos vivos na sua vagina.

Antonio Vieira
Deu o vento, eis o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento,
eis o pó caído; estes são os mortos.

Padre
A gente mata tudo que tá ao nosso redor e depois morre. Na ver-
dade, só a morte existe. Me aperfeiçoo pra ela. Quero tá de bom
aspecto quando ela chegar.

Antonio Vieira
Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó
caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem
vento, e por isso sem vaidade. Esta é a única realidade, e não
há outra.

O Cacto Mentecapto
O que se faz quando se diz alguma coisa?

Uriah Heep
Eu mexo a língua…

91
O Cacto Mentecapto
Não há nada a fazer, tudo está irremediavelmente fodido. Seja-
mos felizes!

Uriah Heep
Consegue ler meus lábios?

O Cacto Mentecapto
Sim.

Fim

92
Autobiografia

Para Danilo Bueno

Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question.
Charles Baudelaire

Paranapiacaba. Avenida Fox. Perto da meia-noite, quatro caça-


dores de recompensa desembarcam de um automóvel preto, que
acabara de estacionar dentro do silêncio noturno da vila inglesa. O
frio é de quebrar a caveira. Um disse: Deus – outro: vida – outro:
êxtase – o último: caos. Um trazia, como oferenda à noite imensa,
uma garrafa de conhaque – outro, quatro báuras – o terceiro, al-
guns poemas – o último, a sede de todos os outros junta. Apenas
três viam o pequeno menino de meias azuis, segurando um peque-
no martelo, que os observava sentado no capô do carro. Apenas
um via a gravura Die Schaffenden, de Max Kaus, no poste de ma-
deira à esquerda, emoldurada por setenta e sete bruxas. Dois viam
um menino, não o mesmo do carro, equilibrando-se no meio-fio, e
cantando baixinho uma velha canção de Alice Cooper. Ninguém
via a estrela ao fundo, apagando em si o sono da eternidade em
alguns segundos. Os quatro magos vagabundos continuaram a
andar e voltaram a ser os quatro caçadores de recompensa. Um
deles, após jogar um dente de latão sobre o telhado de uma casa
abandonada, onde se escutavam risadas de crianças, disse ao ou-
tro: sou o único homem a bordo do meu barco. Continuaram pal-
milhando vagamente, enquanto a voz de Nick Drake, guardada
no tempo, se misturava ao som de seus sapatos, furados e sujos.
Ao passarem perto de uma velha e grande coruja pousada numa
caixa de correios, um deles se assombrou. O que vinha mais atrás

93
disse: Sabe o que Philippe Beck diria, ao observar essa cena,
meu camarada? Após a negativa do amigo, completou: O gos-
to pelo espanto não é suficiente. Outro, bolando uma ode, como
João Cabral a uma antiode, olhou e riu (a primeira recompensa).
Outro, capote preto e longas tranças, um rasgo na calça à altura
do joelho direito, observava Andrômeda no reflexo de uma lagoa
imaginária e sabia que todas as galáxias não pesam mais que a
memória de uma mosca. O outro, bêbado como uma capivara,
falava de poesia (outra recompensa). Caminhavam e imaginavam
florestas azuis armadas com mármore, jaspe e ágata. Caminhavam.
A máquina do absurdo se abriu e ela era um mundo moderato
e cantabile. Organizaram um mantra (burning bright burning
bright burning bright burning bright) àquela majestosa e des-
vairada deliciosa face de mistérios – in the forests of the night.
Abriu-se pacífica e pura, convidando-os à contradança como an-
tídoto aos mesmos sem roteiros tristes périplos. Apliquem-se à
esfera perdida da natureza mística das coisas, disse-lhes, mas
sem que canto algum, vaticínio ou verso vicinal atestasse que al-
guém de Marte ou Roma ali se fizesse trunfo na noite de bruma.
O que procuram em vocês ou fora e jamais se mostrou, disse a
fabularia noturna, eduquem os cincos sentidos com o sexto, aus-
cultem, carburem: essa riqueza hermética, esse total êxtase da
vida, abram as portas da percepção e partam. Então, como se
outros espíritos, não os que lhes habitavam a carcaça mal lavrada,
transformassem suas caixas cranianas em pinturas de Monet, on-
de cada flor abraçasse e repelisse; como se um organista tocasse
guarânias numa sacristia e se chamasse José Oiticica e vestisse
uma camiseta onde Jesus Cristo joga truco com Mallarmé, os vis-
se de longe e viesse correndo ao encontro deles. E chegasse suado
como um frade bêbado. Sorrisse, desapertasse sua gravata que
era uma floresta de signos e dissesse: Música, amigos? Todos
então mobiliaram o pensamento com tal oferta e, a máquina do

94
absurdo, guardada, se foi maravilhosamente recompondo e as mãos
do mundo, antes pensas, jogavam, à vista vasta, fliperama de estre-
las. Após tal partida, um deles, uma espécie de Théophile Gautier
italiano, falava de um poema que estava escrevendo – sobre som-
bras e plátanos nas pernas de uma garota. O outro falava com seu
amigo imaginário. Uma nave extraterrena pairava sobre a vila
– os relâmpagos tentavam iluminá-la com seus braços de fogo.
Um, mais quieto, queria comer pastel de queijo, mas não havia,
àquela hora, nenhum bar aberto. Todos slow boat to China. Um
deles mostrou ao seu amigo imaginário as casas geminadas mais
ao fundo. E estendeu aos outros três. Olhem mais a fundo, onde
nada pode se ver! Que ruínas são estas? É uma vida esquecida?
Eu tinha desejo de correr aquela solidão. A imagem perfeita do
mundo desolado espocava aqui e ali, dentre as árvores, as cons-
truções, as ruas, a sintaxe, os fantasmas, a noite imensa. Deram
aos seus pés o privilégio de tomar lições de tempo do chão. Viram
o cantor das ruas, doente, agachado em frente ao Antigo Merca-
do, segurando seu próprio coração. E lhe deram um pedaço do
bolo que traziam – um bolo feito de meses de abril, versos de
Shelley, licor de anis, névoa da estação, alguns malabarismos de
saltimbancos e água de riachos envelhecidos. No que o cantor
das ruas respondeu: Eu vi coisas que vocês não acreditariam.
Todos esses momentos se perderão no tempo… como lágrimas
na chuva. Com a mão esquerda cheia de sangue, apontou para
uma inscrição minúscula no muro de uma casa do outro lado da
rua. Com uma lupa, um dos caçadores de recompensa leu em voz
alta para os outros: Há algo dentro de mim que não se mostra,
e o que aqui aparece é apenas a roupa do infortúnio. Continua-
ram a caminhada, a busca, então o Gautier italiano disse, depois
de despejar na noite fria uma quente baforada de fumaça, que há
mais poesia nestes paralelepípedos que em todas as livrarias
do mundo juntas. Era uma ação entre amigos, lisonjear o delírio

95
e ajeitar a alma na carcaça. A grande sinfonia da viagem alar-
gava sua cátedra. Uma palavra tatuada na língua: implatt – um
enigma guardado dentro da morte que chora porque é a camada
mais humana da vida e passa o dia inteiro no cinema quando
morre uma flor. Ao chegar à ponte que liga as duas metades da
vila inglesa, pararam. Abriram a garrafa de conhaque de gengi-
bre e acenderam um paião. O mais louco de todos, que queria
ler e se embriagar mais ainda, pediu ao mais triste e estranho
que lesse o poema que trouxe – e este recusou, pois estava em
Marrakesh, observando Kenneth Rexroth disputar uma partida
de sinuca com David Foster Wallace na casa de um velho poeta
argentino que jamais publicara livro algum e fora ao Marrocos
imediatamente após o golpe militar de 24 de março de 1976. En-
tão, pegou o papel dobrado e passou adiante, pedindo que pas-
sassem, em contrapartida, a bola. O poema falava sobre silêncio
e dicionários, chuva, biblioteca, canção e cartas não escritas. Ou-
viram Bowie cantar docemente Planet Earth is blue, and there’s
nothing I can do – e os sinos mudos nos ouvidos do poeta que
vagueia num barco e diz que a lua é um “globo de louça”, de um
poeta que escreveu os sonhos todos em Mauá. Os membros da
tripulação andam de um lado para outro como fantasmas de
séculos extintos – diz Edgar Allan Poe, enquanto acende uma la-
bareda e toda a fumaça verde do mundo invade os pulmões dos
caçadores de recompensa. Lembram-se do Gastão, o primo do
Donald? Com tamanha sorte, encontraria, sem dúvida, o que
tanto almejamos – talvez num soluço, talvez num tombaço –
disse um deles, bem baixinho. O outro então respondeu: Anti-
gamente, acreditava que se uma pessoa morria a gente poderia
colocá-la embaixo do chuveiro quente, bem quente, e esperar
que a água lhe esquentasse e amolecesse a carne e o coração da
morte que, comovida, lhe daria a vida novamente. Mas depois,
tentando, vi que isso não acontece, é inútil. Eles apenas ficam lá,

96
quietos, chorando a nossa lágrima. O último corvo come carniça
sobre as jurubebas. Os nuncamais da parcial matemática bus-
cam o oráculo numa nuvem de chuva. And The Raven, never flit-
ting, still is sitting, still is sitting. Amamos o deserto, os pomares
abrasados, as lojas decadentes, os bares de esquina, as bebidas
quentes. Nos arrastávamos pelos becos embolorados e, de olhos
fechados, nos oferecíamos o sol, de fogo, ao deus de fogo. Talvez
a grande recompensa fosse mesmo abrir a vida aos sentidos – co-
mo aos livros, na sala de leitura do inferno.

97
Perda (violência)

Tenho a impressão
que já disse tudo
E tudo foi tão de repente.
Paulo Leminski

A margem oeste da represa está repleta de garrafas pet. Enquanto


o sol vai triturando o resto do dia como se mascasse fumo de corda,
penso nas palavras de Blake que dizia que, na versão do Demônio,
foi o Messias que decaiu e acendeu o céu com o fogo do inferno. Pen-
so no fracasso humano. No fracasso da memória em apreender toda
a beleza pela qual o desejo passou nestas quatro décadas. Há que se
ter paciência, é o que todos dizem. Tudo, então, desde a menor das
agulhas à Muralha da China, se extinguirá calma e pacientemente.
É o que atestam também as esmeradas e finas Baronesa de Bacourt
e Condessa de Bagnoregio. Calma e pacientemente nenhum poema
pode ser um pecado para uma culpa, como escreveu Trakl num
bilhete entregue a Ludwig von Ficker, antes de embarcar no trem
que o levaria à guerra. Na outra margem, nada se vê ou o que se vê
não se quer reter. Pedra nascida da pedra. Lida, caixão e sorte. Coi-
sas perdidas no último vagão. Dizem que há uma literatura imortal,
que jamais se apagará. Mas como, se os astrofísicos dizem que em
alguns bilhões de anos nada mais nessa galáxia existirá? Se até o
Sol se apagará? Falácias são a velha sopa servida na praça, sempre
requentada, cheia de sódio, amarga. Groselhas são groselhas. Na
noite absurda lá fora, o velho bêbado, na praça deserta, começa a
desfiar as lembranças, uma a uma, como se quisesse remontar, pelo
avesso, o silêncio de Buda. Na noite absurda lá fora: Trínculo se
divertindo embaixo da língua, mascando cravos e estrelas.

98
Da universidade desconhecida,

Trampei 16 horas no supermercado e às 8 da manhã tinha 150


contos sei que ganhei 200 e não sei o que houve com os outros 50
suponho que comi algo e tomei cervejas e café com leite no Bar do
Seu Jão perto do supermercado e choveu a noite de sexta e toda
a manhã de sábado e às 10 fui ao editor da Tribuna Popular e co-
brei 10 contos por um poema que publiquei por lá e agora eu tinha
160 contos e decidi comprar uns cds virgens para gravar Noel Ro-
sa Vitor Ramil Itamar Assumpção Jards Macalé Sérgio Sampaio
e comer uma excelente panqueca de carne moída com azeitonas e
traduzir este poema ou esta nota de Roberto Bolaño que é como
um pulmão ou uma boca transitória que diz que estou feliz porque
há muito tempo que eu não tinha tanta grana no bolso

99
E-mail para Tom Waits

Ela, uma angústia hopperiana, encostada no balcão, tomava


dry martini e soltava imensas baforadas de fumaça. Fitava sua
própria sombra – que era ela mesma, em versão instrumental,
tomando dry martini e soltando imensas baforadas de fumaça.
Meu pigarro cínico deu início à conversa. Eu sabia que ela era
mais uma bela garota que queria chegar num sebo e comprar um
livro do Larry Brown, lê-lo em êxtase, guardando sob o grafite o
que a memória provavelmente vacilaria, e na noite seguinte en-
contrar alguma amiga para dizer que a mãe havia telefonado, aos
prantos, dizendo que o pai continuava com uma sede insana e
que o irmão metera-se com traficantes, mas mesmo assim sem-
pre haveria um espaço na vida, mesmo que mínimo (aquele que
há entre a morte clínica e o paciente estendido sobre a mesa de
cirurgia), para a vida. Da mesma maneira que ela sabia que eu
era o sujeito mais solitário da cidade, e que meu cigarro estava
acabando e que eu diria que em algum lugar entre o século xix

e a Etiópia, Rimbaud teria dado um tiro em um de seus criados


por este tentar lhe roubar, enquanto dormia, duas ou três moe-
das de ouro. Nós, definitivamente, não acreditávamos em verda-
des. E isso acabou em tesão. Então, o dancing quase vazio, ela
pegou em meu braço, sacou o batom e escreveu a palavra sin-
taxe. Do nada. E do nada, lembrei de uma canção interpretada
por Johnny Cash e fiquei curioso em saber se ele houvera passa-
do por algo parecido quando pensou em cantar “Hurt”. Johnny
Cash não se lembrava dos sonhos das noites anteriores – ela
disse. Fiquei quieto e pedi a ela outro cigarro. O que me enoja no
amor é que ele é uma coisa fácil demais. É como comprar um
Chicabon na padaria. É como chegar atrasada ao trabalho e

100
esfarrapar um verbo qualquer. Deveria haver uma lata para o
amor entre a coleta seletiva de lixo. Mas não, não, as pessoas o
guardam consigo e o levam para o jantar, com a esposa e com
o amante, entre uma e outra senha. Levam-no para as reuniões
sobre superfaturamento e para o jogo de futebol com o filho,
no Playstation. No amor cabe tudo, o catarro, a lágrima, o es-
perma, o sangue, o carinho, a mentira, a verdade, a sujeira. É
amplo demais. Democrático demais, como a morte – amar-te
amor-te, morrer. Carente demais. Fácil. Só o amor parece não
caber no amor. Estranho, né? Fiquei quieto novamente. Estava
bêbado demais e o amor – o que eu tinha para falar sobre o amor
– com certeza havia deixado em alguma velha canção que fala de
perdedores e bêbados incorrigíveis. Eu era apenas um cachor-
ro molhado esperando a cidade se esvaziar para que eu pudes-
se vasculhar os sacos de lixo e, quem sabe, encontrar um amor
qualquer e matar minha fome. E ela era aquela doce desordem
dos sentidos. Porém, a doce desordem dos sentidos jamais havia
ouvido nenhum dos seus discos. Tive que cantar uma a uma as
suas canções – sem lembrar sequer de uma. Antes de adormecer,
ela disse: a culpa e os cadáveres escondidos são a essência das
cidades. Aqueles braços eram como um imenso beijo e neles me
guardei durante toda a noite. Foi então que um caixão apareceu
no meio da sala. Eu, confortavelmente anestesiado, beijei-lhe o
rosto, e, antes do pássaro cheirando a óleo diesel abrir seu voo,
depus o amor, quieto e esquecido, atrás do seu sono – perigosa-
mente próximo ao açúcar dos sonhos.

101
Manhã de julho

Era uma vez uma noite. Valentina atropelando um cão. Era vez
uma manhã – que se abriu dentre as vogais da noite, que se foi
como uma pluma. Jogo de azar, gramas de cocaína, uma almo-
fada com um nome escrito com caneta azul. Deraldo escrevendo
uma carta. Deraldo escrevendo um poema. Poderia ter um final
feliz, com pães e vinagrete, um guri enchendo um balde de areia
enquanto o sol regurgitava mais um dia de verão. Quem sabe ha-
veria duas crianças e um mar de siris na areia? Caminhava pela
rua de paralelepípedos, que se chamava Rua da Chuva de No-
vembro, pensando em Grmpf (que depois de esnobar Pti (e se
arrepender por isso) conhece Eric (que achava que metendo uma
cabeça dentro de Grmpf tiraria Fiona da outra cabeça) num bar) e
Pti (que depois sentirá apenas ódio por Grmpf), o casal apaixona-
do que cursa Ciências Biológicas do conto “O ciclo menstrual”, de
Quim Monzó. E por que, de repente, colide com essa lembrança
a canção “1979”, dos Smashing Pumpkins? Talvez seja por conta
de uma outra lembrança: os olhos tristes de Billy Corgan obser-
vando os quadros de Walter Sickert. A solidão, uma lembrança
dentro da outra, sendo abertas como um túmulo. Uma dentro
da outra, como bonecas russas, como a saudade nordestina. Se
aqui não pudesse estar, onde estaria? Assistindo a um filme no
qual um sujeito solitário cruzava a estrada de Damasco ouvindo
a chuva. Ou lendo À margem da linha, de Paulo Rodrigues, no
parque, sob a copa de uma árvore cujos frutos não são evidentes.
Ou, talvez, ouvindo Charlie Parker e traduzindo Adrienne Rich:

102
Era um tema velho, mesmo para mim:
A linguagem não pode tudo –

Escreva com giz nas paredes dos mausoléus


onde os poetas mortos memorizam a aurora

Se um poema pudesse, pela vontade do poeta,


transformar-se em coisa

Um flanco nu de granito, uma cabeça erguida


acesa em orvalho

Se simplesmente eu pudesse fitar seu rosto


Olhos nos olhos, sem que você se virasse

De repente, havia uma cadeira, uma xícara de café quente e uma


falação ininterrupta em todo o ambiente. Um cãozinho roen-
do um playmobil perto da estante onde uma tv ligada emude-
cia as ondas do mar na areia úmida de uma praia sabe-se lá de
que lugar. Daí fazer todo o sentido aquela fala da atriz Ludivine
Vercauteren, naquele filme belga cujo nome foi esquecido para
sempre, que diz que quando a gente está com alguém que sabe
como amarramos o cadarço, que tira do nosso silêncio um verso
que gostamos ou que sabe quantas pedras de gelo queremos em
nosso uísque, entendemos perfeitamente a fala da luz através de
gestos de luz. A manhã estava de azáleas e frio na ponta dos de-
dos, roxos. Nós continuamos do tamanho de nossas caveiras,
onde reinamos sozinhos.

103
Apollo is a girl

Ela lê sobre os ataques corsários no golfo de Aden, costa da So-


mália. Os somalis não querem viver de cheirar fumaça de óleo
diesel. Iates de luxo, pesqueiros, veleiros, foi tudo pro vinagre. E
agora foi a vez do superpetroleiro saudita Sirius Star. Para liber-
tar o navio e a tripulação, os somalis exigem US$ 25 milhões. No
abominável estômago de aço do superpetroleiro, dois milhões de
barris de petróleo avaliados em US$ 100 milhões. Não queremos
que as negociações se eternizem, afirmou o comandante corso.
O príncipe saudita decidiu desembolsar a nota preta. A Blackwater
logo aportará por ali com setenta mercenários cuspindo coca-cola e
chumbo. O jornal sabichão diz que a Somália é o país mais falido
do mundo e que depende de ajuda humanitária internacional
para sobreviver. Aqueles olhos, antes castanhos, abusavam um
azeviche sem alavanca de reparo, como se o jornal lhes houvesse
imprimido o imundo carvão de suas tralhas. Às vezes imagino
que minhas palavras são como chips de silício afundando num
pântano, você disse, antes mesmo que a magra luz do sol de in-
verno pudesse, com suas lâminas afiadas a persiana, cruzar os
pães sobre a mesa. Terrível o planeta que criamos… Sim, mas
também sintomático, como aquele sonho que você teve por dias
seguidos, onde um artista cego repetia infinitamente a mesma
oração: “Não se tira leite de tanques de guerra”. “Não se tira leite
de tanques de guerra”. “Não se tira leite de tanques de guerra”. Até
que a oração perdesse por completo o sentido. Ele tinha sempre
as mãos ensanguentadas e sua obra-prima era uma reprodução
hiper-realista em Lego de Eduardo Collen Leite após ser tortura-
do por 109 dias consecutivos. A precisão do artista em esculpir
o corpo repleto de porradas e queimaduras, as orelhas decepa-

104
das, olhos vazados, dentes arrancados, escoriações, hematomas
e centenas de rasgos, a impressionou. Tanto que a vida também
perdeu por completo o sentido para você, lembra? Sempre há
quem tente mudar as coisas. Como aquele homenzinho que de-
dicara sua vida a olhar demoradamente as pinturas dos grandes
mestres franceses e a derrubar o governo da Rússia. Sim, exato,
mas o que fazem os jovens inteligentes das famílias abonadas,
senão falar de literatura e de pintura? Ou aquele velhinho, cujo
azul salgado do mar ardia-lhe a pele e que não pescava peixe al-
gum há 84 dias até entrar num violento combate com o enorme
espadarte que, vencido, negou-lhe a carne e esparramou apenas
seu imenso esqueleto à orla. E nós também gostamos de biscoi-
tos de gengibre, de música vienense, de fumar e de beber licores
fortes como metal fundido. Mas não somos mesquinhos, não
posamos de subversivos doentes de esnobismo burguês. O tiro
de fuzil aceso na semântica de um poderoso verso pode alterar
alguma frase na prosa da história? Pode derrubar um caça isra-
elense momentos antes de descarregar sua diarreia sobre os civis
na Palestina? Poderia, naquele 16 de setembro de 1982, conter as
milícias cristãs libanesas que invadiram os campos de refugiados
palestinos de Sabra e Chatila e massacraram a população? Poderia
ter evitado o assassinato dos ativistas Michael Schwerner, Andrew
Goodman e James Chaney cometido pela Ku Klux Klan no dia
21 de junho de 1964? Poderia nos salvar de nossa inevitável de-
solação? Uma rima pode algo contra uma carnificina? Jamais!
Somos, todos nós, editores de discursos perversos, desembru-
lhando bombons e vendo ouro onde não há. Eu poderia cantar
uma canção para descansar a menina dos seus olhos. Estamos
sempre prontos, vestidos com nossas camisas, quase sempre cla-
ras, de tecido barato. Esvaziamos os copos, tentamos riscar um
sorriso no rosto um do outro. Tentamos pensar que, mesmo sob a
manta empesteada desta terrível miséria, ainda vale a pena con-

105
tinuar respirando por este planeta. Como o casal que caminha
de mãos dadas e cujas camisetas azul e vermelha machucam o
cinza esquizofrênico da cidade bombardeada. É preciso que diga
como vejo esta maçã, a rua, as pessoas, meu cinzeiro de cerâ-
mica, aquela garota na janela, já que foi isso que escolhi como
referência neste momento em que a astrofísica se centraliza no-
vamente na história do cosmo. São as linhas da minha mão que
me levam ao centro do mundo ou o centro do mundo que me leva
às linhas da minha mão? Viver é a profanação do improvável,
é um acontecimento aquático, um madrigal sussurado de longe.
I have become so depressed by the fact of my mortality that I
have decided to commit suicide. Na verdade, queremos apenas
alguma serenidade. Já passamos dos trinta e sabemos que ela
realmente se matou. Enforcou-se com um cadarço que arrancara
de sua bota preta com a qual sempre caminhava pelo St. James
Park refletindo sobre as questões de impasse e espera nas peças
de Beckett. Os torturadores caminham de fraque pelo anfiteatro
de cúmulos da inconsciência coletiva. Quem na verdade morres-
se tuberculoso e molambento, antes dos dezesseis anos, seria o
único talvez a ter razão. Os outros se dilaceram entre si. Eles se
vendem, são vendidos, eles se venderão para todo o sempre. Vi-
vemos momentos nulos. Ainda assim, meu coração teima em ba-
ter. É a teima que preciso para continuar a construir locomotivas
e acrobatas. Essa lua vermelha, debaixo de nuvens encardidas,
essa eternidade que nos foge e que a tudo deita cor: você pega
minha mão e diz: imagina se o mundo fosse uma cama e a gente
pudesse andar de meia o tempo todo.

106
Animal Boy

Para Rogério Sganzerla

Um animal amarelo de alguns centímetros de comprimento e


pernas curtas alaranjadas dominará a Terra nas próximas horas.
É o que disse o porta-voz do Dept. of State dos Estados Unidos há
17 min. na cnn. Nesta conspiração universal de dimensões catas-
tróficas, as ondas de medo assolam o mundo. Na Venezuela, to-
dos os hospitais do país amarelaram. Os médicos pararam de
escovar os dentes da bunda na Holanda. Os sex shops foram pi-
xados com spray de chantili na Escócia – o caos chegou a afetar o
sabor dos tradicionais uísques matando de sede os entediantes
poetas da terra de William Wallace (chegando a abalar as cores
dos moradores das Highlands). Em Cuba, a fabricação de açúcar
mascavo parou, pois no Granma especulava-se que o mascavo
seria o alimento predileto do conspirador amarillo. Nenhuma
autoridade da Ásia quis se pronunciar. Na Sala de Justiça não se
fala em outro assunto (mesmo com Batman tendo enormes pro-
blemas com a tríade artrite artrose arteriosclerose). Ainda assim,
as dutch-wife continuam a ser entregues nas casas de Asa Branca
(alguns afirmam que por conta da cor do uniforme, os carteiros
estejam envolvidos – os aterrorizantes filhos de Piu-Piu! – bra-
veja Nicholas Joseph Fury, agente de elite da s.h.i.e.l.d.). Heitor
G. Tarantini, poeta brasileiro nascido na Argentina, não acatou o
boicote e foi autografar seu novo livro em frente à livraria Yellow
Lights, em frente aos estúdios da Warner Bros. – considerados
pelas 358 igrejas da Oceania como o quartel general do maligno
Animal Boy. No Brasil, os deputados se reuniam para dividir a
pizza da corrupção que assola o país. Quando ouviram a maléfica

107
notícia os ratos resolveram abrir uma cpi para verificar os fatos.
Nosso correspondente em New York: “w.c. Fields disse agora, en-
trevistado que foi por Bento Carneiro, The Brazilian Vampire, do
jornal FavelaJuice, que a causa disso tudo ‘é a falta de álcool nos
neurônios, astrócitos e oligodendrócitos’”. Nas plantações de ar-
roz no Japão apareceram as seguintes inscrições na última ma-
nhã: já têm ouvido o eco de meus calcanhares na frescura da luz
e na escuridão – versos apocalípticos atribuídos ao Animal Boy
quando este figurava preso na Tweety Cage de 15 polegadas. E a
última notícia que chega de Washington pelas mãos do nosso en-
viado especial, Chico Laço, destemido repórter de Itapecerica da
Serra: “Alfred E. Neuman, Presidente dos Estados Unidos da
América, diz que não há razão para penico e que o Animal Boy
será capturado pela ação conjunta da cia, dos Vingadores, do fbi,
da Scotland Yard, Interpol, da s.h.i.e.l.d., da Polícia Nacional de
Patópolis, da Liga da Justiça e da swat e será vigorosamente tor-
turado junto com os elfos, afegãos e iraquianos em Guantánamo,
sem dó nem convenções de Genebra. Aproveitando para pedir a
todos que abasteçam sempre na Texaco, amem o Texas mais que
suas próprias mães ou améns, o presidente declarou também que
a Casa Branca manda suas condolências à família de Frajola, que
está com os nervos em frangalhos depois de saber, por Speedy
Gonzalez, a verdadeira identidade do sanguinário. Carl Carlson,
Charles Bukowski, Lenny Leonard, Barney Gumble, Adam Wor-
th e Homer Simpson discutem ferrenhamente no Moe’s, entre
um Taj Mahal de latinhas vazias de Duff, de que lado c.m. Burns
está, sem saber que Burns não está nem aí: “os jornais dizem que
sou bom, cobra, gênio… adotado da divina providência. Com um
só telefonema, cancelei todos os jogos dos Isótopos de Spring-
field”. Do outro lado da Era do Gelo, as bandas de National Socia-
list Black Metal de toda a Europa (incluindo as polonesas,
búlgaras e húngaras) começam a cultuar Animal Boy, substituí-

108
ram as tradições nazi, celta e viking pelo culto ao novo messias do
mal Heil Animal Boy! – bradam. Inclusive, deu na Gazeta
Wyborcza: “de hoje em diante (urros) o corpse paint (mais ur-
ros) do Graveland (mais alguns urros), será amarelo cova (outro
urro) Hitler, perto do magnânimo mestre Animal Boy (mais al-
guns grunhidos) não passa de uma espécie de Bloody Mary com
sangue de menstruação (urros), enquanto (Heil!) Animal, é com
o próprio sangue do ódio de Odin! (bonus track: urros)” – disse,
maleficamente amarelado, o vocalista Darken (depois de cuspir
sangue no chão e mostrar a tatuagem da suástica coberta pela
imagem dourada do Animal Boy dentro de sua famigerada nave
espacial de Corn Flakes). Um hino, atribuído ao terrível Animal
Boy, Hymn of the leper Messiah, foi executado por músicos pa-
gãos noruegueses com a voz de uma cantora lírica angolana que
falava inglês para uma plateia romena na sala de concertos ára-
bes da embaixada belga num bairro judeu da Nova Zelândia. Em
Las Vegas, entre pavor, sodas italianas e chuva de dólares: “é co-
mo se fossem férias de primavera na faculdade”, diz Heather For-
dham, treinadora de Illinois que veio acompanhada de 20 amigas,
“a única diferença é que temos todas mais de 30 anos e precisa-
mos de mais tempo para superar as ressacas”. “Animal Boy? Ih,
nem vi…”. A Banda Podre anulou todos os shows em Londres
decidindo compor, nas White Mountains, um álbum conceptual
que se chamará November’s doom e falará, em suas letras, da
chegada do Animal Boy, o maligno. Palestinos que vivem nos Es-
tados Unidos depois de peregrinar pelo bairro chinês (com al-
guns irlandeses bêbados até a alma) na busca incansável de um
frango xadrez (mas os últimos foram consumidos pelos Harlem
Globetrotters) rezam sobre o túmulo de Allen Ginsberg. Mas é
inútil! Irwin está morto! O fantasma da Princesa Diana foi visto
numa aldeia de pescadores na América Central. A assombração
real acompanhava um pequeno ser amarelo de sorriso meigo e

109
olhos azuis que alguns caiçaras juraram ser Animal Boy, o sinis-
tro. No distrito de Queens, ny, um membro dos Vingadores, Ja-
queta Amarela, foi ovacionado por um grupo de 27 neonazistas
turcos que o confundiram com o facínora. Os outros Meffias, Edir
Maffedo e Filas Malaffaia, reuniram a corja e as forças para arre-
cadar fundos (e mundos) para construir uma caixa-forte nos
moldes da do Tio Patinhas na sede da Igreja Quadrangular do
Triângulo Redondo na tentativa de salvar as onças pintadas e as
garoupas da tenebrosa ameaça do carnífice. Devido à onda de an-
tiamarelismo que assola o globo muitos países vão extirpar o
amarelo de suas bandeiras, muitas casas serão repintadas, os clu-
bes de futebol aboliram a cor de suas fardas – inclusive os cubos
mágicos terão seus quadrados amarelos trocados por adesivos
pálidos. Em Hamburgo, um jovem com a cabeça motorizada re-
pete alucinadamente i’m not an imbecile don’t treat me like an
animal um videomaker de vanguarda (que era um leitor de nove-
las de cavalaria medievais e vestia uma camiseta do Motörhead)
registrou tudo enquanto tomava Snapples Animal Boy Animal
Boy – repetia Jorgo, o hamburguês. Em entrevista à Rádio Fflo-
bo de sp, a escritora Bruninha Surfistinha declara: “O Animal Boy
era meu melhor cliente, pequeno e insaciável, adorava minhas
calcinhas sabor alpiste. Um fofo!”. Chegam milhões de e-mails
apavorados do mundo todo alertando sobre uma gravação de
Osama Bin Laden fazendo ameaças ao lado de Animal Boy que
está circulando deliberadamente no YouTube. Rezam em Calcu-
tá, oram na Eurásia, em Avilan, suplicam em Oz, na Faixa de Ga-
za, em Gotham City. Animal Boy nos poupe, por favor! – implora
sua fantíssima fanta fantidade, o Papa Chico Bento xvi. Monstro
mascarado! Zorro espacial!! Misterioso tarado!!! Criminal maco-
nheiro!!!! National Kid zóiudo!!!!! O típico selvagem do século xv
jogado em plena selva de concreto, um ser à-toa na maré da últi-
ma etapa do capitalismo: Animal Boy, onde está você? Willy

110
Wonka está deprimido. Capitão América está morto. Pouco se
pode fazer contra o libertino. Rezemos, meus caros amigos do
globo terrestre. Rezemos, pois a cobra vai fumar! Retomamos
nossa programação normal e voltamos a apresentar Spectreman
com oferecimento das Gravatas Pigalle, arrojadas com seu bom
gôsto… e Tintas Ypiranga, uma cor para cada fim! Peguem seus
bolinhos de chuva, seus achocolatados e preparem o sofá. Episó-
dio de hoje: “Dr. Gori, o criador de monstros” (epílogo). Versão
brasileira aic São Paulo.

Planeta: Terra. Cidade: Tóquio.


Como todas as metrópoles deste planeta, Tóquio
se acha hoje em desvantagem na sua luta contra
o maior dos inimigos do Homem, a poluição.
E apesar dos esforços de todo o mundo,
pode acontecer o dia em que a terra, o ar e as águas
tornem-se letais para toda e qualquer forma de vida.
Quem poderá intervir?

Spectreman!!!!

111
Subterranean homesick throat

Para Gabriel Pedrosa

Nesta aldeia onde a geração se calou – e foi enterrada. Onde ca-


minha um homem infeliz à margem de um rio de água servida
que pensa em ir para um mosteiro. Onde a reflexão é devorada
pelos mesmos vermes que devoram nossos mortos. Aldeia mi-
nada de torpor, onde um sapo gargalha na lagoa e os homens-
-gargântua, após sorver vinho no gargalo, coaxam sob a noite
fúnebre. Uma víbora levava sua caderneta de contas e nela ano-
tava cada centavo que lhe era pedido de empréstimo pelos enfor-
cados. Surge uma lua sobre o rio da aldeia, que bem poderia se
chamar Uqbar. Em Uqbar, descobriu-se tarde, há um teatro onde
se encena uma peça com apenas duas atrizes, duas personagens
e uma fala que dura mais de seis séculos – onde (num templo
branco, que os mármores augustos e as cinzeladuras douradas
esmaltam e solenizam com resplandecência, dentre a profusão
suntuosa das luzes) Petra diz para Karina: “Você é uma putinha
muito escrota”. Uqbar possui uma delicadeza de zéfiro e uma
gravidade de Abraão. Uqbar não está no mapa. O homem, ais a
esmo, mais do mesmo, continua caminhando. Risca um fósforo,
acende um cigarro, joga a caixa vazia na lata de lixo, pensa em
Ingeborg Bachmann quando disse que o poema de sabor forte
nos proporciona saltos ornamentais interiores, cheios de rasgos
e fraturas expostas. O sol adentra a janela, vejo na estante, solto
de seus comparsas lusíadas, o livro. São Paulo. Ponte Buarque
de Macedo. Abro o livro e leio que Cesário Verde escrevera a seu
amigo, Antônio de Macedo Papança, que “ia indisposto contra
tudo e contra todos!” e sobre um seu poema (de Cesário) recla-

112
mara que “não obteve um olhar, um sorriso, um desdém, uma
observação! (...) Ninguém disse bem, ninguém disse mal!”. Maré
da mercancia sob as olheiras vesgas do enxame de vespas. O his-
toriador italiano Luciano Canfora muito bem observou que foi a
cia que comandou a ação dos generais nazistas chilenos rebela-
dos contra Salvador Allende na noite de 11 de setembro de 1973.
O presidente eleito foi brutalmente assassinado. Mais de 30 mil
chilenos teriam, nos anos seguintes, o mesmo destino. Uma das
técnicas de ocultação de cadáveres da ditadura chilena era enter-
rar os cadáveres nas paredes de casas e edifícios. Thurston Moore
canta: Another can of worms / Another stomach turns. Eu já não
me chamava Carlos, me chamava 255. Assim passamos, de viés
e pasmos, do Horror à Memória. Estilhaçar a linguagem depois
de ter os dentes todos estilhaçados à porrada de cacetete ou ba-
que de baioneta. Algumas situações só se tornam evidentes dian-
te do terror – lembremos de Ivan Klíma, que só descobriu que
era judeu quando o exército nazista invadiu a Tchecoslováquia,
durante a Segunda Guerra Mundial, e sua família foi parar num
campo de concentração. Por isso uma e outra coisa, dentro e fora
de certa ordem – a morfina nominata que Else Lasker-Schüler
sorvia para escrever poemas de amor a Giselheer. Por isso é tão
importante imaginar uma garota russa que se perdeu pelas ruas
de Buenos Aires. Por isso a discrição do vizinho de 20 anos que
matou a mulher e o bebê de 1 ano e 7 meses e os picou e os em-
brulhou em papel filme e os colocou no congelador para que não
fedessem. Um sinal a menos e todos nós sabemos que os outros
países não servem para merda nenhuma. E a morte (do outro) se
torna coisa fácil – e se chamar café com leite, média ou pingado,
torna apenas uma fase da elucubração linguística como fonte de
prazer no e do princípio de prazer. Não adianta matar o prínci-
pe e deixar vivo o princípio. Somos o sangue movido a sangue.
Aquele que se derramará entre o disparo da pistola automática e

113
a cabeça da médica que reagiu ao assalto na avenida Rebouças.
Todas as chacinas da cidade somos nós passados a limpo. Somos
a cidade com queimadura de terceiro grau. Temos o direito de
ficar calados e tudo o que dissermos deve e será usado contra nós
no tribunal. Esse drama, essa dor. Ao lado da lata de sardinhas,
na lata do lixo. Somos todos o cara do ônibus 174. E não há re-
denção possível. O sol, acima, muda a coloração da parede. Liszt,
que conheceu o luxo e obteve fortuna, deixou, quando o silêncio o
vestiu definitivamente, seis lenços. Quis morrer tão pobre quanto
nascera. Lima Barreto, em seu diário, escrevera: Desde a minha
entrada na Escola Politécnica que venho caindo de sonho em
sonho e, agora que estou com quase quarenta anos, embora a
glória me tenha dado beijos furtivos, eu sinto que a vida não
tem mais sabor para mim. Não quero, entretanto, morrer; que-
ria outra vida, queria esquecer a que vivi, mesmo talvez com
perda de certas boas qualidades que tenho, mas queria que ela
fosse plácida, serena, medíocre e pacífica, como a de todos. To-
dos continuam sem saber onde iam elas, as flores de antanho.
E eles, eles todos, absolutamente todos, como no poema de En-
zensberger, continuam, covardes assassinos da dissonância, da
vida, incapazes de transformar o mundo.

114
Herança (Presto)

Tudo vira bosta. Então: nonilhões de toneladas de merda diária


para as gerações futuras. Merda de todos os países, de todas as
línguas e culturas. Merda de toda crença, tamanho, espessura,
cor, peso, consistência, consciência, intensidade. Nonilhões de
toneladas de merda diária para as gerações futuras. Nonilhões de
toneladas de merda diária para as gerações futuras. Nonilhões de
toneladas de merda diária para as gerações futuras. Nonilhões de
toneladas de merda diária para as gerações futuras. Nonilhões de
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120
Horror

121
Autobiografia

Ofício da agonia. Exercício de exorcismo. Palco de bailados rus-


sos. Tango argentino. Inflamação no ventre da primavera. Pássa-
ro araponga que inventa o próprio ferro. Mero número do zero.
Diástoles de guerra. O próprio sangue de maquiagem. Suor a
contragosto, frio, no fundo do poço. A faixa seis do lado b do meu
último lp. Absurdo original e seus enigmas. Cansaço da ilusão.
Neste mundo, criando outro. Recusa. Suficiente para perfumar
meu século. Um mistério. Cabeça fria, coração quente. Doutor
em nada. Um ajuste de contas. Regresso ao lar. Trabalhar cansa.
Desferrolhado, indecente, vidente. Começo e recomeço. Anar-
quia. Vi muitas nuvens. Tudo é noite. Preta letra que se torna sol.

122
Perda (delicadeza)

Deve ser a densa insinuação de tua ausência que me tateia nes-


te inverno de céu limpíssimo. Como eu estivesse numa intermi-
nável cena de chuva e, olhar baixo, tentasse desesperadamente
descobrir no fundo dos bolsos desta velha calça de veludo (sob
um dilúvio) o toque de tuas mãos. Com desespero e o pé direito
tento desenhar uma pequena cordilheira com as lágrimas que se
misturam, sobre os azulejos brancos, à poeira desta casa. E se
eu colocar o número três à frente do quatro, as coisas mudam,
pai? Curioso que, estriada por lágrimas, esta camisa, que era tua,
parece querer comunicar algo à altura do coração. Dormes, ain-
da menino, abraçado a imensas orquídeas – cujas pétalas tento,
em vão, tocar por entre o módulo de azuis maciços desta noite.
Uma cidade devastada, outra morta. Uma a dor da outra. Toda a
forma de nitidez retirou-se, deixando em nós a tortura de pensar
sob a lama suja do não ter estado lá. Escavo a caixa torácica na
tentativa de descobrir onde está guardada a escadaria de lajotas
vermelhas, o sapo de pano, a tempestade que entrou pela janela
e inundou a sala. Pegue esse abraço aqui e se cuide, é na noite
escura que tudo se torna ainda mais amargo. Quando ateei fo-
go à casa, não percebi a parábola que estava criando para tentar
domar meus medos. Levanto-me, caminho de um lado a outro.
São livros, discos, copos vazios, tênis jogados, uma cortina encar-
dida. É… como nos desenhos animados, você sempre aparecia
para salvar o dia. Quando eu não quis mais ser feliz, entendeste
perfeitamente. As declarações de amor são silenciosas e é dessa
maneira que nos devolvem ao útero de nossa irremediável ca-
tástrofe. É que as declarações de amor moram com as prímulas,
bem no início da primavera. Tornamos-nos o coração morto de

123
uma galáxia perdida dentro de uma bola de sabão. E, perplexos,
notamos que não há remédio. Jamais haverá. Vá lá, filho, faça
as coisas que devem ser feitas. Mas não se esqueça de algumas
outras coisas que você já sabe muito bem, não é mesmo? Esta-
mos doendo num jardim aleijado, meu pai. Há uma montanha
ao norte, um repuxo de céu. E há um balcão, garrafas e uma ca-
feteira em algum lugar. Sinto-me cada vez mais longe de casa co-
mo um aroma que se perde em si mesmo. Nada aconteceu, meu
pai. And I don’t fucking care! Com este sorriso tímido, sempre
de luto, na beirada desse crepúsculo recortado pela janela deste
vagão, miro um livro aberto e outro fechado, ou uma xícara de ca-
fé ornada com dedos brancos e olhos baixos sob um chapéu coco
e uma cadeira vazia à frente. É uma natureza desolada, inesca-
pável pesadelo. Você não tem muita escolha, filho. Você retalha
ou não suas virtudes, suas vítimas. É que de repente todas as
saudades foram criadas de uma só vez. Impossível dizer adeus do
perto deste distante. Há uma pedra que guardamos conosco, no
interstício entre a lua e nossos pulmões. Pedra que pavimenta o
caminho que não é música, que não é poro, não é papel, que não
é. Matéria de insônia, apenas. Saudade, velho, saudade. É nes-
ta imaginária alameda de tílias que passeio meu corpo de filho
prendado na espera. Alvejado, dia após dia, vejo, ao contemplar
o céu da memória, que não há cura. A saudade brinca fora da
morte, como as estrelas.

124
Para quase ninguém (Ou para quase todos)

Mary Poppins usando um vestido branco e chupando um drops


de eucalipto enquanto faz um boquete em Hunter S. Thompson.
Hunter S. Thompson imaginando alces recheados de chumbo e
desmanchando na língua outro acid Mickey Mouse. Julian Len-
non desenhando a colega de escola no céu com diamantes. A
colega de escola da garota do noticiário nacional e internacio-
nal levando um balaço na cara. Mapple Thorpe compondo seus
autorretratos depois de respirar algumas lagartas de cocaína.
Uma obra de Hélio Oiticica, que repete os traços da face de Jimi
Hendrix, se chama Cosmococa. Dirceu Villa se impressionando
com o concerto de Hendrix na Ilha de Wight. Ace Frehley mas-
cando chiclete e cantando New York Groove. Robert Stevenson
pensando no personagem Long John Silver. Robinson Crusoé
acordando entre a farinha do mar e bodeando num poema de
Carlos Drummond de Andrade. Rui Camargo jogando ao limbo
os poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade. O mineiro
só é solidário no câncer. Lech Walesa chorando seus remorsos
enquanto Julie Kuhlmann recomeça a vida através da alquimia.
Os alquimistas evitam qualquer relação com pessoas de tempe-
ramento sórdido. Viva Erasmo, Benjamin, Homero. Os Pixies
jamais musicaram um poema de Pier Paolo Pasolini. As Ilhas
Marianas e as cintilações celestes. Não sei se Joey Ramone se
apaixonou por uma garota chamada Mariana, mas canta “What
a wonderful world” como “What a wonderful world” gostaria de
ser cantada. O mundo é tão ruim quanto parece. Nenhum herói
de guerra é lembrado no dia seguinte. A pílula do dia seguinte
resolve muitas dores de cabeça alcoólicas. F. Scott Fitzgerald,
símbolo do hedonismo e amado por Zelda, era alcoólatra. O poe-

125
ta Torquato Neto tinha enormes problemas com álcool. As sala-
mandras têm mais energia no verão, quando suas performances
criam mil arco-íris em suas peles, e as pedras são nuvens para
elas. As tartarugas viciam-se em pizza facilmente, principalmen-
te depois da invenção do cinema americano. As cenas de chuva
do cinema americano são algumas das coisas mais belas cons-
truídas pelo ser humano. Aliás, construir num lugar muito belo
equivale a destruí-lo. A primavera de Sandro Botticelli é a mais
bela estação do ano. Foi entre prímulas e brisa perfumada que eu
a vi pela primeira vez. Os cabelos dela me lembram os da Jandi-
ra de Murilo Mendes. Charlie Chaplin ficando em terceiro lugar
em um concurso de sósias de Charlie Chaplin. Robert Walser in-
tuindo que a estupidez avançaria sem freios no mundo ocidental.
Para quase ninguém “Drain You” tocando no meu cubo de treva.
Bandoleiros vi, mambembes moços, jamais voei pela Panair. Vi-
va Artaud, Rimbaud, Baudelaire. Roberval afirmando, depois de
litros de Cavalinho: Você é viado, porra! Devendra Banhart can-
tando “Felicidade” sob a imensa lua vermelha do sertão pernam-
bucano. William Herschell namorando o seu *** em busca dos
itens para completar seu catálogo de estrelas. Gilberto Mendes
regendo “Beba coca-cola”. Isaac Newton jurando sua fé na Igreja
Anglicana do Trinity College. Eliot lendo a Bíblia. Lars von Trier
ocupando os espaços. O coração de Fabiano Calixto se alistando
na Legião Estrangeira. Cantona propondo a destruição do siste-
ma bancário. Caetano cantando “For no One”. Wander Wildner
citando Violeta Parra em “Rodando el mundo”. Em algum lugar
entre o extremo sul do Chile e a República Tcheca há alguém que
me ama desesperadamente. Quase ninguém repara.

126
E-mail para Fabiano Calixto

Notificação de Falha
Seu e-mail não foi entregue no destino…

Isso pode ter acontecido por vários motivos:

•  O endereço que enviou não existe ou foi cancelado


•  A caixa de entrada dele está cheia
•  Você digitou o endereço errado
•  Ocorreu falha de roteamento do servidor no momento do
envio da mensagem.
• Também você pode ter sido bloqueado no endereço de
destino.

– NÃO RESPONDER ESSE E-MAIL! –

Return-Path: <calixtvs@gmail.com>
Received: (qmail 688125 invoked by uid 600301); 2 Apr 2009
16:38:22 -0000 DKIM-Signature: v=1; a=rsa-sha2056; c=re-
laxed/relaxed; d=bol.com.br; s=s1024; t=1238677790302;
bh=pnyIVvXYhm6XmOk+pVrf+cO9BNQ3esHXB9ijvWUCIrO-
tPldXM=; h=Message-ID:X-YMail-OSG:Received:X-Mailer:-
Date:From:Reply-To:Subject:To:MIME-Version:Content-Type;
b=5v/HAYTeZE+bFoNJnZ9XY4rm2dU5gt56FZH7fxGvlTxZ/
ZlNvlWevweTuiS+3fkVsgSEGdGRHKprnA8YC/cKvQ8mYg-
fH0oQdseeULhRZu3UGHEvGGLue5sDF0DYMaHTCyqICd-
7vX7cOCRzju7Mp1dsr5WzXZA1MRK5thSXpiyTtSn2QdNwz-
TGSInNjVnOTY4= DomainKey-Signature:a=rsa-sha1; q=dns;
c=nofws;   s=s1024; d=zipmail.com.br;

127
Poema em que o autor facilita as coisas para que
o resenhista escreva que ele (o autor) é decidida
e claramente influenciado por Drummond (ou,
na dúvida, por Haroldo de Campos)

Júlia amava Paulo que amava João que amava Jorge que não
estava nem aí. Esperaí! Não não não. Começar o poema com a
expressão pPedra no sapato – filantropia estética para o nosso
dogmático crítico. Melhor: coalhar o leitoso poema com a azeda
palavra dentadura (para não falar fezes, porque aí seria Cabral
e, sem dúvida, daria merda). Ah, agora sim vou soar como um
verdadeiro discípulo de monsieur Drummond! Dentadura drum-
mordida. As impurezas do, sus!, pus sob uma luz que não a pouco
faz jus. Um palacete cor de cognac onde o luar deita diabos a ro-
do – rimas rimas rimas: raimunda (feia de cara e boa de bunda)
comporta uma rima e uma solução, outros tempos, monsieur, ou-
tros tempos. As moscas? Ah, pois então, as moscas não admitem
que ninguém acorde sem motivos graves. Dentadura drummor-
dida, vampira vândala! Dentadura drummondê, não confundas,
ó drummunda, hábito com eficácia. Enquanto ouço uns rocks
penso em Ambrósio Lopes. E nos poetas troianos – nem templos
nem jardins nem poesia, apenas a liberdade (ah, isso aprendi
na universidade desconhecida). Tudo isso entre as moscas que
passeiam pelos pelos do gato que dorme a tarde inteira no jar-
dim. Mas ó, vejamos vejamos. Capítulo de novela, folhetim de
internet, pessoal da técnica, essas coisas e outras ostras. Yes, my
glass e salada de alface – ai, se! Abacaxi com independence day.
A maçã não está em seu quarto de hotel. Por falar nisso, lembro
muito bem desta carta que chegara, escrita em papel de fibras de
algodão, à redação do The San Francisco Examiner:

128
On the 4th of July:
I did not open the car door, The
window was rolled down all ready
The boy was origionaly sitting in
the front seat when I began
fireing. When I fired the first
shot at his head, he leaped
backwards at the same time
thus spoiling my aim. He end-
ed up on the back seat then
the floor in back thashing out
very violently with his legs;
that’s how I shot him in
the knee.

Que poderia ser assim traduzida:

Sobre o 4 de julho:
Eu não abri a porta do carro, A
janela estava toda aberta
O garoto estava inicialmenti sentado no
banco da frente quando comecei
a atirar. Quando dei o primeiro
tiro em sua cabeça, ele pulou
para trás ao mesmo tempo
prejudicando minha mira. Foi pa-
rar no banco detrás e depois
no assoalho de trás agitano
muito violentamente as pernas;
e assim atirei no
seu joelho.

129
Todo jornal que eu leio, diz que a gente já era. Hieronymus Bosch
sabia que, à noite, as mulheres só podem cantar a si em pesade-
los quando os sinos dobram. Solidariedade entre o som e o sen-
tido. Isso seria uma tradução da tradução ou a inversão disso?
Pensei num verso. O sol ilusionista Sou o ilusionista nos braços
da quimera. Nós, do éter renascidos, detrás da felicidade – que
espreitava uma pimenteira que experimentava ser sóis no jardim
escuso no vaso. Essa é a minha história portátil da literatura bra-
sileira. Pensemos, pois, no fracasso da consciência individual e na
inexistência de sua franquia coletiva. E se lentamente a abriu-se pe-
las toda abriu-se e convidando-os assim a teu olhar essa se as dis-
tância e no e e tudo mas a como que passasse em baixei a se. Um
mar de mineiro repleto de estrelas de ribanceiras e uma música
ao longe, guardada atrás da porta hermética. De sofrer de horror
e condenado é pétrea próprio horror, enganado, enganoso per-
mutantes uma esmola um plebeu – migalhas retrata? cantantes
planície quadro cataclismo bebedeira cor angustiado missão lon-
ge arquiteto alucina escutam minas glaciais relampeia casamen-
to decepada? acordado ar zombaria cansou? céu perdura coisas
Ressurreição redundância todos duquesa sorriso caos – Fernan-
do Pessoa por que te foste prefixado de sempiterno bordão? no
esperma tanto assim de mim meus ancestrais estamos quites!
alegria no jardim a fúria de nascer sequer me lembro mais… um
dos vossos disfarçado a nenhures de eternidade última dos seres
repete sem querer estar morto inteiro e único ilusão de ter passa-
do no chão noturno da existência? é jamais é mais que sepultura
rasa ingênua das mãos quantos segundos? amor vitrificado ape-
nas voyeur neste estado? prazer? imorredouramente felicidade
de mim era ausente cemitério de não ser minha estimação garga-
los? cocaína e éter? Com isso, me despeço.

130
O bicho (remix)

Para Manuel Bandeira

Vi um bicho revirando detritos na imundície do lixo. Entre um


monte de sacos destroçados, pedaços de pizza, restos de arroz,
embalagens de remédio, lâmpadas, luvas, livros, manchetes de
jornais comunicando o fabuloso crescimento do pib brasileiro,
marmitas metálicas, sobras de tudo e todos, uma estranha peça
de carne desabada sobre o monturo. Era um outro bicho. Nas
costelas abertas do bicho, cujo forte fúcsia fedia horrores e um
crucifixo pendia entre os imensos talhes, um outro bicho enorme
fazia seu banquete. Examinava, cheirava, roía vísceras, cavou-
cava costelas e observava o mundo de soslaio, quase satisfeito.
Devorava tudo com voracidade. O bicho, meu Deus! O bicho
(uma lixa manjando lixo dentro da ex-vida de outro bicho) era
um bicho!

131
A frase

Eu ia escrever um poema sobre a sensação de ouvir uma canção


de Damien Rice sob o efeito de absinto numa tarde fria de in-
verno em São Paulo. Mas lembrei de uma frase de Barthes que
faz parte das milhões de reflexões e revisões que venho fazendo.
Diz o pensador francês, em Crítica e verdade, que o “direito a
‘delirar’ foi conquistado pela literatura desde Lautréamont pelo
menos”. Vejam as sutilezas do maroto!

132
Um grão de sandice

Essa frase faz-me lembrar um doido que conheci. Chamava-se


Delima e dizia ser Alan Moore. Era sua grande, mas não única,
mania – a outra era beber cerveja e comer amendoim. Pois bem,
bebia cerveja e comia amendoim como um louco e, quando ia
expor sua curiosa explicação, tínhamos que tapar com as mãos
nossos copos, para salvaguardá-los de virarem piscina de amen-
doins mascados. Eu sou o ilustre Alan Moore, dizia ele. Outrora
fui Jack Kirby, mas adoeci, e tomei tanta porrada, tanta porra-
da, tanta porrada, que fiquei Porrada, e até rei dos Porradas. A
porrada tem a virtude de fazer Porradas. Pobre Delima! A gente
ria da resposta, mas é provável que o leitor não se ria, e com ra-
zão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste;
mas assim contada, no papel, e a propósito de uma frase recebida
e transferida, força é confessar que é muito melhor voltar à quiti-
nete da Santa Cecília; deixemos Delimas e Barthes.

133
Cinco anos depois

Para Antonio Calixto

Cinco anos depois, faz sol nesta segunda-feira em São Paulo. Os


urubus e os vermes continuam se alimentando com a carne po-
dre dessa miséria. Cinco anos depois, há este cansaço no Cosmos.
Cinco anos e parece que foi ontem que conversávamos sobre o
ataque ideal para a seleção brasileira e como aquelas pedaladas
do Robinho pra cima do Rogério deslocaram a órbita da Terra
para sempre. Cinco anos depois, ainda me lembro das estrelas
a granel que você falava sem jamais ter lido Maiakóvski. Cinco
anos depois, a explosão demográfica insana que os países subde-
senvolvidos conhecem é acompanhada pela explosão, em ritmo
igual, da expansão da pobreza. Assim como o aumento absurdo
da riqueza mundial não resolve o problema da extrema pobre-
za no mundo. Cinco anos depois e a desgraça continua a mesma
navegante da maré da mercancia, instalada nas glândulas desses
mercadinhos adestrados. Cinco anos depois e as pessoas já não se
conhecem mais e a expressão olhos nos olhos passou para o time
das metáforas. Pagar as contas tornou-se o maior mistério da hu-
manidade e a palavra humanidade perdeu por completo o senti-
do. Cinco anos depois, eu continuo recusando o mundo sem senso
que, sentidos, recusávamos – como Marina Tzvietáieva nos “Ver-
sos à Tchecoslováquia”. Cinco anos depois, a poesia está definiti-
vamente morta. Cinco anos depois, acendo esse cigarro na janela,
enquanto ouço Ray Charles – aquele mesmo disco cuja versão em
fita cassete encontrara, quando criança, no banco de passageiro
do seu Maverick e ficava imaginando quem seria aquele sujeito
preto de óculos escuros que acompanhava o ronco do propulsor

134
v8 de 302 polegadas cúbicas do seu querido Maveco. Cinco anos
depois, olho o relógio, são 15h51, e a sombra do prédio onde mo-
ro, estampada no quarteirão do outro lado da rua, é imensa – a
sombra soturna da saudade. Cinco anos depois, leio um texto de
Vera Starkoff sobre a estética de Tchernichevski e ouço o som
de helicópteros sobrevoando o bairro, sem jamais em minha vi-
da, em momento algum, ter imaginado algum poeta caminhando
pela rua do Alecrim. Cinco anos são muita coisa e ainda há mil
papéis pela casa, os pequenos cães vivem distraídos em sua vida
de cão, e ainda habitamos o desprazer de viver num país cujo fra-
casso subiu à cabeça. Os insetos noturnos vão chegando, trazen-
do consigo a imensa lona da noite e os restos mortais da Divina
Pastora, que perdeu completamente a paciência e se mandou. O
cansaço nos pegará a todos, pois, cinco anos depois, a vida já não
é tanta e a juventude não é mais maciça. Cinco anos depois e esta
nossa eternidade de estimação, já enfastiada, sob uma luz frágil
e insuportavelmente triste, veste seu velho fraque de planeta não
habitado e, sem legenda, nos acompanha no café todas as ma-
nhãs. Pórtico derradeiro de todo caminhar – encontros e desen-
contros. Passei muito tempo tentando entender a consequência
de minhas artérias e ouvindo o silêncio para poder entender to-
do esse maldito barulho. Cinco anos depois, o planeta está cinco
anos pior – mundo de tampas de privadas e táxis, como diria
Ferlinghetti. Cinco anos depois, o Dr. Sócrates está muito adoen-
tado e você ficaria muito triste se soubesse – sim, a hora fatal é
muito severa. Cinco anos depois e aqui estamos, brutti, sporchi
e cattivi, dentro da noite mesma. Cinco anos depois e continuo
farto do lirismo comedido, bem comportado, cabelo penteado,
funcionário público com hemorroidas no rabo etc. Cinco anos
depois, ainda fico pedindo para que você volte para casa, mas
você foi para muito longe. Eu sei, cinco anos depois, que os pedi-
dos continuam estúpidos e desesperados, mas como recomeçar

135
sem horror? Cinco anos depois, entendo sua valentia e sei que
ela também se chama solidariedade – que é a palavra que se des-
prende deste pedaço de tijolo enquanto condeno a mim mesmo
pela estupidez de, cinco anos depois, repisar o direito tolo de in-
dagar. Cinco anos depois, vejo você apontando, num poema meu,
os versos pouco convincentes, argumentando que “parece que a
vida não foi suficiente até aqui, filho, que imagens de merda são
essas?”, eu respondo que são por conta das minhas constantes
bebedeiras. Você passa na livraria Alpharrabio e compra cinco
exemplares de Fábrica e me diz que “a força e a esperança mo-
ram na universidade desconhecida, ali na rua Cel. Seabra, onde
a felicidade é uma dose de carqueja que atravessa e perfuma os
dias de tudo que nos é infinito”. Cinco anos depois, saquei que
um livro escrito não nos ensina nada, mas, sim, o que nos levou
a escrevê-lo. Ouço “Do You Wanna Dance” tocar no meu celular
e entristeço a tristeza terrível e nela, e apenas nela, que conhece
a mim melhor que eu mesmo, confio. Você ri um riso raso, man
on war, e me serve um café amargo, do outro lado do balcão do
seu bar, onde alguém chega com a notícia de que um garoto havia
morrido brincando com um velho 22, e um imbecil, do outro lado
do balcão, faz um comentário porco (“ainda bem que era órfão”)
e você esmurra a cara dele até a cara dele virar pasta, e eu, após
dar umas boas bicudas nas costelas do filhodaputa, fico muito or-
gulhoso. E, cinco anos depois, você cozinha carne com legumes,
enquanto toma cerveja preta e dá doce de amendoim para todos
os cachorros. Quando a poesia saiu do sonho e o sonho do sonho,
levantei suado e olhei pela janela: as flores já se tinham ido, mas
os cadáveres eram os mesmos. Às vezes sinto câimbras no pesco-
ço, acho que é a dor tentando escorrer o excedente de ferro e aço.
Às vezes acho que é a dor tentando me enforcar. Cinco anos de-
pois, tenho certeza de que é um abraço desajeitado, quebra-ossos,
colocando no set list do dia uma ausência – a sua. O corpo só fala

136
quando dói. Engoli o café. Vi que um dos pés das meias verme-
lhas que calçava estava furado – lembrei dos vermelhos ripados
de Gauguin e quase consegui rir. Era apenas outro dia em que sua
voz me acordava em minha habitação de crepúsculos. Cinco anos
depois, continuo caminhando, fazendo o mesmo caminho, sentin-
do o perfume amargo da carqueja sob as estrelas que me acompa-
nharão até a porta do bar, onde vou sentar e chorar a noite inteira.

26 de setembro de 2011

137
Autobiografia

I have seen Egyptian pilots in purple clouds


shopkeepers rolling up their blinds
at midday
potato salad and dandelions
at anarchist picnics
Lawrence Ferlinghetti

Chegou a hora de apagar as pegadas e pegar a estrada. Os Noturnos,


hoje, soam mais lindos que nunca. Lembro quando o jovem
William Holmes Hazard perguntou à sua mãe quem era aquele
sujeito que viera pedir um pedaço de torta e ela então respondeu
que era um vagabundo. E Hazard disse que era justamente aqui-
lo que queria ser. Quando o velho dr. Lao abria os braços trazia
à tona todos os seus monstros. Ao assistir a esta magia, ainda
criança, acreditava que ali se inaugurava a estação das festas per-
manentes. Ninguém notaria e era exatamente naquele lugar on-
de eu gostaria de estar a vida toda: onde se pode viver todos os
nossos passos, como nos diz Pasternak, e onde sucesso ou fracas-
so não fazem o menor sentido. Torvo, trêmulo e triste na noite,
bêbado à porta dos cafés e dos teatros, parado em frente ao cais
deserto, na alta, profunda hora solitária, vendo Cruz e Sousa indo
visitar Nestor Vítor com seus poemas debaixo do braço. É um
estranho balé este, o do ar e suas flores ávidas, ácidas. Não con-
segui me livrar dos fantasmas e agora os observo em seu jogo in-
sano de pierrôs e gargântuas. Preferem se fingir invisíveis. Abrem
meus livros, grifam, sentam no sofá, devoram geleia de amora, le-
em minhas mãos enquanto durmo. A imensa maioria morreu de
vodca. Meus fantasmas se penteiam, passam gel na névoa dos ca-
belos, botam fraque e vão para o cabaré da gare do infinito todas

138
as noites. Quando voltam, dormem na gaveta do guarda-roupa
entre as minhas meias e cuecas. São como pistas de despedida
que nos mostram que quando dizemos recesso de eternidade não
temos a menor noção do que estamos falando. E quando chega
é para doer, em bloco. Muitos caixões cheios deixando para trás
um vazio enorme. Passeio por Santo André. Ainda não é noite –
ainda que, em algum lugar em nós, sempre seja. Pago o preço da
passagem e não rio com qualquer gracejo. Daqui a pouco chega o
natal. O bairro onde cresci virou um bairro mal-assombrado. Ao
passar pela Vila Alzira, hoje, pude sentir um vento longo, de pe-
los eriçados, como o uivo de um coiote cuja pata foi estraçalhada
por uma armadilha. Eu era mais um fantasma dentre tantos. De
repente, entre uma esquina e uma imensa mangueira no quintal
de muro baixo, Brasílio, de bengala e boa pança, sorrindo a sol,
de óculos escuros: Curingón! Curingón! Antes de chegar à rua
Almirante Barroso, no triângulo que cheira à morte, um Tambaú,
como um diabo-da-tasmânia da Renascença, passa a mil, boche-
cha cheia de cachaça, indo esterilizar o estômago na esquina. O
Salim citando de cor, depois de uma manhã inteira embebida em
carqueja, a longa abertura do Grande Sertão: Veredas. Roberval,
jóquei da Cavalinho, Augusto dos Anjos da cachaça, artilheiro de si
mesmo, ficou. São alguns dos sujeitos que alimentavam esquilos,
que guardavam um dobrão de ouro no sapato furado, que viviam
dando murros em ponta de faca só para ver o sangue escorrer. A
pensão de subúrbio nos guarda em sua cama vazia, nos tornamos,
assim, os pulmões das paredes emboloradas e das solidões cheias
de sangue grosso como lavas. Não há fogueiras sagradas, apenas
dentes caindo. Uma lona velha e remendada sobre o couro, onde se
funda uma consanguinidade. A vida vaza. Passear pela orla de algu-
ma praia no mais severo dos invernos e perceber que, esquartejados
em nosso próprio jardim, acabamos por nos tornar história óbvia do
ócio do cosmos. Então, mais profunda marca d’água de nosso uivo,

139
somos só nós mesmos, a sós, com nossas carnes e nossos ossos
rangendo surdos. São Francisco de Assis é meu poeta preferido.
Há sempre uma alma fodida em cada esquina, sob a luz amarela
de um poste. Algumas vezes sou eu, noutras é você. Dizem que
um elefante, além de nunca esquecer, respira em redondilhas.
Ninguém entende nada. Conheci algumas mulheres incríveis,
apesar de tudo. Você sabe o que eu quero ser? – perguntei a
uma delas. Sabe o que eu queria ser se pudesse fazer a merda
da escolha? Ela respondeu, com uma voz de quase se sumir:
não. Eu me apaixonei completamente. Algumas gostavam de
tomar cerveja enquanto ouviam John Coltrane e arranjavam os
pés descalços sobre minhas coxas. Outras apenas deitavam em
meu peito e, depois de horas de prosa, dormiam enquanto eu
lia algum livro de poemas e acariciava-lhes a nuca com a ponta
dos dedos. Uma das mulheres que mais amei me matou. Outra
me ressuscitou. Não nesta ordem. A mulher que mais amei em
minha vida morava com as prímulas no começo da primavera.
Uma outra garota ficava fascinada com as bolinhas de areia fei-
tas pelos siris nas praias do litoral norte de São Paulo. Outra
adorava cantar, em duo comigo, “Maggie Mae”. Nunca mais be-
beremos tão jovens. O fracasso é a única instância da vida que
sente o gosto que a morte tem. Por falar em morte, há muitos
anos ela me acompanha até a estação do Guarujá. Deseja-me
sempre boa viagem – é seu gesto frágil que não ousa esconder.
Um dia descobri que minha tristeza era um cansaço grande, pe-
sado, sem raiva. Lavei o rosto com água do mar. Sei que não
será a última vez que terei noites como esta. Vou estar lá. O
que é um sujeito? O que é que ele tem? Não sou meu tratado
de semântica. Eu sou a semântica. Uma flor que cresce no as-
falto: afinal de contas, não vou contar toda a porra da minha
autobiografia sem um pequeno estio. Falo aqui de livros, da rua
noturna, dos meus grandes amores. E desse esgotamento, cujos

140
murros me fizeram parar aqui: viver: não sei se isso é bom ou
ruim, mas é o que me resta fazer agora.

141
Bas-fond finale

… e tudo mais jogo num verso intitulado mal secreto.

142
................................................................................
................................................................................
................................................................................
................................................................................

Álvaro de Campos

143
Notas

O poema “Biografia de j. r. Andrade” foi publicado na revista Ini-


migo Rumor n.14 (CosacNaify/7Letras, 2003)

O poema “Entr’act” foi publicado em Traçados diversos – uma


antologia de poesia contemporânea, organizada por Adilson Mi-
guel (Scipione, 2009).

O poema “Perda (delicadeza)” foi publicado na revista Modo de


Usar e Co. n.2 (Berinjela, 2009).

O poema “Apollo is a Girl” foi publicado n’O Almanaque Lobiso-


mem. Edição única. (Independente, 2010).

O poema “Lápis-Lilliput Blues” foi publicado na revista Modo de


Usar e Co. n. 3 (Berinjela, 2011).

Os poemas “Biografia de j. r. Andrade” e “E-mail para Tom Wa-


its” foram publicados na revista Rapsódia n. 5 (Departamento de
Filosofia da usp, 2011).

O poema “Instruções para compor um folk” foi publicado no blog


Meu pé de laranja mecânica (2012).

Os poemas “Santa Cecília by Night”, “Poeta”, “Poesia” e “Voz-off”


foram publicados na revista Telhados de Vidro n. 16 (Abril, 2012).

O poema “Poeta” foi publicado no jornal Cândido, da Biblioteca


Pública do Paraná. Edição 26, setembro de 2013.

Os poemas “It’s time to taste what you most fear”, “Verde azul
amarelo rosa e branco” e “Manhã de julho” foram publicados na
revista Escamandro n. 1 (Patuá, 2014).

145
Regiane Coelho

Fabiano Calixto nasceu em Garanhuns, pe, em 8 de junho de


1973. Vive em São Paulo.

147
Poesia

Algum (edição do autor, 1998)


Fábrica (Alpharrabio Edições, 2000)
Um mundo só para cada par (Alpharrabio Edições, 2001) – com
Kleber Mantovani e Tarso de Melo
Música possível (CosacNaify/ 7Letras, 2006)
Sangüínea (Editora 34, 2007)
A canção do vendedor de pipocas (7Letras, 2013)
Para ninar o nosso naufrágio (Corsário-Satã, 2013)
Equatorial (Edições Tinta-da-China, 2014)

Poesia traduzida

La canción del vendedor de palomitas (Yiyi Jambo, 2010) – tra-


dução para o espanhol por Sergio Ernesto Ríos

Poesia Infantil

Pão com bife (Edições sm, 2007)

Tradução

Poemas de Gonzalo Rojas


Modo de Usar e Co., N.1. Novembro de 2007
Poemas de Benjamín Prado
Modo de Usar e Co., N.1. Novembro de 2007
Ginsenginsberg: poemas de Allen Ginsberg
Modo de Usar e Co., N.2. Novembro de 2009
Poemas de Laurie Anderson
Modo de Usar e Co., N.2. Novembro de 2009

148
An American Prayer – Uma oração americana – Jim Morrison
O Almanaque Lobisomem, Edição única. Agosto de 2010
Poemas de Roberto Bolaño
Modo de Usar e Co., N.3. Setembro de 2011
Névoa – Miguel de Unamuno (Editora Estação Liberdade, 2012)

Crítica

A linha que nunca termina – Pensando Paulo Leminski (Lampa-


rina, 2005) – com André Dick
Eu – Augusto dos Anjos (Hedra, 2012). Fixação de texto e
apresentação.

149
Agradeço a Bruno Brum, Danilo Bueno, Diego Vinhas, Eduarda Ro-
cha, Flávio Rodrigo Penteado, Letícia Ferro, Manuel de Freitas, Pa-
tricia Augusta Corrêa, Reuben da Cunha Rocha, Tiago Guilherme
Pinheiro e Tazio Zambi, queridos amigos que leram antes.

Agradeço a todos que subscreveram e tornaram possível a existência


deste livro.

Agradeço ainda à Funarte pela concessão de uma bolsa de criação


que pagou a fiança desta publicação.

151
Índice

Abertura.........................................................................................7

Entr’act........................................................................................10

Desapropriação para Camilo Torres........................................... 12

Nominata morfina.......................................................................14

O coma de Cronos........................................................................16

Instruções para compor um folk.................................................18

Sulfúria........................................................................................21

Parte I (Um inferno na temporada)...................................... 21


Parte II (Infernal Overkill)....................................................23
Modigliana...................................................................................25

C17H19NO3.....................................................................................27

10 de abril de 1970.......................................................................29

Buceta mundo.............................................................................. 31

Santa Cecília by Night.................................................................32

Fellini feiticeiro............................................................................33

Lápis-lilliput blues.......................................................................34

Há uma literatura........................................................................37

Perda (língua)..............................................................................42

A mesa..........................................................................................43
Autobiografia...............................................................................47

Poeta............................................................................................54

Perda (ternura)............................................................................56

Poesia...........................................................................................58

It’s time to taste what you most fear......................................... 60

Café em companhia do tímido Francisco.................................... 61

Voz-off..........................................................................................62

O palerma....................................................................................64

Meu pé de laranja mecânica........................................................66

Biografia de J. R. Andrade...........................................................70

Autópsia abstrata.........................................................................73

Ruas de um anarquista noturno..................................................74

Verde azul amarelo rosa e branco...............................................76

Delirismo – um poema sobre o tempo........................................78

Autobiografia...............................................................................93

Perda (violência)......................................................................... 98

Da universidade desconhecida,...................................................99

E-mail para Tom Waits.............................................................100

Manhã de julho..........................................................................102

Apollo is a Girl...........................................................................104

Animal Boy................................................................................107
Subterranean Homesick Throat................................................ 112

Herança (Presto)........................................................................115

Horror........................................................................................ 121

Autobiografia.............................................................................122

Perda (delicadeza).....................................................................123

Para quase ninguém (Ou para quase todos)............................. 125

E-mail para Fabiano Calixto..................................................... 127

Poema em que o autor facilita as coisas para que o resenhista es-


creva que ele (o autor) é decidida e claramente influenciado por
Drummond (ou, na dúvida, por Haroldo de Campos).............128

O bicho (remix).......................................................................... 131

A frase........................................................................................132

Um grão de sandice...................................................................133

Cinco anos depois......................................................................134

Autobiografia.............................................................................138

Bas-fond finale...........................................................................142

Notas..........................................................................................145

Sobre o autor............................................................................. 147


©
  Corsário-Satã, 2014
©
  Editora Córrego, 2014
©
  Pitomba Livros e Discos, 2014
©
  Fabiano Calixto, 2014

1ª edição [2014] 1ª reimpressão

Projeto Gráfico: Bruno Brum


Revisão: Flávio Rodrigo Penteado
Fotos de capa e quarta capa: Fernando Ramos Amorim

Dados internacionais de Catalogação na Publicação (cpi)

Calixto, Fabiano, 1973


Nominata morfina – Livro de gravuras / Fabiano
Calixto – São Paulo: Corsário-Satã; São Paulo: Editora Córrego;
São Luís do Maranhão: Pitomba Livros e Discos, 2014. 160 pp.

ISBN: 978-85-67240-15-2

I. Poesia brasileira I. Título

Índices para catálogo sistemático:

I. Poesia: literatura brasileira                 869.91


Este projeto foi contemplado pela Fundação Nacional de Artes –
FUNARTE no Programa de Bolsas de Estímulo à Criação Literária
Impresso sobre papel Pólen Bold (miolo) e Cartão Triplex (capa), usando fonte

Georgia, na gráfica PSI7, na cidade de São Paulo, em setembro de 2015, ano

do centenário de lançamento de A metamorfose, de Franz Kafka; Triste fim de

Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; e La Divina Increnca, de Juó Bananère;

nos noventa anos de lançamento de Pau-Brasil, de Oswald de Andrade; nos oitenta

anos de lançamento de Os ratos, de Dyonélio Machado; nos setenta e três anos de

Nighthawks, de Edward Hopper; nos setenta anos de lançamento de A revolução

dos bichos, de George Orwell; nos sessenta anos de On the Road, de Jack Kerouac;

nos cinquenta anos de lançamento de Help! e Rubber Soul, dos Beatles; nos

quarenta anos de Qualquer coisa, de Caetano Veloso; nos trinta anos da realização

do primeiro Rock In Rio; nos trinta anos do lançamento de Hell Awaits, do Slayer;

do trigésimo aniversário de morte de Orson Welles; nos trinta anos de lançamento

de A educação dos cinco sentidos, de Haroldo de Campos; nos trinta anos de

Temporary Autonomous Zone, de Hakim Bey; nos vinte e um anos de lançamento

de Da lama ao caos, de Chico Science & Nação Zumbi; no décimo segundo

aniversário de morte Roberto Bolaño (1953-2003); no ano de lançamento de Eu

vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito!, de Johnny Hooker. Nominata

morfina é dedicado à memória de todos os mortos e desaparecidos políticos

durante a violenta ditadura militar brasileira. Acrescenta-se, ainda, que tudo aqui

foi produzido com princípios agroecológicos, sem utilização de agrotóxicos, fogo,

sementes transgênicas e exploração de mão de obra escrava.

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