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Marko Ivan Rupnik

O exame de consciência
Para viver como remidos

t!!!!19,;,..,
Apresentação

11 dr~?. \ i<b cspmttal 1 T

termo exame de coru.ciencia pareci! tl'f desaparecido


COOU! 1
O do vocabulário comum da c~pirituJlicfadc contcm-
por.mea ímbora não faltem referencia~,, ele nos dicionário e
lnthcoponaal ~m11m.l11<01
manu.lis de espintualidadc. tem -~ a impr~siio de que. como ou-
1 ~ia &mllL' TrokJ&b m.:n1 Crb:bnismo .W 1
2 r~ de come mria t~ marn1 Cniti&nlsmo loll 1 tr,1s pr.itica ascettcas, para aJguns •mor.distas", ,1cahou indo pa-
r.ir na ga\ ta das coisas ~uecidas... a espera de umJ redescobena.
Entretanto, ainda hoje, o exame de consc1focia pertence a
C~dc efcínmç.k>Cn (CCR)
Arquldiocex de Bdnn Pid rom 6"nça cU Editor.> IJp.1 Rc!m uma das panes integrantes da celebraçjo da penitência sacra-
ment.tl, e é recomendado, embora em su.1 brevidade, no mo-
:i!B. lOJI
mento do ato penitencial, no começo da cclcbraç:io cucaristic.a.
l >i <>-retal # 'fO~
h:lllOUI irs;uad• d U·•a /• 8-:bt- e na oraçao da noite da Liturgia da l loras
TraduçOO &ttúlr• Manuu ~
e~ Crúúno l'aitOO t.op<• lima breve consulta ao G1u'Ci.m10 tf,1 /grej11 Cactilin1 revaloriza
QiofdaldJdr W\I Ntfb/'111S..••71l:P esta pratica, normal na legic;laçào de muitas fam11i.i~ rdigiosa\,
Ra1 úonUJ.J Mmt:WJ r Am Crrltla M
u; c1t- - ,, _ r.jprio.ni aconsdhad.1 por diretores esptrituai vh id,1 de modo panirular
Oaalll! dr prcd uçlo Ft'lltw Caltpru r\<t
e~drane Ct ""'"'C!zwi'°daSihv
no âmbito dos exerácios C!>pimua1s O n. 1435 a propô" ao lado
da rl'\'i ão de vida e da correção fratcm.1 como ercício cotidia-
no de conversão .
...._,,,..., "'"' . . ,.,,,.,,, - rrptob:JJ.I .. • ......-
,... ~· - . . . . - rlnt - A hermenéutica da suspeita leva a notar logo que o de apa-
._.....,..,,,_.....,,~ ... _...... ... ~.u--
.............. _,.,, , " "'~ Oittllm """"" recimento do exame de consciência. como pratica ascética, como
e.'.'<crctcio opiritual profkuo, tem como r,1ii: ultima um ceno
Pall.._,
medo de e confrontar consigo mesmo, de entrar na wrdade da
Km~ do Takdo 11.t
().;(JJ9 (iJ !'mil - l'1Ht:ml) própria con ciência, de colocar ordem na própria vida . a ver-
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dade, não se sustentam, diante da ncccs âri,1 cmica, a co tu·
Tdnn:u e .,AC :J()IOOSI meiras acusaçõe. de forma li mo e moralismo, que rrmov •m
l'la íabJe fillm de ~ ~ - ' ilo f'uulo 20().I

3
M.uto.u /1\" Ru,...11. 10 e.til/Ili' tll' co1uabtcia

tranqüilamente a sabedoria secuJar daquilo que se chama~ talvez plandecer o exame de consciência como uma jóia reencontrada
de maneira restritiva, exame de consciência. De fato, militam em e novamente polida. Éo que nos oferece o re. Marko Ivan Rupnik
seu favor: a lembrança da consc.iênàa como santuário da pessoa e neste livro ági l e completo, moderno e prático, capaz de
altar da própria liberdade; o exemplo evangélico que, na figura do redimensionar em comprimento e largura, em altura e profun-
filho pródigo, nos exona a entrar dentro de nós mesmos; a obriga- didade. o exame de consciência.
tória atitude de sermos verdadeiros e de caminharmos na verdade, Os prindpios teológicos da primeira pane se baseiam numa
diante de Deus, diante dos outros e diante de nós mesmos... teologia com múltiplas e sugestivas considerações tiradas da
Todas essas são razões que remetem novamente ao centro companhia e da amizade de santos e de sábios da tradição cristã
da vida espiritual a sabedoria de uma prática que cenamente do Oriente e do Ocidente. Agosúnho nos exona ao exercício da
precisa ser repensada nos pressupostos doutrina is e nos pontos memória; Máximo Confessor, à contemplação da imagem que
de referência de uma espiritualidade renovada; mas que é sem- somos nós, voltados para a perfeita semelhança; Atanásio nos
pre um exerdcio ascético necessário, embora pr.ecise de uma nova adverte sobre a ação do Espfri to que nos atrai para o Pai e para o
e concreta "mistagogia•, que evite a superficialidade do narci- Filho... Centelhas de sabedoria de autores antigos e modernos,
sismo de quem se contempla no próprio espelho e a ansiedade poetas e sábios, convidam à alegria de conhecer-se em Deus e
que leva ao e crúpulo, para se tomar um momento fone de ora- readquirir, assim, a verdadeira sabedoria do coração. Muitas cern-
ção; uma oponunidade de conversão positiva; é preciso que se telhas de espiritualidade fazem resplandecer a verdadeira jói_a
tome um exerdcio que traga o selo trinitário: momen to de escu- que é a consciência do ser em Deus e para Deus, por meio de
ta das moções do Espfri to, de confronto com a face de Cristo um convite ao exame, isto é, à consideração serena e alegre, po·
mestre e juiz, misericordioso e veraz. de experiência de filiação na sitiva e propositiva do projeto de Deus a nosso respeito.
busca amorosa da vontade do Pai. A segunda pane do livro relaciona bem o reencontrado va-
Ponanto, a necessidade de retomo a um exame de cons- lor do exame de consciência com algumas exigências fundamen-
ciência, a uma lúcida descida ao coração com a luz da razão e da tais da espiritualidade. Basta propor o exame como oração e
graça e autadora do Espírito, é, sem dúvida, evidente. Às vezes, contemplação e tudo muda, porque é realizado com Deus e dian-
será um momento breve., mais intenso, de descida às profundezas te dele. para ele e tendo-o como magnífico, misericordioso e
da própria consciência vital; às vezes, será a responsável e atenta sábio examinador da nossa consciência, na expectaúva do últi-
preparação para a confissão sacramental... Algumas vezes exjgi- mo e definitivo julgamento, quando seremos julgados sobre o
rá um minudo o e ereno confronto com o Mestre interior, como amor (são João da Cruz). É bonito ouvir que o exame de cons-
quando se trata de fazer escolhas na vida ou encetar um cami- ciência serve para ·revivificar a vivência·, expres ão pleonástica,
nho de maior conversão, após momentos de desânimo, de pro- mas que relembra a atenção sobre a necessidade de estarmos
vações, de graças que indicam um Jwir6s da própria existência. vivos e não monos, deixarmo-nos vivificar e não esmaecer, me-
Muitas vezes tratar-se-á de refazer a ordem na vida e colocar a diante o conhecimento de nós mesmos, revitalizados pela fé,
vida em ordem, segundo o plano de Deus. esperança e amor. É uma forma de trazer à luz a necessidade de
Contudo, para isso se requer uma boa teologia, uma boa personalizar a fé e a vida, num mundo de cadáveres e de másca·
espiritualidade e uma oponuna prática renovada que façam res- ras; é um exerdcio muito necessário hoje em dia, numa socieda-

4 s
Aprese111ação
M ARKO frm Rur'"'~ 1 O ex11111e de co11sciê11cia

de e numa comunidade eclesial nas quais temos necessidade de escriba do Evangel ho, que de seu tesouro sabe tirar coisas anúgas,
ser "conscientemente cristãos" desde as mais íntimas fibras do como a sabedoria da ascese, e coisas novas, como a perene sabe-
nosso ser. É aquilo que o Pe. Rupnik chama de "a conscienúzação doria do Evangelho no hoje da Igreja. Na verdade, trata-se de ~m
da vida de Deus"... exercício da vida espiritual, isto é, da vida segundo o Espfnto.
Espírito que "sonda" tudo,,, inclusive a_s profun_dezas de Deus ~cf.
Um outro eixo da espiritualidade é revisitar o exame de cons-
l Cor 2, 10). Espírito Santo luz beatíssima que invade os co_raçoes
ciência como exercício do discernimento, aquele que nós faze-
dos fiéis" (Seqüência de Pentecostes), "fonte que rega os d1sdpu-
mos à luz da Palavra de Deus e da vida em Deus, mas também
los com a sua luz" (Ofício bizantino do orthros de Pentecostes).
aquele que Deus faz em nós quando, "submetendo-nos à pro-
va", nos toma dol?imoi, provados, passados pelo discernimento Pe. )esds Caste/lano Cervera, ocd.
espiritual, pela prova ou pelo discernimento divino; é a ação de
um Deus que conhece nossa verdade e a verifica, a submete à
verificação e abre caminhos novos em nossa experiência espiri-
tual. Teresa de Jesus, ao dirigir-se a Deus nas terceiras mansões
do Castelo interior, as mansões da provação, invoca-o com estas
palavras que parecem lembrar o in ício do Sa lmo 138: "Prova-
nos, tu, enhor, que conheces as verdades, para que nos conhe-
çamos" (Castelo interior, terceiras mansões, cap. 2, n. 9, de acor-
do com o texto original espanhol) . Todavia, como se poderá
chegar à verificação daquilo que Deus realiza em nós, se não
tivermos consciência da sua passagem salvífica de purificação e
de iluminação na nossa vida? E aí está novamente a importân-
cia de um exa me que nos ajude a sondar e descobrir a passagem
de Deus em nossa experiência.
Na terceira pan e do livro, va mos encontrar uma breve
mistagogia do exame de consciência. Gosto de falar de mista-
gogia, enquanto pedagogia do mistério, porque as breves etapas
indicadas são claramente como degraus da descida ao próprio
coração, com um guia excepcional: o Espírito Santo. Assim se
aprende de novo, isto é, como uma realidade da novid ade do
Espírito, o caminho que conduz à verdade, ao discernimento, às
opções, ao cresci mento das virtudes, à crescente fidelidade do
caminho espiritual cristão ...
Aí está, portanto, o valor de um livro que traz à luz um
aspecto tradicional da vida espiritual, mas com a sabedoria do

6 7
Introdução

um famoso anigo seu, já em 1972, o Pe. Aschenbrenner


N constatava uma crise geral espalhada em toda a Igreja
no que se refere à pratica do exame de consciência.' Uma crise
causada em grande parte pelo exagerado moralismo e legalismo
que acompanhavam esse exerdcio e por sua práúca, que visava
quase exclusivamente à confissão. Assim exercido, o exame de
consciência acabava muitas vezes tendo como efeitos colaterais

1
Asa1LNBRENNI R. George. Consciousness examen. ln: Revleiu for Rel1g1ous, 31
( 1972), pp. 14-21 , no qual o autor apresenta o exame de consciência sob o ân-
gulo da conscientização da vida divina em nós e como exerdcio prático da vida
espiritual e do discernimento, sobretudo para os religioso
Além desse artigo, não há, nestes últimos anos, muito tratados dedicados
especificamente ao exame de consciência. 11 de indicar, porém, o verbete •Examen
de conscience· no Dicrionnaire de Spiri111a/i1é, IV, Paris, 1961 , cols. 1789- 1838,
que faz uma •história· do exame. Aí relembra práticas afins na Antigüidade e
nas religiões não-cristãs, compreendendo, nesse caso, o exame de consciência
como sinônimo de momentos de atenção para com a vida interior e a intros-
pecção. Depois, mostra o que é a interrogação da consciência na Bíblia, vendo,
então, a diferença que há em relação à práúca pagã, pois não se trata de um
dobrar-se da alma sobre si mesma, mas algo que abre à dimensão relacional
com Deus, um diálogo no qual o fiel prova sua conformidade não com a razão
natural, cuja lei descobre em si, mas com uma ordem de Deus. Nos antos pa-
dres se une a prática estóica do exame a essa dimensão relacional, desenvolven-
do a disciplina ascética da vigilãnda do coração, da atenção aos pensamentos e
da luta contra os vícios, que em palavras modernas poderíamos chamar de • exa-
me particular• Na Idade Média, além da sua prática como exercício espiritual,
sobretudo dentro da vida monástica, o exame de consciência está ligado à con-
fissão sacramental, como volta do penitente ao seu passado para ver onde fa-
lhou, como mostram os livros penitenciais. Todavia, é sobretudo nos séculos XV
MARliO """' Rur...1~ 1 O exame 1/e co11sdê11da l111rod11çtlo

0 escrúpulo, a depressão, o desânimo, chegando, em algun ca os, base, não podemo , por causa disso, encerrar o discurso sobre uma
a uma an iedade psicológica. E quando, como reação contrária, a prática espiritual que está presente desde o início da fé cristã e da
uma espiritualidade predominantemente moralista e voluntarista qual se ocuparam os maiores mestres da vida espi ritual.
e eguiu uma onda de redescobena da psicologia, que quase to- Por isso - já que uma jóia mostra todo o seu esplendor quan-
mou o lugar da vida espiritual e se apresentou como uma espécie do está devidamente incrustada -, dediquei grande parte do livro
de espiritualidade secularizada, o exame de con ciência, na mesma ao pano de fundo teológico e espiritual no qual situar corretamen-
onda de reação, foi substituído por exercício predominantemente te o exame de con ciência. Embora hoje todos nós estejamos tenta-
psicológicos de auto-exame e de "higiene interior". dos a um pragmatismo témico, ao lmow-/10111, e talvez queiramos
l loje, quando está se esgotando também essa moda, o for- logo ver como e faz o exercício concretamente, convido o leitor a
madores, os pastores e, sobretudo, os fiéis sentem a necessidade se deter durante todo o tempo necessário na primeira parte do li-
de redescobrir os caminhos, os meios, os instrumentos que ser- vro, porque o exame de consciência será entendido e praticado cor-
vem de ajuda no amadurecimento espiritual, que sustentam o retamente apenas se fizer pane orgânica daquela visão na qual se
caminho do cre cimento espiritual, para poderem viver como manifestam eus fundamentos teológicos.
remido no mundo atual, levando a cabo a vocação que Deus É justamente percorrendo o texto assim como está proposto 2
confia a cada um de nós para o bem da Igreja e do er humano. que o leitor poderá se aproximar de forma espontãnea do exame
E então se coloca de novo a questão do exame de consciência. de consciência como uma arte espiritual de oração, de discerni-
e para a últimas gerações fo i proposto um exame de consciên-
cia muitas vezes desligado de uma vi ão orgânica da vida espiri-
tual e do arcabouço teológico-antropológico que lhe ervem de ' Para quem sentir a necessidade de aprofundar o temas que constituem o con-
lexto do tra1ado do exame de consciênáa, noto que este texto é pane de um qua-
dro mai amplo. F. Ll colocado dentro de um percurso que tem seu ponto de
panida em Drrr /'1101110, v. 1 Persona, cuhura deli a pasqua Roma, 1997, 2• ed., uma
e XVI (Drl/OllO moden111. an10 Inácio de Loyola .. ) que se de envolve um visão que procura manifes1ar o laços orgânicos entre a verdade, Deus, a Páscoa de
ensinamen10 orgânico sobre o exame de consciência Para santo Inácio de 1oyola ris10, o ser humano e seu pecado e, poruinto, a redenção. lima visão que propõe
é tão imponame, que nas Cou.stituições (n. 261) o propõe como prá1ica cotidiana também urna gnoseologia espirhual Tem ligação com Ne/ f11oco tle/ roi.octo 1mle111e
dos jesuítas, além de inseri-lo nos Exercícios eprnwai5 (n 43} . Os pomos que Roma. 1997, 2• ed., onde se esclarece o que é e o que não é a vida espirilual. Além
Inácio propõe, no fundo, não são outra coisa senão uma reproposta da antiga dis~o. o volume dedicado ao discernimento (O discem11111'11to, publicado por
memori11 Drr, condição para e submeter à ação da graça e cooperar ao máximo Paulinas Lditora) é afim1açào prática de uma fé na qual o ser humano e Deus se
com a ação de Deus em nós. Como complemen10 a es e verbete. ver 1ambém encontram numa relação livre, podem conversar, comunicar-se e entender-se na
•i:xamen paniculier·, sempre no D1mo1111a1re de prn11111/ili, IV, Paris. 1961 , cols adesão Comecei a esboçar o tema da memória-sabedoria que faz pane constituliva
1838- 1849 de uma tal visão teológico-espiritual em L'arte, memorla de/111 co111u111011c, Roma.
Para o período posterior ao Condlio, alem do anigo de Aschenbrenner, pode- 1994, e em ·1.a Sofia come memoria crealiva da Solov'év a TarkoYSkij·. ln: W.AA.
e coo ultar o verbete •1:.same di co cienza•, de CA.mUA,o, 1 no D12.10111rno tle/ 0111/11 Sofo111l "''Age. Roma, 1995, e o explici1ei sobreiudo na parede da parusia
Conoho /;c11111e111rn V1111a1110 li. Roma. 1969. col 1109, dedicado a mo trar o que na capela Redemp1ori Ma ter. essa capela também lentei expressar uma visão da
di7 o Concil io sobre esse assumo, especificamente a Presb)1eron111r Onimrs; o tratalO ação do l:spínto como caminho que leva à libenaçâo da criação de modo que
de CAwuJJlll, A. & 0.PRJou, M. no 01Z10111mo L11oclopcd1co d1 prn11111h11l, Roma, através do homem, feito filho, possa coníluirpara Cris10 e panidparda ua ressur-
1990, 2• ed , pp. 903-907, que se remete amplameme ao D1C1101111111re de prntu11/11e, reição (sobre isso, cf "Come mi sono accostato ai mosaico delta Cappella" ln:
BAH.irtAM, B. ·i:xamination of Conscience·. ln. TI1e New Drc1101111ry• o( Ctitlrohc Ar~. M .. 01'1í'1T, o. VAUWJM;O, e. jorgs 1 UI G1ppcl/11 •Ret1emp1oru Mtll1.'1'. dei
prn11111ht)' (ed M Downcy), Collegeville, Mi., 1993, pp 364-365 P11pa Gro1~m111 P110/o li Cillà dei Vaticano, 1999. 1•11 179 .)

10 li
M,uii.:o 11'"1'1 Ru,,.,,1~ 1 O t'xnme de consciencia

mento, que aprofunda e personaliza o processo da redenção para


cada pessoa. O leitor entenderá a ligação orgânica desse exerd- 1
cio com o corpo todo da Igreja e, em seguida, experimentará
a graça de uma caminhada na virtude, purificando-se do mal
Os fundamentos teológicos do
e progredindo cada vez mais na conformidade com a imagem exame de consciência
de um Deus trino que nos faz capazes de viver à sua imagem na
comunidade.
A comunidade humana, como a da Igreja, sente viva e do-
lorosamente a fase complexa de nosso momento histórico e
cultural. Percebe-se a urgência de começar a trabalhar sobre si RECORDANDO, NOS EXAMINAMOS
mesma, inclusive por causa de uma nova sensibilidade à ques-
tão moral, mas é preciso propor autênticos caminhos espirituais,
para evitar novas formas de eúcismo e moralismo.
A mullier que havia perdido a dracma e se pôs a proet1rá-la
com a lamparina não a teria encontrado se não a tivesse guardado
na mente. E, ao encontrá-la, como saberia que era de fato a sua, se não
tivesse se lembrado dela? Lembro-me de ter perdido muiliLS coisas e de
Lê-las procurado e enco11trado; e sei também que, enquanto estava pro-
curando, se por acaso alguém me pergumasse: •é esta? é aquela ?·, eu
co11tin11ava respondendo que não, acé que me fosse apresentada exata-
mente aquela que eu procurava. Se não tivesse a lembrança daquela
coisa, qualquer que fosse ela, nunca a teria encontrado, porque não
teria podido reconlrecê-la, mesmo que me fosse apresentada. E acontece
sempre assim, todas as vez.es que perdemos, proam1mos e encontramos
alguma coisa.

Se uma coisa, por exemplo, um corpo visível, desaparece aos nossos olhos,
mas não da nossa memória, sua imagem fica guardada dentro de n6s e
assim procuramos até que a vejamos de novo e, encontrando-a, a reconhe-
cemos graças ll imagem que dela trazemos dermo de n6s; não podemos
diz.er que encontramos o objeto perdido a não ser que o reconlreçamos,
nem que o reconl1ecemos a não ser que tenl1amos lembrança dele: de fato,
desaparecera da nossa vista, mas estava guardado na mem6ria.

Santo Agostin ho, Confissões, X, 18.

Santo Agostinho salienta a importância ind ispensável da


memória no processo do conhecimento. A memória está basea-

13
MAR~'O Jv..v. Rul"\1~ 1 O exame de co1uciência /. Os ftmdame111os 1eol6gicos do exame de co1uciência

da na experiência. Por meio dela, a memó ria liga constantemente ele se comunica conosco na vida. De alguma maneira, há, então,
a inteligência à vida e faz com q ue também a refl exão, a especu- uma memó ria habitada por Deus; tanto isso é verdade que a Sa-
lação e o raciodnio não se separem da vida. A vida é comunicada grada Escritura é uma memó ria de Deus na histó ria humana. Ou
por meio das relações interpessoais - até mesmo o nascimento melhor, a rel igião é, em grande parte, uma memória da ação de
do ho mem depende da comunicação entre as pessoas, das rela- Deus. Essa comunkação de Deus, essa sua graça que ele doa mo-
ções entre elas. Portanto, a vida do ser humano está fund amen- vido pelo amo r por suas criaturas e essa acolhida da sua comuni-
tada nas relações que ele tece com as pessoas e com a criação, cação são exatam ente a sabedoria de Deus. De fato, de um lado,
consigo mesmo e com Deus. Mais radicalmente, o ser huma no pertence total mente a Deus e, de outro, cresce, se expande ao lon-
vive porque o Criado r se relaciona com sua criatura, e essa rela- go de toda a história humana como do m d ivino que a pessoa
ção é exatamente a fonte vivificadora que selará o mistério da po de assumir co nsciente mente, fazendo co m que se to rne
vida com o amo r, com o relacionar-se e o comunicar-se. patrimônio do seu coração como inteligência de fé e de ágape.
Todavia, as relações estão exp ostas ao pecad o e ao mal e,
po rta nto, também a memó ria humana não escapa dessa conde-
0 SER HUMANO, CRIADO À IMAGEM DE D EUS,
nação. Uma vez que a memória está desordenada, ferida, não
somos capazes de ajustá- la simplesmente com o raciodnio, com AMADURECE SE REFERINDO A ELA
a autocompreensão, como se pudéssemos determiná-la. De fato, diz.emas que Deus e o homem se servem mutuamente como
Como a memó ria está diretamente ligada à vida, é co mo se modelo um do outro, e que Deus se l1L1maniza para o homem, no seu
ela agisse em do is registros. De um lado, é uma atividade intei- amor ao homem, na mesma medida em que o /tomem, forwlecido pela
ramente humana, porque elaborada pela nossa inteligência com caridade, se 1ra1tsfon11a para Deus em deus.
base na experiência; de o utro, está aberta ao mistério sem fro n-
Máximo Co nfessor, Ambigua: PC 9J, 113 BC.
tei ras ao quaJ a pró pria vida nos introduz, po is a vid a nos leva
constantemente a um limiar, a um limite, a partir do q ual ela
nos alcança: a vid a vem, faz- nos uma visita, nos é dada, num A pessoa humana cresce de modo orgânico, íntegro, em re-
certo sentido a possuímos, a gerimos, mas em última análise a ferência a essa sabedo ria, reco nhecendo aquilo que ajuda a ver-
próp ria experiência nos obriga a adm itir a impossibilidade de d adeira vid a, e aquilo que, ao contrário, são ilusões, enganos e
exercer do mfnio sobre ela. E aquilo que na vida não consegu i- ido latrias. De fato, faz parte constitutiva do ser humano se colo-
mos do minar e que nos leva a intu ir essa abertura é exatamente car numa atitude de constante referência. Criado à imagem d e
o mistério das livres decisões, do amor, isto é, do outro . Em Deus, não pode deixa r de se referir ao protó tipo, ao o riginal do
última instância, o mistério de Deus, Senhor da vida. q ual ele é imagem. Por natureza, o ho mem ergue seu olhar cons-
Como d iz santo Agostinho no trecho citado a nte riormente, tantemente para uma espécie de mo delo. O ra, se esse ponto de
Deus não po de ser encontrado de modo direto em nossa me- referência é constituído por Cristo, Filho de Deus, no qual so-
mó ria. Contudo, é verdade que, do mesmo modo como estam os mos criad os, é uma coisa.
certos de que ele nos dá a vida, nos cha ma à existência, nos cria Mas se assumimos como modelo uma realidade ilusória,
à sua imagem e nos redime, esta mos igualmente certos de q ue imaginária, é outra coisa. Se nós, imagem de Deus, o rienta mos

14 15
M ARA'O /v,w RuPN11< 1O exame de consciência /. Os frmdamentos teológicos do exame de consciência

a nós mesmos, nossa inteligência, nosso olhar, nosso espírito cher de caprichos a própria passionalidade, a desafogar a pró-
para Cristo, então experimentamos nossa história como uma pria vontade de se auto-afirmar. E nós, seres humanos, experi-
história do amor de Deus que, a todo instante, é capaz de trans- mentamos presunção e soberba quando correspondemos ao
formar e transfigurar nossa vivência. Há, então, uma reciproci- modelo, e depressão total, uma espécie de condenação diante
dade, um diálogo, no qual o ser humano jamais se vê sozinho. de uma implacável lei universal, todas as vezes que nos acha-
Qualquer coisa que possa acontecer, qualquer pecado que pos- mos incapazes de vivê-la. Ou inventamos compromissos que
samos cometer, encontramo-nos diante de um gesto ainda mais justifiquem nosso estado, ou aceitamos que nossa vida seja um
extraordinário de Cristo que nos redime. Experimentamos o ori- campo de batalha de forças impessoais entre bem e mal.
ginal ao qual nos remetemos certamente como modelo - e, Como é o protótipo, tal é a imagem: se acreditarmos que
portanto, também como lei-, mas inseparavelmente unido à somos um ideal sozinhos. compreenderemos a nós mesmos em
face misericordiosa de Cristo, à incessante abertura da miseri- referência àquele. Isto é, se o protótipo for uma realidade abstra-
córdia de Deus. ta, vamos considerar a nós mesmos em termos abstratos. Se o
De fato, não se pode falar de um verdadeiro modelo, pois protótipo for concebido como um ideal formal, procuraremos
se trata de uma Pessoa viva, de um organismo do amor e, por- projetar-nos na ótica desse ideal. Esse mecanismo é um modo de
tanto, uma realidade absolutamente dinâmica que deixa de lado nos aprisionar, de nos fazer escravos, mesmo quando decidimos
toda fossilização, toda idéia fixa. estática, objetivadora, que nos viver sem qualquer referência, prescindindo de todo ideal ouva-
tomaria um objeto. Como o Protótipo é um organismo vivo, é lor, porque sempre, enquanto imagem, vivemos em relação com
evidente que também o homem - sua imagem - não é uma a realidade que assumimos como interlocutor existencial.
realidade estática, decifrável somente no nível de compreensão Essa atitude de criar para si pontos de referência que são
das formas. Isto é, a imagem não é um carimbo formal, um es- fundamenta lmente a expressão do próprio egoísmo é também
quema a ser assumido, mas também um organismo vivo, pes- influência do tentador. Os santos padres não hesitavam em fa-
soa criada na participação do mesmo amor que constitui a vida lar do anjo decaído, isto é, do diabo, do inimigo da natureza
divina. Então, a imagem é uma realidade pessoal em comunhão humana. De fato, em nosso contexto o discurso sobre a queda
com o protótipo, lugar de manifestação do protótipo, da sua dos anjos é iluminador. Os anjos são criados como mensageiros
ação criadora e redentora. Portanto, a imagem tem em si o dina- entre Deus e as pessoas, constitutivamente orientados para seu
mismo de uma adesão cada vez mais plena ao protótipo. Isso Criador, ao qual servem para o bem do ser humano. Em seu non
quer dizer que na imagem a manifestação do protótipo é a rea- serviam, o anjo decaído se rebela contra Deus, não é mais seu
lização da própria imagem . mensageiro, não traz a bênção para o homem, mas, de qualquer
Contudo, se o homem, que por consti tuição se remete à modo feito para se relacionar, se oferece ao homem como mo-
imagem, faz referência a modelos abstratos, que são um código delo de auto-realização, como epicentro de tudo, livre para qual-
de leis ou se referem a divindades amorfas, enigmáticas, fluidas, quer serviço, in fl ado de egoísmo. Torna-se modelo do libertar-
expostas a poderes impessoais, talvez cósmicos, então oscilará se de Deus, do não se referir a ele, do não confluir para Deus,
sempre entre um servilismo legalista para com esses modelos- mas para si mesmo. De fa to, a tentação de qualquer referência
conceitos que experimentará, antes ou depois, sempre como que não seja ao Deus trino, ao Deus vivo, é sempre uma ilusão.
camisas-de-força. e um libertinismo subjetivista voltado a en- Uma ilusão de se relacionar, de se oferecer, de se sacrificar que, de

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MAAl\O h w Ru/"\tl\ 1 O exame de co11SC1é11cw 1. O fundamemos reo/6grcos do exmne 1/e co11sc1êl1cin

regra, se revela no final empre como mera afirmação de uma Antes de tudo, vamos ver que a experiência, a memória, a
ob cura e devastadora força do egoísmo rebelde. relação e o conhecimento são realidades ligadas constituti-
Vejamo agora, passo a passo, como é possível, sob o ponto vamente ao homem enquanto pessoa criada. O homem enquan-
de vista teológico, que a pessoa possa se examinar nos pensamen- to pessoa pode ser conhecido pelas relações com os outros. O
tos, nos sentimentos, no agir cotidiano, em suas escolhas, apoian- próprio Agostinho exclamava: es, ergo sum . A pessoa se conhece
do-se num exerácio da memória como o descreve anto Agosti- não simplesmente diante do espel ho, mas descobre ua verda-
nho. Assim intuímos logo que se examinar não é um ato i o lado deira face diante das faces dos outros.
que realizamos com nossa razão predominantemente ética dian-
Pavel Florenski esclarece que uma coisa é o conhecimento
te de modelos de comportamento, de racioánio, de agir, que nos
foram impostos ou que aprendemos teoricamente. Porém, logo das coisas, outra é o das pessoas, e sublinha que para o conheci-
fica claro que o exame é uma oração, um ato que se dá dentro de mento das pessoas é indispensável o prinápio agápico como prin-
um relacionamento denso, em que a experiência do amor, da re- cípio cognoscitivo.Todavia, é também igualmente verdadeiro que,
denção, da verdade de vida é o fundamento ativo que continua- para um conhecimento dos objetos, das coisas, das realia, é neces-
mente aprofundamos e trazemos para uma conscienlização cada sário um princípio religioso que as conheça e afirme a existência
vez mais plena. O exame de consciência é um encontro real com delas como tais, independentemente de nós. omente graças a
Deus em Jesus, que faz com que nos possamos ver diante dele, esse relacionar-se com as coisas, se abrem para nós as realiara, as
com ele e com os outros. Intuímos, assim, também, que se exami- partes mais verdadeiras das coisas, as internas, que trazem escon-
nar, como diria Cankar, "no quartinho mais escondido do cora- didos os significados e o entido de tudo o que existe.
ção", tem sua dimensão social e eclesial.
As crianças falam com tudo aquilo que encontram, conse-
guem instaurar um diálogo com as árvores, com os animais, com
0 OUTRO, OS OUTROS, CONDIÇÃO PARA SE CONHECER a neve, com o sol. Em certo sentido, o verdadeiro sábio evangé-
lico faz a mesma coisa, quando chega a perceber a criação como
... o amor é um real conlrecimento do outro, porque esse conl1ecimemo uma realidade viva que leva ao conhecimen to orgânico, sapien-
coincide com a fé nbso/11ltl na realidade do amado, a qual, no sentido cial, que é útil para a vida do ser humano e de todo o universo,
mais geral, é superaçt1o de si mesmo e renríncia de si mesmo, realidade um conhecimento que nos toma mas ricos e desemboca no sa-
que jd esttf no próprio pathos do amor. O símbolo dessa compe11etraçtio ber viver bem, que faz que a vida adquira cada vez mais o caráter
se dd na nfinnaçtio nbsolurn com toda a 11omade e com roda a com- do belo. omente a um Moisés descalço, com o rosto por terra,
preensão do ser estranho do "111 és~ Pronunciando e a plena afirmação numa atitude de radical reconhecimento do mistério, do fasá-
do ser es1ra11l10, plenitude na qual e pela qual codo o co111e1ído do meu nio da vida que o atrai, que o chama, na sarça se manifesta um
ser unirtel"Slll se despojou e se exauriu (exinaniúo, kénosis), o estranho ujeito, alguém que fala, que chama, que dirige a palavra (á. Ex
deixou de ser estranho para mim, o "Tu" se tomou para mim uma outra
3, 1-6). De fato, as coisas também estão marcadas por algo de pes-
descriç1io do meu "eu ~ "Tu és" não significa somente ·71, és reconhecido
soal do Criador. As coisas dizem e transmitem algo do proprietá-
por mim como realmeme existente", mas "o teu ser é vivido por mim
rio, do doador. Entretanto, esse princípio da unidade e, ao mesmo
como o meu, e 110 Leu ser eu conheço a mim mesmo mais realmeme".
tempo, da distância, que é necessário para viver a plenitude da vida,
Vj. 1. lvanov. Dostoievslli. obr. Soe. IV, Bruxelles, 1979, p. 502. foi prejudicado, destruído pelo pecado.

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MAR~U h AA RurMA1 O exame de co11.SCiênda 1. Os fundamentos teológicos do exame de consciência

O pecado intervém na relacionalidade, perverte a relação, com o mundo, para com os outros, e até para com o tempo, uma
porque perverte o amor. Ou melhor, o pecado é possível somen- relação não-possessiva, não de domínio, não de uso. Uma força
te porque Deus é o amor, e o amor é livre e indui também a selvagem que obriga a vontade ao desejo exasperado de se auto-
possibilidade de rebelião, de negação, de não-acolhida. O peca- afirmar impede ao ser humano a razoável recuperação de uma
do é interrupção da relação, é iso lamento, fechamento, é fazer relacionalidade sadia. Pode-se raciocinar e, com uma racionalidade
do pró prio eu o epicentro do universo, da criação, isto é, das ética, procurar instaurar relações, mas a história toda nos ensina
coisas e d e todas as relações. Assim, é quebrado de modo trágico que se trata de uma ilusão conden ada ao fracasso.
o conjunto, a harmo nia, a percepção da unidade como um todo, A recuperação da relacionalidade não acontece porque se
fi ca o bscu recido o sentimento de pertença, apagado o sentido decide viver de relações sadias. A relacionalidade significa exata-
da comunidade, esquecida a fraternidade. O pecado leva a não mente que não está em jogo um único sujeito, um único ponto
ver mais o outro como pessoa real, livre em sua objetividade, de referência. As relações não dependem apenas de mim. Mas
independentemente de mim. O pecado insere a categoria do uso, não existem nem mesmo as relações somente a dois, eu-tu, em-
bora na histó ria tenha aparecido a lgum utopista iludido que,
o cálculo do interesse, e o outro se to m a objeto. Ou melhor, o
crendo encontrar a alma gêmea, pudesse criar um paraíso a dois.
ser humano, como tal, transforma-se em objeto . Tudo acaba
Entretanto, essa também é uma amarga ilusão, destinada a um
sendo reificado, morto. Perde-se a face, são esquecid os os traços
epílogo dramático. A relação é uma rede, um tecido que se es-
do rosto, os o lhares, as mãos. O pecado é esquecimento, e o esque- tende sobre tudo aquilo que é o espaço e o tempo e que se afun-
ci mento é o rio que engo le os mortos, que faz desaparecer, que da nos abismos do amor inesgotável d o Deus Triuno, as três
leva embora definitivam ente. Sem uma relação de unidade e, ao Pessoas verdadeiramente livres e fiéis no amo r.
mesmo tempo, de distância com aquilo que se quer conhecer,
E essa relacionalidade, que abraça num tecido orgânico todo
não se pode conhecer corretamente. De fa to, o pecado leva à
o gênero humano, pode ser curada, sanada, somente por uma
ignorância (agnosia) , ao não-conhecimento e até mesmo à im- Pessoa que, no drama do pecado e da mo rte, no trabalho de
possibilidade d e conhecer. parto da história de toda a criação, pôde viver o amor total, univer-
sal e livre (cf. CI l, LS-20) . Um amor vivido em relação com tudo
o que existe, com todo o espaço e com todo o tempo, com toda a
SEM REDIM IR AS RELAÇÕES DO PECADO, história, que atinge Adão e toda a sua descendência, cada pessoa
NÃO É POSSÍVEL CONHECER individualmente e, ao mesmo tempo e no mesmo ato, todas as
relações da humanidade.
O amor é a conexão e o vfnmlo com que a Lota/idade das coisas é esrrei-
wda no laço de uma inefável amizade e de uma indissolúvel unidade.
A REDENÇÃO EM CRJSTO,
João Escoto Erfgena. De divisione nawrae 1,74: PL 122, 5198.
ÂMBITO DO VERDADEIRO CONHEClMENfO

O que faz com que o /tomem seja liomem, o princípio da lwmanidade


Não podemos conhecer a nós mesmos sozinhos, po rque no liomem, é sua divino-humanidade.
para nos conhecer é preciso que recuperemos a capacidade de
nos relacionar d e maneira livre, de poder ter para conosco, para Frank, S. II pensiero nisso da Tolswj a Lossllij, p. 265.

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M AMKo li'"" R111•"1~ 1 O examl' de co11sdência /. Os fulJ(/ameruos teo/6gicos do exmne de consdê11da

O mistério dn encnmaçiio do Verbo contém em si o significado de todos um poder defin itivo. Ou melhor, o tentador é derrotado; e _se
os símbolos e enigmas da Escritura, como rambém o sentido escondido afirma a verdadeira imagem de Deus como amor; e a verdadeira
de roda a criação sensível e i11teligfvel. Mas aquele que conhece o misté- imagem do homem, este, de alguma maneira, também co mo
rio da cntz e do sepulcro co11lrece também as raziies esse11cit1is de todas amor de Deus. Cristo, Filho de Deus, salvador do mundo, ver-
as coisru. Enfim, aquele que penetra t1i11dt1 mais f1111do e estd para ser dadeiro Deus e verdadeiro homem, morto e ressuscitado, é a
iniciado 110 mistério da ressurreiçtio, capra a finalidade para a qual imagem que faz com que o homem possa se reconhecer, porque
Deus criou todas as coisas 110 princípio.
se lembra de como ele é verdadeiramente.
Máximo Confessor. Celll. g11ost. 1, 66: PC 90, 1108AB. Pela redenção, somos reabilitados para viver a própria verda-
de, que é a verdade de pessoas criadas à imagem do Deus trin~,
do Deus das relações livres, fiéis, isto é, do Deus do amor. Tais
~a cura tão radical que deve ser tida como nova criação fo i relações não são algo teórico, abstrato, mas concreto, pessoal e
realizada em Jesus Cristo (cf. 2Cor 5, 17). Cristo é a plena revela- histórico. Cristo recria o homem novo abrindo-lhe a possibilida-
ção do amor livre e absoluto das Pessoas da amíssima Trindade de de amar, sendo ele mesmo o amor por meio do qual o homem
na história. Em Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, se entra novamente no mundo das relações. Cristo é o amor do Pai
comunica todo o amor de Deus para com as pessoas. E ele, novo que nos atinge, o mesmo amor pelo qual somos capazes de amar
Adão, afirma e faz resplandecer diante de Deus toda a verdade e a e de sair de nós mesmos. Cristo é a objetividade de todo amor
beleza do ser humano rem ido (cf. !Cor 15,44-49). Por meio da entre o ser humano e Deus e entre as pessoas entre si. Enca-
encarnação, assumindo a natureza humana, Cristo instaura uma minhamo-nos para Deus sobre essa ponte, graças à relação que
relação toda particular com o homem e nele toda pessoa humana
o próprio Deus instaurou conosco, dando-no seu Filho, .que
pode encontrar o acesso ao outro, a relação com o outro que ele
em seu êxtase veio até nós e permaneceu conosco. E, por isso,
instaurou. Cristo se torna uma espécie de pona pela qual se pode
entrar em comunhão com todas as pessoas (ó. CI l , 17). Median- nos é dada em Cristo uma relacionalidade sadia. Essa relacio-
te seu amor e suas relações, Cristo instaura um relacionamento nalidade é o princípio e o âmbito do conheci mento de si, dos
conosco, assimilando e assum indo sobre si nossa condição de outros e, mais ainda, de Deus.
não-relacionalidade, de violência, de egoísmo, de pecado, isto é, A redenção é, portanto, uma realidade tão realista, concreta
de morte. Ele, então, se toma vítjma de todo o mal do mundo, e pessoa l, que se toma o início objetivo e, ao mesmo tempo,
sobre ele se desencadeiam toda vi ngança e rancor da humanida- pessoal de uma memória inesquecível.
de. Assumindo a culpa de todos, pacifica a todos e nos faz desco-
brir que o muro da divisão foi derrubado e que, de repente, pode-
mos ver o outro como irmão (cf. Ef 2, l 4-18). 0 ESPÍRITO SANTO PARTICIPA AO SER HUMANO
Ao assumir o pecado humano, Cristo morre, pois a morte é O AMOR TRINITÁRJO
o salário do pecado, a sua carne é penetrada pela morte. Mas
como ele é o Filho de Deus e o Pai o gera e o ama eternamente, Estando o Espírito 110 Verbo, é evide111e que o Espírito esuf em Deus pelo
a relação eterna do Pai para com seu Filho queima a morte, des- Verbo. Assim, vindo o Espírito até n6s, 11irão wmbém o Filho e o Pai e
trói a noite co m a luz in acessível, e da morte faz surgir o Filho. /wbil<lrão em nós. Porque a 11i11dade é i11divisf11{!/ e sua di1ri11dade é uma só.
Desse modo, em Cristo, surge o verdadeiro homem li beno do
Atanásio. A erapião, ep. li 1, 5-6.
poder da morte, isto é, sobre o qual o pecado não pode mais ter

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M.w.n /l:v. Rur-.1~ 1 O l'Xt1111e tle consciência 1. Os f1111dame111os 1eo/6g1cos do exame de consc1ê11n11

Por meio da criação, o ser humano e sua natureza tomam-se laçõe que no mesmo ato incluem a própria natureza, o mun-
participantes da vida e da natureza divinas. Ora, a essência da do, os outros e Deu . Ao e relacionar mi extra com amor, rela-
vida e da natureza divinas é o amor, como afinnaram muitas ve- ciona-se também consigo mesma. Ela ama a si mesma amando
zes os santos padres. Ou, mais explicitamente ainda, a essência de os outros e vice-versa. O relacionamento com os outros inclui e
Deus são as relações de amor entre as Pessoas trinitárias que cons- passa por sua essência. Desse modo, o amor é uma relação inter-
tituem um único Deus tripessoal. Nesse sentido, o monoteísmo subjetiva, mas inclui a dimensão objetiva. Por isso, o ser huma-
cristão não pode ser posto ao lado dos outros monoteísmos. f.ssa no pode ser visto como uma realidade relacional complexa, não
é uma verdade que tem con eqüências imediatas no que concerne simpl esmente intersubjetiva.
à concepção e à compreensão do homem e, portanto, também da A relação entendida nesse sentido não pode, portanto, ser
história, da sociedade e da Igreja. egundo a revelação e a tradi- reduzida à simples intersubjetividade, exatamente porque per-
ção cristã, o ponto de partida para compreender a criação do ser tence à realidade da pessoa que inclui em si mesma também o
humano é que a natureza divina coincide com o amor. A pessoa princípio de objetividade representado por sua natureza. Con-
humana é criada à imagem desse Deus, e isso significa que ela tudo, a relação entendida deste modo não pode ser reduzida
participa da vida e da verdade de Deus. nem mesmo ao sim ples mundo psicológico, pois no seu núcleo
Éevidente que há um fosso ontológico (ou #abismo#, como fundante há uma realidade teológica e, ponanto, evidentemen-
santo Efrém costuma chamá-lo) entre Deus e o ser humano. En- te espiritual. A relacionalidade está, assim, fundada no mundo
tretanto, pela graça de Deus, esse fosso fo i preenchido, de tal trinitário. Toda tentativa de encerrar a relações somente numa
maneira que é menos profundo do que aquele que há entre o ser análise sociopsicológica é um reducionismo que engana e im-
humano e o resto da criação. De fato, omente a pessoa criada pede a verdadeira compreensão das próprias relações e, pon an-
participa da dimensão pessoal de Deus, é sua imagem. Isso signi- to, também do ser humano e da sociedade. Ou melhor, tal abor-
fica que, em sua essência, embora em nível criatura!. ela é aquilo dagem chega muitas vezes a uma leitura da relacionalidade que
que, em nível do incriado, Deus é: amor. A pessoa criada é tam- difici lmente pode e abrir para o verdadeiro fundamento das
bém pessoa exatamente por causa desse núcleo relacional que a relações, que é o mundo trinitário.
constitui como imagem de Deus. Tal núcleo a toma capaz de aco- e considerarmos o homem como imagem de Deus, vere-
lher a relação de Deus para com ela - relação que é fund ante, mos que o anífice da comunicação da vida divina com a criatu-
vivificadora, que faz existir, que a cria - e, ao mesmo tempo, ra, aquele que faz a pessoa criada participar da natureza de Deus,
toma-se gerador das relações para com os outros, o mundo e a é o Espírito Sa nto. É o Espírito Santo que desce primeiro, que
própria natureza humana que toda pessoa possui. vive nesse sentido a sua lténosi.s. O Espírito habita na criatura,
A pessoa, no sentido teólogico do tenno (portanto, em refe- tomando-a, através desse ato, pessoa, porque enxerta nela o prin-
rência a Deus, mas também ao ser humano no âmbito da antro- cípio da ágape, constituída pela participação com Deus Pai. O
pologia teológica), não pode ser reduzida a mero sujeito. O ser Espírito Santo produz na nova criatura, em sua alma - que é
humano, como pessoa, é por assim dizer constituído de uma di- exatamente a esfera pessoal do ser humano -, a sua imagem,
mensão agápica, espiritual, absolutamente pessoal, irrepetível, que que é a imagem do Filho.
está inseparavelmente unida àquilo que é chamado de natureza Sabemos que na simbologia cristã #imagem# significa apre-
humana, comum a todos os homens. A pessoa se realiza nas re- sença real e ativa do Filho. Ecomo o Filho, por sua vez, é imagem

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M ARACJ 11,.... . Ru""'~ 1 O exame de co11sciêncit1 1 Os f1111da111e111os teológicos do exame rle con.sciê11c1a

do Pai (á . Cl 1, 15), também o Pai e faz presente. O homem, É o Espírito anto que, comunicando-nos a redenção de
pessoa criada, recebe assim em seu ser pessoa uma marca trinitária. Cristo, a salvação realizada, a revelação de Deus como Pai, nos
O Espírito anto torna o homem panicipante da vida de Deus, faz descobrir nossa verdadeira identidade, a identidade de ft-
une-o à vida divina, manifestando-lhe o amor que há entre as lhos (cf. Rm 8, 14-17) . É o Espírito anto que nos remete ao Pai
Pessoas trinitárias. Assim, o Espírito envolve o ser humano no por meio da obra de Cristo: o Filho de Deus, assumind o a ima-
amor trinitário. Podemos, então, dizer que a pessoa humana é gem de servo para sofrer as humilhações dos homens que se
criada à imagem de Deus Pai, Filho e Espírito Santo, e que sua sentiram e se sentem escravos do pecado e da paixão, faz com
essência é ao mesmo tempo a relação do Deus trino que a cria, a que encontremos nele a ftli ação perdida. E é o Espírito que nos
vivifica, a salva e a sa ntifica, e a acolhida dessa sua verdade, o faz contemplar na face do Filho de Deus, feito servo, a marca
viver também ela a mesma realidade das relações e do amor. ftli al que o Consolador imprimiu em nós no momento da cria-
ção. O Espíri to nos faz ver que em Cristo, novo Adão, fo i reen-
contrada toda a realidade da primeira criação .
De fa to, o novo Adão recapitula e reintegra tudo aqu ilo que
0 EsPÍRJTO SANTO NOS UNE AO NOVO ADÃO,
NO Q UAL SE ENCONTRA O VELHO TRANSFIGURADO
era Adão e sua descendência. O Espírito anto dá olhos para ver
que no novo Adão foi assumido tudo aquilo que era o fracas-
ó me11 Criador. nascido de p11no 11irginal e tmn.spnssado 110 lado, e por so, a mentira, a traição, o pecado, a mone do velho Adão (cf.
isso feiro Adão, plnsmnste novameme Eva. (l(/onnecendo-te sobrenat11ml- Fl 2, 7). Tudo aquilo que fo i vivido na ausência do amor foi as-
me111e num sono fecundo de vida, na tua onipotência despertnste a vida sum ido e queimado pelo amor do Pai, de modo que pôde res-
do sono e d11 came... O templo imaculado foi destntfdo, mas ressuscita plandecer transftgurado, feito füi al, revelado como a verdadei-
consigo a tenda caída: de fato, o segundo Adtio, que mora no mais a/Lo ra, perfeita imagem de Deus Pai.
dos céus, desceu até o primeiro, aténs cdmams secrelns do l-lndes.

Tropários para as odes do onliros bizantino do sábado santo. NA CARI DADE, A VIDA PERMANECE

O Verbo, tomando cnme, se misturou com o lwmem e assumiu em si a


O Espírito anto é aquele que encarnou o Verbo na Virgem nossa nnwrew, a fim de que o l1umano seja deificado sem co11f11siio
de Nazaré. É o anífice da encarnação e, ponanto, da manifesta- com Deus: n matéria da nossa 11nwrew é i111eiramente samificnda por
ção plena de Deus, que é no mesmo ato redenção do ho mem, Cristo, pri 111 feia da criação.
manifestação da glória de Deus na face de Cristo e redenção do
homem contemplada na mesma face. Graças ao Espírito, o ser Gregório de Nissa. Contrn Apolintfrio, 2: PC 45, 11 28.
humano pode reconhecer Cristo como seu Senhor e intuir a
amplidão do amoroblativo e salvífico entre Pai e Filho, de modo
a poder se descobrir amado por Deus no Filho de Deus, reco- Como se pode acolher a redenção? Como panicipar dela?
nhecido ao mesmo tempo como salvador e irmão, pois é o mes- ob nosso ponto de vista, de criaturas, o Espíri to Santo é o amor
mo Espírito que nos torna filhos no Fi lho, pronunciando em do amor de Deus, como o chama santo Agosti nho, aquele que
cada pessoa o verdadeiro nome de Deus, que é #Pain. derrama em nossos corações o amor de Deus Pai (cf. Rm 5,5 ).

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M """'º /1~' Rur'lllK 1 O exame de con.scienci11 /. Os fimdnme11tos 1eol6g1co tio exame de co11Sc1ê11cra

É ele o comunicador da vida de Deus, isto é, do amor de Deus. entre o desânimo e o encontro fiel, entre a tristeza e a felicidade.
Ele é o supremo dom do Pai, mas para nós, seres humanos, é Portanto, a caridade é também passagem, Páscoa, um êxodo do
também Doador. Desde tempos imemoráveis, os cristãos reco- velho para o novo Adão.
nheceram no Espírito amo a Pessoa divina que habita no ho- a caridade se tece como organismo toda a urdidura da
mem com sua ação. E essa ação, desde a época dos apóstolos, história. A caridade, exatamente porque dura para sempre, pre-
foi reconhecida em primeiro lugar como comunicação do amor, erva tudo aquilo que verdadeiramente permanece. E o modo
da caridade, como testemunha o caso de Estêvão, #d1eio 1... 1do como permanece é o da Páscoa. Aquilo que não faz pane da
Espírito amo" (At 6,5) até ao ponto de dar a vida. Pá coa não é próprio da caridade e, portanto, não permanece.
O Espírito anto habita no homem com a anta caridade. Aquilo que permanece é o que faz pane do tríduo pascal, que mor-
Mas o que é a caridade? É a ágape percebida e vivida na história re por amor, é sepultado e, no terceiro dia, o Espírito Santo faz
e na criação. Por isso, é a única realidade que permanece, por- re suscitar e o revela em Cristo, nossa Páscoa. O Espírito Santo
que é a unidade de tudo, até mesmo a unidade dos opostos. A faz coníluir tudo para Cristo, permanece eternamente aquele
santa caridade permanece porque é de tal modo divina que con- que encarna o Filho, que o torna histórico, eternamente presen-
segue incluir a oposição, a rejeição, a rebelião e até a negação. A te, assim como acontece na santa liturgia.
caridade se deixa negar, pisar, humilhar, destruir - como o fez O Espírito Santo, porém, juntamente com o dom da carida-
Cristo, manifestação do amor do Pai -, mas sempre ressuscita, de, nos doa a inteligência e a memória. A caridade é a forma de
aí permanece, humilde, mansa, sem interesses pessoais, sem inteligência mais alta e a luz do inteleao, porque consegue ver
querer se afirmar, sem desejo de espaço próprio, de formas pró- cada coisa em seu nexo com o resto, com tudo, pois a caridade é
prias de existência... A caridade é a vida eterna. A caridade tem, nexo de tudo, o tecido de tudo. Os autores espirituais falavam
assim, tanto de pessoal de Deus, que nada de cri aturai pode des- da caridade iluminada, da caridade discreta, isto é, da inteligên-
truí-la. A caridade comunicada pelo Espírito anto mantém, in- cia da caridade, a inteligência que faz com que se veja cada deta-
clusive nas reentrãncias mais sombrias da história, uma abenu- lhe na sua verdade, no seu relacionar-se com todo o resto, uma
ra contínua para os abismos do amor pessoal do Deus trino. inteligência que liga o particular com o conjun to. E como faz
A caridade vive como que em dois registros: um exposto à com que permaneça eternamente tudo o que se deixa penetrar
história, ao tempo, ao pecado e à violência; o outro, à fidelidade pela caridade, esta coincide com a memória .
de Deus nas três Pessoas. Um ligado à carne, à precariedade da A memória, portanto, está estreitamente ligada ao Espírito
criatura; o outro, à luz inacessível, à felicidade duradoura, à ple- anto, o doador da caridade. No sentido criatura!, antropológico,
nitude do encontro tripessoal. Ponanto, uma pane imerge na o princípio da memória é o Espírito Santo, pelo dom da caridade.
tragédia do pecado, exposta à violência da mentalidade do pe- Desse modo, a memória está intrinsecamente ligada à inteligên-
cado; a outra, na fidelidade inabalável de Deus Pai, Filho e Espí- cia e à vida, porque o Espírito Santo é o Senhor que dá a vida,
rito anto. O verdadeiro Deus e verdadeiro homem, Jesus Cris- exatamente porque dá a caridade pessoal de Deus Pai. O homem
to, encarnado pelo Espírito Santo, é a realização plena e absoluta possui, assim, uma estrutura cognitiva que tem como fundamen-
dessa polaridade da caridade entre criado e incriado. Ea Páscoa to a caridade, como princípio vital o Espírito Santo e como âmbi-
do enhor é o fundamento e o ápice de tudo aquilo que passa to de realização a experiência das pessoas em relação com Deus,
entre a mone e a vida eterna, entre o pecado e a luz inacessível, com os outros, consigo mesmas e com toda a criação.

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MAR~<> /1'J\ R11P,1k 1O exame de co11.SCie11cia /. Os fu11da111e11ros teo/6g1cos do t .u 1111e de co11sc1e1teia

RECORDANDO, D EUS FAZ VIVER E SE FAZ PRESENTE NA VIDA memória de Deus se revela como uma ação permanente, cons-
tante, da fidelidade de Deus em relação ao recordado. A memó-
O bom lndriio rez.n nn mu.: ·1esus, lembra-te de mim, quando começa- ria de Deu é uma espécie de aliança divina, é a solidez do eu
res " remar~ Pede para ser lembrado. E Je u.s Cnsro, respondendo, ou- ·ser com": é o Emanuel, Deus-com o recordado (á. 1 111,5 ).
vindo seu desejo de ser lembrado, confinnn: ·cm 1erdt1de te digo: l1oje
1

eslllrtfs comigo 110 Paraíso· (Lc 23,42-43 ). Em ourras pnlmtras: ·ser


lembrado" pelo Senltor é a mesma coisa que ·eswr 110 pamfso·, e isso
significa estar na memória etemn e, co11seqüentememe, ter e.\istência
etemn e, portamo, recordnçiio etemn em Deus. A MEMÓRIA HUMANA TAMBÉM NÃO GOSTARIA
DE DEIXAR A VI DA ESCAPAR
Florenski, P. A. La colomw e il fondamento de/ln l'eritlr, p. 24 6.
Dever-se-ia dizer no i11su111te: ·ren11a11ece, tu és tiio belo!~ ..

No movimento de todo ser humano, por meio da caridade, Goethe, J. W. Fnusro, I, 1699-1700.
para ser filho no Filho, o Espírito Santo revela e lembra continua-
mente a cada pessoa o que significa ser filho. Pela comunicação
da vida de Deus, da salvação de Cristo, o Espírito anto toma Também no mundo psicológico - e, portanto, no criatura!
concreta a imagem da nossa identidade. Fazendo-nos partfcipes, - a memória é levada a ter essa capacidade de tomar as coisas
de de a criação, da marca filial e, depois, tomando própria de presentes. Inclusive simplesmente no processo do pensa mento,
cada um a redenção realizada por Cristo, o Espírito amo vivifi- a memória, por meio da recordação, toma presentes as imagens
ca continuamente em nós essa realidade da imagem, que se tor- e os conceitos. Entretanto, é em nível psíquico que notamos mais
na, assim, uma lembrança espiritual daquilo que é a nossa ver- explicitamente es a característica da memória de evocar as coi-
dade. Mediante a caridade que nos é comunicada, por meio da sas, de procurar não deixá-las fugir, de segurá-las. Isso é tão ver-
participação divina, o Espíri to faz emergir em nós aquelas lem- dadeiro que tal tendência pode chegar a uma real patologia, isto
branças reais e eficazes que constituem nossa memória espiri- é, à nostalgia. A nostalgia se co nfigura como uma espécie de
tual. Ele faz com que a pessoa se lembre daquilo que está se bloqueio psicológico sobre o passado: fi camos de tal modo ape-
tomando, daqui lo que é chamada a ser. gados que não conseguimos nos destacar dele, e como não con-
A memória espiritual coloca diante de nossos olhos interio- seguimo reviver o passado, mantê-lo pre ente, procuramos fa-
res, como meta do nosso devir e do nosso cumprimento, aquilo zer com que o presente vol te para o passado. A nostalgia é uma
que na Pá coa de Cristo já foi realizado para cada um de nós. doença que sangra a memória. De certo modo, podemos enten-
Essa memória espiritual a nós comunicada tem caráter criatural der esse desejo da memória de tomar a realidade presente. Po-
e, portanto, se encontra no limiar entre o mundo do espírito e o demos até compreender a patologia da nostalgia, estrei tamente
mundo da psique; mas no mundo de Deu a memória pessoal
ligada à no sa mais profunda e primordial ferida da memória,
das três Pessoas divinas é um ato absoluto, de pensamento e de
constituída pelo pecado.
criação. Em Deus, a lembrança coincide com o amor que ele
tem pela realidade recordada. A memória de Deus é, portanto, O pecado faz com que o cenário da vida mude totalmente,
sua pre ença, sua relação fiel. De fa to, na revelação bíblica, a porque muda radicalmen te a própria identidade da pessoa, re-

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M "1l~O fl'M' Ru,....,~ 1 O exame de consetêrma /. Os fundamemos reo/6gicos tio exame rle consdêneta

presentando uma catástrofe tão grave para o ser humano, que Também sob o aspeao moral, uma memória fossilizadora,
este sabe que seu estado anterior não está mais presente no hoje. uma racionalidade nostálgica envolve a vontade das pessoas de mo-
E então se volta para o passado, com a nostalgia de querer para do errado, porque no faz prefixar modelos ao quais devemos nos
aí retornar. A no talgia é uma doença predominantemente espi- conformar para ser perfeitos, daquela perfeição perdida que deve
ritual, que repercute em toda a pessoa, envolvendo assim sua ser reconquistada. É uma forma esclerosada, pelo simples fato
racionalidade, sua psique, como podemos constatar ao longo de que é artificial, isto é, desligada da vida, e de fato acaba sem
de toda a história da humanidade. É sempre assi m em todos os sabores, isto é, sem felicidade. Leva-nos a nos sacrificar, renun-
esforço para recuperar certos estados, certas situações, certo di- ciar, formar, educar, mas sem chegar também a saborear a vida,
ma ... Fundamentalmente, a nostalgia liga a memória e as lem- a provar o sentido do crescimento. Ao contrário, pode acontecer
branças a modelos culturais, psicológicos, sociais e políúcos. Por- faci lmente que essa perfeição eja desligada do amor e, portan-
tanto, representa, por si, o apego a uma realidade rei ficada, no to, espelhe a fragmentação de uma unidade ilusória, nunca atin-
fundo envolvida na procura de um prazer perdido, de uma se- gida. Isto é, um detalhe é simplesmente declarado como totali-
gurança que se foi, da vida que se afasta. Mesmo que às vezes dade. Esse processo desemboca numa espécie de ideologização
pareça se tratar da saudade de pessoas, de relações vividas, além da memória e numa racionalidade que faz o conhecimento ins-
das aparências imediatamente perceptíveis é uma busca um tanto taurar-se em lembranças não vivas, mas ideais, pensadas, cons-
egoísta. Nosso eu gostaria de apropriar-se novamente daquilo truídas e, portanto, em última análise, em lembranças que não
que nos dava segurança, prazer, gozo, auto-afirmação. Por isso, são memória.
a nostalgia não prevê o progresso, não aceita a mudança, nem
formal nem substancial, das pessoas. A nostalgia fossiliza.
Tanto isso é verdade que todos nós já vivemos a experiência A MEMÓRIA SE TORNA ANAMNF,SIS DA VIDA QUE PERMANECE
de sentir nostalgia de uma pessoa e depois viver uma amarga
A 11osurlgia se refere a 11111 passado do qual se sente a falw . A anamnese
desilusão ao encontrá-la e perceber que não é como a recordá-
é uma lembrança jubilosa que roma o passado ainda mais presenre do
vamos e como a esperávamos, mostrando, dessa maneira, que
estávamos mais apegados à idéia que tf nhamos da pessoa do que o era quando vivido.
que a uma real relação com ela. A nostalgia é uma doença porque Spid lík, T. "Spiri tualità slava e religiosità onodossa".
é a esclerose da memória. E essa esclerose é causada pelo cisma ln: W .M . Lezioni sulla Divinoumanità, p. 209 .
en tre o prindpio agápico da caridade, do amor pelas pessoas,
e nossa tendência a rei ficar tudo, a transformar tudo em coisas,
objetos, idéias e sensações a serem possuídas. O cisma causado Somente a memória que recorda a Páscoa é uma memória
pelo pecado é levado adiante por uma mentalidade de pecado. viva e que, portanto, garante uma racionalidade sapiencial que
Essa tendência se percebe também na nostalgia que faz com que, conduz ao saber viver. Saber viver para jamais morrer. Saber vi-
de modo simbiótico, os rostos coincidam com as coisas, as pes- ver desmascarando as ilusões, as fadas morganas, os fantasmas.
soas com os objetos, as relações pessoais com os sentimentos e Uma memória que recorda a Páscoa sabe que as coisas retomam,
as idéias, mas não com base na caridade e, portanto, não com mas não como foram vividas, e, sim, transformadas, transfigu-
base em um princípio agápico pascal. radas no processo da redenção, que é o processo da filiação uni-

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MARkO ' ' "·"' R111•...1k 1 O exame de co11SC1e11cia /. Os f 1111da111e111os wo/6g1cos 1/0 t'XIJllll' de co11s ienda

versai em Cristo. Essa é uma memória não-nostálgica, mesmo mória consegue reconhecer a objetividade de Cristo celebrado
que faça retomar, porque faz retomar em Cristo ao Pai, na casa como enhor e alvador, que sem descanso continua na história
do qual todas as coisas se encontram, como acontece com o revelando o Pai e remindo-nos da escravidão do pecado. Por
filho pródigo (cf. Lc 15,11-32). meio da abedoria eclesial, a liturgia nutre as lembranças da nossa
De fato, para ele as coisas reencontradas na casa paterna não memória e pi ritual, a memória que se abre para a 1111t111111ese, para
são mai iguais àquelas que dissipou, submetendo-as ao eu ca- a memória eterna.
pricho, gerindo-as com sua vontade. Tudo mudou, porque tudo Na liturgia, a memória nutre e é nutrida por toda a complexi-
se toma uma narrativa, um relato, a revelação do amor do Pai. dade e piritual da Igreja, isto é, pela Palavra de Deus, pelos sím-
Ora, através das coisas, o pai se faz presente para o filho como bolos, pelos dogmas, pelos conceitos, pelas metáforas, pelos sen-
cuidado, como amor que espera e festeja o encontro. A memória tidos, pelas imagens espirituais e pela caridade praticada ... Assim,
espiritual toma assim presentes as coisas por meio da transfigura- a memória da salvação, a memória de Cristo, verdadeiro Deus e
ção que acontece na Páscoa, faz com que as coisas voltem, por- verdadeiro homem, depositada nessas realidades da Igreja, vivifi-
que as recorda em relação com a Páscoa, isto é, em relação com ca continuamente nossa participação nele ao amor do Pai.
um Deus que também se comunica de maneira pascal. Ea Pá coa A memória é participação. É a eficácia da participação no
é o impedimento de qualquer fossilização, de qualquer pensa- dom de Deus. Por isso, é uma realidade transformadora, eja da
mento esderosado, nostálgico, formalista e possessivo. nossa mentalidade - por causa das lembranças reais que corri-
A tradição da Igreja chama de a11am11ese a memória que tem gem continuamente nossa lembrança, de maneira a poder cada
como principio vital o Espirita Santo e que assume as lembranças vez mais reconhecer corretamente o que é de Cristo e o que não
num tecido duradouro de caridade. De fato, no plano criatura!, o lhe pertence, o que é nossa identidade de filhos no Filho e o que
ápice da memória tem sua foz criativa e vivificadora na liturgia, se distancia dela - , seja do nosso estilo de vida, do nosso agir
onde se transforma em anamnese. Somente a liturgia é o âmbito moral, porque nos nutre constantemente com a recordação da
no qual a memória humana, que por participação traz consigo Páscoa como único caminho de realização do homem. Uma
essa vontade de criar, de não perder as coisas, chega a realizar essa realização que não acontece de modo abstrato e isolado, mas
sua profunda característica. Na liturgia, a memória humana se dentro de uma relação com o Cristo pascal que nos é comunica-
une tão eficaz e realmente à memória de Deus, a ponto de tomar do pelo Espírito Santo.
presente aquilo do qual nos lembramos. Na liturgia se realiza esta
obra do Espírito Santo que é #tomar presente".
De fato, a a11amnese é seguida pela epidese. Sem a invoca- A UNIDADE, GARANTIA DE VIDA
ção do Espírito Santo, nossa memória permanece impotente. e Quamo mais unificas Leu coração aLravés da procura dele, tanLo mais
então se perde no esquecimento, morre juntamente com as coi- ele é obrigado, por sua compaixão e por sua bondade, a vir a Li e a
sas que desaparecem, ou se esderosa nostalgicamente. Na liturgia, repousar em ti... E quando vir Leu zelo em procurá-lo, emão se manifes-
ao contrário, a memória entra na anamnese e, com uma sabedo- uirá e aparecerá a Li, te concederá sua ajuda e te dará a viLória, liber-
ria edesial, isto é, com uma reacionalidade que pensa junto com U111do-Le dos teus inimigos. Antes de tudo, quando tiver visto que o
os outros e, portanto, com uma inteligência de amor, essa me- procura.se como sempre colocas nele a Ilia esperança, então te instruirá,

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MARKO fvA, Rw"'~ 1 O exame de consciencia /. Os f1111dame111os 1eológicos do exame de consciencin

te fará o dom da verdadeira oraçdo. da verdadeira Cllridade que é ele a própria vontade, viveria, se afirmaria. Esse engano do tenta-
mesmo e se tomará tudo para ti: paraíso, árvore da vida, pérola, coroa, dor, porém, tomou-se o cemitério da humanidade. O homem
arquiteto, agricultor, passível e impassível, homem e Deus, vin/10, água ferido pelo pecado, sangrando por causa das relações truncadas,
viva, ove/lia, esposo, guerreiro, annadura, Cristo que é wdo em todos. provocadas pela solidão imposta pela vontade própria, procura
Pseudo-Macário. Omelia 31 , 3-4.
se salvar fazendo de si mesmo o epicentro da relacionalidade.
ln: pirito e fuoco. Magna no, 1995. pp. 324 -325. Trata-se, porém, de uma reJadonalidade possessiva, que
procura ganhar segurança amontoando muitas relações reifi-
cadas, juntamente com mu itas outras coisas e objetos úteis e
Examinar a si mesmo significa ver-se em relação ao Protóti- agradáveis acumulados para garantir a vida para si. Essa relacio-
po. É um exercício que serve para tomar cada vez mais consciên- nalidade possessiva, pois não é capaz de viver relações verdadei-
cia de si em relação àquilo que se é chamado a ser e, portanto, a ras com o mundo, cria castelos especulativos, sistemas ideológi-
se ver cada vez mais integralmente. Mas para isso é necessário cos, a fim de se sentir poderosa, viva, inatingível e invulnerável.
esclarecer o que significa "ver-se integralmente", qual é a inte- Mas, em nível psicológico, estranhamente, tudo isso leva somente
gração que se analisa olhando a si mesmo. De fa to, é preciso à satisfação. De fato, consegue-se ficar satisfeito, mas ser feliz é
esclarecer que a integração da pessoa não significa simplesmen- outra coisa bem diferente. E quem se satisfaz, cedo ou tarde ex-
te uma perfeição conforme um ideal projetado. Aquilo que nos perimenta o tédio provocado pelos objetos da sua satisfação.
faz f ntegros é a relação verdadeira com nosso Criador e Reden- A satisfação proposta pela mentalidade de pecado é, de fato,
tor, ou melhor, sentirmo-nos abraçados pelo olhar de amor do uma insatisfação camuflada. Ou melhor. uma amargura, uma
Redentor que une toda a nossa pessoa, nossa história, nosso fu- derrota. Solov'ev retoma o conceito fil osófico da má infin itude,
turo. Sem o pano de fundo da integração, compreendida desta esse desejo insatisfeito da pessoa ferida porque não vive no êx-
maneira, não podemos fazer o exame de consciência, porque tase para os outros, mas como epicentro egoísta. É uma sede de
não sabemos em referência a que coisa estamos nos examinan- saciedade que não pode ser satisfeita, uma vontade de se afir-
do. Ao ignorarmos isso, corremos o risco de cair novamente em mar que não pode ser aplacada. Não mais se conhece a frontei-
esquemas, abstrações e moralismos despersonalizantes. ra, porque cada coisa que no começo dá prazer, satisfação, com
Vamos, então, tentar entender o significado da unidade es- o tempo leva ao tédio ou até mesmo à amargura. A pessoa se
dispersa em todas as coisas que acumulou para se sa lvar. Amon-
piritual como integração pessoal.
toa as coisas, como o filho pródigo, para geri-las segundo a pró-
O princípio da vida é se unir. A tendência a se isolar é a pria vontade, para gozá-las e, no final, paradoxalmente, essas
fonte da mone. Todas as coisas que se separam, se fecham, que mesmas coisas que lhe deviam trazer satisfação tomam-na escra-
procuram se auto-afirmar, acabam morrendo. Na criação, tam- va. Fica, assim, esm igalhada em seus múltiplos desejos cada vez
bém o princípio da vida se caracteriza pela unificação, pelo rela- mais inquietos, agitados, insaciáveis. Esse é o demônio que se
áonar-se. A vida escorre por meio das relações, a mane triunfa chama legião, porque é multidão (cf. Me 5,9), porque é desagre-
ao truncá-las. O pecado enganou o homem prometendo-lhe que, gação, porque dá a ilusão de que cada detalhe, se satisfeito, pode
caso se preocupasse consigo mesmo e se componasse conforme absorver a multidão e aplacar a vontade de ser. É uma verdadeira

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M~H~u 11-v.. Rw"''~ 1 O exame de cotuciência 1. Os fundamentos teológicos do exame 1ie co11.Sdiincia

ilusão demoníaca. O er humano fica à mercê do cisma , das pensamemo, a integridade da razão, a imegritltrde do imelecto, a sa1íde
separações, da fragmentação, da impossibilidade de e compreen- da razão e do intelecto. É exatamellle esse o significado do tenno nos
santos padres e nos amigos filósofos. A celo-mudrie e simplicidade, isto
der como totalidade. E olha para si mesmo no espelho quebrado
é, 1111idade orgânica e, se se quiser, imegridade da pessoa.
com uma dor, com um sofrimento que já é um morrer.
A felicidade e tá presente na unidade, porque a unidade é a Floren ki, P. A. u1 colo1111a e il fondamento dei/a verità. p. 231 .
garantia da vida. A vida está garantida somente numa união que
não exclui ninguém. Quando uma parte é excluída, i to é, empur-
rada para o isolamento, onde guarda rancor e agressividade, cedo Ver-se integralmente significa ver os nexos entre as nossas
ou tarde se toma uma ameaça para todo e portanto, também diversas dimensões - a razão, o intelecto, a intuição, a vontade,
para si mesma. A verdadeira garantia da vida é a comunhão de o sentimento, os sentidos, o corpo, as paixões, o instintos ... -,
mas também quer dizer ver nossos nexos estendidos no tempo,
todos, sem exclusão de ninguém. Uma comunhão que leva em
ver nossa continuidade orgânica ao longo dos anos, como tam-
conta todos, que interpela a todos, e que ao mesmo tempo não
bém ver nos anos os nexos da nossa identidade, da realidade da
faz violência, não obriga a se mutilar para ficar junto, mas, afir-
nossa pessoa, por meio da globalidade dos epi ódios, dos even-
mando a todo , consegue afirmar a cada um. omente esta é uma
tos e das histórias vividas. Inclusive os nexos culturais são teci-
vida tranqüila, uma vida que pro pera e que a pes oa experimen-
dos na minha identidade, até mesmo a geografia, a cor da pele,
ta como felicidade. Descobrimos esse critério antes de tudo den-
minha estrutura genética, isto é, as ligações com meus pais, com
tro de nó , antes mesmo que em níveJ ocial: viveremos nossa os antepassados, como também os nexos entre realidade e so-
identidade, nossa verdade, encontraremos a erenidade e a paz nhos, desejos e projetos, sucessos e fracassos. Ver-se integralmente
omente se vivennos a unidade de nós mesmos, e tivennos um significa ter pre ente toda a gama das relações, dos encontros, e
olhar obre nó com o qual consigamo nos ver integralmente. o nosso nexo com as coisas que nos circundam, os objetos, o
trabalho ...
VER-SE COM OS OLHOS DO ESPÍRITO SANTO, Nós percebemos de maneira imediata e instintiva que o
INTEGRADOS EM CRISTO mistério da alegria e da felicidade se esconde na unidade. Por
isso, muitas vezes queremos vencer a de agregação, a de inte-
Qual é o verdadeiro caminho que a Escritura chama de •o caminho gração, com os esforços voluntaristas com os quais procuramos
apenado que leva à vida• (Ml 7, 14), · o caminho da paz• (Lc 1,19), reconduzir nossa vida à unidade por meio de cri térios ou cate-
·o caminho da salvação• (At 16, 17), ·o caminho do Senhor· (At 19,9), gorias ideais, abstratas ou formuladas por outros em nível social
·o caminho da verdade· (2Pd 2,2) e ·o caminho reto• (2Pd 2, 1S)? como modelos, imagens a serem recuperada em nós, com as
quais foram se configurar.
É a pureza-castidade (celomudrie). O próprio ten110 msso celo-
mudrie (owct>pooúVTJ ou ocxo$pooúVTJ), em s1111 composiçtio etimológica,
Todavia, como vimos, nada é princípio unificador a não ser a
se remete à integridade, à saúde, à incolumidade, à unidade e, em ge- realidade do amor trinitário. Somente o amor de Deus é o tecido
ral, ao estado 11omral da vida interior, à mio-divistio e tl força da pessoa, unitário que mantém, favorece e realiza a realidade da pessoa.
ao frescor dru energins espiriwais, à l1am1onia espiritual do lromem Trata-se de entrar na ótica do amor, de se pensar, se compreender
interior. A celo-mudrie é qunse a mesma coisa que a integridade do e progredir com a inteligência do amor. Então se cresce na

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Mu;.o /1.M Ru"''" 1 O ext11ne de co1tseiê11da 1. Os f1mda111et11os 1eo/6g1cos do exame de consc1ê11011

integração. Aqui, porém, e esconde muitas vezes uma armadi- anuncia a obra de suas mãos• ( 1 18, 2). e os lromens acolliem em s1
lha: o ser humano não pode se amar ozinho, não consegue se também esta sabedoria, recon/recerão a verdadeira sabedoria de Deus,
dar amor sozinho.Trata-se, então, de descobrir-se amado. O amor reco11l1eceriio que foram efetivamente criados à imagem de Deus.
é uma surpresa, se assim não for não é amor. O amor não pode
Atanásio. Oração 11 comra os arianos. 78: PC 26, 78.
er forçado . Não podemos obrigar os outros a nos amar. O amor,
já vimos, é dom do Espírito Santo. E a realização do amor em
nós, da recapitulação de todo ser humano no amor, é a redenção Ora, essa passagem entre divino e humano, entre incriado e
realizada por Cristo e a nós comunicada no Espírito. Por isso, criado, entre absoluto e frágil , esse olhar unitário e agápico, que
para ver-se na realidade e de verdade, é preciso pedir ao Espírito é aquele do nosso Criador e Salvador, nos foi conservado e co-
anto. Eele nos conduzirá até Cristo, que é o único que nos pode municado na sabedoria de Deus. Na sabedoria divina, Deus con-
dizer como se vê, porque nos olha de tal modo que não hesita em serva todas as imagens e todas as idéias vivas e realmente exis-
dar a própria vida a fim de nos recuperar para a vida. tentes do conjunto daquilo que ele cria com amor e que redime
em seu Filho. Asabedoria divina é, portanto, o âmbito que Deus
nos dá por meio do Espírito Santo no qual as pessoas criadas
A SABEDORIA, ÂMBITO DA COMUNICAÇÃO COM D EUS podem comunicar-se com Deus. A sabedoria é aquela inteligên-
cia agápica comunicada à criação para nutrir nossa memória com
Embora a sabedoria unigênita e original de Deus tudo crie e edifique. ..
a memória de Deus, que é real e efi caz. Por isso, na sabedoria
para que a criação não someme e.cistisse, mas e.cistisse dignamente,
Deus se comprouve que a sua sabedoria descesse até às criaturas; de tal divina conflui, de um lado, o amor do Pai, a realidade divino-
modo que sobre todas tlS criaturas e em cada uma delas em partiet1lar humana de Cristo e, do outro, a acessibilidade do homem a esse
fosse colocado um cerro selo e uma semelliança à imagem dela e que âmbito, e a acolhida que ele faz dela, culminada na Virgem de
aquilo que fora le1 1ado a ser se revelasse como coisa sábia e digna de Nazaré, Mãe de Deus. É um ponto de encontro, onde o homem
Deus. Depois, como em nós e em todas as coisas existe esse selo da pode contemplar a si mesmo com os olhos de Deus e pode se
sabedoria criada, a veraz e criadora sabedoria, assumindo aquilo que se recordar como o recorda o Espírito, isto é, como Cristo o redimiu
adere ao próprio selo diz de si mesma: "Javé me criou em suas obras~ O e o que lhe está dizendo.
próprio Senlror, num certo se/Ilido, diz que é seu aquilo que se diria da
sabedoria existente em nós, e embora ele, enqualllo Criador, mio seja
criado, entretanto por causa da sua imagem criada nas coisas, ele o diz
como de si mesmo. O próprio Senl1or disse: "Quem vos recebe é a mim 0 OLHAR DO ESPÍRITO SANTO SE PERCEBE NA SABEDORIA
que está recebendo" {Mt 10,40); portanto, assim como lld em nós o seu
selo, ele wmbém, embora não pertencendo ao número das coisas cria- O Espírito anto é a caridade que atrai.
das, mas sendo sua imagem e semelliança criadas nas coisas, diz quase
como que fosse ele mesmo essa imagem: ·o enhor me criou desde o Saint Thierry, C. de. O espellro da fé, XX.
infcio do seu poder, antes de suas obras, desde o princfpio~ Como eu ln: SC 301, Paris, 1982, pp. 137 e 139.
disse, o selo da sabedoria foi impresso nas coisas para que o mundo
reconheça na sabedoria do seu criador o Verbo e através do Verbo o
Pai... no mundo não luf a sabedoria criadora, mas a sabedoria criada A sabedoria divina é aquela realidade inteligível e viva que
nas coisas, graças à qual "os céus narram a glória de Deus, ofinnamento permite ao ser humano desenvolver uma forma de pensar e uma

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M ARKO ilM R11r..:1A 1 O exame de consciência /. Os fu11damemos 1eo/6gicos do exame tle consciência

inteligência que age m com critérios e categorias vitais. De fato, quase para fazer parecer q ue as noções abstratas não possam ser
um raciocínio, um pensa mento desenvo lvido a pani r da sabe- passionais nem tratadas de modo passional, como que para ga-
do ria, opera com conceitos e noções impregnados de vida. Po r rantir uma independência do raciocínio, para mostrar que está se
isso, não é criado simplesmente um sistema de pensa mento, e evitando a possessividade.
se evita assim o risco da ideologia. Um pensar a partir dos pres- De fato, po rém, todos os sistemas de pensamento que par-
supostos da sabedo ria divina cria um o rga nismo de conceitos, tem de pressupostos abstratos, teóricos, evidentemente, cedo o u
de noções, de idéias, que é um orga nismo vivo . A sabedo ria di- tarde se tomam uma técn ica que chega até a determinar aquela
vina é um do m, é uma caridade de Deus para com os ho mens, é reviravolta pela qual a própria tecnologia se transform a em siste-
um gesto de pedagogia do Senho r cheio da sua ternura por nós, ma de pensamento. Num mundo de tecnocracias, é possível se
a fim de nos proteger dos abstratismos, mas que nos o ferece a chegar a dominar o ho mem para que correspo nda à visão que a
possibilidade de pensar o mistério do homem, o mistério da tecnologia já incentiva, até intervir sobre ele de modo tão radical,
vida, o mistério da história, o pró prio mistério de Deus de modo a po nto de fazer o ho mem #novo", agindo sobre a natureza hu-
sapiencial, isto é, sempre unido à vid a, aquela vida que perma- mana. Não há dúvida de que esse é o nosso futuro . E parece pou-
nece, que não mo rre. É um modo de pensar que impede o de- co frutífero se contrapor com teorias #huma nistas", éticas, mo-
senvolvime nto de teorias abstratas sobre o ser huma no, sobre rais, o u simplesmente com intervenções no plano jurídico.
sua inteligência, sobre sua alma, sobre sua psique, sobre a histó- Com a impostação atual do mundo, guiada pelos interesses
ria, sobre o cosmo e ta mbém sobre Deus. econômicos e fin anceiros, que com gra nde maestri a se apó ia m
n a passio n alidad e do h o mem, sobre seus desejos de auto-
De fato, as teorias se desenvolvem freqüentemente a partir
afirmação e de busca do agradável. é impossível contrapo r co m
dos conceitos, das idéias, das teses desligadas da vida, ou pelo
eficácia um sistema de pensamento baseado unicamente numa
menos não levam em conta a vida na sua globalidade, obretudo alternativa de valores ético-mo rais. Talvez fosse ma is eficaz de-
da vida pessoal que contém o misté rio da relacio nalidade livre. senvolver um modo de pensar que partisse de uma base sapien-
Muitas vezes, as teori as pan em de uma vontade de do mínio que cial, para raciocinar organicamente, fazendo emergir uma inte-
pretende se apodera r dos mistérios. São, po rta nto, faci lmente ligência que, se desenvolve noções e conceitos, o faz a pa rtir d a
fruto de uma racio nalidade passio nal, sensual, possessiva, víti- vida e num contexto d e relações, num âmbito comunitário, ca-
ma d a ilusão, da tentação da serpente do Gn 3. Assim, acabam racterizado po r um estilo de vida preciso. É necessário promo-
enquadra ndo a vida, aprisio nando-a, isolando-a, até se to ma- ver uma cu ltura do pensar, do refletir e do criar não separad a do
rem mais importantes do que a própria vida, sobretudo a vida amor. o mente assim, talvez, a lca nça rá um possível êxito positi-
das pessoas. Po r isso, vivem um contínuo desencontro com o amor vo a o posição a este enorme desenvolvi mento patológico da
das pessoas, com sua liberdade e com os eventos da histó ria. E raci onalidade tecnocrática que já é um risco para o ho mem,
co mo produzem metodo logias férreas, aplicadas mecanicamen- emergindo em seu meio com um pensamento e um estil o de
te, chegam a escravizar o ser humano para que nada aconteça que vida unitário, que po r isso é belo, alegre e, portanto, ta mbém
contradiga sua impostação. O pensamento passional, isto é, o pode atrair, fasci nar. em um princípio da beleza, e nte ndida
pensamento que estabelece um conúbio da razão e da paixão, como unidade espiritua l, como um mundo, um pensamento,
permite uma cultura possessiva, com tendência ao domínio. Mui- uma realidade penetrad a pelo amor - po rtanto, por uma vida
tas vezes, tal atitude se camufla po r trás de abo rdagens abstratas, de comunhão-, não se pod e salvaguardar o futuro do ho mem.

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M.w.o /1·"'" Rur..11< 1 O exame de consdêndn 1. Os fimdnmemos teol6gicos do ext1me de consc1ê11ci11

A SABEDORIA, MORADA DA BELEZA Deus criou o universo, a sabedoria já estava com ele e ele criava
com ela (ó. Pr 8,27). É, por um lado, um aspecto jubiloso, de ale-
A vida espiritual, enquanto procede do eu e tem no eu o seu fulcro, é a gria, de festa. E, por outro, é uma aspecto agápico, de amor, de
l'erdade; percebida como ação imediaw do outro é o bem; contemplada exuberância de Deus, de sua vontade de doar. Tem a característica
objetivamente pelo terceiro como irradiação para o exterior é a beleza. A da alegria divina que convida, que organiza banquetes, onde acon-
tece o encontro (Pr 8,30-31; 9,2). É uma proximidade de Deus,
verdade manifestada é o amor. O amor realizado é 11 belew. uma espécie de câmara de Deus, de sua habitação, de tal modo
condicionada por quem aí habita, que cada coisa relembra aque-
Florenski, P. A. La colonna e il fondam emo dei/a vericà. p. 117.
la Pessoa, cada detalhe tem uma ligação direta com o Habitante
ilustre. Éuma companhia de Deus inteligível, capaz de apresentar
e se ~presentar nas formas do arquiteto privilegiado (cf. Pr 8,30), é
Asabedoria divina é aquele tecido da beleza em que a verda-
o arusta que encontra o seu sentido no criar atrativo, que envolve
de se revela como amor e o amor não é um imperativo ético, um todos os sentidos e toda a inteligência da criatura.
sonho ide.alista ou romântico, mas uma realidade realizada num
rosto preciso que é o de Cristo, verdade.iro Deus e verdade.iro ho- A sabedoria divina é, portanto, uma realidade em dois re-
mem. É na sabedoria divina que o ser humano pode contemplar gistros: de um lado, pertence a Deus e, como diz a Escritura, faz
e ter acesso aos traços da verdade percebidos como beleza que parte do mundo incriado (cf. Pr 8,23); de outro - pois é a ex-
atrai, que fascina, exatamente porque se abre para um infinito pressão da exuberância do amor de Deus - , Deus faz com que
tecido de relações e correspondências. Na sabedoria divina, nessa ela receba u~a forma e uma dimensão criatura! (cf. Pr 8,24 ).
beleza fascinante que se toma próxima de nós, que nos atrai e se Faz companhia a Deus que cria e permeia tudo aquilo que Deus
revela a nós, podemos contemplar a unidade de nós mesmos. É cria. Nesse. sentido, a sabedoria divina no mundo criatura! se
na Páscoa que Cristo recupera tudo do velho Adão e o revela como torna acessibilidade ao mundo de Deus, ao seu pensamento, ao
luz e beleza, isto é, na totalidade constituída pelo novo Adão. seu projeto de criação. Pode-se, então, dizer que a sabedoria
guarda consigo o #original" da criação, a memória de como o
Na Páscoa, todas as noites, as faltas, as ausências, os vazios, mundo criado saiu das mãos do Criador. A sabedoria incriada
tudo aquilo que foi vivido com base em um princípio de. auto- - âmbito da comun icação entre as Pessoas divinas, âmbito do
afirrnação - ou e.ja, na mentira, na ilusão e na morte. - é amor das Pessoas trinitárias - exatamente por causa dessa sua
revisitado, iluminado, limpo, revestido e assumido por Cristo, verdade tem como característica fundamental a comunicação.
Deus-homem. Tudo aqui lo que. sangrava agora brilha como a E, de fato, a sabedoria se comunica na criação e, no registro da
neve ao sol; tudo aquilo que era escarlate agora fica translúcido, criaturalidade, ela reveste a criação com o fascínio do amor, da co-
de uma brancura que nenhuma lavadeira poderia reproduzir. municabilidade e, portanto, da beleza.
No sacrifício pascal se realiza a beleza no verdadeiro sentido da
palavra, ou seja, no amor que Cristo realiza por meio de sua
Páscoa se atualiza a unidade do mundo em si e com Deus. A A SABEDORIA HABITA NA IGREJA
sabedoria que leva à vida na beleza é a sabedoria do tríduo pascal.
Onde encontramos essa sabedoria? A sabedoria divina é o A salvação consisce na consubswncinlidade com 11 Igreja, mas o acesso à
âmbito pessoal da companhia de Deus que está com ele desde os unidade superior supramw1d1111a das cria curas unidas pela força da gra-
primórdios da criação do mundo (á. Sb 9,9; Pr 3, 19). Quando ça do Espírito é possível somente ao lwmilde que se purificou na ascese.

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f\IAR~o 11.v-. Rur-..1~ 1 O exame de co11SC1ê11na 1. Os f1111dnme11tos teológicos do exn ml' de co11sciê11cia

l lumildade, castidade e simplicidade como forças mmsfí.sicas e trans- modo enigmático, fluido, a-categorial. A sabedoria divina é
morais que 110 Espírito amo tomam toda a crintura consubstn11cial li cristocêntrica: e traduz e se manifesta na Escritura, nos grandes
Igreja. Essas forças são revelações de um ourro mundo daqui debaixo, ímbolo do dogmas, da fé; reveste as orações, os cantos, a liturgia
do mundo espiritual e superior 110 mundo espacioiemporal e rnferior, através dos espaço e dos tempos, a parúr dos apóstolos, ao longo
são anjos da g1wrda da criatura que descem do céu e sobem do mundo dos séculos. A sabedoria se faz acessível nos santos que permane-
criado para o céu, como foi revelado ao patriarca Jacó e, se se quiser cem vivo e glorificados em Cristo, e que vivem na comunhão da
comimwr na comparação, a 'escada' é a samfssima Mãe de Deus. Igreja, tran pondo as fronteiras do tempo. A sabedoria se comu-
Florenski, P. A La colo1ma e il fondamenw dei/a l'eritil. p. 405. nica no ensinamento que os pastores manifestam como riqueza
do depó ito eclesial para a salvação do mundo e na apropriação
No curso 11om1al das coisas, recebe-se a fé de um outro; ninguém pode que dele faz o povo de Deus. E LOdo o fascínio e beleza do cosmo,
se bmiurr sozin/ro. Assim, llS pessoas dependem 11om1alme111e umas d11s da terra, dos campos e dos olivais confluem e se comunicam nos
outras para a realiwçiio do próprio destino sobre11awral. Elas são e/ra- mistérios dos sacramentos celebrados pela Igreja.
madas a comu11icar-se 110 próprio bem da vida divina, recebendo seu
princípio de um outro: fmo 110 qual é pemritido ver um reflexo da pró-
pria vida divina, que é o dom de uma Pessoa a outra. ExAMI NAR-SE NO CORAÇÃO COM A SABEDORIA
Congar, Y.-M. La Ttadition et les 1raditio11S, li. p. 19. e o cornçtio estd 110 centro da pessoa /111mmra, e111ão é através do cora-
çiio que o /romem e/1/ra em relaçtio com wdo aquilo que exisLe.
Com a encarnação, com a morte e a ressurreição de Cristo, Teófanes Recluso. Nacerumie d1ristú111sllt1go nram11amija. Moskva, p. 306.
com o Pentecostes, a sabedoria abre ao ser humano o mundo
trinitário divino. Essa abertura, antes acessível somente como in- O órgão com que se chega à sabedoria, a esta visão unitária,
tuição, agora se faz uma possibilidade de vida para nós, e a Igreja a este organismo vivo, é o coração. O coração entendido como
se toma o lugar privilegiado da sabedoria. Assim como o Antigo totalidade da pessoa, como órgão que mantém o entido de toda
Testamento, pelo poder do Espírito Santo, conflui sapiencial mente a pessoa e, portanto, como órgão do amor, que tem forças
na Virgem de Nazaré, Mãe de Deus, o mesmo Espírito, gerando a centrípetas, isto é, a capacidade de relacionar-se. do êxtase, do
Igreja, move a sabedoria que se concentra nela. A Igreja toma-se o dom . O coração é amor. O coração é o organismo capaz de perce-
âmbito no qual se conjugam os dois registros da sabedoria, crian- ber todos os elos que consútuem a pessoa na inteireza de suas
do esse tecido inteligível, vital e de beleza que caracteriza a mora- dimensões e, ao mesmo tempo, é o amor que guarda os elos des-
da de Deus, as relações entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. É na sa pessoa com os outros - isto é, sua eclesialidade-, sobretudo
Igreja que se abrem os significados e os senúdos primordiais da com o Deus trino. É preciso olhar-se com o coração para se ver no
vida, da morte. do nascimento, do sofrimento, da alegria ... É na conjunto, em tudo aquilo que se é. Essa é uma outra maneira
Igreja que a sabedoria divina envolve de fasdnio a presença real de dizer que o fundamento que consútui o homem é o amor de
das duas mãos do Pai - as duas Pessoas divinas que consútuem Deus. O amor é inteligibilidade, exatamente porque é comunica-
a Igreja -, o Filho e o Espírito Santo. ção e comunhão. Portanto, somente o amor é autênúca inteligên-
Na Igreja, a sabedoria divina adquire uma concretude que cia, nele se enraízam todas as capacidades cognosciúvas do ser
impede todo mal-entendido na compreensão dos mistérios de humano e dele emergem e se desenvolvem essas mesmas capaci-

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i\l~R~o /IM> Ruri-1~ 1 O exame rle co11SC1ê11cia /. Os fu11dn111e111os 1eo/6gicos do anme rle co1uetê11cin

dades cognoscitivas: o raciodnio, o inteleao, a intuição, a vonta- somos segundo a vocação divina. Para esse sentido da unidade
de, o sentimento, os sentidos ... são ligado ao amor, estão nele do organismo vivo, do amor, para esse sentido do coração e da
enraizados e por ele são vivificados. Desse modo, cada uma das sabedoria que favorece, guarda e realiza a verdadeira vida da pes-
capacidades cogno citivas age em sintonia com as outras, porque soa humana, podemos também dar o nome de "consciência",
no amor chega aos nexos orgânicos que unem tudo. omente aquela voz vigilante que se faz ouvir toda vez que vivemos algu-
então o homem cresce integralmente em seu conhecimento, um ma coisa que diz respeito a essas realidade . Esse senlido do
conhecimento que envolve toda a pessoa e, ponanto, é útil para amor, como realidade mais pessoal e, ao mesmo tempo, univer-
sua vida, para aquela vida que permanece. sal, é a unidade interior que se expressa na e através da unicidade
e o coração é o sentido da totalidade, o princípio agápico, é da consciência, do "eu" pessoal.
também vivo. Então pode ter acesso à sabedoria, justamente por- Vamos tentar resumir: somente o amor é verdadeiramente
que é ela que comunica, ao mesmo tempo, o conhecimento e a comunicável e inteligível, e somente o amor do Deus trino é a
vida. O coração impede o desenvolvimento unilateral de qual- vida eterna, na qual as relações não se truncam, mas permane-
quer dimensão do ser humano. É o órgão que se faz ouvir todas cem. O Espíri to San to, no momento da criação, nos comunica
as vezes que exageramos numa dimensão isolada, qualquer que
esse amor, que habita em nós como santa ca ridade, como luz.
eja ela, inclusive quando é "espiritual ". O coração ofre toda vez
Nesse amor está preservado o mistério da nossa unidade de
que a pessoa comete violência sobre uma pane de si mesma,
pessoas e da nossa feJiddade. O pecado destrói a pessoa, perver-
porque é ele que garante a unidade. Portanto, é o coração que ga-
tendo o amor num egoísmo exasperado, mas a redenção de Cris-
rante que a inteligência não se desligue da vida, do amor.
to sana novamente, recria o homem novo e o Espírito anto nos
A "inteligência do coração" - conforme uma expressão pró- torna panicipantes dessa salvação, fazendo-no viver como fi-
pria dos autores espirituais - é uma inteligência que age com a lhos no Filho. No seu amor para com as pessoas, Deus nos abre
luz do amor e que costura sempre uma unidade entre o conheci- seus mistérios graças à sua sabedoria que pode nos comunicar o
mento e a vida espiritual, aqueJa vida que serve para a salvação do conhecimento e a vida no mesmo ato. Na Igreja se guarda a
ser humano. Por isso, o coração e a sabedoria são duas realidades
sa nta memória, a sabedoria do homem redimido que vive em
estreitamente ligadas que agem em perfeita reciprocidade. Na sa-
Cristo. O homem cresce contemplando com o coração, órgão
bedoria são guardadas as lembranças daquilo que é o ser huma-
da unidade, sua verdadeira imagem guardada pela sabedoria
no, como é visto pelo Criador e Salvador; e o coração é o órgão
divina na Igreja e que nos é comunicada por meio do Espíri to
capaz de compreender e contemplar essa imagem, de pensar tais
anto, que nos doa esse amor. Com a inteligência do coração
lembranças e de fixá-las. Na sabedoria divina está preservada a
memória que comunica à inteligência do coração aquelas lem- podemos chegar até a memória, a fim de ter os critérios para
branças espirituais que se tomam os critérios de reconhecimento discernir o que serve e o que nos impede de ser verdadeiramente
daquilo que verdadeiramente serve à vida para que o Espírito anta filhos no Fi lho e viver como remidos no caminho da história.
possa realizar em nós a filiação no Filho de Deus. Então, quando a pessoa faz o exame de consciência, realiza
Somente no olhar unitário do qual o coração é capaz, po- um ato de oração no qual, invocando o Espírito San to, ativando
demos acolher as imagens da memória, as recordações de como a inteligência do coração, o olhar de conjunto, contempla a pró-
pria vivência - os gestos, os atos, os pensamentos, os sen-

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M .<1111,0 fr~ Ru""'~ 1 O exame de consciência

timentos, o querer e suas relações - com o pano de fundo da


memória e das lembranças precisas de como Cristo o vê no eu
amor pascal. Acontece então que - como no começo nos dizia
II
santo Agostinho no trecho citado - discerne dizendo: não, não
é isso, nem isso, mas isso sim, isso coincide. isso encaixa, faz
A vida espiritual e o
pane de mim . Por meio do exame descobre também os vazios, exame de consciência
as faltas, isto é, a vida vivida na ausência de Deus. Vê os pecados.
Na oração do exame de consciência a pessoa tem então a
possibilidade de revisitar esses momentos dolorosos de escuri-
dão e de reencontrá-los no amor salvífico de Cristo. A memória
da Páscoa do Senhor, do seu louco amor por nós, move o cora-
ção à súplica, ao arrependimento, à invocação da salvação, ao
A pós ter analisado o fundamento e princípio teológico
do exame de consciência, podemos agora procurar con-
cretamente compreender e colocar esse exercício espiritual den-
chamamento do nome do Senhor. E a pessoa pode assim reen-
contrar remido aquilo que, humildemente, no arrependimento, tro de toda a vida espiritual.
oferece a Cristo como não-remido. E quando as coisas são gra-
ves e têm certo peso em nossa adesão a Cristo e naquilo que
0 EXAME DE CONSCIÊNCIA NA ORAÇÃO
somos chamados por ele a ser, exatamente no examinar-nos,
percebemos a necessidade da Igreja como lugar do perdão sa- Ficou claro, pelo que dissemos, que a primeira característi-
cramental. ca do exame de consciência é ser oração. O exame de consciên-
Tudo o que foi dito nos abre para uma ulterior visão do ba- cia é ouvir o coração, assim como o definimos anteriormente.
tismo. No batismo, imersos na vida de Cristo pelo Espírito Santo, Todavia, é impossível ouvir o coração sem que ele nos lembre
realiza-se uma radical identificação nossa com Cristo, a ponto de do Espírito Santo, do enhor que dá a vida. Isso já é admitir o
nossa vida se reencontrar na dele e Cristo já nos ver como remi- primado do Senhor, reconhecer nosso princípio vital nele, co-
dos. E se o velho Adão ainda se deteriora e cuida das feridas da meçar a raciocinar com uma lógica de amor, isto é, de adoração
carne de ressurreição do seu corpo corrupúvel, é porque o dado do Senhor. O exame de consciência não é, de modo algum, ope-
empírico, fenoménico, não corresponde ainda à verdadeira reali- ração que se realiza simplesmente dentro do eu, onde se coloca
dade. Abre-se. assim, o caminho da divinização, uma Nascese do em jogo a própria racionalidade e o conhecimento de si diante
amor.. , na qual nos divinizamos na medida em que. mergulhan- de si mesmo. O exame de consciência é um diálogo puramente
do na memória do batismo, cada vez mais nos configuramos com religioso, no qual se explicita a fé do fiel, sua relação com Deus,
nossa identidade preservada pela sabedoria de Deus. seu primado; no qual nosso silênáo é escuta, uma escuta com
caraaerística cultuai, pois se dá na posição exata do ser humano
diante do seu Senhor. O exame de consciênáa é oração e. por-
tanto, colóquio, conversa na qual se verifica uma comunicação
tão real, que começamos a nos olhar com os olhos do Senhor, e
desse modo aumenta nossa memória espiritual de nós mesmos.

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51
li. A 111da espiritual e o w 1111e de co11sC1ê11C1a
M M1Ao iv-IN R 111"11A 1 O exame de co11.sciê11cia

O exame de consciência faz com que a nos a abedoria espiri- 0 EXAME DE CONSCIÊNCIA,
tual seja repovoada continuamente de lembranças que são ima- CONTEMPLAÇÃO E CONHECIMENTO
gens concretas de nós mesmos, colhidas na memória da sabe- O exame de consciência começa com uma invocação do Es-
doria de Deus em Cristo.
pírito anto e com um silêncio religioso, para entrar no coração,
E como o Cri to apiencial vive na Igreja, o exame de cons- para perceber o sentido do conjunto. É a exigência de estarmos
ciência, embora possa parecer algo intimista, e tá sempre relacio- sintonizados na voz do coração, e é nesse começo que adquiri-
nado com a Igreja, com sua sabedoria e sua santidade. De fato, mos uma atitude contemplativa. Nesse sentido, podemos falar de
o exame de consciência é feito por causa do amor, daquela santa uma contemplação em dois níveis.
caridade que nos impulsiona a er cada vez mais eclesiais, isto é,
cada vez mais trinitários, de modo que a humanidade seja mais Um deles é o diálogo pessoal com o Senhor no Espírito
plenamente imagem de Deus. Toda ascese cristã encontra seu Santo, contemplando a memória sapiencial em que Deus expli-
sentido de eclesialidade e seu fundamento na Trindade. Não há ca diante de nossos olhos o seu amor por nós e como ele nos vê.
um ca minho de aperfeiçoamento de si mesmo, se esse aperfei- É uma atitude contemplativa no sentido pleno da palavra, na
çoamento não significar uma inserção cada vez maior no orga- qual se ouve também a Igreja em sua sabedoria, na qual se expe-
nismo univer ai da Igreja, da comunidade. Éa dimensão eclesial, rimenta uma comunhão com o Senhor, com seus mensageiros,
relacional, o âmbito da dinâmica que leva à perfeição. seu santos anjos, com os santos e santas das gerações anteriores.
Exa tamente porque seu órgão é o coração - portanto, É uma contemplação na qual se readquire o sentido religioso e
move-nos nas categorias da caridade, da livre adesão, da convi- espiritual pleno, em que o espírito partilha com o intelecto e os
vência, do saber relacionar-se - , na conversa com o Senhor sentimentos aquele sabor espiritual, aquele gosto do amor que
chegamos espontaneamente a admitir os pecados, as au ência , penetra os sentidos de modo espiritual.
os enganos. De fato, o coração nos mantém na relação e a relação
O outro nível da contemplação é a vivência do dia, ou de
conflui sempre para o rosto. E é somente diante do rosto que se
percebe o pecado de forma correta: um pecado que então pro- uma parte do dia, contemplando na memória - a imediata - os
voca o arrependimento, o choro, o pedido de perdão, a renova- encontros, a maneira de se relacionar com as coisas, as idéias,
ção do empenho, da promessa, da aliança. Diante de uma lista os sentimentos e, sobretudo, com o Senhor. Contempla-se o que
de leis e de preceitos, diante de modelos e formas de perfeição, se viveu com o sabor e o olhar do primeiro nível de contempla-
o ser humano não é convidado ao arrependimento, à conver- ção acima descrito, aquele em que se entra no olhar co m o quaJ
são, à comoção do amor porque agraciado. Então nos move num Deus nos vê. De fato, entra-se primeiramente na contemplação
outro nível totalmente distinto, que evidentemente não pode espiritual do amor de Deus, para adquirir o olhar com o qual se
ser posto dentro da impostação teológica anteriormente expli- observam as realidades do dia. Depois que percebi o sabor do
citada. Aqui há uma conversa de gratidão, de agradecimento, amor de Deus, da sua salvação, passo a olhar para o dia com
que muitas vezes nos leva a dizer palavras bonitas e doces ao atenção à salvação, e é natural que encontre, no exame, aquilo
enhor, a falar bem dele para ele mesmo. Em seguida, termina-se que tinha o mesmo sabor durante o dia.
como se começou, mas com um reconheci mento cada vez mais
No começo, percebe-se o olhar do Senhor e com ele se exa-
radical de Deus, dando-lhe a precedência, a prioridade, todo o
mina o dia. Sempre se faz assi m, nunca ao contrário. É muito
peso, a honra, a glória que lhe convém.

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M AIU(O llM Rul"i1~ 1 O exame de consciência li. A 11id11 e.spm111al e o exame de co11sciê11cia

problemáLico fazer o contrário, contemplar o dia e ver o que REVIVI FICAR A PRÓPRIA VIVÊNCIA
nele é de Deus. Esta é uma mane.ira cheia de armadilhas, de.
enganos, de. ilusões e de raàonalizações, porque faà lmente po- Quando, com esse pano de fundo da Páscoa, descubro que
demos cair no engodo de uma refinada fil áuàa, no amor à pró- há ações, atitudes e pensamentos que não fo ram vividos com o
pria vontade, aos próprios vícios. Ao contrário, a panir da con- enhor, que não tinham um caráter pascal, mas que eram vivi-
templação do olhar de Deus sobre nós, isto é, com a inteligência dos na distração, na agitação ou até mesmo na auto-afi rmação,
do coração, atentos à relação de Deus para conosco, percebe- na possessividade, no egoísmo, o que devo fazer?
mos até a dramática concretude que Lal relação significou, por- Vimos na primeira pan e que há uma passagem, uma conti-
que ela implicou nossa criação e redenção. Enlào encontramos nuidade, entre a memória humana e a eterna a11amnese de Deus,
a conaetude na qual se esconde a nossa verdadeira imagem, a entre a simples lembrança e a recordação eficaz do Senhor que
vocação para a qual fom os chamados: sermos admitidos ao toma presentes as coisas recordadas. É possível que tenhamos
mistério da Páscoa. Assim, acolhemos o dom da sabedoria pascal, vivido momentos ou atitudes ou ocupações, sem uma relação
que conLém a memória do amor de Deus, e com ela contempla- consciente com o Senhor, sem termos acolhido e nos preocupa-
mos a nós mesmos em nosso dia-a-dia. do com sua presença, sem nos ter entregado ao amor; e acaba-
Como já vimos na primeira pane, quem conhece o mistério mos fica ndo sós, segundo os nossos critérios muitas vezes não
da cruz, da mone e da ressurreição de Cristo, conhece o mistério da purificados, as nossas motivações não límpidas, com a fil áucia
unidade de tudo, conhece o significado da história e de tudo o invadindo tudo ...
que e.xisLe, porque somente a Páscoa é a verdadeira chave de Sabemos que essa vivência está destinada a morrer, a cair
leitura da vida. Por isso, a dimensão contemplativa do exame no esqueci mento, a desaparecer. Pode até ser que eja alguma
de consciênàa é a pona cena que nos introduz no verdadeiro coisa louvada por todos, mas se não for feita e vivida no amor,
conhecimento de nós mesmos, dos outros, daquilo que nos acon- na presença do Espírito que dá a vida, no final não fi cará rasLro
tece e daquilo que acontece no mundo. Um exame de consciên- dela, pois somente o amor permanece (á. lCor 13,8). Deus,
cia assim nos leva a descobrir os significados e o sentido da nossa porém, olha tudo com amor e segue com infinita fil anLropia,
vida. Por isso, pane da escuta de Deus que nos fala por meio das com alia nça absolutamente fi el com toda pessoa criada à sua
pessoas, dos encontros, dos eventos e da história. Boa pane do imagem. E na sua llénosis pascal, no seu Filho, alcança e recolhe
exame de consciência tem um caráter sapiencial, é saber decifrar tudo. Então, nesse sentido, há também uma memória de tudo
aquilo que está acontecendo, saber ler os tempos, os sinais, os aquilo que vivemos. No exa me de consciência, nessa oração
eventos. Concretamente, isso significa repassar o dia olhando-o particular, é-nos permitido pedir para entrar nessa memória, a fim
com o olhar da verdadeira contemplação, assim como a descre- de recuperar nossa vivência passad a, se nesse mo mento
vemos, isto é, com o pano de fundo da Páscoa de Cristo, na qual a repassarmos abrindo-a para o Senhor, narrando-a para ele, con-
acontece também a minha salvação pessoal, não somente a sal- tando-a, mostrando-a, oferecendo-a a ele. No exa me de cons-
vação no sentido geraJ. E aí, a memória espiritual reconhece ou ciênáa nos é dada a possibilidade de oferecer tudo aquilo que
recusa como próprias as realidades que são revisitadas. não fora oferecido.

54 55
M ARAO fr.•.N Rul"\1A 1 O exame de co11sciê11cia li. A vida espirirual e o exame de co11sciência

Podemos entender isso ainda melhor se recordannos o epi- eca, reduzida a pura exterioridade. E o coração, por meio da sa-
sódio da ressurreição de Lázaro. Cristo ama Lázaro, por isso vai bedoria eclesial, conhece melhor do que qualquer juiz, como di-
para Betânia visitá-lo. Todavia, quando aí chega, Lázaro já está ria Cankar, o que é o pecado pelo qual é preciso se ajoelhar no
mono e Mana, innã dele, diz a Jesus: " enhor, e tives e estado sacramento da reconciliação.
aqui, meu innão não teria morrido. Mesmo assim, eu sei que o omente a misericórdia de Deus nos move para uma conver-
que pedires a Deus, ele te concederá". EJesus lhe responde: "Teu a certa. A mudança durável no tempo é aquela que fazemos im-
innão ressuscitará ... Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em pulsionados e atraídos pelo amor de Deus. Ficamos abalados
mim, ainda que tenha morrido, viverá. E todo aquele que vive e quando, embora pecadores, embora culpados de alguma coisa,
crê em mim, não morrerá jamais" (Jo 11,21-23.25}. Isso signifi- nos descobrimos amados por Deus de tal fonna que Cristo subiu
ca que a presença de Cristo é a vida, que tudo aquilo que é vivi- à cruz também para a nossa redenção. A surpresa de nos desco-
do em relação a ele vive. Mas, se acontecer de vivermos na au-
brirmos amados é a mais fone e radical decisão de renunciar ao
sência do enhor, nos é dada a possibilidade de acontecer como mal e de abraçar uma vida de vinude. Descobrir-se amado como-
a Lázaro: embora estivesse mono, a relação com o Senhor o res-
ve, leva ao arrependimento, a reconhecer o pecado, a confessá-lo
susci tou. Mesmo que as coisas estejam monas, como diz o Se-
e a pedir perdão. E o amor com o qual o Senhor me alcança é a
nhor, viverão se estiverem com ele, se o acolherem, se a ele fo-
força com que me defenderei do pecado no futuro. A vontade de
rem entregues. Então, no exame de consciência, ao descobrir
melhorar, de não pecar mais, a decisão de renunciar ao pecado
coisas monas, ausências no amor, nós as apresentamos ao e-
erá eficaz de maneira sadia somente se estiver alicerçada no amor
nhor conscientemente e as contamos a ele, porque na Páscoa
no qual me supreende, às vezes até às lágrimas.
ele veio até nós, como foi até Lázaro no túmulo.
Descobrir o próprio pecado diante da face do enhor ou in-
Em Jo 11, Cristo chama Lázaro para fora do túmulo, mas o
clusive ter a graça de vê-lo nele que o assume, leva ao arrependi-
capítulo termina com a decisão dos sumos sacerdotes e dos fariseus
mento, e o arrependimento nos leva a abraçar com mais força o
de matar Cristo, e no capítulo seguinte ele se dirige a Jerusalém
enhor e a Igreja, isto é, a comunidade. O arrependimento nos leva
onde morrerá. Lázaro sai do túmulo porque Cristo aí entra. Não
há escuridão, mone, noites tâo densas, pecados tão horríveis em de volta para casa; ao passo que a descoberta da própria inadequa-
que o Senhor já não tenha penetrado e de onde espera que nós ção diante de uma lei - não diante da face do Autor da lei - faz
revisitemos a fim de apresentar essas realidades a ele. Enessa aber- com que a culpa se tome mais pesada, e leva a pessoa a se isolar, a
tura a ele, nesse encontro, ele nos comunica seu olhar e como ele fugir. De fato, o sentimento de culpa causa estragos, corrói.
enxerga tais realidades. Então nossa memória e enriquece com Desse modo, podemos compreender também um outro ele-
lembranças da salvação. Nós temos certas lembranças dos episó- mento para o qual essa particular oração contribui: o exame de
dios vividos que, ao descobrir como Cristo se lembra deles, nos- consciência nos ajuda a perceber as situações favoráveis à vida
sas lembranças não se sustêm, são descanadas. Sua memória não espiritual e aquelas que a impedem, que se tomam ocasiões de
é fossilizadora, mas transfonnadora. O amor transfigura. Isso leva pecado, de tentação. Permite-nos, assim, evitá-las e realizar uma
à autêntica comoção religiosa, sem a qual a fé se toma estéril, verdadeira estratégia espiritual.

56 57
M uKo fov.. Ru""'" 1O exame de co11sciérrcia li. A vida esp1ri111al e o ex11111e de co1uc1i!11cia

0 DISCERNIMENTO Todavia, uma preliminar do discernimento se dá num pri-


meiro exercício da memória, como naquela descrição inicial de
O exame de consciência assim entendido faz pane da ane santo Agostinho, da qual partimos. Quanto mais se familiariza
da guarda do coração, a ane de cuidar da salvação. E como é com o Senhor, com sua Páscoa, tanto mais se consolida o sabor
sobretudo um exercício de espiritualização da memória num do seu amor, mai a memória é repovoada por imagens concre-
âmbito apiencial, isto é, no coração, do qual o homem inteiro tas de como Cristo nos vê e sugere à inteligência do coração as
participa, é uma familiarização com o Senhor, com a sua Pás- coisas que devem ser aceitas, as que devem ser deixadas de lado,
coa, memorização do sabor e do gosto do seu amor experimen- aquelas às quais não se deve dar atenção, aquelas das quais se
tado na salvação. Então, é claro que o exame de consciência, no deve fugir, as que devem ser observadas... Para as pessoas que
seu verdadeiro sentido, espiritual, omente é possível graças ao têm uma vida espiritual ordenada, o exame de consciência ofe-
momento fundante, ao evento com que começa a parábola cris- rece importantes pontos para o colóquio espiritual com o padre
tã, isto é, a experiência do perdão, do renascimento, da salva- ou a madre espiritual.
ção. É por isso que alguém se observa e se examina sempre na
Nos colóquios espirituais as pessoas freqüentemente se preo-
chave da salvação vivida. Sobre esse pano de fundo, o exame de
cupam com o próprio passado e acabam caindo nos nebulosos
consciência é também um primeiro âmbito de discernimento.
caminhos da psique, procurando explicações e motivos para
No exame se presta atenção aos pensamentos novos que muitos fenômenos, em vez de se preocuparem com o próprio
nos vêm, sobretudo àqueles que voltam continuamente, os mais futuro que envolve exatamente tudo aquilo que a pessoa é. À
insistentes, como também aos estados de ânimo, aos sentimen- primeira vista pode parecer que o exame de consciência é uma
tos mais explfcitos, mais fortes, mais repetitivos, às pessoas que oração na qual nos preocupamos exclusivamente com o passa-
são encontradas e através das quais chegam as inspirações. O do. Mas como se trata de examinar os pensamentos e os senti-
exame de consciência é o âmbito de oração no qual observo mentos, os projetos, as inspirações e as intuições, na realidade é
e examino essas coisas. Convém escolher algum pensamento, uma oração com a qual se constrói o futuro da pessoa.
sentimento ou inspiração, e carregá-lo consigo durante vários Nesse sentido, o exame de consciência é mais parecido com
dias, fazer com que volte a cada exame de consciência. E como um remédio preventivo do que com outro que cura o passado.
em cada exame de consciência procuramos nos ver com o Espí- Na base desse exercício está presente o conteúdo que manifesta-
rito Santo, com o amor de Deus, com as lembranças reais da mos nos colóquios espirituais para sermos ajudados no discer-
Páscoa da nossa salvação, pode acontecer que tais pensamentos nimento, até que sozinhos não mais percebamos o risco do en-
se sintam embaraçados nesse contexto. gano e da ilusão. De fato, há uma estreita ligação entre exame
De fato, pode acontecer que desapareçam. Isso significa que de consciência, colóquio espiritual e confissão. Se não dermos
não eram espirituais. Mas também pode acontecer que alguns per- atenção a isso e se não formos iniciados numa prática sadia do
maneçam, que fiquem ali, humildes, cada vez mais luminosos, mais exame de consciência, os colóquios espirituais cairão facilmen-
familiares. Então devemos levá-los a sério, colocá-los realmente à te em mera consulta psicológica, preocupação com a psique sob
prova, isolá-los e, pouco a pouco, fazê-los objeto de uma oração o ponto de vista da psicologia. Podemos falar da fé e de realida-
para o discernimento, como está descrita em O discernimento. des religiosas, mas sempre fechados na psicologia. Não é fácil

58 59
MAA~o tw .. Rur-:1~ 1 O exame de consciênna
li. A vida rup1riwal e o exame de consciêncw

chegar a um colóquio que tenha por objeto o espírito, o enten- Espírito que cria hoje, que sugere novidades para hoje, que é a
der- e com Deus, a adesão a ele. fecundidade hoje. E "novidade" não significa simplesmente en-
Tanto isso é verdade que com freqüência também os conse- contrar formas e fórmulas novas, ou fazer coisas novas. O exa-
lhos recebidos podem ser identificados como um exerdcio psí- me de consciência se move num âmbito sapiencial e, portanto,
quico, à vezes com matizes no campo intelectual, às vezes no o novo e refere sobretudo à sabedoria, à vida e, assim, à expres-
da vontade, mas que sempre dizem respeito a uma espécie de são do conteúdo. O "novo " consiste sobretudo em ver a nós
"higiene da vida interior", que ainda não pode ser identificada mesmos e aquilo que nos acontece ou que acontece na história
com a vida no Espírito anto. Exatamente por esse moúvo, mui- ob uma luz nova. e as coisas não forem vistas na luz cena,
tos colóquios assumem com freqüência um caráter terapêutico. podem se apresentar como falsas, erradas, estranhas. A luz cena
Podem ser de extrema utilidade e importância, mas ainda não faz com que aceitemos e amemos realidades que talvez, um pou-
são colóquios espirituais. co antes, vistas de maneira velha, fossem por nós combatidas.
E a luz certa é exatamente a do Espírito Santo que, por meio de
E, por causa de um exame de consciência não praúcado ou tal exercício, nos dispomos a acolher.
não bem-feito, também a confissão e toma, muitas vezes, um
problema: ou a pessoa não sabe o que confessar, ou não sabe
por que se confessar com um sacerdote; ou, se a confissão for 0 CRESCIMENTO NA VIRTUDE
demasiadamente carregada com um peso pedagógico, didáúco
- isto é, dirigida para uma melhora de vida -, abandona a O exame de consciência provoca um conúnuo cre cimento
confissão após tê-la freqüentado em experimentar nenhuma na virtude, porque, sendo uma exercício espiritual-sapiencial,
melhora. Um exame de consciência reduzido à preparação para nos leva a um procedimento orgânico, sem saltos, sem descon-
a confissão até nos faz descobrir alguns pecados, mas não leva tinuidades, em compartimentos estanques. Por meio do exame
àquela relação autêntica e pessoal com Deus, enhor e alvador. de consciência, nós consolidamos uma visão precisa a nosso res-
Portanto, muitas vezes é feita sem verdadeiro arrependimento, peito, que nos é comunicada pelo amor de Deus, por meio do
limitando-se a ser mera lista de imperfeições, confessadas para Espírito anto em Cristo, no qual fomos criados e salvos. Esse
se sentir mais de acordo, ou para aliviar o peso psicológico da tecido da sabedoria se comunica conosco de maneira cada vez
insaúsfação; em todo caso, não com a atitude penitente que nos mais constante, de modo que a pessoa adquire, de fato, uma
leva a pedir perdão por causa da relação com Deus, para a san- conatural idade com a visão de Deus sobre si mesma. A cada dia
úficação da nossa vida. essa mem ória sugere à inteligência do coração que reconhe-
ça aquilo que é espiritual, que nos pertence, que nos ajuda na
O exame de consciência que se abre para a paternidade espi- vida, aquilo que permanece e que nos faz cristoformes. Desse
ritual é uma escola privilegiada para o discernimento, para ad- modo, adquirimos cotidianamente experiências que se ajuntam
quirir o estado orante, que é o verdadeiro âmbito do discer- de modo orgânico à nossa identidade segundo uma visão espiri-
nimento. Assim cresce também na Igreja uma atenção ao novo, tual. Assim, nossa sabedoria cresce, nos o amor para com Deus
ao pentecostes perene. O exame de consciência é um exerdcio e para com tudo cre ce, e e consolidam aquelas atitudes cons-
que, nas pequenas coisas, contribui para a grande arte de discernir, tantes da cristoformidade que são chamadas apropriadamente
que certamente é o âmbito mais apropriado para ouvir a voz do
de virtudes.

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r
M ARw 11-..w Rul'fll1~ 1 O e.i:nme de co11scie11cia li. A vida esplrirual e o e.m me de co11scii!11cia

A primeira vi rtude que se consolida no homem com o exa- ciência cad a vez mais fon e do nosso relaciona mento com o Se-
me de consciência é a virtude por excelência: a caridade. Vimos nhor e da a mplidão da integração que p rovoca em nós. O exa-
na pane teológica que a caridade na d imensão criatura! pode até me de consciência nos ajuda a dar conta de como a vida de Deus
não ser imediatamente uma realidade inteiramente espiritual. e seu amo r se d ão em nós. Graças à fa miliaridade com o Senho r,
Pode ai nda se mistura r com a nossa passionalidade e com a favorecida pelo exerácio do exame, conseguimos adquirir aque-
fil áucia e, assim, esconder uma ilusão. A p rimeira coisa que o la consciência de como o Senho r se manifesta em nós e de como
exa me de consciência faz é ordenar a caridade; o rdena-a sobre vivem os com ele, fazendo com que a fé amadureça. O exame
os mandamentos de Deus, sobretudo o primeiro: a mar a Deus e nos ajuda a ter consciência da relação com Deus e de como nos
ao próximo como a si mesmo. Esse mandamento fo i realizado compo rta mos nela. Tal consciência do olhar de Deus sobre
e m Cristo. É a centralidade do Cristo pascal, ao redor do q ual se nós é a maturidade da fé, isto é, saber viver na presença do Se-
estrutura todo o exame de consciência, q ue o rdena a nossa cari- nhor. Alguns santos se servia m de gestos concretos para despertar
dade pela a rte do discern imento. Em nós, a caridade precisa antes a consciência da presença de Deus, para viver diante dele e nele.
de tudo ser discreta, isto é, guiada com d iscernimento. Do con- Ao mesmo tempo, o exame de consciên cia nos ajuda a ter a
trário, até o amor pode se tom ar um íd olo destruido r e desenca- exata consciência de quem somos, da caminhada que fizemos e
minhador. Embora isso soe paradoxal, muitos santos padres de quanto ainda resta a fazer. É consàência da nossa pobreza e
chama ram a atenção para esse grave engano possível. miséria, de modo que nosso olhar aos outros não se exalte com
Há, ai nda, uma virtude sem a qual nenhuma outra é verda- soberba, pois se aprofunda em nós a consciênàa de que aquilo
deiramente virtude, isto é, a hu mildade. Como o exa me de cons- que somos, nós o somos, por graça de Deus. Q uem se examina
ciência tem freqüentemente algumas caraderísticas da oração de modo correto está sem pre pronto para dizer que tudo é dom
como as do pergu nta r, do pedir, do agradecer, louvar e glorificar, de Deus, que aquilo que somos, o somos graças a ele. que tudo é
confirma e faz crescer em nós a verdadeira atitude de fé, que é salvação, e nós acrescentamos somente nossa sinergia, nossa po-
reconhecer o centro de tudo fora de nós, isto é, o Senhor, o Pri- bre colabo ração ao Senhor. Portanto, trata-se de manter viva em
meiro, aquele do q ual tudo provém e para o qua l tudo q uer nós a consciência de pessoas remidas, de pessoas que, por isso,
confluir. uAs almas que agradecem ao Senhor fazem maravi lhas." não têm mais medo, pois, apesar da nossa pobreza e do nosso
Isto é, quem agradece constantemente ao Senho r aprofu nda sua pecado, somos tão preciosos aos o lhos de Deus que ele se entre-
posição cen a diante dele e d iante de si mesmo. Tod a vez que gou em nossas mãos. Esta é a consciência que o exame aumenta.
damos graças a Deus nós o reconhecemos como Senhor e Salva- Às vezes, podemos usar o exame também para nos conscien-
do r, e essa atitude prod uz em nós a mesma forma de nos colo- tizar melhor de algumas dimensões da fé, do nosso comporta-
car d ia nte dos outros. mento, do nosso agir. E podemos prolongar po r algumas sema-
nas o exame a respeito de algu m po nto particular em que nossa
consàência de sermos de Cristo ainda não está consolidada,
A CONSCIENTLZAÇÃO DA VIDA DE DEUS adquirida. Freqüentemente, é essa a dimensão que nos pode aju-
O exame d e consciência, exatamente po rque é um exerácio dar também a nos preparar para a confissão, porque a verdadei-
da memó ria esp iritual, é o exerócio de uma to mad a de cons- ra to mad a de consciência do amor de Deus acontece certame nte

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M.u~o /n,. Rul"I~ 1 O rxamr dr co11sciê11cw li. A vida espiritual e o e.xamr de co11scie11cia

no perdão. E nos preparamos con templando o amor louco de dado, com uma maior atenção, expondo tal realidade ao Se-
Deus por nós e, ao mesmo tempo, nossa rea lidade que ainda se nhor todos os dias, de modo que, pouco a pouco, se tome quase
obstina e resiste ao amor, de modo que, alientando o pecado o motivo principal do colóquio com ele, exatamente porque fa-
ou a resistência, seja provocado também o arrependimento ne- lamos dela com muita freqüência . Por si, estamos observando
cessário para uma reconciliação sacramental. uma coisa negativa, mas ao falannos dela freqüentemente ao
Senhor, oferecendo-a assim tão continuamente, essa realidade
negativa se toma o motivo para nos aproximarmos mais dele, o
0 EXAME PARTICULAR motivo maior para que o chamemos, o invoquemos, o motivo
maior da conscientização da nossa relação com ele.
Quando observamos um rio, vemos que em seu leito há
algumas pedras lisas, limpas, que por isso podem sentir a água Talvez nem mesmo depois de muito tempo conseguiremos
escorrendo sobre elas. l lá outras, porém, que estão cobenas de mudar, mas como tal realidade já está totalmente envolvida na
musgo e de barro e que impedem, com isso, o íluir da água oração, nas humilhações espirituais, nas invocações, nas lágrimas,
sobre elas. Então é preciso limpá-las de modo que, livres da lama, toma-se uma realidade espiritual, pois espiritual é tudo aquilo
possam sentir a água escorrer. Acontece a mesma coisa com o que na ação do Espírito Santo nos fala de Deus, nos orienta para
exame de consciência. Nessa tomada de consciência cada vez ele, nos relaciona com ele, nos toma semelhantes a Cristo. Pode
maior da relação vivificadora de Deus, descobrimos que há cer- acontecer que algumas realidades acabem não mudando, nem
tas regiões em nós que resistem mais, em que o homem velho é ao longo dos anos. Contudo, se forem objeto desse exame parti-
mais facilmente percebido e onde ele continua ainda se mani- cular e causa de uma relação contínua com Deus, vão perdendo
festando. Ou temos a consciência de que nossa memória espiri- o veneno, como uma serpente que continua sendo serpente, mas
tual não pode reconhecer cenas atitudes que assumimos como que se tomou inócua. Então os outros percebem. A luta espiri-
penencentes à nossa identidade de remidos e, contudo, tais ati- tual ajuda sempre a todos.
tudes nos chamam a aceitar a salvação também af, a aceitá-las De qualquer modo, para nós cristãos a perfeição não con-
em Cristo, a vê-las nele, a oferecê-las, de modo que possam ser- siste em conseguir uma forma impecável, mas no mistério pascal,
vir ao amor e estar isentas da nossa filáucia. no qual se consumam os sofrimentos e as dores, por causa do
Muitas vezes trata-se de verdadeiros vícios ou costumes que amor. Quando alguém sofre por causa de algum aspecto de sua
permanecem em nós após o perdão, nascidos de uma mentali- personalidade ou de suas atitudes, está escondido no mistério
dade de pecado e por ela apoiados, e que continua agindo em da Páscoa, e o alcance do mistério desse sofrimento encerrado na
nós. De fato, freqüentemente se pediu um trabalho principal- Páscoa é algo que somente Deus conhece. É muito difícil convi-
mente sobre a mentalidade, sobre o nosso modo de pensar. A ver com os defeitos, com as fal has, com os vícios, com as pai-
esse respeito, os mestres espirituais sugeriam o assim chamado xões, das quais não nos conseguimos libenar.
"exame panicular#: através do exame geral, pouco a pouco, iso- A verdadeira luta espiritual - que é uma ane da qual o
lamos uma dessas regiões ainda não penetradas pelo amor, pelo exame de consciência, e sobretudo o exame panicular, também
Espírito anta, e a colocamos sob observação por um determi- faz pane - é um mistério do amor, e o amor se realiza domes-
nado período, examinando-nos a respeito dela com maior cui- mo modo que o tríduo pascal. Cabe a nós aí permanecer, não

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M,w.u /\m Ru~tK 1 O exame de consciência

fugir, nos examinar, pedir, suplicar, tentar novamente, mais ve-


zes. Todavia, o verdade.iro peso da salvação e o verdadeiro al- III 1
cance da graça nós vamos descobrir somente no final, quando o
Senhor vier até nós de maneira totalmente única e supreendente. O exercício do exame
E virá ao nosso encontro juntamente com os irmãos e as irmãs
que talvez tenhamos ferido com nossas regiões escuras que. ape-
sar de muita luta, não conseguimos arrancar, sofrendo também
por causa da dor das pessoas que nos estão próximas. Entretan-
to, o mistério do amor, no qual se enraíza toda ascese séria, pro-
seguir apresento um possível esquema para o exame
vavelmente nos fará uma surpresa ao vermos esses mesmos ir-
mãos e irmãs virem ao nosso encontro sem levar em conta o A de consciência, procurando enudear em itens um per-
curso que leve em conta tudo o que foi dito.
mal recebido, porque o Senhor, na transfiguração, nos transfor-
mou também por causa deles.
• Dirijo minha atenção ao meu Senhor e Salvador, a fim de
tomar consàência de sua presença e do meu sincero desejo de me
abrir a ele. Invoco a luz do Espírito Santo. Posso recorrer a al-
gum trecho ou palavra tirada da Sagrada Escritura, renovando
em mim a ceneza de que a Palavra de Deus está embebida do
Espírito Santo e que, enquanto a recordo e a repito, encontro-
me com o Espírito, abro-me a ele. Posso também recorrer, por
exemplo, a uma imagem espiritual, um sinal-da-cruz diante dela,
diante do crucifixo. Também pode ser de grande proveito uma
parada na capela, na igreja, para quem isso é possível.

• Prestando atenção na invocação ao Espírito Santo, com ele


faço com que a minha atenção desça até o coração. Em silêncio,
procuro recolher-me no coração, pedindo ao Espírito que me faça
acolher o pensamento no coração, para poder pensar com a inte-
ligência do coração, da caridade. Entrar nessa dimensão do cora-
ção significa fazer um ato de fé, de amor para com Deus, porque
o glorifico, o reconheço como meu Senhor e meu Salvador.

• Sempre ligado na oração ao Espírito Santo, vou até à re-


cordação espiritual, para me ver como o Senhor me vê, ele que

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M AR11:0 f\.w Ru,,.,1K 1 O exame de consciência Ili. O exerdcio do exame

me ama tanto que, a fim de me libenar do poder das trevas e da dia, para onde esses atos, encontros e pensamentos me levam ...
morte, ofereceu-se por mim às ofensas do pecado, à violência, E a memória sugere logo à razão se tais realidades confluem
à morte. Tudo isso para que eu pudesse contemplar sua face de naquilo que é minha verdade ou começam a se desviar, escure-
infinita bondade, de indescriúvel misericórdia, para ver que tudo cendo-a, criando tensões, desordens, separações. Começo a agra-
aquilo que é assumido por ele e penetrado por seu amor está se decer ao Senhor por tudo aquilo que, de algum modo, me faz
tomando uma realidade bonita, luminosa. Fazendo memória lembrar dele e que vejo aumentar minha identidade, aquela con-
da redenção em Cristo e da manifestação da glória de Deus nele templada pouco antes no grande sentido da minha vida. Desco-
para mim, renovo o grande senúdo da minha vida. Senúdo que brindo as coisas que não entram nesse grande senúdo, as reali-
se me apresenta concretamente nas lembranças da minha salva- dades que não foram vividas em relação com o Senhor, retomo-as
ção, realizada em Cristo, explicada em sua Palavra, em suas ima- mais uma vez e as conto para ele. Enquanto lhe exponho, em
gens, que são também aquelas dos santos, e que a Igreja me detalhes, se necessário, o que aconteceu, como me senti, como
oferece. Sentido da vida que pode ser expresso, por exemplo, no os discípulos de Emaús, contemplo-o em sua máxima revela-
fato de ser discípulo de Cristo, que permanece com Cristo sob a ção, que é a do tríduo pascal, pois nesse evento ele se faz mais
cruz e chega primeiro, de madrugada, ao túmulo vazio; o que próximo de toda situação humana e penetra com seu amor todo
pode estar encerrado numa palavra do Senhor como, por exem- pecado e toda noite. E com o poder do Espírito Santo vejo agora
plo, "quem quiser me servir, siga-me" etc. Em todo caso, o grande ressurgir tais realidades, porque estou apresentando-as ao Se-
senúdo está incluído no fato de permanecer com o Senhor de nhor, que com sua presença as ressuscita e as transfigura. Arre-
forma pessoal. pendo-me, peço perdão, renovo a aliança e, se necessário, deci-
do me confessar.
• Estando no coração com o Espírito Santo, recordando a Se notei algum pensamento novo, significativo, e lembro-me
salvação da humanidade e a minha própria nessa humanidade, dele novamente, recomendo-o particularmente ao Senhor e lho
passo o dia ou pane dele tendo essas lembranças como pano de ofereço. E por alguns dias, neste ponto do exame, detenho-me nes-
fundo . Posso pegar vários caminhos: o das relações comigo se pensamento, perguntando ao Senhor como é que ele o vê, e
mesmo, com as coisas, com as pessoas, com Deus, com o tem- lembrando-me sempre da minha identidade, da minha voca-
po; ou os encontros com as pessoas, o trabalho desenvolvido, ção, do grande sentido da minha vida, de modo que a memória,
os pensamentos mais significaúvos, mais fortes, mais inquie- pouco a pouco, guie a inteligência a entender o que deve ser
tantes, os sentimentos mais intensos, assim como os desejos, as aceito, o que deve ser levado em conta ou não.
aspirações, os projetos ... Enquanto me vejo em todas essas
situações, com todos esses estados e aútudes, num clima de ora- • Analiso aquilo que coloquei sob observação como exame
ção, continuo perguntando ao Senhor, do qual faço memória particular. Isto é, detenho-me por um determinado tempo, o
espiritual, se é isso que ele vê quando me olha. Ajuda muito, quanto for necessário, para ver a realidade que escolhi para dar
contemplando meu grande senúdo da vida, isto é, minha voca- especial atenção, durante um certo tempo, em minha luta espi-
ção explicitada na redenção, perguntar ao Senhor para onde me ritual e em meu amadurecimento. Se, por exemplo, tiver obser-
levam as coisas que eu vivo, as aútudes que assumi durante o vado minha irascibilidade, então passo o dia com uma especial

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M m;o /1'N R111-.. ·• O l'Xnmt dt' consciência Ili. O t'.trrd cio do l'.Xame

atenção a esse aspecto e, encontrando momentos nos quais a espirituais davam grande atenção ao modo como o dia se encer-
raiva tenha se desencadeado, procuro explicá-los detalhadamente ra, como se vai para a cama. Os últimos pensamento , os últi-
ao enhor, pedindo ao Espírito que imprima fonernente em mo sentimentos, as últimas imagens que nos acompanham
minha memória o olhar do Senhor meu aJvador, para melem- antes de repousar têm cena imponãncia para no o espírito
brar empre de como eJe me vê em relação a essa irascibilidade. durante a noite. Como no exame de consciencia, são revisitadas
e a coisa continuar por muito tempo, é de grande ajuda falar com o enhor as imagens mais fones, o sentimentos mais vio-
sobre ela com o enhor, ampliando a problematica, para ver lentos e mais ambíguos do dia, de modo que não tenhamos
quais realidades minhas estão implicadas, envolvidas nessa ira - mais o veneno, assim convém não agitar no a con ciência nos
cibilidade. A es e respeito, pode ainda ajudar o colóquio com o últimos momentos antes de fechar o olho .
padre ou a madre espiritual, alguma leitura espiritual, alguma Além disso, os mestres espirituais aconselhavam a não fa-
penitência apropriada. Por quanto tempo? ALé sentir que essa zer o exame de consciência freqüentemente durante o dia. Fica
realidade tomou-se impregnada da lembrança de Deus e que a claro então que o exame de consciência não pode tomar muito
irascibilidade está perdendo cada vez mais o veneno do egoísmo, tempo. Não é uma oração longa e sim o momento de uma fone
da auto-afinnação, nociva para as reJações. Aqui também. confor- tomada de consciência de si em Deus e de Deus na própria vida.
me a realidade que estou obseJVando, deve ser levada em conta a O exame de consciência não é um exercício escrupulo o, e sim
eventual necessidade da confissão. Encerro com gratidão, agra- uma experiência feliz da redenção, na qual se aprende o sadio
decendo a misericórdia e a paciência do Senhor e dos irmãos, e realismo que nos faz demitizar os perfeccionismos moralistas,
pedindo a luz, a graça e o amor. voluntaristas, psicológicos, para que experimentemos a contí-
nua graça da transfonnação da nossa vivência no prindpio da
mone e da ressurreição de Cri to. Um exame de consciência fei-
• Tennino pedindo ao Espírito amo que me mantenha nes- to desse modo leva àquilo que Dostoiévski tanto prezava, isto é,
se espírito de intimidade com o Senhor e que me conserve n a er livre com Deus, sentir-se livre na relação com ele de modo a
atitude de olhar-me com o coração, para ter o olhar correto tam- poder viver a liberdade de filhos. t: no tempo cm que vivemo ,
bém em relação aos outros e ao mundo. a questão da liberdade continua com toda a sua problemática.
Entreta nto, podemos estar cenos de que se o mundo vir cristãos
Obs.: Éevidente que, de manhã, logo que acordannos, con- livres porque vivem no amor - do qual a liberdade é o eJernen-
vém orientar imediatamente nossa atenção ao enhor, fazendo to consútuúvo - , será uma imagem de beleza real que irá fasci-
a sua memória, recolhendo-nos no coração, invocando o Espíri- nar e atrair. Somente filhos livres podem apresentar e testemu-
to anto. Muito do dia do cristão depende dos primeiros instan- nhar a verdadeira imagem do Pai.
tes apó o despenar. Por isso, convém se acostumar a percorrer,
como um pequeno exercício, os primeiros pontos do exame de
consciência, que são os pontos do recolhimento e da aquisição 0 EXAME DE CONSCIÊNCIA DAQUELES QUE
da ótica cena para enfrentar a vida. NÃO TÊM UMA VlVA EXPERJÊN~IA DE D EU
Além disso, é aconselhável fazer o exame de consciência É daro que o exame de consciência, como o descreve-
antes de dormir. como também no meio do dia. Muitos mestres mos, é um exerdcio da memória espiritual e. portanto, ó é pos-

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Mwu h i... Ru"''" 1O tx.imt dt rn1uoi11oa Ili O a ucfoo do uamt

sível porque há uma memória a fazer, um evento a recordar, e dos quais nos apropriamos e a alguns preceitos que se relacio-
esse evento é a salvação que alcançamos no Senhor. Sem uma nam com o pensar, o desejar e o agir. Éóbvio que tal impostação
experiência real da salvação, sem uma memória pessoal, parece logo cai por terra, manifestando toda a sua incoerência, a não-
não ter sentido. A memória, como sabemos, é sempre concreta, integração da pessoa, que num certo aspecto pode corresponder
porque está ligada ao mundo das relações, que são a real idade aos cânones da mais rigorosa perfeição e. em outro, ser exata-
que constitui a pessoa. E a pessoa nunca é um conceito, uma mente o contrário, justificando até a própria desintegração. AJém
abstração, mas empre um rosto. A memória está ligada ao ros- disso, é óbvio que hoje há um risco real de reduzir a Igreja e a fé
to, por isso é realista. cristã a um armazém de valores, sobretudo éticos e morais.
Entretanto, quem não tem experiência concreta da salva- Éevidente que também o trabalho que a pessoa faz sozinha
ção, do perdão de Deus, memória do seu rosto, experiência sobre si é imponante. Ou melhor, é impossível imaginar qual-
conscientizada de como foi tirado da morte da escuridão, de quer cresá mento, qualquer amadurecimento sem essa fadiga de
como foi limpo e lavado, também pode fazer o exame de cons- trabalhar sobre si mesmo. Tudo isso, porém, é colocado num
ciência na esperança de conseguir a experiência do encontro com horizonte completamente diferente daquele da fé, no qual meu
Cristo Sen hor e Salvador. A pessoa que ainda não tem uma ex- empenho, meu esforço e meus resultados são lidos na ótica da
periência viva do rosto do Senhor e que, portanto, não pode graça, da misericórdia e da sinergia com o Senhor.
fazer o exame recorrendo à memória de Deus, deve prestar aten- Todavia, há uma outra maneira que se poderia aconselhar
ção para não cair na armadilha de fazer um exame de consciên- às pessoas que não são batizadas e também àquelas que, embo-
cia que se reduza a uma espécie de teste. no qual aparecem uma ra batizadas, se afastaram da fé, da vida da Igreja, de uma rela-
série de dados, assinalando aqueles que a tocam e deixando de ção viva com o Senhor, ou que ainda não a puderam viver.
lado aqueles que não lhe dizem respeito. ~e modo de agir tal- Vimos no primeiro capítulo como se dá uma dimensão
vez possa ser útil, mas traz consigo, intrinsecamente uma cilada criatura! da sabedoria. No filme •Andrej Rubtev•, Tarkovski conta
muito perigosa. De fato, a pessoa se encontra a sós gerindo a a história de um rapaz, filho órfão de um mestre fundidor de
própria vida e, portanto, pode reforçar a cremenda ilusão de sinos, que conseguiu sozinho fundir um sino sem que o pai lhe
poder se aperfeiçoar sozinha. Na medida em que isso se realiza, tivesse transmitido a arte do ofiáo. O pai lhe havia comunicado a
é mais difícil fugir da auto-suficiência, da presunção, da soberba paixão e o rapaz, Lendo visto que o sino se fundia coando o metal
que leva a julgar os outros e olhá-los com uma ótica errada. fundido na forma escavada na terra, Leve a fone intuição de que a
Contudo, mais grave ainda é que um exercício assim pode própria terra lhe revelaria o mistério de como fu ndir o sino. l lá
reforçar uma espécie de ateísmo, isto é, a não-necessidade de uma memória, há uma sabedoria que penetrou toda a criação,
um Deus pessoal com o qual se relacionar e que é uma Pessoa como diz santo Atanásio. Basta apenas ouvi-la para instaurar um
livre que a todo instante pode transformar nossa vida. Tal exa- relaàonamento real, dialógico com a terra, e a terra nos faJará.
me de consciência pode levar à ilusão de autogerir a própria Sabemos que toda a criação traz consigo escondido o códi -
vida para buscar a salvação sozi nho. E, nesse caso, podemos fa. go do logos no qual e por meio do qual foi criada (cf. Cl t, 16).
d lmente nos contentar com uma religião que leve em conta a Esse código diz que na criação está gravada a direção, a orienta-
éúca, mas na qual Deus pode ser reduzido a alguns conceitos ção, para a qual a criação vive seu verdadeiro senúdo e significado.

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M~"º 11·" Ru"''" O mm1t tlt consciência 111 O t.rcrnno do e.rullU'

É um códjgo que se abre para aqueles que se colocam diante do Llbenando-nos das categorias demasiadamente sociolo-
mundo numa aticude contemplativa. Então, quando a pes.soa pro- gizantes para compreender a Igreja, encontramos na dimensão da
cura entrar na óúca da caridade, adquire essa aútude contemplativa eclesialidade o âmbito no qual toda pes.soa pode ter acesso à sabe-
que lhe pennite descobrir o sentido das coisas. doria e à vida espiritual. Aeclesialidade abraça a criação, a tradição,
Todavia, existe também uma sabedoria que se concentra na o magistério e a comunidade cristã viva. Quem não tem uma expe-
memória das pessoas e que, para nós, desemboca sobrecudo na riência pessoal da salvação, mas a percebe nas pessoas que a vivem
Igreja. C: esse é o momento prinàpal, o da memória da humanida- ao seu redor, pode começar a •freqüentar• o seu mundo, a adquirir
de, isto é, da Igreja. Cu posw remontar à memória que se revelará a aútude contemplaúva sem preconceitos, mas como constatação,
como minha - aquela vital, eficaz - atraVés da memória do ou- que o levará a tecer as relações com essas pessoas, com a Igreja.
tros. Posso ser iniàado na sabedoria, abrindo-me à sabedoria dos Na comunidade eclesiaJ celebra-se a liturgia, em que o mun-
outros. ·o Espírito Santo é a memória viva da Igreja" (Catecismo dn do todo é ordenado para a Igreja, cosmo ressuscitado com Cristo
Igreja Ouó/ica, n. 1099). e que subsiste nele: esse é ãmbito já aberto no qual cada um pode
A Tradição da Igreja não é um livro morto, não é a estrati· começar a seguir os fios de uma trama já tecida, realmente exis-
ficação de documentos de arquivo, mas é a sabedoria orgânica que tente, espiri cual, da qual se sentirá cada vez mais parte integrante.
desemboca em Cristo vivo. Gabriel Bunge procurou um padre es- A Igreja, nesse senúdo, é a verdadeira expressão de uma fé no
piritual e o encontrou em I:vágrio Pônúco, mono mais de 1500 Deus-trino-amor, o Deus da livre adesão q'ue estabelece a rela-
anos antes. E Bunge, com Evágrio, tomou-se um dos grandes pa- ção entre o ser humano e Deus nas categorias do amor e da rela-
dres espirituais de hoje. Aquela caridade que o f.spírito Santo colo- ção livre. A Igreja é o ãmbi to da fé, do discernimento e da liberda-
cou em nós na hora da criação às vezes se dá a perceber por meio de dos filh os.
do fascínio e da atração que algumas realidades ou pessoas espiri- Considerando isso, uma pessoa pode começar a examinar-se.
tuais provocam em nós, embora tenham vivido num passado lon- a examinar sua vivênáa, levando cm conta a salvação e a imagem
gínquo ou a grande distânáa de nós. da humanidade aos olhos de Deus misericordioso, para que ou-
Ao começar a seguir essa atração, pode-se instaurar um verda- tros a contemplem, paniápem dela e a conheçam. Isto é, essa pes-
deiro diálogo e, remontando à memória dos outros, chegar ao li- soa faz o exame de consàência mantendo o olhar fixo na humani-
miar da própria memória espiritual, isto é, ao limiar do encontr0 dade redimida que outros lhe comunicaram. Examina-se com a
com aquele que plasmou a memória espiritual da pessoa que se abenura do coração para a misericórdia de Deus que os santos ex-
seguiu. ~ remontar-se ao conheàmento com base na memória perimentaram. Percorre seu dia, sua vida, na abertura à graça
dos outros e na sua sabedoria, se feito de maneira correta, disún- transfonnadora do perdão que viu e encontrou em outros. Desse
gue-se pela gradualidade do cresà mento orgânico, pela humilda- modo, começa a agir com o coração, isto é, com uma mentalidade
de respeitosa, sobretudo nos julgamentos sobre si e sobre os ou- relacional de caridade, plasmando sua inteligência na contempla-
tros, e por um sadio movimento de encarnação na vida concreta, ção e na caridade.
cotidiana. Além disw, um caminho sapienáal evita os entusias- E ao analisar os outros, ao analisar sua sabedoria, chega a
mos fáceis, a queima das etapas e a soberba dos passos dados. roçar num organismo vivo capaz de auto-revelação, de comu-

74 75
nicaçào e de envolvimento. Esse organismo é o mesmo que está
na o rigem desse movimento da pessoa e que suscita nela a cari-
dade exatamente por meio da fascinação, da atração, do misté- Sumário
rio, da beleza e d e todas as categorias unidas à vida, à vivência e
à sabedoria.

Apresen tação .................................................................... 3

Intro dução ........................................................................ 9

1. Os fund am en tos teológicos


d o exame d e consciência .......................................... 13
RE coRDANDO, NOS c:xAMINAMOS ............. ......... ............ .... .... 13
O r R 11ui.t.A."'º' OUADO A IMACLM DE Deus,
MIADURLCI: S[ REFfJtlNDO A EU\ • •• • ••• •• • • • .. .. .. • .. • • • .. .. ... • • .. • • 15
Ü Ü ITTRO, OS Olrr'ROS, CO'llDIÇÃO PARA SE CO....,llfCER .• • • • •••••• ] 8
SL,t REDIMIR .-.s RUAçôr::s oo rro.oo, Ni\O 1. rosstvn
COSlltO R ................................................................... 20
A RWf::Nc;Ao E\t CRJsro, ..v.1erro oo vrRDAOl IRO
co'' IEC1.\11ôNTO .. .. .. •• .. .. •. . •• . . . •. .. ••••• •••• . •. . . . . ••• .. . •.. .. .. • .. .. .. • 21
o Est>tRrlO SANTO PARTIOP1' "º SER ttll1'1.A."'0 o AMOR
TRl ITARJO .......................................................... . ........ 23
O Esr1Rn0 SANTO Nos UNf "º i-.ovo AnAo,
l'iO QUAL SI f"'CONT'RA O VEU IO TRAN flC:llAADO .............. 26
Ni\ CARIDADf::, A \1101' PER.\t.A.....,CCE ........................................ 27
Rl.CORDANOO, Drus FAZ VIVER L SI f,\/ PRlSINT'f NA VIDA ..... 30
A MO.IÔRJ1' llUMANA TM1BL\t NÃO COSIARJA
OE Ol:JXAR A VIDA l:SCAPAR .... ............ ...... ................. ...... 31

76
A ML\IÔRIA ~[ fORNA Ml\.\i"'U/!> DA VIDA QUt rLRM.A.'a,c.i: ..... 33
A u ... rDAoL, CARA."'TIA DL \1DA •..•.••••••••.•••••••••••.. ••. .•••.••••.•••. 35
VcR-~L COM o ou ros oo furtRITo SANTO,
1"1Tl.GRAl>OS L\ 1 C RISTO ••••••••••••••••••••••••••••••••••••.•••••••••••• 38
A 'WJEDORI.... AMBITO IH (()MUNlc.AÇÃO COM Ü EUS .••...••••••.• 40
o OU IAJl DO EsrlRITO v-.·m 1. PERCEBI: M SAll[OORIA •••••••• 41
A \AlllOORI.... MORADA º"' BELU.A ••.••••••••••••••..•.• . ........••.•.•••• 44
A SABlDORL\ 1WIOA NA lcRIIA ••• •••••••• ••••. .• . . . . . . . . . . .. . .• . . . . . . . . . . 45
faAMINAR- L NO CORAÇÃO COM A SABEDORIA........................ 47

li. A vida espirítua l


e o exame de consciência ................................... 51
P . . ~ koloml9Ç6es
Ü l.XM1L OI. CONSCJCNCLA NA ORAÇÃO . . •. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . 51
IObl'9 - .... delh1-
,,._ novld9dee
Ü LMM E DC CONSClf.N<..I~ CONThMPLAÇÃO
E CONlll CIMLNTO........................................ . ................. 53
.~·-.,,.,_.. . a... . 8iogr8liM . e.~
• C * - dil t9llgl6o • Comunlcaçao • E:eplritueldlde
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III . O e.xerdcio d o exame ......................................... 67


Ü EXAME DC. CO" SCJLNCIA OAQUW5 QUE 1'.ÃO 1ÍM
u'v. VIVA EXPf.RJ f.NCJA 01: Duis...................................... 71
ESQUEMA DO EXAME DE CONSCIÊNCIA

1. Dirijo-me ao Senhor. invocando o


Espírito Santo. a fim de recolher-
me em sua presença Pode ser de
ajuda olhar uma imagem sagra-
da. fazendo o sinal-da-cruz .

2 Recolho-me no coração. numa


atitude de fe. para poder me ver
diante do Senhor em todo a mi-
nha Inteireza.

3. Peço o graça de me ver como


Deus. meu Salvador. me vé. per-
cebendo o grande sentido do
minha vida . Posso repetir algumas
frases da Palavra de Deus que me
são particularmente significativas.

4. Repasso meu dia. dialogando com


o Senhor sobre tudo o que acon-
teceu - o trabalho. os encontros.
os pensamentos e os sentimentos
mais Significohvos -. contando-lhe
principalmente aquilo que o cora-
ção sente que não corresponde
ao modo como ele me vê em seu
amor e que foi vivido Por mim no
fechamento paro com ele e para
com os outros Peço misericordio
e agradeço

5. Exame particular: falo com o Se-


nhor sobre a realidade que estou
acompanhando com maior aten-
ção espintuol durante este peno-
do. Aqui tombem termino pedindo
misericórdia e agradecendo
........ _,..,....rr.Uia
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6. Peço ao Espírito Santo que me
mantenha no união com o Senhor.
poro que eu continue me olhan-
do e olhando os outros com a
Inteligência do coração.

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