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A INSENSATEZ DO SINTOMA

EOS EMBARAÇOS 00 CORPO NA PSICOSE

Laura Rubião•

RESUMO: !\este texto procura-se fazer o percurso que ,·ai do momento • Psicanalista membro da
clá,sico d:i clínica estrutural ~s apresentações mais contemporânea. dos EBP-AMP.
• Psychoanalist. EBP and 1
tenômeno de corpo na psicose, com ,·isras a indagar pela função gue ele AMP member.
pas.am a assumir na economia psíguica de sujeitos às voltas com e rracé- E-mail:
L'1a. de amarração do real do corpo pela ,·ia do imagináno, em pa sar lauraklstosarublélO~.cmt

~eccssariamence pelo imbólico.


Palavras-chave: Acontecimento de corpo; P icose; intoma.

THE UNREASONABLENESS OF THE SYMPTOM


ANO THE BODY'S EMBARRASSMENT IN PSYCHOSIS
ABSTRACT: This rcxc seck to take the roucc from the ela ic momenr oi
the struccuraJ clinic to the most contemporary presenraaons of rhe body'
phenomena in psychosi , with the goal o f guesuoning abouc che funccion
of such phenomena 111 che psychic economy of individual involved with
trategies of binding che real a. pecc of che body through the \"la of che
1rnagmary, without necessarilr gomg through the ymbolic.
Keywords: Events of the body; Psychosis; ympcom.

AJém de surgi r como campo privilegiado para . e pen ar as que. rôes do


corpo, a histeria se <lelincava, na época da descoberta do incon. cienre freudiano,
como uma estrutura claramente distinta da psicose. Hoje, no enrnnro, nos J ep.1-
ramo com t.juadros mistos, que trazem os fcnc)menos de corpo para o pnme1ro
plano, c:m que possamos di stinguir, seja a evidência dt:' uma conn' r. ,10 simbóli-
ca, eja os clássicos fenô menos de: alucinaçôes ccncsrcs1ca. , típicos da t:'squizo-
frenia.
Do momento clássico da clínica estrutural às aprescnraçúcs mais con-
iernporân<:as dos fenômenos de corpo na psicose c.~possí,·el indagar: que função
eles passam a ass umir na economia psk1uica de suj eiros ús ,·olras com es rrarégrns
ue amarração do real do corpo pela via do imaginário, sem passar necessariamen-
te pelo ·imbólico?

Revi sta Curin ga 1 [ BP MG I n.36 1 p. 121 128 1 ja n j ur 2013 1121 1


La u r a Rub i ao

A histérica freudiana do final do século XlX provocava no O utro um


profundo embaraço ao apresentar um funcionam ento co rpo ral atípico, no que
diz resp eito às leis naturai s tom ad as como p arâme tro do funcio namento vital
do o rganismo. Es, e corpo -enigm a, que trazia cm st a m arca de uma pe rgunta,
impul sio nou rodo um campo d e in\'estigação lJUC de u o rigem à descoberta do
inco nscie nte e do corpo pulsional destacado das regras d o corpo biológico.
To do o m aterial d o s estudos realizados com Brcue r e C harco t vinha atestar a
ex1stenc ia, no c:1mpo d a hi ste ria, d e um corpo e nigmático (d o p o nto de vista
da m edici n :1.) que, co ntudo, se enco ntrava cm conexão com a linguagem do
in con sciente, o u seja, cm co nsonância co m o campo da representação, co m a
hipó tese d o recalque e do deslo camento do afeto (pulsão). O co rpo na histe-
ria se apresen ta a serviço d o significante, e Freud é bastante incisivo a esse res-
pe ita: "A histeria se compo rta em suas paralisias e o utras manifestaçõ es co mo
se a anato mia não existisse r...] to ma os ó rgãos no se ntido v ulgar e po pular do
no m e que carregam; a p erna é a perna até a inserção do quadril" (FREUD,
f189311 9 , p. 234).
U m significante é recalcado, e o afeto separado dessa representação
é tra nsfo rmad o em m anifestação co rpo ral. To rnaram-se clássicos o s fenô me-
nos co nhe cido s como conversão simbó lica extraídos de alguns casos célebres
do studos sobre a histeria (FREU D, [1893] 1977). As do res paralisantes da
p erna de E lizabeth eram uma espécie de testemunho do amo r ao pai
(d oente/ impo tente), que costumava apoiar sua cabeça nas p ernas da filha,
enquanto ela lhe disp ensava os cuidado s. 1-:<:ssa d ores retornavam co m o a
expressão som á tica de " um não poder dar um passo adiante" em relação ao
colap so fa miliar que se seguiu apó s a qu da do p ai. O co rpo é m arcado pelo
recalque, p o r uma impo tên cia que e trad uz co m o numa esp écie d e p aradoxo,
p o is revela o lugar d e uma exp eriência de sa ti fa ão e a m e, m o tempo a res-
tringe: " Isso sig nifica que o ó rgão deixa <le o b e<lcce r ao sab er do co rpo, ao
saber que está a serviço da id a para se tornar um supo rte d e um "gozar" [...1
tudo aco ntece co m o se o ó rgão fosse o culp ad o por esse gozar, co m o se esse
g ozar fosse uma infração" (MI LLER , / d , p. 67) .
Para o nosso pro pósito seria preciso assinalar, a sim co mo E . Laurent,
que o corpo hi stérico se o rganiza sob o modo de uma perda de gozo e nes e sen-
tido "O corpo re talhado (pelo significante) é aquele que p e rde seu b raço pela
paralisia histérica, o co rpo que p erde sua perna, que perde sua voz" (LAURENT,
2013). Na literatura analítica não faltam e xemplos que atestam a e ficácia da ins-
crição da le i simbólica e gue definem o co rpo histérico co m o um corpo dirigido
à d em anda e ao desejo do O utro : as do res de Cecília invocavam o olhar pene-
trante da avó (um o lhar de ce nsura), a cegueira histérica exibia d e modo claro a
junção entre a lei e o gozo ao ab olir o ó rgão de ua função natural e ceder lugar
ao prazer d e ver (shaulusl) atrelado à restrição do não ver.

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A !NSf iSAT[L 00 SI NTOMA E OS EMBA RAÇOS 00 COR PO NA PSI COS E

0 corpo pulsional às voltas com um elemento de difícil integração

O caso do pel1ueno Hans é paradigmático para pensarmos as vicissi-


rudcs dos embaraços do corpo num caso de fo bia (portanto inserido no funci o-
namento neurótico) que, no entanto, pode nos ensinar algo sobre O funciona-
mento J o corpo na psicose.
Lacan trabalhou de forma exaustiva os recursos imaginários e simbó-
licos presentes na exploração que faz o pequeno Hans em torno do encontro
com a falta no corpo materno. Num primeiro tempo, "o tempo do paraíso", dos
jogos de esconde-esconde, da inspeção da falta fálica em todos os seres, a crian-
ça interpreta esse corpo como "supostamente incompleto," e toma a si mesma
como sendo capaz de completá-lo.
Todo esse aparato imaginário instalado nesse jogo de compensações
sofre um abalo quando o corpo se vê tomado de assalto por uma invasão pul-
sional durante as primeiras experiências masturbatórias da criança. Ele se depa-
ra com uma mobilidade involuntária do órgão. Uma parte se move e e separa
do corpo, ocasionando uma irrupção da angústia a partir da invasão da libido
não localizada e uma sen ação de não pertencimento em relação ao próprio
corpo. Esse ponto de e tranhamento e perturbação do real do corpo - que logo
será reintegrado à lógica fálica pelo suplemento do objeto fó bico - é um ponto
de descompen ação muito mais raclical em casos de paranoia. Dirá Lacan:

1... ] enco ntramo. con Lantemente, cm certos suieims, o testemunh o do caráter de inva-
são djlaccrante, J e irrupção atordoante, tiuc apre entou para eles esta experiência. l o
é o bastante parn nos inJrcar, no desvio cm que nos e nco ntramo , que a nO\idade do
pênj real Jeve desempe nhar ~cu papel como elemento de integração difícil (L CA'.',;,
11956] 1995, p. 265).

O corpo é para rodo er falante um lugar de estranhamento, e todo um


trabalho psíquico é acionado para Edar com o fato de que não nos adaptamos
naturalmente a ele, que temos que aparelhá-lo com o sintoma, temos que no
desembaraçar pela via si ntomática - seja à man ira neurótica ou psicótica:

este corpo acontecem coisa~ impre vr. ta , coisas ljUC escapam 1--• I que são acontec1-
me ntm e lJU C J eixam marcas Jesnaruralizadoras, disfuncionais. 1... ] de fato se trata
sempre de acontecun entos di cursivos tiue deixaram marca no corpo lJUC.: o pertur
bam e prod uzem sintoma~, mas apenas na medjda cm qu e o suicito cm LjUCSlao sqa
apto para ler e decifrar estas marcas (MI LLF.R, 2003, p. 3 7 3).

Esse é um ponto gue nos parece fundamental e 4ue retomaremos mais


adiante a propósito do impacto traumático do significante sobre o corpo na psi-
cose como trauma que não se dá a ler da mesma maneira como e dá pela sinto-

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La u ra Ru b i ao

. - h., , • O corpo disfuncional na p sico e permanece ór.c---


matJ;rnçao 1stenca. . . _ ,. . . , tao de
. b d,., 0 ,., sig,m ficaçao fahca. O s1gmficante fob 1·
chave d e Ic1tura asca " " co ''ca
urna
. . t a' "ngústia do corpo despedaçado no caso Hans Valo''
v1na em respos a " · .. corn0
chave de leitura e interpretação, além d e perm1ttr uma espécie d e conden Ufl1a
saç'
d o gozo. ªº

Os embaraços do corpo na psicose: da perplexidade à invenção

Sabemos que a brilhante carreira do presidente chreber foi int


, d~ . , errorn.
picfa de maneira brusca pelo desencadeamento e sua p sicose apos a norn -
. de ·u1·2, presidente
ao cargo , da suprema corte. Mas antes desse episó..J: caçao
LUO a01,d
' 1 lh . b'-' o
hou\·e um IJrimeiro desencadeamento que e custo u uma Internação po .
. , . • •. r seis
meses na clínica de F lechs1g, o medico neuro 1ogista que v1na a ocupar lugar de
destaque nas fabulações delirantes de Schreber.
Esse primeiro desencadeamento é descrito de maneira sucinta (tan
po r Schreber, quanto pelos relatórios médicos da época) como uma crise ~o
hipocondria grave e difusa, "sem qualquer incidentes que tocassem as raias d:
sobrenatural" (FREUD, [1911] 1969), p. 27) . U m período de nove anos se inter-
pôs entre os dois desencadeamentos. E sse tipo de hipocondria difusa, que colo-
ca em jogo sensações indeterminadas, exibe o corpo d esamparado do significan-
te e foi considerada por Morel (1850) como "o fen ô meno p sicótico por excelên-
cia, que determinava secretamente o co njunto dos distúrbios delirantes"
(BATISTA; LAIA, p. 146) . A partir de então diversas autoridades do meio psi-
quiátrico passaram a considerar esse tipo de hipo condria, " ligada muitas vezes a
uma indeterminação intolerável", co mo uma etapa preliminar à atividade deliran-
te o u como um momento fecundo da p erplexidade em que o sujeito é tragado
pelo vazio de significação. O próprio Freud a pro p ó sito de Schreber faz um inte-
ressante comentário: " parece-me que a hipocondria tem a m esm a relação com a
paranoia que a neurose de angústia tem com a histeria" (FREUD apud BATISTA;
LAIA, 2012, p. 146).
Além d o episódio da promoção pro fi ssional, interpretado no contex-
to das teses lacanianas presentes na Questão preliminar, com o um apelo vão à lei
paterna que não opera simbolicamente, h á aquele p e n samento estranho, situado
entre O o nho e a vigília: "Como seria bom ser uma mulher e submeter-se ao ato
~a cópula ... " Dessa vez há a p resença d o significante via alucinação, mas este eSrá
imp~egnado de uma carga enigmática, apresenta-se so lto, co mo que descolado da
cadeia.
.. O primeiro impacto da incidência d es e significante isolado da poss~
bilidade de qualquer encadeamento discursivo ou eJ·a que evoca um furo o
dO , · ' '
campo o utro, e senado ao nível d o corpo: um episó dio esquizoforrne co
rn

/12 4/ Re v i s ta Cu r in ga I EBP _ MG I 1 2013


n.36 1 p.121 - 128 1 ja n jun

A I NS[ NSATE Z DO SINTOMA [ OS EMBARAÇOS DO CORPO NA PSICOS[

presença abundan te de alucinações cencstésicas: sensação de desmembramento


e dissolução do co rpo, de m anipulações forçadas, de fragmentação dos ó rgãos,
etc. Essa desagregação absoluta leva o sujeito à tentativa de suicídio e finalmen-
re ao estupor.

Du ran te os primeiro s an os de s ua mo léstia, alg uns de seus ú rgào s corporais sofreram


dano~ tã o te rríveis que ine\'i t:l\·elmente levariam à morte llualquer o utro homem; viveu
por longo te mpo sem estômago, sem in testi nos, q uase sem p ulmôes, com o esófag o
r,1sgado, sem bexiga e como as costelas J espedaçad as; costumava às vezes e ngolir
parte d e sua p rópria laringe com a comida. Mas milagres divinos (rai os) sempre
restauravam o que havia sido destruído l•• •I (F REUD, 11 9 111 1969, p. 50, grifo
meu) .

Essa passagem deixa claro que há um processo de restauração cons-


tante do co rpo em decomposição po r m eio de um elemento do pensam ento
(raios/ n >zes) que aos po ucos evolui para o que o relato médico da época descre-
ye como " uma engenhosa estrutura delirante, com a cristalização dessa insanida-
de alucinató ria em uma versão delirante mínima e plausível, na qual se apoia a
reconstrução d a personalidade" (FREUD, [1 911] 1969, p. 30).
Terno s, po rtanto, a intrusão de um significante que se desarticula da
cadeia provocando um assujeitam ento completo do co rpo ao gozo ilimitado -
sem sentido - e, apenas, co m o passar do tempo, há uma " co mplacência deliran -
te" (MILL E R, 20 12, p. 11 2) e a construção de um sentido que se realiza na pró-
pria insensatez. Tanto Freud como o próprio chreber reconhecem que há
método no delírio, d istri buição d e fu nções, determinação de hierarquias, estabe-
lecimento de p ropósitos, assen timento lógico, etc.
Para a psicanálise o corpo é d isj unto da linguagem e está submetido a
efeitos de desagregação tanto na neurose quanto na psicose. Só podem os apos-
tar numa suposta integralidad e do corpo por um truque d a imagem, co m o explo-
rado po r Lacan a partir do estádio do espelho. O corpo é originalmente fragmen-
tado e só se dá a ver com o comp leto no espelho po r um efeito de antecipação
da imagem que não suplanta sua vocação para o d esmembram ento. Freud no
dá um exemplo curioso desse estranham ento co m a imagem especular, to man-
do um fragmento de sua própria vida. Relata um episódio cm q ue numa viagem
de trem o lha d e relance ao passar diante de um espelho e é tomado de angústia
ao se deparar com a imagem de um velho desconhecido que é ele próprio, dian-
te do espelho surge um eu inconsistente que é um O utro (FREUD, [1 91911 976,
p. 309).
a psicose não temos esses efeitos d e divisão cm que o O utro está
integrado simbo licam ente ao E u e, diante ele experiências desse tipo, o sujeito
responde com verdadeiros efeitos de despersonalização, de desapropriação com-
pleta de seu próprio corpo. Nesse sentido o psicótico, por não acreditar na uni-

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Laur a Rubiao

• , • e s1
ficação imaginaria •mbo, 11ca
- d ad a pe ]a ·sionificação
n·· fálica que normatiza, as
hiâncias do <corpo, cxpnmc •
de mnt1o rauJCa 1 · . ] a verdade do ser falante que e desa
' . _• -
propriado do seu corpo pc1a 1nguagem.] . O real do corpo
. na psicose
. , _ nao é
., bo Io qu e 1-,romuvc
apreen d 1.d o por um sim _ ,a _morte .- da c01sa e ,o sacn
_ f1c10 de uma
parte do corpo, tal como 110 si nton~a h1stertco. Lm SL~ma, ele ,n~o concede com
os destinos da c 1str:1çào simbó lica tundada na operaç~<~ d a n:ct_a~ora paterna. O
delírio seria, portanto, a im·ençào encontrada pcl~ suJctto ps1cot1co q ue reativa,
:1inda que às avessas, a vertente significativa do pa1. _ ,_
Por essa raúo, podemos aproximar os efeitos do dchno aos da metá-
fora: transformar-se cm mulher por sofrer um abuso insensato do Outro que
~ 07 a de . cu corpo e algo totalmente d iferente de tornar se a mulher de Deus

~-,ara gerar uma nm·a raça dotada do elemento Schreber. H~ uma s~plência deli-
rame que permite uma espécie de enxerto ao Nome-do-Pa1 forclutdo, na medi-
da cm que Schreber inventa para si uma nova filiação, forjando ai o lugar de uma
possível exceçào.
Se, por um lado, podemos dizer que o neurótico conta com um dis-
cur. o rípico que lhe diz o que fazer com o seu corpo (MILLER, 2003, p. 7) - tal
como Elizabeth ao pretender ser o suporte de toda a família dian te da derroca-
d a do pai, assumindo o lugar daquela que vem sanar a falta d o Outro - na psi-
e e o falo não está disponível co mo esse órgão fora do corpo articulado à Lin-
guagem, dai o esforço extremo para localizar algo no co rpo, algo que é da ordem
do empuxo-à-mulher e d os efeitos d e phio. 1

Fazer um corpo na psicose e as invenções contemporâneas

As profundas transformaçõe do laço ocial no mundo contemporâ-


neo dão origem a novas fo rma d e apre entação dos intom as, nas quais não
con eguimos discernir co m clareza o paradigma freudiano d á sico (retomado
po r Lacan nos anos 1950), que localiza, de um lado, a hi. teria co mo um modelo
e, de o utro, a psicose co mo seu avesso. Os sintomas mai co rriqueiro de hoje -
ju tamente aqueles que colocam em rele o o lado o paco e mudo d o. corpo -
no defro ntam com uma espécie de insensatez que parece . er de outra ordem.
O grande quadro d eLirante. que forjam uma narrativa sistemática ou uma
compreen ào paranoica do mundo estão cada vez mais raros. f•,ncontramos na
clínica o utras esrratégjas para lidar co m os embaraços do corpo, estratégias que,
muita vezes, abolem qualquer endereçamento ao plano do sentido, ainda que
cja um sentido delirante. Os corpo intoxicados, cortados, perfurados, transfor-
mados pelos avanços da técnica cirúrgica, tatuados, medicados, etc. encontram
mane!ras de atar o real da pulsão ao plano do imaginário sem o recurso do amor
ao pa1 como em o utros tempos.

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A INSENSATE Z DO SINTOMA ~ OS EMBARAÇOS DO CORPO NA PS ICOSE

No cam110 da psicose isso


· se expressa
· • •, pela, vt·a, d as passagen ao ato
mais o u menos graves, como as perfurações, as automutilações, a introdução de
objetos no corpo; pelos yu~d~·os hipocon<lríacos clifusos yuc se tornam perma-
nentes e acompanham o su1e1to ao longo da vida, mobilizando todo um traba-
lho e um engaja~ ento social, por exemplo, em torno de uma dor (ou de várias).
Pelo uso de n1ecl1camcntos associados a dietas, yue agem atuando como um con-
trolador rígido, por exemplo, do peso do corpo (anorexias/bulimias) o u ainda
pela manifestação de uma lesão corporal sem causalidade orgânica evidente.
Estes últimos têm sido reunidos sob a denominação de neoconversôes e podem
ser localizad os na clínica "quando os fenômenos psicossomáticos não procedem
do sintoma como tendo a estrutura de uma metáfora" (LA SAGNA, p. 336),
remetendo a um uso do corpo que responde aos efeitos da ausência do menos
phi (phio).
O sujeito pode passar de um estado de perplexidade para uma locali-
zação clireta do sofrimento no corpo, sem passar pelo delírio o que deixa de acu-
sar uma perturbação ao nível do Po. Muitas vezes, quando essa solução somáti-
ca se desfaz, obrevém o delírio, assim como quando se retira, por exemplo, a
oluçào toxicomaníaca.
É o que nos en ina o caso apresentado por Marie-France Prémon na
conversação do ln tituto do Campo Freudiano de Bordeaux. Após ter sido reti-
rado de forma úbita do mercado o remédio (Pondera!: ação prolongada) utili-
zado pela paciente d de a a<lole cência para regular suas compulsões alimenta-
res, ela começa a apre. cntar dore insuportáveis no abdômen, chegando a rece-
ber o diagnó nco de colite funcional. Bulimica desde o início da adolescência,
relata que ua buumia era o único espaço de liberdade frente a uma mãe contro-
ladora que a obriga a a usar um corpete para esconder os excessos de gordura.
ubstitui o controle materno pela bulimia com seu controle alimentar rígido
a sociado à ingestão do Ponderal, receitado por um médico de confiança da
famíua. Além das dores, ela de envolve, posteriormente, uma atividade deurante
de fu ndo erotomaníaco (PRÉMON, p. 39-43).
O ato de se medicar si temática e 'ponderadamente' abre-lhe um espa-
ço de uberdade frente ao supereu voraz de sua mãe, dando lugar a uma regula-
ção direta das substâncias corporais que po r anos deu sustentação a seu corpo,
sem qualquer manifestação dos fe nô menos elementares alucinatórios e/ o u deli-
rantes.
Outro fragmento apresentado por Catherine Lacaze-Paule, de taca um
modo de enodamento psicótico que coloca em destaque os efeitos de Phi0, sem
a derrocada explícita da cadeia significante. O sujeito em questão sofreu um aci-
dente, fraturou o pé e o tratou. Mas não se considerou curado e percorreu o
mundo, visitando centros de reabilitação ortopédica, submetendo-se a exames
que não constatavam lesões. Quando vê pessoas utilizando próteses, constata

Re vis ta Curinga 1 (BP - MG I n .3 6 1 p . 121 128 1 j an- jun 1 20 13 11271


1i1111«1 lluh 1,1u

qur c:--1.1 :-- 111nc11111.1rn 1rn111t, hc111 e dcridc se pela amputação como solução para
:--u:1 lll1lkst1:1 (I.AC,\ / .1·'. t>;\ ll l.l ·'. , p. 17(J 171J).
:\li n intr,íno d:1 histeria cujo corpo se recorta pela linguagem e c.:ncon-
tr.1 :11 11m pnntll de li:1s1a, 11:1da detém os passos do 'homem do pé torcido', que
cnrrr 1) mundn :is ,,1,ltas com O embaraço de seu sintoma. El e retorna à anato-
m1:1d11 rtlrp() dcsn:itlirali;,.:1d() llue ganha consisi-ência, instala-se na certeza dessa
1°:tlh:1 1111 rc:11 l' ckgc ;1 prc'itcSL' como um enxerto possível para fazer um corpo
:-cm ll 111st rumnltll t':ílico.

NOTA

1 :\ cnmpanh:unos, llnse ~emido, o e. forço sobre-humano de Schreber para dar forma ao corpo
de\',l~tado da mulher (passava horas cm frente ao espelho), como se a imagem do corpo devesse
~l·r c-onstllllcmcnte assegurada e amarrada aos acessórios femininos.

REFERÊNCIAS

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