Você está na página 1de 4

AUTOEROTISMO E PSICO SE ORDINÁRIA

Marcelo Bizzotto Pinto ·

RESUMO: Este ,1rt1go pretende elucidar o conceito de autoerousmo a par • Psicanalista. Ps,cólogo
nr da obra de heud e Lacan e, po tcriormenre, tentar articulá-lo om a clinico do CAPUT
!Centro de Atendimento e
no ão ele ps1co e ordinária. E e termo foi criado por Jacquc. -. \ Iam Proteção ao Jovem Usuário 1
i\lillcr para caractenzar aquelas ps1co es sem os fenàmenos clã. ico. des- de Tóxicos).
cmm pela psiquiatria. "Psychoanalyst. CAPUT
climcal psycholog,st.
Palavras-chave: utocro11smo; Psicose; P!,icm,L· ordinária; Go7o autísttco. E-ma,I:
celobin@yahoo.com.br

AUTOEROTISM ANO ORDINARY PSYCHOSE


ABSTRACT: This paper pretend~ clucid:ne thc auroerousm concept frorn
FreuJ anel Lacan theories and thcn I ry to articula te 1t with the ordinar~
p ychose notion. This last term was created by Jacques ,\lain Miller for
charactcri;,c thosc psychoscs without ela ics phenomenons describcd by
p. ~-chiatr}.
Keywords: .\utocronsm; Psycho. l'; Ordinary psychose; ua c1c 1oy.

O termo " autoerotismo" foi utilizado po r Freud p la pnmcira \·ez em


!-.ua obra na carta 125 endereçada a Fliess. Ele a denomina como ··o t'Xtr:uo
exual mais primitivo" , que "age sem qualquer fim p. i os xual e exige so mt'n-
te ensaçôes locais de satisfação" (FREU D, [ 18991 1976, p. J ). Es a ckscnç:io
t de !-luma importância para se pensar c1ue, desd e o início da formulação do s:tbt·r
r sicanaünco, Freuc.l considera lJUt' há algo do funcionamento do corpo que
tx irapola a sua dimcnsao como um iodo.
D1to d t: outra maneira, a sans fa<;ào .Hh·inda desse t·x trnro sc:-.ual aurm:-
ro 11co " l' ,·,··ili··
'" ' za em 1oc11·s cspcc1t1co
- - s no corpo, ou sept, · cm suas. par•tL•s. · r\ll1t1ns
;:, -

ano~ depois, cm ..,e u acla mado t rnbalh() />11/.râr., f df.,tino., dtl jJJtlú o, Freud de -,~rna
a n1cv1' da,s ru j soe~ :-.cxuats com o sendo a de "obter prazer l 1e o rgao
- " (FRF·T
· · D'
ll lJ IS] _2004, P· 15 1). ls~o nos pcrm1re pensa r u estatuto da pulsão com(; coi-rt:-
lanvo a no "º ;; ue
-1 , autoerot1sm
· · ~
u nu ljll l'. rangc :1• sua 111c1denc1a
· ·
no o- rgao.
- r:· p-..' >ss- ·1-
vel compreender melho r essa no ão pelo ~1odo como Lacan concebe;\ incidên-
cia da pulsão e . ua re1açao - com o autoero nsmo. .
No p rimeiro seminário de Lacan encontramos a s1.:guinre afirmação
acerca do aut
' e>erotismo:
· ,T · · o · 0 b.1ctos· de intc -
rara -se de uma Libido que consmu1
1165 1
Rev ist a Curing d 1 [ BP MG I n .3 6 1 p .16S 168 1 j an jun 1 2013
MdlCt'IO lliliP l lU Pint o

r sses e que, p o r uma e, penc d e n ·.,-,úo, de prnlong:1me11tu, d e p seudc',podes, '-l '


repane" (LAC ,\ N, l 1l)54l 198.1, p. 1.15). Dez anos mais tard e, l .:1c 111 re10111a r:t
es. c ponto p:lr:1 di zer yuc o autocro tismo "t'.• () critL·rio d o Surgmwn t<> t· d :1 repar
tt ão dos objeto~.. (l .r\ C .\ N , l l l)(i4j t ()H5, p. 180) . Porta nt o, se hú uma c,·:1s;1<> da
libido e just.1111en te porl}Ul' ,1 sa t1s(;11.; ào nunca L' plena, e sempre parcial, co11std l'
rando yue O ak o da pulsão e marc:1do pel() ret o rno l ' lll circutto. l ·'. 11t1T a zo n:1
crngen<1 e n :rntoc rotism o h:í () :1tTíl\'l'SSam c111"0 da pul são.
Rcrom :rndn a c:irt:l a 1:lic~s, h ·u1d sublinha ali t iuc 1> autoc roti s1110 fun
c1ona o rno u1na correnre separada do aloeroti sm o e 11:io l' cm hipot csc alg uma
substttuída por completo pelo último. Se a neurose e, por assi m d ize r, alocd) tica
- pois :1 trajetó ria cro tica é m arcada por uma identificação com a p es~oa amada
- isso n ão significaria que a vertente autocrótica da libido se c:,.; ting uiu . ( ) que
dife re, como ,·cremos posterio rmente cm r rcud, L' que na neurose as pc-;srn,~ e
as crn sas . ào conscrYadas na fan tasia .
. a p sico. e, mais especificamente n:1 p ara frcnia, t · di (c re nte. l\.l·'-~l'
ca. o o sujeito " parece ter realm ente retirado :--.ua libido das p ·ss< >as e d as coisas
d o mundo exterio r, sem tê-las subsrituído po r outras na f:1 nta s1:1'' (l ,. RI •'. L1D,
[19 14] 2004, p. 9 ). "Quando css.1 suhstirui :o o orrc na s parafrcnias", ,eg ue
Freud, "par ce tratar s de algo ·ccundário l ' fazer par te d e uma 1entat1va de ura
que busca reconduzir a libido de volrn ao obj ' to". l ·'.s -;c ponto é t rahalhad o pos
teriormente por Freud no artigo .- 1Jm-dr, da rwhdark 11a lll'lfro.rt· 1' 11r1 ps1m.rt'.
a neu rose o mccani . m o de resrabclcce r ,1~ rela c1 '~ do sujeito com a
realidade se dá as cu stas ele rc. tri ·ão do b so e na p si ose ena se "um,1 nov:1 re:1
lidade que não le,·anta mais a. mc~mas objcçõc, que a antiga, t.1ue fo1 abandona
da" (FRE D, [1 92411 9 6, p. 230). Em ou tros termo~, a " nc uro~e não repud ia :1
realidad e, apen as a ig nora; a p sicose a rq udi,1 e t ·nta suhst 1tuí la" (FRLU D,
[1924] 19 6, p. 231 ). alucinação e o delírio na psi ·osc apontarinrn para o succs
. o d o mecanism o d e substituição dal1uela realidade abalad a por uma outra.
~ l as e nas p sicoses atuais, as chamadas p sicoses ordinanas, o suic110
n ão apre: en ta cai fe nô m enos, co mo caractcri;,,í-las? l\ lilkr apont a certos índices
para o diagnóstico do que Lacan cham o u de " un,a deso rdem p n )\ ocada na jun
ção m ais íntima do se ntimento d e vida no sujei to'' (l .1\ C r\ , l 19S 19. 81 1998 ,
p. 565). T ais índices devem ser c nrcndidos como pontos de cx tcrnalidadcs social,
corpo ral e ·ubjea a. A cxtcrnali<lade social, por exemp lo, e nalt ece um cert o tipo
de rcspo ta <lo p sicúnco à realidade, pda estranhe;,a com o o s ujeito lida co m o
mundo que o cerca.
esses sujeitos o b serva se o (1ue Iiller chama de "rclaç:'i o negativa do
ujeito com sua identificação social" (M IJ .l ,1 •J i, 200 1), p. 1--1-). S:'io :llJUek~ ca:-os
em que o sujeito parl'ce <.: srnr desa justado na sociedade, se desligando das fun
çôes . ociais. Ao se desconectar, <> sujl'.ito vive n um vazio, " esp écie de fosso t!lle
co nstitui mi stcriosa m e nrl'. uma barr<.: ira in visívd" (1\1 11 .1,1•: R, _009, p. 1S). t>:ir:1

1166 1 Revista Curi n g d I EB P M(, 1 n. l( 1 f). lh', l (dl I Jdll j 1111 1 /O I\


__,.,.

AUTO ROT ISMO í PSICOSE ORDIN ÁRIA

~lillcr, essa c:u actcrísticl é comumentc encontrada na esquizofrenia, e esse


mudo de conceber psicosr se a. semelha a uma referência que encontramos cm
Freud, 110 re"to ,Li ,guis11 d(' introd11rào ao narcisismo (/9 14).
Freud justi fica a importância sobre esse estudo por ser " uma tentauva
de compreender a dementia praeco:x (K.raepeün) o u e quizofrenia sob a Ótica da
teoria da libido" (FREUD, l] 914] 2004, p. 97). E le supõe q ue existem dois tra-
ços fundamentais presentes nessas psicoses, a saber, o delírio de grandeza e 0
desligamento de seu interesse pelo mundo exterior. que, tão que se evoca é a
. eguinte: o desligamento presente na p arafrenia de crita por Fr ud , e ria 0
mesmo apo ntado por Miller ao falar das psico ses ordinária ?
O r orne-do-Pai como instaurador da o rdem sirnbóüca e no rteador do
que seria distinguível entre as estruturas clinicas passou a ser mais um intoma.
Precisa1íarnos, então, de o utros critérios para localizar a psicose. O que é impo _
to pelo mestre contempo râneo são os modos de gozo dos quais o sujeito faz u o.
eria a dinâmica corno o gozo se apresenta para esses sujeitos que nos indicaria
. e tratar de uma psicose? É aí que o conceito de autoerotismo poderia no aju-
dar, e considerarmos a dinâmica pulsional que ela implica na sua relação com o
objeto enquanto equivalente à dimen ão autística do gozo.
o retomar a formulação bleuleriana de que o autismo é o autoerori -
mo em o Eros, poderíarno definir como gozo autístico a au ência de laço, do
qual o Eros está excluído enquanto algo que faz exi tir a relação s xual. O que
está em jogo e assemelha com o que M iller chamou de mo nólogo da "aparola" ,
ou eja, da dimen ão gozosa da fala cm que não há comunicação, há autismo. É
ne a dimen ão pulsio nal do gozo que o sujeito aparece quando fala, marcado
pela au ência do Outro.
Que riona- e, portanto, se a noção de autoerocismo em Freud pode
er tomada como um modo de gozo que e tá para além do om -do-Pai, mar-
cada pela ausência da matriz simbó lica outo rgada pelo Outro. e a psicose o rdi-
nária é dada ri posterio,i, pelo efei to retorno, é po r se tratar mai. do próprio per-
cur o da pulsão no modo como o , objetos de interesse engendram esse circuito
do que propriamente à sua relação com o significante? e is. o valer como crité-
rio diagnóstico, devemos estar atentos, po rtanto, ao modo autista como o sujei-
to goza de eu aparelho de " lalíngua" .

Re vis t a Cur i nga J EB P MG J n . 36 1 p.165 168 J ja n jun 1 2013 1167 1


~a 1Lelo R11zo LL n Pinto

REFERÊNCIAS

1·Rl·..l 'D• S,. •·\ gu1,;,1 dl' 1ntroduça11 :in 11arc1~1smo


. (1914)· 111'· - -- . /:smlos solm a /wm/oo,a ,., do
· • · 1 · \11
,,,.-omr1111ft ( oordcnaçao g r.,I da trnduçllo ,u11 t >Crto • · · 1 hnns Rto de .
janeiro: Imago •
2004 p 97-
· ·

119. (Obra~ p teológica de Sigmund Freud. ,·. 1). . .


FRFl'O. s ·am 125 (1899). ln: _ __ . p11/,/imrõrs prr-psira11olíllw r esboços 111,d,tos (1886-1889).
Dire ão-geral da traduçào de l:wme alomào. Rio de Janeiro: 1mago, 1976. P· 28 1. (Edição "lan
dard br,,;ilctra <las ohr:is psicc;lúgtcas completas de Sigmund Freud, v. 1).
FRFl 'D. S. Puls11c~ e Jesunos das pulsões (1915). ln: ___. /;srritos sofm a psicologia rio 111co11sc1e11-
lr. Coordenação-geral da tradução Luiz Alberto Hanns. Rio de Janeiro: Imago, 2004. p. 133-1 J
(Obra. p. tcológica. de :igi1mnd Freud, v. 1).
FRl T D. : . :\ perda da realidade na neurose e na psicose (1924). ln: ___ . O e,,o e o id e outros
trabalhos (192:-1925). Dircçfo-geral da tradução de Jayme alomão. Rio de Janeiro: Imago, 19 6.
:::d1çã . tandard brasilcir:i das obras psicológica completas de Sigmund Freud, 1969).
LA .:\ l'\, J. De uma 9uestão preliminar a mdo tratamento possível da psicose (1957 1958). ln:
_ __ . 1-.srritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 537-590.
L \ ,\ ?\, J. O semmáno, li,,,o 1: os esrritos téC11icos de Freud (1953-1954). Texto estabelecido por Jac9ues-
.\ lam ~t:.iller. \'ersão brasileira M. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
L\ :\~. J. O sm1111ano, livro 11: os quatro conceitos j,111do111entais do psicanálise (1964). Texto estabeleci-
do por Jacque -Alain Miller. Versão brasileira ~[. D. Magno. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
M1LLER, J. . F.feito retorno à psicose ordinária. Tradução de hli a oares. OP(ào Lnraniana
011/i11e. n. 3, 201O. Disponível em:
<http:/ / ,\,\·w.opcaolacaniana.com.br/ pdf/ numcro_3/ efcito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf
> . Aces o em: 20 jun. 2013.
f'vULLER, J.- . O 111011ólogo da aparo/a. Tradução de Elisa Monteiro. Opçâo LAro11io11a 011line, n. 9,
2012. 0 1 ponívcl em: <http://\\',n,·.opcaolacaniana.com.br>. Acesso em: 20 jun. 2013.

\ 168 \ Revis t a Curi nga I EBP


MG I n.36 \ p. 165 - 168 1 jan jun 1 2013

Você também pode gostar