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mesm o".

O futuro em si consistia em nada menos que o gran de divisão entre hum ano e não humano abolida e a vulnerabilidade
"movimento de ,·olta às origens", o prelúdio à "reconciliação uni- radical do ser hum ano supri da pelas potencias do não humano.
versal", que incluiria a reconciliação do ser hum ano com a natu- Capitahsmo e tecnoc1ência seriam os demiurgos dessa obra.
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reza. Essa função escatológica da técnica seria de longa duração. À medi da que se inicia o sécu lo xx1, o cami nho para esse ]
Ao cont rano do que amiú de se supô s, essa liberação desim- mrmdo da 11at11rezafabricada tdoserfabricávtl emí bem demarcado.
pedida e dese nfrea da de uma potên cia quase ilimitada de fabri- A tecnologia finalmente conseguiu se estabelecer como o destino
cação não levou necessariamente à dcsm1tologização do mundo. ontológico de todos os seres vivos.9 A questão já não consiste em
Por outro lado, e diga-se o que se disser, nada garan te que a es- saber se o irracionalismo é capaz de anda r de mãos dadas com a
pecie humana tenh a se desvinculado por comp leto de qualquer cecnolatria.'º Não se trata mais de preconi1..á la ou opor-se a ela.
cone xão com o resto do mun do vivo. Os seres hum anos certa - Que a "técn ica antro pofá gica" "estu pra", degrada ou despoja a
men te se mun iram de uma apare lhage m exteriorizada, mas, se natureza, que ela "devora os homens e tudo o que é humano", que
esse fosse seu objetivo, isso de mod o algum foi capaz de "desa- ela cons ome seus corp os com o combustível e seu sangue como
nimizar" por intei ro o univ erso com o tal. Poderia até ser que ri- "líqu ido de refrigeração" ou que ela "assa ssina a ...,da" (Ern st
,·esse anex ado e digerido algun s dos mistérios. Mas longe disso. Niekisch), tudo isso já sabemos, mas não é tudo.
Paradoxalmente, e talvez de modo inesperado, a tecnologia rein- Para muit os de noss os cont empo râne os, a tecnologia~ hoje
seriu a hum anid ade em um mov imen to de cunh o cósmico. Ela uma realidade ao mesm o temp o mate rial e imat enal. psíquica.
precipitou o adve nto não tanto de um universo asseptizado e in- pessoal e interior. Ela já não perte nce apenas ao mundo exterior.
capaz de acom odar diferentes formas de vida, mas de um mundo mem bran a que defin e a front eira entre um inten or 1,.a hurnam-
no qual não pode mais haver um exter ior que não seja calculável dade) e um exter ior (a natureza). É nossa clínica, o lugar em que
e, por cons eguin te, apropriável. se manifestam, em sua sombria clareza, as três realidades cons n-
O capitalismo teria sido um dos impulsionadores do projeto tuint es do mun do vivo, a saber, a realidade biológica, orgânica,
de um mundo sem exte>-ior inaprop>-iável. Não se tratava, a rigor, vegetal e mineral dos corp os de qualquer espécie, a realidade pst-
de um esfor ço de desli game nto do hum ano em relação a outra s quic a dos afeto s e a reali dade social das troca s, da linguagem e
das interações. 11 É por inter méd io dela que se realizam hoje em
form as de vida, corn o se tem repe tido com dema siada frequ ên-
dia a atividade do pens amen to e o traba lho de figuração. simboli-
cia. Em sua essência, a natu reza certa ment e deveria deixar de ser
zaçã o e mem oriza ção. É nela tamb ém que jazem as reservas de
enten dida com o urna total idad e anim izad a e autô nom a. O ser
hum ano se arrog ou a taref a de subju gá-la e marc á-la com seus 9. Sobre as dimensões geológicas da 1ecnolog,a, ler ~1er K. Haff, "Ttchnologi, as• G~
ological Phenomenon: lmplications for Human Well-&1ng". m Jan Zalasie..,in et ai., A
rastros e pegadas. Mais ainda, poré m, o ser então situado no cen-
Stratigraphical Basis for tht Anthropocnit. London: Geological Sockt)', 104= 301-309. Ver
tro do universo e o mun do deveriam a parti r dali ser o resul tado também Bronislaw Szcrszynski, "Viewing thc tcchnosphcre in an 1ntcrpla.nctary hgh1",
de um proc esso de fabricação calculista. A estru tura fund amen - Tht Anthropocrnt Rtvitw, 19 out.10 16: <https://doLorg/10.117/1053019616670676,.
n11son tt cultr dt ta r«hnologtt
tal da maté ria deve ria final ment e ser tresp assad a e revelada, a 1o. Jcffrey Hcrf, Lt Modmusmt riacnom1a1rt Hamt dt la
alLY sourctS du na..'ismt. Paris: L'Échappêc, 1018 (1q84).
11 Tristan Dagron, Pmslt tt clin1qu~ dd'1dtnnrl. l'Bri$, Vnn, 101q, p 41
8. KostaS Axelos. Ma,x, fX'IS1!IIT dr la 11dmiq11e. Pans: uce. 1974 '19611 \'OI. 1, p. 8 e YOl. 11, p. 82-Bs,

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sonh o. O que se pode dize r sobr e as vivências aluc inató rias ca- religião apen as no sent ido de um casa men to inesp erad o entre
racterísticas do nosso temp o e, naquilo que se refere aos hum a- o mun do dos mistérios, o mun do imaterial e o mun do da racio-
nos em particular, sobr e a atividade figurativa, sobr e a massa de nalidade. 15 Basta ver como, nos Estados Unidos, por exemplo,
projeções paranoicas ou sobr e o material psíquico pré-f orma do a possibilidade de um sublime tecnológico é repro duzi da tanto
que com tama nha avidez consumimos?
12 em histó rias de ficção científica quan to nas profecias transuma-
Não resta dúvida de que noss o temp o está se esgotando. nistas. São muit o pouc os os que ainda duvidam das raízes New
Ainda assim, a aventura humana na Terra está longe de se ver aca- Age da sociedade digital ou das novas formas de espiritualidade
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bada, e as mutações da espécie também. Mas as perspectivas que típicas do neognosticismo informático. As condições para um
eles traçam partem de um pont o em que o trabalho de fabricação reencantamento do mundo estão reunidas em discursos sobre as
de um mun do sem exte rior incalculável e inapropriável passa a nanotecnologias, as biotecnologias, as tecnologias da informação
ser tudo. Quase não há mais nenhuma divisão entre o humano e ou as ciências cognitivas.17 Até mesm o nos sistemas contempo-
râneos de engenharia e no tecnoxamanismo se veem diluídas as
a matéria, o hum ano e a máquina, ou entre o humano e o objeto 8
técnico, a coisa. De agora em dian te, o hum ano não está mais fronteiras entre religião, ciência e mitologia.'
Con sum ada essa muta ção, inici a-se assim outr o tipo de
apenas acoplado à máquina, à matéria e ao objeto. Não está mais
simplesmente alojado em suas dobr as e pregas. Ele literalmente prov a exist enci al. O ser agor a é post o à prov a apen as com o
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enco ntro u nelas os lugares privilegiados de sua encarnação, e um conj ugad o indis soci avel men te hum ano e não hum ano. '
elas, em cont rapa rtida , estão em processo de se recobrir, se não A tran sfor maç ão da forç a em pala vra final da verd ade do ser
com seu rosco, pelo men os com sua máscara. '.\Ião existe mais a sinaliza o início da era mais rece nte do hom em, a era histo rial,
a era do ser fabricável em um mun do fabricado. Para essa era,
tecnologia de um lado e, do outro, aquilo que a filosofia ocidental
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costumava chamar de a "verdade do ser". Os dois agora formam enco ntram os um nome: bruta lism o, o gran de fardo de ferro do
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um só feixe, uma única morada. Pelo menos é essa a nova crença. noss o temp o, o peso das maté rias brut as.
Pode-se dizer, assim, que a era da alienação, cal com o a era
chacologique par la cybemenque: te cas du projct WebBot", Raisons pol1liqun 4, n 48,
da secularização, chegou ao fim. A tecnologia não é mais simples- 2012: 51-63; e Abou Farman, "Cryomc Suspcnsion as Eschatological Technology in the
men te um meio, uma ferra men ta ou mesm o um fim. Ela se fez Secular Age". in Amomus C. G.1\1. Robben (org.), A Companion ro tht Anthropology o[Dt·
verbo e carne. É a figura epifânica da matéria viva, doravante eco- ath Hoboken: Wiley-Blackwell, 2018.
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nomia, biologia e escatologia em simu ltâne o. Não se tomo u l'rnrrtprist. Paris: Fayard, 2017.
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DaYles, Tht Happmess lndustry, How tht GOl'ffllmtnl and Big Businm Sold Us digicale", trudrs digitalrs 5, 16 abr. 2019: 56-65.
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13- Ma.nin He1dtgger, Ptnsln dimmctS. Sur la gt11lst dt la mltaphysiqut, dt la scirnct tr dt
19. Yulc Hui, 0n 1M Exislma efDpl Obj«tt. Minneapolis: Univmltyof Minnesota Press, 2016.
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14, Ler Michael S. Burdctt. Escharo/ogy and tht Ttthnologícal f'llrun
Dunod, 1970 (1966]. Ler também Laurent Sulde r, "'New Brutallsm', 'Topology' and
2017. Para dois estudos de caso, ~r Cmlia Calheiros. "La fabrique d'une proph~tie e,.

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