Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
P A R T E
A PESQUISA EM
CIÊNCIAS HUMANAS I
CAPÍTULO
O Nascimento do Saber
Científico 1
OS SABERES ESPONTÂNEOS
O homem pré-histórico elaborava seu saber a partir de sua experiência e
de suas observações pessoais. Quando constatou que o choque de dois
sílices, ou da rápida fricção de duas hastes secas, podia provocar uma
faísca ou uma pequena chama capaz de queimar folhas secas, havia cons-
truído um novo saber: como acender o fogo. Esse saber podia ser reu-
tilizado para facilitar sua vida. Pois aqui está o objetivo principal da
pesquisa do saber: conhecer o funcionamento das coisas, para melhor
controlá-las, e fazer previsões melhores a partir daí.
18 L AVILLE & D IONNE
A intuição
INTUIÇÃO percepção
imediata sem Um saber desse modo construído é aceito assim que uma primeira com-
necessidade de
intervenção do preensão vem à mente. Assim, da observação que o Sol nasce todos os
raciocínio (Aurélio) É, dias de um lado da Terra e se põe do outro, o homem pensou, por muito
por excelência, o tipo tempo, que o Sol girava em torno da Terra. Essa compreensão do fenôme-
do saber espontâneo.
no pareceu satisfatória durante séculos, sem mais provas do que a sim-
ples observação.
Em nossa linguagem de hoje, chamam-se tais explicações espontâ-
neas de “senso comum”, às vezes de “simples bom-senso”. Ora, o senso
comum é, com freqüência, enganador. Acreditar que o Sol gira em torno
da Terra é uma ilustração patente disso. O bom-senso faz-nos dizer mui-
tas outras desse gênero. Quem, por exemplo, não ouviu a declaração de
que os diplomados são “desempregados instruídos”, ao passo que a taxa
de desemprego é inversamente proporcional ao nível de escolaridade;
ou que os segurados sociais “são preguiçosos”, a despeito da considera-
ção das condições reais do emprego; ou que as mulheres são menos
capazes de raciocinar matematicamente que os homens, enquanto que,
A C ONSTRUÇÃO DO S ABER 19
A tradição
Resta que, quando tais explicações parecem suficientes, deseja-se di-
vulgá-las, compartilhá-las. É desse modo que se elabora a tradição, prin-
cípio de transmissão de tal saber.
Na família, na comunidade em diversas escalas, a tradição lega sa-
ber que parece útil a todos e que se julga adequado conhecer para con-
duzir sua vida. Esse saber é mantido por ser presumidamente verdadeiro
hoje em dia, e o é hoje porque o era no passado e deveria assim perma-
necer, pensa-se, no futuro. A tradição dita o que se deve conhecer, com-
preender, e indica, por conseqüência, como se comportar. Diz, por exem-
plo, qual é o melhor momento para semear o campo, para lançar sua
rede; ensina quais são as regras básicas de convivência, como curar tal
ou tal doença; pode chegar a desaconselhar a ingestão de leite com man-
ga, como em algumas regiões do Brasil, ou afirmar que um dente de
alho acaba com a gripe...
Os saberes que a tradição transmite parecem, às vezes, não se base-
arem em qualquer dado de experiência racionalizada. Assim, transmite-
se, em uma sociedade como a nossa, a superstição de que o número 13
traz azar — a ponto de, em certos hotéis ou edifícios públicos, não ser
contado o décimo terceiro andar! Mas, em relação a outras crenças do
gênero, pode-se suspeitar da validade da experiência. Assim, acreditar
que passar sob uma escada dá azar vem provavelmente de infelizes ex-
periências reais (pode-se imaginá-las facilmente!). Do mesmo modo,
bem antes de se dispor dos conhecimentos trazidos pela ciência moder-
na sobre as conseqüências do incesto e dos casamentos consangüíneos,
a tradição proibia essas práticas na maioria das sociedades: pode-se su-
por que a observação de suas conseqüências teria oportunizado um sa-
ber espontâneo.
20 L AVILLE & D IONNE
Crença e experiência
O ritual da chuva e o Curare são, ambos, elementos integrantes das tradições culturais dos indígenas brasileiros. No
caso do Curare – veneno usado nas flechas para paralisar os animais – pode-se deduzir que esse saber provém da sua
experiência como caçadores. Já para o ritual da chuva não podemos dizer a mesma coisa.
A autoridade
Com freqüência, sem provas metodicamente elaboradas, autoridades se
encarregam da transmissão da tradição. Desse modo, a Igreja Católica
decidiu, muito cedo, regras para o casamento (uniões proibidas entre
primos, proclamas, declarações de impedimentos conhecidos) tendo
como objetivo prevenir as uniões incestuosas e inclusive consangüíne-
as. Impõe sua autoridade aos fiéis por meio dos preceitos ensinados pelo
clero. Todas as religiões transmitem, portanto, sua autoridade através de
saberes que guiam a vida de seus fiéis sem que seu sentido ou origem
sejam sempre evidentes. Não deixam de ter um sentido ou uma origem.
Assim, por exemplo, a proibição de comer carne de porco entre os muçul-
manos provém provavelmente do desejo de se proteger da triquinose,
doença provocada por um parasita que se encontra, muitas vezes, no
suíno e da qual não se sabia exatamente como se preservar em determina-
da época. Mas, atualmente, o crente que respeita o preceito conhece sua
origem? Tal saber, do qual se encarregam as autoridades, guarda, assim,
para aqueles que o recebem, seu caráter de saber espontâneo.
Sua força deve-se ao fato de que nem todos podem construir um
saber espontâneo sobretudo o que seria útil conhecer. Daí a comodida-
de, para conduzir sua vida, de um repertório de saber pronto. Daí tam-
bém, em contrapartida, o peso que possuem as autoridades (padres,
médicos, bruxos, dirigentes, pais, professores, etc.) que o transmitem e
as instituições (igrejas, escolas, etc.) que servem de quadro à transmis-
A C ONSTRUÇÃO DO S ABER 21
Autoridade e credibilidade
Entre 17 e 22 de setembro de 1997, o IBOPE realizou 2000 entrevistas para veri-
Uma pesquisa de
ficar o grau de influência que exercem os principais agentes de socialização so- opinião oferece um
bre a educação dos adolescentes. retrato estatístico médio
O resumo dos resultados foi publicado pela revista Veja n.º 42, de 22/10/97 de uma população
escolhida,
Família Escola Amizades Igreja representativa, em
princípio, do conjunto
Muita influência 82% 78% 61% 63% da população com as
Pouca influência 11% 14% 20% 18% mesmas características.
Alguma influência 4% 6% 10% 10% Uma população com
outras características —
Nenhuma influência 2% 2% 7% 7% idade, ocupação, nível
Não sabe 1% 2% econômico ou social,
etc. — nela não se
De quem você acha que esses adolescentes estariam mais propensos a rece- reconheceria. Nem
ber conselhos? Essa tendência prevaleceria para qualquer assunto? mesmo indivíduos
específicos
supostamente
representados pela
amostragem. Você, por
exemplo, o que teria
respondido a essa
pesquisa?
são desse saber. Esse peso varia, entretanto, segundo a confiança recebi-
da. Assim, um descrente dará pouca autoridade ao padre e, por conseqüên-
cia, ao saber do qual é depositário. O valor do saber imposto repousa,
portanto, em nosso consentimento em recebê-lo, e esse consentimento
repousa, por sua vez, na confiança que temos naqueles que o veiculam.
O SABER RACIONAL
Muito cedo, o ser humano sentiu a fragilidade do saber fundamentado
na intuição, no senso comum ou na tradição; rapidamente desenvolveu
o desejo de saber mais e de dispor de conhecimentos metodicamente
elaborados e, portanto, mais confiáveis. Mas a trajetória foi longa entre
esses primeiros desejos e a concepção do saber racional que acabou se
estabelecendo, no Ocidente, há apenas um século, com uma forma dita
científica. Nesse estágio, um sobrevôo histórico impõe-se para que nos
lembremos dessa trajetória.
Indução e dedução
Um raciocínio dedutivo parte de um enunciado geral e tenta aplicá-lo a fatos particulares: do geral aos
particulares, poder-se-ia escrever pluralizando o vocábulo particular. Assim, se os homens, em geral, são
mortais, um homem particular e cada um dos outros particulares que com ele se parecem, enquanto ho-
mens, são mortais.
O raciocínio indutivo vai no sentido contrário: de particulares — ainda no plural — para o geral.
Assim, se se observa que um homem particular e os demais homens particulares são mortais, pode-se
inferir, ou seja, tirar uma conseqüência dos fatos, que os homens são mortais.
O raciocínio dedutivo permite ampliar conhecimentos já disponíveis a outros fatos para verificar,
especialmente, se estão de acordo. O indutivo permite antes construir novos conhecimentos, chegando,
por dedução, à ampliação desses conhecimentos.
Esses tipos de raciocínios encontram-se no centro de um procedimento metódico de construção do
saber.
A C ONSTRUÇÃO DO S ABER 23
Gravidade
Universal
A observação da queda da maçã, que teria inspirado a Newton a lei da gravidade, é um exemplo tão freqüentemente
utilizado, como aqui pelo desenhista Gotlib, que acabou se tornando caricatural. Na realidade, foi a partir da seqüência
de múltiplas observações, experiências e reflexões que Newton acabou por enunciar a lei da gravidade universal.
A ciência triunfante
Durante o século XVIII, os princípios da ciência experimental desenvol-
vem-se por meio de múltiplas aplicações. As descobertas são muitas,
sobretudo no campo dos conhecimentos de natureza física. Pois, no domí-
nio que hoje denominamos ciências humanas, o procedimento especu-
lativo dos filósofos predomina. O que não impede que façam grandes
reflexões sobre a condição do homem social e gozem de uma considerá-
vel influência na sociedade, particularmente junto às classes dominantes.
Não chamamos, aliás, em vão o século XVIII de o “Século das Luzes”,
nome da corrente de pensamento elaborada e difundida pelos filósofos!
Detalhe de um projeto para abrigo de bondes em frente à agência Viação Elétrica (1919, Museu Histórico Abílio Barreto
– Belo Horizonte).
Empirismo
O conhecimento positivo parte da realidade como os sentidos a perce-
bem e ajusta-se à realidade. Qualquer conhecimento, tendo uma origem
diferente da experiência da realidade — crenças, valores, por exemplo
—, parece suspeito, assim como qualquer explicação que resulte de idéias
IDÉIAS INATAS Em
inatas. filosofia, idéias
inerentes à mente
humana, anteriores a
Objetividade qualquer experiência
(Petit Robert).
O conhecimento positivo deve respeitar integralmente o objeto do qual
trata o estudo; cada um deve reconhecê-lo tal como é. O sujeito conhe-
cedor (o pesquisador) não deve influenciar esse objeto de modo algum;
deve intervir o menos possível e dotar-se de procedimentos que elimi-
nem ou reduzam, ao mínimo, os efeitos não controlados dessas interven-
ções.
Experimentação
O conhecimento positivo repousa na experimentação. A observação de
um fenômeno leva o pesquisador a supor tal ou tal causa ou conseqüên-
cia: é a hipótese. Somente o teste dos fatos, a experimentação, pode
demonstrar sua precisão.
28 L AVILLE & D IONNE
Validade
A experimentação é rigorosamente controlada para afastar os elementos
que poderiam perturbá-la, e seus resultados, graças às ciências matemáti-
cas, são mensurados com precisão. A ciência positiva é, portanto, quan-
tificativa. Isso permite, se se chega às mesmas medidas reproduzindo-se
a experiência nas mesmas condições, concluir a validade dos resultados
e generalizá-los.
Leis e previsão
Sobre o modelo do saber constituído no domínio físico, supõe-se que se
Augusto Comte, podem igualmente estabelecer, no domínio do ser humano, as leis que o
considerado um dos
pais do positivismo, determinam. Essas leis, estima-se, estão inscritas na natureza; portanto,
escrevia que o caráter os seres humanos estão, inevitavelmente, submetidos. Nesse sentido, o
fundamental do conhecimento positivo é determinista. O conhecimento dessas leis per-
positivismo é “olhar
todos os fenômenos mitiria prever os comportamentos sociais e geri-los cientificamente.
como sujeitos a leis É pois apoiando-se no modelo da ciência positiva — o positivismo
invariáveis”. — que se desenvolvem as ciências humanas, na segunda metade do século
XIX. Este modelo perdurará, e pode-se encontrá-lo até os nossos dias.
Nós voltaremos a falar a esse respeito no próximo capítulo.
BERNARD, Claude. Introduction à l’étude de la médecine expérimentale (1865). Paris: Garnier-Flammarion, 1966, passim.
A C ONSTRUÇÃO DO S ABER 29
PRÁTICA