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DA ESTUPIDEZ HUMANA
Opúsculo
4 Aristóteles diz no Órganon que o nome das coisas podem ser: equívocos, unívocos e análogos.
Dos tomistas, quem melhor sistematizou a questão da analogia foi Santiago Ramírez, O.P., em sua
extensíssima obra De analogia secundum doctrinam aristotelico-thomisticam. De modo geral, há dois
tipos principais de analogia, a saber: Analogia de Atribuição e Analogia de Proporcionalidade.
Analogia de Atribuição divide-se em Analogia de Atribuição Intrínseca e Analogia de Atribuição
Extrínseca, enquanto a Analogia de Proporcionalidade divide-se em Analogia de Proporcionalidade
Própria e em Analogia de Proporcionalidade Imprópria.
Analogia de Atribuição Intrínseca é aquela que se dá quando o significado pelo nome se encontra
realmente em todos os analogados, ou seja, nos sujeitos do qual se predica esse nome, de modo,
porém, desigual por natureza - no primeiro analogado. Neste, de modo perfeito e principal e nos
demais analogados de modo imperfeito e secundário. É deste modo, contudo, que se conhece a
Deus na Metafísica.
Analogia de Atribuição Extrínseca é aquela que se dá quando o significado pelo nome encontra-se
tão somente em um dos analogados, no primeiro deles, ao passo que nos demais, os secundários,
não se encontram e jamais se aplica tal nome, senão por certas relações com o primeiro analogado.
O prof. Daniel Scherer, o qual somos estritamente caudatários, elucida-nos com um exemplo: «É o
caso clássico do são: quem tem saúde, quem é são, (ou seja, o primeiro analogado) é o animal,
enquanto a urina pode dizer-se sã por indicar a saúde do animal, o remédio, o alimento, as
caminhadas por causar a saúde do animal, etc». (A raiz antitomista da modernidade filosófica)
A Analogia de Proporcionalidade é equivalente a qualquer proporção matematizável. Ademais, pode ser
traduzida para a linguagem de notações quantificáveis: a/b = c/d → 10/2 = 5/1 ou A está para B assim como C
está para D {...}. Há dois tipos de Analogia de Proporcionalidade:
Analogia de Proporcionalidade Própria, cuja relação proporcional significada pelo nome análogo é
realizada de modo próprio em ambos os pares dos termos. A título de exemplo, recorreremos
novamente a Scherer, que nos diz: «a relação entre os sentidos e as espécies sensíveis é
proporcionalmente análoga à que se dá no intelecto e as espécies inteligíveis, e em ambos os casos
o nome conhecimento se toma em sentido próprio». (Idem.)
Analogia de Proporcionalidade Imprópria é metafórica. Quando dizemos “visão de mundo”, queremos
fazer uma analogia metafórica de proporcionalidade com a visão corporal. Neste caso, o nome
“visão” se aplica ao intelecto, à razão, de maneira imprópria, conquanto sirva de figura retórica à
linguagem e ao discurso. Esta analogia última é metafórica assim como no exemplo dado no corpo
do texto. A hiena, como animal superior - pois quanto mais sentidos internos, mais esses brutos são
elevados -, possui todos os sentidos externos, e mais os sentidos internos com sede no cérebro, a
saber: sentido comum, a memória e a estimativa, e é esta última que faz dela é uma exímia caçadora
selvagem, dado seu instinto predador. Deste modo, quando se diz que a hiena ri, fala-se por analogia
de atribuição imprópria, uma vez que, como já se disse, para sorrir é necessário ter senso de humor
e para tanto é indispensável a consecução de um intelecto, que é imaterial, uno e oriundo da alma
racional.
Sobre os tipos de analogia, somos caudatários do Padre Penido em seu clássico A função da
Analogia em Teologia Dogmática, 1946, p. 29 ,o qual arremata com precisão: «na atribuição, há
várias relações para um único termo; na proporcionalidade, ausência de termo único, mas
simplesmente relações proporcionadas entre si». Estudaremos, pois, as analogias ainda neste tomo.
5 In Aristotelis Libros Peri Hermeneias et Posteriorum Analyticorum Expositio, cum textu ex
recensione leonina. Cura et Studio R. Spinazzi. Taurini: Marietti, 1955.
marcha, em busca da ciência. Com efeito, aquele que busca a sabedoria, enquanto
stupidus, isto é, ao passo que é incapacitado a algo, enquanto que se move pela
estupefação e pela admiração filosófica, há de fazer as perguntas certas para que
se chegue às devidas respostas, ao fim apodíctico.
Mas a primeira dificuldade que se insinua é que não se pode se soltar se se
desconhece a atadura6, ou seja, ao desconhecer o problema que implica a ciência,
“causa final” da lógica, é impossível chegar em algum porto seguro. A Ars logica,
esta flor exótica no jardim da ciência, que é como nenhuma outra, propedêutica às
demais ciências e demais artes, entra exatamente aqui. A seguir vamos começar
desatar as ataduras, porque a seu modo, a Lógica é consoladora da estupidez e da
ignorância e o faz como uma mãe acalenta seu filho utilizando-se para tanto a
própria razão a qual tem por fim o alcance único e indiscutível da verdade.
Um agente só se põe a fazer algo tendo em vista um fim. Dito isto, a fim de
desatar a primeira atadura, não é raro observarmos, contudo, um estudante
perguntar-se "Por que estudar a fórmula de Bháskara?" ou congêneres. Respondo.
A Revolução Científica arrancou à força todos os porquês de certas ciências
especulativas e deixou-nos sob o jugo da imposição ditatorial das matemáticas (ens
quantum), como na Física e na Química atuais. Ora, a matemática, ente segundo a
quantidade, é uma ciência média (scientiae mediae7). A Dinâmica não dá causa final
à Cinemática, por exemplo. Na Física moderna, você aprende o funcionamento e o
mecanismo de seus sujeitos, mas não faz ideia dos porquês da maioria deles.
Assim, as Leis de Newton são aplicáveis à realidade, mas como toda Lei - assim
como no Direito, onde há a hermenêutica jurídica - há de se ter um operador que as
interprete e que retire o véu que há por trás de certas leis.
Aristóteles, em sua Filosofia Natural, já havia resolvido isso com o método
das 4 causas: a mais importante delas, aliás, é a Causa Final - esta que se
aplicável, faria o estudante saber o motivo fundamentado pelo qual a fórmula de
Bháskara é importante. Ademais, se algo não se dá na Metafísica, como é o caso
da ciência moderna, a partir do séc. XVI e daí ladeira abaixo, justamente por
abandonar a Filosofia Primeira, nem ciência o é (pois como algo não consegue se
dar enquanto ele mesmo? Se um ente é aquilo que é, como não pode dar-se em si
mesmo?). No mínimo é um abortivo de ciência, como diz Calderón 8.
Esta incoação da ciência tem seu início após a morte de Santo Tomás,
especialmente com a condenação de suas teses por Étienne Tampier junto ao
aristotelismo que chegara ao Ocidente impregnado de filosofias árabes,
especialmente o averroísmo latino encabeçado por, dentre outros, Singer de
Brabante. Sucede-se aí uma decadência intelectual que culmina mais tarde, séculos
depois, com a publicação de Magna Didacta de Jean Amos Comenius, que promete
Entende-se por ciência ao mesmo modo de filosofia uma vez que ambas
debruçam-se sobre a mesma coisa, o mesmo sujeito: a realidade. Esta que, por
evidência, é una. Se vemos um carro se chocar contra um poste, vemos e ouvimos
tudo ao mesmo tempo, conquanto cheguem a nós por dois sentidos externos
diferentes, a saber, a visão e a audição, que são unificados em nosso intelecto pelo
sentido comum. Então, se há uma adequação da realidade ao intelecto ao se
constituir uma verdade e esta mesma realidade una é sujeito (ou objeto formal) da
ciência e da filosofia, logo, ambas só podem significar a mesma coisa.
16 Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, Edições Santo Tomás, 2016, p. 25
A Lógica, que conduz o ato da razão a fim de alcançar seu fim com ordem,
com facilidade e sem erro, consoladora de nossas iniquidades intelectuais, utiliza-se
da própria razão a qual tem por fim o alcance da verdade ou da ciência
propriamente dita. Assim, nosso pensamento deve ser ordenado, preciso e coerente
para que se mature a inteligência, que é o que fará mais adiante o estudo da lógica,
esta ciência-arte que não é um fim em si mesma, senão que este “prêmio” dada por
ela que não é nada mais do que pensar retamente estará, pouco a pouco, a serviço
do conhecimento da verdade. É para esta meta última a que se há de orientar o
pensamento lógico17.
Então, para que se entenda cabalmente isto em nosso Tratactus Logiae,
daremos uma breve Introdução à Filosofia que servirá de umbral à Lógica, não
obstante uma faça parte da outra, apresentando as primeiras noções filosóficas
relativas aos conceitos que servirão de pedra angular à Lógica Menor e Lógica
Maior, propriamente ditas. Começa-se portanto pela noção do que primeiro nos
chega aos sentidos, seguido dos métodos para reconhecimento daquilo que
circunda a realidade, o que é próprio do lógico, do físico e do metafísico, sua
simples evidência inicial.
Explicaremos o ente e suas implicações na realidade e na mente do homem,
motivo aliás da famosa Querela dos Universais, questões que se propagam ao
longo do tempo na História da Filosofia e chega-nos até nós como problema
insolúvel nos dias hodiernos, como em, por exemplo, o Tractatus Logico-
Philosophicus, de Wittgenstein, de 1921. Daremos em seguida as substâncias, os
acidentes, as quididades e os processos de definição e divisão, dando também as
perguntas pelas propriedades das coisas e se estas se dão em tal ou qual coisa,
sempre seguindo uma reflexão de ordem lógica até chegarmos às três operações
do intelecto, coração da chamada Lógica Menor.
Como a Lógica é uma ciência propedêutica, convém iniciar sabendo como as
coisas chegam até nós e como nós as abstraímos. Ademais, debruçaremos sobre
seu sujeito, os entes de razão, e como nós tratamos as coisas reais em relação ao
intelecto. Em seguida, aparecerá como a Lógica pode ser entendida como ciência e
arte ao mesmo tempo, quais seus sujeitos e definições; suas propriedades: sua
unidade, sua verdade e sua bondade enquanto universal, isto é, enquanto
necessidade. Daremos por fim o método da Lógica, sua relação com a linguagem e
a gramática (causa material, causa formal, causa eficiente e causa final) e sua ordo
disciplinae. Na Lógica Maior daremos vazão à Lógica em si mesma, os Predicáveis,
os quais estarão a Isagoge de Porfírio como introdução ao Órganon, em seguida
estudaremos propriamente as Categorias, depois as Analogias e seus tipos e
modos, os Transcendentais, as Proposições e suas implicações, o tratado da
Demonstração e fecharemos com a Sofística, abarcando assim a totalidade de
nosso tratado.
17 Álvaro Calderón, Umbrales a la Filosofía: cuatro introducciones tomistas, 1ª ed., Moreno, edição
do autor, 2011, p. 43.
Acerca do empenho deste tratado
Sobre o trabalho e sua virtude meritória, diz Santo Tomás que nem sempre
uma obra possui maior mérito por ser mais laboriosa e difícil. Depois dá um quadro
geral sobre os dois modos pelos quais uma obra pode ser concebida à duras penas:
i. pela grandeza da obra, e assim a grandeza do trabalho deve pertencer ao
aumento do mérito porque a caridade, ainda que possa converter as coisas terríveis
e violentas em fáceis e quase nulas, não deve diminuir o trabalho, antes porém,
deve fazer acometer maiores empresas - porquanto, mais meritórias; pois, como diz
S. Gregório, quando existe, faz grandes coisas;
ii. por defeito do agente mesmo, o qual tem em vista um fim, pois a cada qual
é penoso e difícil o que não faz com pronta vontade; e tal trabalho diminui o mérito e
é anulado pela caridade18.
Espero que esta obra não tenha sido concebida por defeito do agente, pelo
menos de forma culposa, levando-se em conta as debilidades do mesmo. Sabe-se
que “de todos os bens, o mais espiritual é a sabedoria” e isto, como já dito, não se
alcança individualmente. Ao erigir a catedral que é este tratado, tentamos seguir
fielmente à letra e o espírito de Santo Tomás e aos Tomistas. Seja clareando certas
partes, seja analisando pontos de vista entre os diversos seguidores do Aquinate ao
passar dos séculos, tentando refutar, na medida do possível, com a letra de nosso
Doctor Universalis, as teorias contemporâneas que vão contra à razão, o que não é
fácil em uma sociedade que quando muito relativiza a verdade, tomando-a, na maior
parte das vezes como inexistente.
Santo Tomás escreveu a Summa Contra Gentiles a pedido de S. Raimundo
de Penaforte, conselheiro do rei de Aragão, Jaime I, o Conquistador, a fim de
debelar os erros dos povos gentios da Península Ibérica. Na primeira parte, diz o
Doutor Angélico que para dialogar com os judeus seria sensato utilizar somente o
Antigo Testamento.
Ao dialogar com os albigenses ou cátaros e demais cristãos hereges
bastava-lhe o Novo Testamento, pois eles reconheceriam a autoridade escriturística
deste. Aos árabes, maometanos, mouros etc, teria que disputar, contudo,
recorrendo à razão natural “com a qual todos são obrigados a concordar 19”.
Hoje, no mundo contemporâneo, rebentado de secularismos de gêneros e
espécies sortidas, devemos recorrer mais uma vez à razão natural (conquanto
pareça sumamente redundante dizê-lo), porque, como diz Daniel Scherer:
“precisamos de um tomismo de raiz para confrontar a cultura moderna, porque a
cultura moderna é, ao menos em parte, antitomista em sua raiz”. Os prolegômenos
deste confronto, conquanto tarefa árdua, são facultados em sua razão natural pela
arte da Lógica que aplaina de modo seguro o caminho concreto em direção à
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
Conta Cícero, que Leonte, rei dos filiacos, admirado com a sabedoria de
Pitágoras, perguntou-lhe qual era seu ofício. Eis que o sábio respondeu: Não sou
20 Idem.
ninguém em particular, sou um simples filósofo (φιλόσοφος). Mais tarde, assim
ficaram conhecidos os que se dedicavam a investigar as mais altas verdades da
ciência e da arte e de todos os que atingiam, ainda que só pelas luzes da razão
natural, a vida contemplativa do homem21.
Apesar de o grande candeeiro da Filosofia de todos os tempos denominar-se
teólogo, Santo Tomás de Aquino dizia sempre philosophia ancilla theologiae, ou
seja, a primeira é serva desta última, e assim falava sobre aquela: “o objetivo da
Filosofia não é saber o que os homens pensaram, mas sim qual é a verdade das
coisas”22.
Assim, o vocábulo Filosofia provém do grego φιλοσοφία e significa “amor à
sabedoria” ou “amor à verdade”, pois não é outra coisa senão sábio aquele que
alcança a verdade. Alguns afirmam ainda que a palavra latina philosophia traz sua
origem do hebraico, porque o étimo sophós (σοφία) que entra em sua composição
grega tem seu radical enraizado em um verbo hebraico que significa “contemplar” 23.
A tradição clássica que vem de Heródoto atribui a origem do alfabeto grego
ao alfabeto semítico ocidental, similar ao hebraico. Tal consenso dá-se porque, em
primeiro lugar, de acordo com a tradição ateniense, o alfabeto grego foi introduzido
pelos fenícios; em segundo lugar, os nomes das letras do alfabeto grego ( alfa, beta,
gamma, delta etc.) não possuem significado próprio, somente equivalentes
semíticas (alef, beth, gimmel, dalet etc); em terceiro, a sequência das letras gregas
são mantém parentesco com as do aramaico e do hebraico 24. Logo, parece haver
um ancestral comum da escrita dos idiomas hebraico e grego.
Isto posto, vemos que a palavra hebraica chokhmah ( )חכמהparece
corresponder mais exatamente ao vocábulo grego “sophós”, visto que é a tradução
corrente da bíblia hebraica para o grego koiné. Ademais, o étimo sophós (σοφός),
que se traduz como "sábio" junto com seu substantivo abstrato “sophia”,
compartilha a mesma raiz proto-indo-europeia que o verbo latino “sapere”
(saborear/discernir/saber), de onde se origina o substantivo sapientia, de significado
literal “sabedoria”25.
Filosofia26 ou “amor à sabedoria”, portanto, nasce da admiração do homem,
21 Idem..
22 Álvaro Calderón, Umbrales de la filosofía, 1ª ed., 2011, p. 45
23 In II Post. Analyt. lect. 2, n. 419.
24 Lógica Mayor, texto esotérico
25 «Praeterea, definitio proprie competit speciei. Ea ergo quae non sunt definibilia, non videtur esse
in speciei. Sed Angelus et anima non sunt definibilia, cum non sint composita ex materia et forma, ut
supra ostensum est; in omni enim definitione est aliquid ut materia, et aliquid ut forma, ut patet per
philosophum in VII Metaph.: ubi ipse dicit quod si species rerum essent sine materia, ut Plato posuit,
non essent definibiles. Ergo Angelus et anima non proprie possunt dici specie differre» Questões
Disputadas sobre a alma, q. 7, ad 16., É Realizações, 2014, p. 144-145.
26 «Manifestum est enim quod cum potentia et actus dividans ens et cum quodlibet genus per actum
et potentiam dividatur; id communiter materia prima nominatur quod est in genere substantiae, ut
potentia quaedam intellecta praeter omnem speciem et formam, et etiam praeter privationem; quae
tamen est susceptiva et formarum et privationum, ut pater per. August. XII Confess. et I super Genes.
ad litteram, et per philosophum in VII Metaph.» Questões disputadas sobre as criaturas espirituais
(Questio disputata de spiritualibus creturis), a. 1; “Et primo quaeritur utrum substantia spiritualis sit
composita ex materia et forma”, respondeo, É Realizações, 2017, p. 34-37
de seu modo natural de se espantar com todas as coisas porque los hombres
comienzan y comenzaron siempre a filosofar movidos por la admiración, esta
admiração que fomenta no homem o desejo de saber e de se perguntar sobre as
coisas, sobre o Universo, sobre tudo, e o impulsiona a colocar-se em marcha em
busca da ciência e da verdade, isto é, da verdadeira sabedoria 27.
Assim, a Filosofia pode ser conceituada do seguinte modo:
31 Idem.
32 “A Ciência da Arte do Belo [é] calcada nas quatro causas aristotélicas: especificada por seu
sujeito [pois o sujeito especifica a arte como o fim determina o agente], suas partes, suas
propriedades, suas causas e seus efeitos, como toda ciência completa deve ser. Com efeito, se as
artes se definem por seu fim, como dizia Santo Tomás de Aquino, é cabal que haja uma ciência que
seja gênero das artes que lhes são espécie, a saber: a literatura, a música, a escultura, a pintura, a
dança, o cinema, et ita porro” Lucas Daniel Tomáz de Aquino, Sobre a Arte do Belo in Opúsculos
Tomistas. Para maior aprofundamento, por gentileza, cf. Carlos Nougué, Da Arte do Belo (Edições
Santo Tomás, 2018, 590 p.),
A noção de quidditas e essentia relaciona-se também com a problemática
medieval da distinção entre essência e existência. Santo Tomás emprega a noção
de essência entendida como forma que determina a matéria 33 e a essência constitui,
primeiramente, o polo oposto ao da existência. Tal qual a existência responde a
questão “se” um ente existe (An sit), a essência responde a “o que é” um ente (Quid
sit), e é por isso que uma essência se chama também quididade.
Já a palavra ‘quididade’ vem de quod quid est, e representa aquilo que a
coisa é: quidditas, quid, quididade34. Essência vem de essentialis que por seu turno
vem de esse (ser) e é aquilo em que consiste ser tal ou qual coisa 35.
Os aspectos dos entes ou são entes per se, dos quais decorre quididade ou
essência própria e una - como em, por exemplo, “homem” - ou são entes per
accidens dotado de quididades ou essências distintas - como em, por exemplo,
“homem músico”. Os aspectos da essência, conquanto esta seja una, se desdobram
em um processo pelo qual o intelecto elucida seu conhecimento das essências e
chama-se divisão, daí que o termo deste processo se chame mesmo divisão. Na
lógica maior isso é explanado de forma apodíctica.
«Dividimos propriamente uma quididade genérica
quando, entre aquelas coisas que participam desse aspecto
genérico essencial, achamos que umas possuem-no de certo
modo e outras de modo essencialmente diferente [...]. Nem
toda distinção essencial pode-se dizer “divisão” propriamente
dita. Esta se dá quando o gênero se divide naquilo mesmo que
o constitui como tal [...] Ao dividir as substâncias em viventes e
não viventes, nós o fazemos precisamente segundo as
maneiras de sub-stare [ao modo de substância] [...]. “Definir”
uma coisa é discernir entre os limites do que a coisa é, ou seja,
achar determinadamente todos os aspectos essenciais da coisa
de tal maneira que conheçamos perfeitamente seu quod quid
est res. Então, a “definição” de uma coisa é a explicação cabal
de sua quididade [...]. [Isto é] Uma definição tão genérica que
não inclua outra semelhança mais geral que esta [ela mesma]
com as demais coisas, como se passa com “substância”, a qual
significa “o que é sustentáculo de acidentes”, porém toda esta
33 “Ars est <<recta ratio factibilium>>; prudentia vero est <<recta ratio agibilium>>. Different autem
facere et agere quia, ut dicitur in IX Metaphys., factio est actus transiens in exteriorem materiam,
sicut aedificare, secare et huiusmodi, agere autem est actus permanens in ipso agente, sicut videre,
velle et huiusmod” Thomae Aquinatis in Summa Theologiae, I-II, q. 57, a.4.
A tradução livre é nossa: “Arte é a ‘reta razão das coisas factíveis’ [ou do fazer], enquanto a
prudência é ‘reta razão do agir’. São coisas diferentes o fazer e o agir, como diz o Filósofo no livro IX
da Metafísica. Fazer é um ato que transita para uma matéria exterior como construir, cortar etc; agir
é um ato que permanece no próprio agente tal qual ver, querer etc”.
34 Pe. Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofia: cuatro introducciones tomistas, 2011, 1ª edição,
p.129-130, tradução nossa.
35 Idem..
oratio segue denotando um único e simples aspecto quiditativo
presente ao espírito”36»
Substância e Acidente
Substância é aquilo que primeiro nos dá aos sentidos, aquilo que subsiste por
si mesmo e é suporte de acidentes, aquilo que sub-stat. O ato próprio da substância
é ser por si e em outro , ou seja, ser pela e na substância. Falamos de substância
quando esta indica aquilo que existe por si e em si mesmo, como que “sub-está”
neste suporte de aspectos acidentais. E bem, assim como vemos a cor da pele de
um homem ou mulher, umas mais claras outras mais escuras ou ouvimos suas
vozes, umas mais agudas e outras mais intensas. Estes aspectos que podem
modificar-se estão como que apoiados nesta substância mesma chamada 'homem'
e são chamados acidentes37.
Os acidentes, do latim accidens, de ad caere, isto é, literalmente “cair sobre”
ou filologicamente equivalente a “acontecer, ocorrer, suceder”, dizem respeito aos
Distinção numérica
Distinção específica
Distinção genérica
41 «Quod autem intellectus comprehendit, in intellectu formatur, intelligibili quasi agente, et intellectu
quasi patiente. Et ipsum quod intellectu comprehenditur, intra intellectum existens, conforme est et
intelligibili moventi, cuius quaedam similitudo est, et intellectui quasi patienti, secundum quod esse
intelligibile habet. Unde id quod intellectu comprehenditur, non immerito conceptio intellectus
vocatur» Santo Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia (Compendium Theologiae ad fratrem
Raynaldum), ed. Concreta, 2015, p.114-115.
observar semelhanças e diferenças gerais entre os que se chamam os diferentes
modos de vida: a vida animal, na qual o próprio movimento se manifesta de maneira
mais patente e os vegetais, nos quais também há vida, mas não tão manifestos. Se
a vida é caracterizada por certo domínio - e do domínio dos próprios atos -, a vida
do animal tem por característica um maior domínio de suas ações, porque ele pode
estimar o que lhe convém e mover-se para alcançá-lo.
Essas semelhanças e diferenças entram em jogo quando perguntamos Quid
est ao vermos, por exemplo, um gato, pois, desprezando os aspectos acidentais e
ficando com os essenciais, como dito acima, chegamos à definição deste ser:
substância (quididade mais geral), vivente (quididade genérica de algumas espécies
de substância), sensível (menos genérica), gato (tal espécie de substância).
Substâncias de uma mesma espécie são aquelas às quais não têm diferença
essencial, excetuando-se a distinção numérica. Substâncias especificamente
diferentes pertencem a um mesmo gênero quando são semelhantes em partes
essenciais. O gênero mais amplo a que todas precisamente pertencem é a da
substância.
Questão An sit
Para responder a questão quid sit de dado ente, como visto acima, é
inequívoco que se proceda a divisão entre o essencial e o acidental a fim de
chegarmos à quididade da coisa analisada. Dos aspectos mais gerais, como vida e
substância, por exemplo, por sua simplicidade mesma, alcançamos a resposta quid
est com evidência, o que não ocorre quando tratamos de quididades mais
específicas.
O objeto próprio da inteligência é quidditas rei materialis, ou seja, a quididade
das coisas materiais cuja existência e quididades mais genéricas ou gerais é-nos
evidente, de modo que não seria de todo modo apropriado fazer a questão An sit
diante de questões como vida e substância, porquanto, como dito acima, estas nos
são evidentes. Por conseguinte, quando nos perguntamos sobre as diferenças entre
um e outro da mesma espécie ou gênero, se essas diferenças são essenciais ou
acidentais, é que levamos em conta a questão An sit (se é, se existe) de modo que
saberemos se existe no ente uma essência especificamente idêntica a do outro da
mesma espécie ou gênero, antes de descobrir de fato o que ele seja (quid sit)42.
Por exemplo, antes de começar a investigar o que é uma aranha, convém
inquirir se “aranha” corresponde a uma quididade específica, de modo que a
investigação nos aponte se todas as aranhas são essencialmente idênticas em suas
espécies ou gêneros e essencialmente distintas de outras criaturas, conquanto só
acidentalmente distintas entre os diferentes tipos de aranhas (armadeiras,
caranguejeiras) ou se há uma quididade genérica, de modo que haja diferenças
essenciais entre uma classe de aranha e outra 43.
Divisão
45 Do latim contigens, entis, oriundo de contingere: cum [com] + tangere [tocar], o qual tem
proximidade semântica com accidere, que muitas vezes pode traduzir-se na Última Flor do Lácio por
acaecer, do lat. vulgar accadescere, derivação do verbo latino cadere, literalmente ‘cair’.
46 Do prefixo negativo latino ne- + cedere, isto é, ‘cair’. A semântica da palavra indica algo o qual
não pode ser evitado.
47 Lucas Daniel Tomáz de Aquino, Do equívoco linguístico dos filósofos tomistas que culminou na
Lógica, in Opúsculos Tomistas
Assim, negada a corporeidade, não se suprime a noção de substância e é
por isso que as criaturas espirituais ou substâncias separadas [da matéria], que são
entes incorpóreos, se podem incluir secundum quid no gênero da substância.
Ademais, tudo aquilo que está em um gênero se compõe de gênero e diferença,
como diz Santo Tomás nas Questio disputata de spiritualibus creturis. A diferença,
no entanto, é tomada da forma enquanto o gênero é tomado da matéria. Ademais,
quanto a Deus, não se pode univocamente dizer que Ele esteja no gênero da
substância, senão que se pode dizer que Eles está de modo análogo, o qual
faremos na altura dos Predicamentos e das Categorias e mais precisamente ainda
na Metafísica.
Os modos de ser da substância por si são as perfeições - viver, sentir e
inteligir. Destes modos ou perfeições é que se toma as divisões da substância, é a
divisão central deste gênero, do qual se diz que que há imperfeição ou defeito em
ens tantum ou ente somente e encerra perfeição quando há ens et vivens ou ente e
vivente, pois um gênero se divide por aquilo que lhe é próprio, segundo a unidade
de sua essência.
Assim, ser por si é o ato próprio da substância, ao passo que é próprio dos
acidentes ser em outro, isto é, na substância. Por isso, as diferenças que primeiro e
propriamente dividem a substância são as três que distinguem, como já se disse, os
modos de ser (por si): vivere, sentire et intelligere. Desta feita, toma-se aqui a
divisão central do gênero substância, como na Árvore de Porfírio (sub-stat, ens per
se), pois se o próprio da substância é ser por si, as diferenças que propriamente
dividem seu ato são as que distinguem os modos de ser. Devemos, porém, avançar
na divisão para além dos modos de ser.
Os não-viventes (inanimatum) como só entes (ens tantum) neles estão, por
exemplo, os minerais, tomados aqui como sentido geral de “inorgânico”, e dividem-
se segundo a unidade de sua essência: elementos, aquilo que primeiro se compõe
algo, e misto como compostos de elementos. Os vegetais, por sua vez, como entes
e viventes (ens et vivens) e assim somente (vivens tantum), que entre suas
atividades vitais se dividem em nutritiva, aumentativa e gerativa, dividem-se
segundo seus modos próprios de geratione: geração por divisão, ao modo próximo
dos minerais e geração por fecundação, como os animais.
Estes, por sua vez, dividem-se de modo triplo, segundo a perfeição sensitiva
comum a todos os animais (ens et vivens et sentiens), segundo sua escala
zoológica. Seguiremos dos brutos menos perfeitos aos mais perfeitos (ens et vivens
et sentiens tantum). Animais que possuem tato mas não possuem memória nem
estimativa, isto é, imóveis como as ostras. Animais que possuem memória, mas não
audição, isto é, não são ensináveis, como os insetos ou os peixes. Animeis que
possuem todos os sentidos e ato contínuo são ensináveis, como os animais
domésticos48.
Definição
51 Santo Tomás de Aquino, Comentário ao Sobre a Interpretação de Aristóteles, Vide Editorial, 2018,
trad. Bernardo Veiga e Paulo Faitanin. Texto original In Aristotelis Libros Peri Hermeneias Et
Posteriorum Analyticorum Expositio, Cum Textu Ex Recensione Leonina, Taurini, 1955: «Sicut dicit
philosophus in III de anima, duplex est operatio intellectus: una quidem, quae dicitur indivisibilium
intelligentia, per quam scilicet intellectus apprehendit essentiam uniuscuiusque rei in seipsa; alia est
operatio intellectus scilicet componentis et dividentis. [...] Harum autem operationum prima ordinatur
ad secundam: quia non potest esse compositio et divisio, nisi simplicium apprehensorum».
52 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía.
constitui um gênero menos amplo que “viventes”, ao passo que contrapõe-se ao
gênero dos “vegetais”, e que reúne outras espécies de viventes; ato contínuo possui
sua diferença específica (racional) como aspecto quiditativo ou essencial de espécie
de substância sensível e que constitui espécie especialíssima - a qual sua espécie
não se divide em diferenças essenciais, somente acidentais (individuais) -, a
espécie homem que se contrapõe à espécie irracional que é gênero de outras
espécies53.
E parece que não, isto é, pois parece que não há quididade ou essência nos
acidentes, visto que se nos perguntamos com mais rigor e de forma um pouco mais
estrita, veremos que isto não nos é de todo evidente. Porque o que tem a
quantidade e o que é branco não é a coisa em si, senão algo que é branco ou tem
quantidade. Se vemos uma mesa branca de certo tamanho, não vemos a brancura
da mesa, senão vemos a mesa de cor branca, a qual, aliás, por ter essa qualidade
acidental, poderia ter outra cor. A substância mesa que tem quididade, afinal,
ninguém jamais viu a cor branca sair andando por aí a esmo. Logo, parece que os
acidentes não têm quididade porque para achar a quididade da mesa é mister
afastar-lhe os aspectos acidentais.
E se isso é assim, não só é uma qualidade, ou seja, quod quid est, senão que
nos responde id in quo est, aquilo em que a coisa é. Do mesmo modo procede o
longitudo, que é uma substância, e que procede disto ter longura, extensão, porque
não é possível uma extensão que não seja acidente de uma substância. O espaço é
portanto uma substância, ainda que destituída de massa. Logo, aquilo que não
possui autonomia na realidade, exatamente porque não é substância e sim
acidente, não pode ter essência ou quididade 56. Diante disso, parece que realmente
não há quididade nos acidentes.
Respondeo: com efeito, a resposta para esta questão se dá por uma
distinção fundamental entre simpliciter e secundum quid. Aquele se refere a algo
absoluto, puro e simples, ao passo que este se refere a algo por certo aspecto, por
certo ângulo. Assim, de modo simpliciter, os acidentes não possuem quididade
porquanto, para que o tivessem, não poderiam ser em outro ou existir em outro,
57 Carlos Augusto Casanova Guerra, Prólogo de Questões disputadas sobre a alma de Santo
Tomás de Aquino, É Realizações, 2ª impressão, 2014.
58 Dicionário do Latim essencial, Antônio Martinez de Resende e Sandra Braga Bianchet, ed.
Autêntica, 2ª edição, 2014, p. 403. Não considero que seja meramente acidental que os étimos
stupor e stuprum, por exemplo, guardarem sentidos analógicos com a palavra ‘estupidez’ e que
guardem, de certo modo, corruptelas semânticas.
59 Aristóteles, Metafísica.
60 No sentido de nunca se apoiar em autores e mestres.
Dá-se o mesmo aqui como se deu na objeção anterior de se há quididade
nos acidentes. Isso porque a essência secundum quid dos artefatos está na mente
do artista, este fim para o qual ele produz aquele artefato. Se eu aqui no Brasil, ouço
alguém falar em urdu, idioma oficial do Paquistão, uma língua a qual eu não
conheço, não soam a mim propriamente como palavras o que ouço, senão
“cadáveres de palavras”61 porquanto a essência das palavras está na mente de
quem as usa, seja oralmente ou seja durante sua escrita e em ambos estará, de
facto, mentalmente produzida.
É por isso que as artes se definem por sua finalidade traduzida na disposição
das coisas artificiais e faz com que aquela palavra seja aquele e não outra palavra.
De sorte que não se pode chamar propriamente essência secundum quid as coisas
feitas, os artefatos. Isto que parece, num primeiro momento a quididade dos
artefatos, está em primeiro lugar na mente do artífice e depois na mente do
interlocutor e o que tem efetivamente essência nas palavras é a voz, não as
palavras as quais se constituem formas acidentais desta mesma voz.
LÓGICA MENOR
61 Dicionário do Latim essencial, Antônio Martinez de Resende e Sandra Braga Bianchet, ed.
Autêntica, 2ª edição, 2014, p. 80.
62 Summa Theologiae, I-II, q. 114, a. 4.
63 Leão XIII, apud Caetano de Vio, Encíclica Aeterni Patris, agosto de 1879, tertia pars, nº 21.
razão como sua matéria própria. Assim sendo, a Lógica dirige-nos no ato da razão
donde procedem todas as outras artes64.
Aristóteles começa a Metafísica dizendo que é próprio do sábio saber
ordenar65. Assim, a ordem é comparada à razão de quatro modos. Em primeiro
lugar, há uma certa ordem que a razão não faz, mas somente a considera, como a
ordem das coisas da natureza. Em segundo, é a ordem que a razão faz em seu
próprio ato, quando ordena seus conceitos entre si e os signos dos conceitos que
são as palavras. Em terceiro, a ordem que a razão faz nas operações da vontade -
um agente só se põe em marcha a fazer algo tendo em vista um fim. Em quarto, a
ordem que a razão faz nas coisas exteriores de que ela mesma é causa.
A ordem que a razão faz em seu próprio ato pertence à ciência, que
corresponde considerar a ordem das partes entre si e dos princípios entre si com
respeito às conclusões no discurso. A Lógica considera a ordem das operações do
intelecto em universal, do mesmo modo da Ética, e por isso pode dizer-se ela
ciência ou filosofia racional. A esta última pertence a ordem das coisas que a razão
humana considera mas não faz, de modo que abaixo dela podemos incluir também
a Metafísica66. É ciência também porquanto é cognitio per causas, isto é, seu
conhecimento se dá pelas causas, e das mais elevadas, como por exemplo, o
silogismo67.
Ademais, a Lógica é ciência-arte, pois enquanto ciência visa apreender a
realidade tal qual ela é, ou seja, sem imprimir-lhe qualquer forma, ao passo que é
O sujeito da Lógica
Toda ciência é especificada em razão de seu sujeito e o sujeito é aquilo que
a ciência ou a arte trata própria e simplesmente69. Por exemplo, o sujeito da
Psicologia é o homem integral, não é só a sua mão ou seus braços do qual se trata
de uma parte do homem. A Psicologia trata o homem própria e simplesmente em
sua totalidade como sujeito, o qual se chama assim justamente porque é dele que
se predicam as demais partes da qual a ciência ou a arte consideram, isto é, suas
partes, suas propriedades, suas causas e seus efeitos. Toda ciência ou arte se
especifica e se determina por seu sujeito. Este, por um lado, especifica a ciência
como a forma determina a matéria e por outro especifica a arte como o fim
determina o agente. Os elementos lógicos que constituem o sujeito da Lógica não
são aspectos das coisas conhecidas que lhes pertencem enquanto se dão no
intelecto70, tampouco são propriedades das coisas mesmas conhecidas, senão das
intenções pelo que as coisas se conhecem.
68 Neste sentido, é o que defendemos aqui, a lógica-matemática nos moldes que a conhecemos,
deve-se ser aplicada à Computação e seus campos: desenvolvimento de softwares e aplicativos,
Machine Learn, Blockchain, Ciência de Dados, Programação em geral e demais espécies desta
ciência de modo amplo. Ao homem, contudo, por ser uma criatura orgânica que pensa
diacronicamente, este tipo de lógica soa como um veneno ao conhecimento da verdade porquanto
descreve dados da realidade de forma artificial sem dar-lhes causa final.
69 Summa Contra Gentiles, cap. II, 4.
70 Última frase de Santo Tomás no Proêmio de seu Comentário ao ‘Sobre a Interpretação’ de
Aristóteles.
As três operações do intelecto
É da natureza do homem guiar-se pela razão. E esta, por sua vez, interessa
a outros ramos da filosofia. Se, por exemplo, concluirmos nós que a alma é imortal
porque não sendo ela um composto de matéria e forma, logo não suscetível à
corrupção; estaremos tratando, enquanto silogismo, de uma questão metafísica, a
da imortalidade da alma71, ao passo que também poderemos tratar esta questão
tendo em vista a Psicologia, que é a ciência que trata do ente segundo a alteração e
das partes potenciais da alma humana, a saber: intelectiva ou racional, sensitiva e
vegetativa72. Estes três pontos de vista formalmente distintos encontram-se, como
disse Gardeil, em toda atividade do espírito.
Assim, o intelecto e por extensão a Lógica é aquilo que distingue o homem
dos outros animais em termos de conhecimento das coisas. A Lógica (logos)
significa pois, razão, a diferença específica que nos distingue a nós dos outros
animais a ponto de fazer-nos espécie especialíssima. E a arte de pensar com esta
mesma razão é a que tem dado ao homem, através dos séculos, o conhecimento
científico. Todos os homens, por natureza, aprendem a pensar a partir da idade da
razão, lá pelos 7 ou 8 anos de idade, os quais já têm uma centelha de noções
factíveis sobre bem e mal ou sobre moralidade, por exemplo.
71 Carlos Nougué Das duas primeiras operações do intelecto: uma crítica a Maritain e a outros
tomistas, in Estudos Tomistas - Opúsculos, Edições Santo Tomás, 2016.
72 cf. Santo tomás de Aquino: Summa Theologiae., I, 40, a. 3; In I De Anima, lectio 4, n.o 6 ; In III
Metaph., lectio 2, n.o 6 ; De substatiis separatis, c. 1.
outra, de tal modo a alcançar o conhecimento do desconhecido a
partir do conhecido. E deste ato se ocupam os livros do Órganon 73».
sofridos pela Tríplice Entente durante a Primeira Guerra Mundial, obrigando-a a pagar uma
reparação onerosa à França, ao Reino Unido e ao Império Russo. Exatamente por isso ele veio a se
tornar Der Führer.
86 Sobre a Alma (De anima),430a, 25-28, Obras completas de Aristóteles, Universidade de Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2010.
87 Jacques Maritain, Agir, 6ª edição, 1970, p. 113-115.
«O dominicano João de Santo Tomás em seu Cursus
Philosophicus Thomisticus influenciou fortemente Jacques Maritain em
seu Éleménts de Philosophie II — L’Ordre des Concepts: Petite
Logique o qual se lê que a primeira operação do intelecto comporta
dois atos diferentes, a saber: “o ato de formar um conceito e o ato de
formar uma definição”. (A ordem dos conceitos: Lógica Menor, Ed.
Agir, 6º ed.1970, p. 102). Com efeito, lê-se em seu clássico:
“Dizemos que a definição é a primeira obra da razão porque ela
é a primeira obra da inteligência reunindo entre si os conceitos”
( ‘preliminares’ p. 23, rodapé).
Ademais:
“Portanto, assim como a segunda operação do espírito
comporta dois atos distintos entre si: [1] o ato de formar uma
proposição e [2] o ato de julgar e assentir, assim também a primeira
operação do espírito comporta dois atos diferentes: [1] o ato de formar
um conceito e [2] o ato de formar uma definição. A formação dos
conceitos é por assim dizer a primeira etapa ou a primeira operação,
de maneira que a simples apreensão deve ser considerada como
ordenada à definição como sendo o seu produto mais evoluído e mais
perfeito, uma vez que a simples apreensão é por si ordenada ao juízo
e ao raciocínio.” (p. 102).
Esta última parte, como diz o grande Maritain, é cabal. A
simples apreensão ordena-se ao juízo e estes ordenam-se, por
evidência, ao raciocínio. Tal ordem das operações estão umas para
com as outras assim como os três primeiros livros do Órganon estão
uns para com os outros: as Categorias subordinam-se ao Peri
Hermeneias e estes para os dois livros dos Analíticos, cujos tomos
tratam respectiva e ordenadamente cada qual sua operação.
Ato contínuo, Maritain cita diversas passagens do Aquinate para
atestar o que diz (De verit., q. 1, a. 3; q. 14, a. 1; STh., I-II, q. 90, a. 1,
ad 2; I, q. 17, a. 3; in III De anima, lectio 11; Quodlibet. V, a. 1; e ao
Comment. in Joannes., cap. I, lectio I, n.o 1). Não citaremos todas
elas, porquanto entendemos que as mais importantes já darão sentido
a esta exposição. Ao fim e ao cabo, penso até os dois últimos excertos
seriam-nos suficiente para tal entendimento. Com efeito, vamos a elas:
97 Sobre a Revolução Científica, diz Edward Faser em A Última supertição - uma refutação ao
neoateísmo p. 138: «a ciência moderna, longe de refutar a metafísica de Aristóteles, foi
simplesmente definida de tal maneira que não se permitiria que nada que cheirasse a causas finais e
formais aristotélicas fosse considerado verdadeiramente “científico”. Não houve nenhuma
“descoberta” aqui; houve apenas estipulação, uma insistência em forçar todo objeto de investigação
científica a se espremer em uma cama fabricada para ser não-aristotélica e – se necessário –
simplesmente negar a existência de qualquer coisa que não pudesse ser enfiada nela. Pois as
categorias do aristotelismo escolástico levavam, na concepção de pensadores como Locke, a um
perigoso “dogmatismo” em questões religiosas e filosóficas. (Em outras palavras, se aceitarmos
essas categorias, teremos de admitir que todo o sistema escolástico é mais ou menos racionalmente
inevitável). E na perspectiva de Bacon, elas nos distraem da única coisa necessária. (Em outras
palavras, se Aristóteles estiver certo, então vamos acabar passando mais tempo contemplando
primeiros princípios e o estado das nossas almas e menos tempo inventando novas engenhocas.)
Embora impliquem com este ou aquele argumento de Aristóteles, Tomás de Aquino e companhia
aquilo de que os filósofos modernos e seus sucessores realmente não gostam são as
conclusões .Admita que as causas formais e finais entrem no mundo e você estará aferrado –
racionalmente aferrado – a Deus, à alma e à lei natural. O projeto secular progressista da
Modernidade se torna inviável. Assim, é preciso redefinir “razão” de modo que torne essas
conclusões impossíveis, ou pelo menos severamente enfraquecidas. As categorias metafísicas
clássicas, especialmente as aristotélicas e tomistas, devem ser completamente banidas da ciência,
por decreto. O jogo deve ser manipulado de maneira que Aristóteles e Tomás de Aquino não possam
sequer entrar em campo; então, séculos depois, os sucessores dos primeiros modernos, bastante
contentes com o resultado da proeza dos predecessores e sem grande interesse em perguntar-se
como ela foi alcançada, podem fingir que a recusa a sequer jogar o jogo valeu como “vitória”».
noções semelhantes ou que pouco importam distinguir 98. Ainda como
partícula enclítica (conquanto haja seu uso como prefixo indicando
privação), corresponde à conjunção 'ou', nas expressões alternativas.
Serve para diferenciar, mesmo que por vezes levemente, dois termos,
como é o caso. (Dicionário do Latim Essencial, Autêntica, 2017, p.
441).
Colige-se assim o seguinte: ao falar sobre as operações do
intelecto, não se fala de algo senão segundo o intelecto possível, do
mesmo modo como a vis imaginativa é a da operação própria dos
sentidos. Assim, as três operações do intelecto pertencem ao intelecto
possível, isto é, ao que precisamente intelige e raciocina, enquanto o
intelecto agente, cuja tarefa é fazer o intelecto possível agir per se e
desencadear suas operações próprias, abstrai e imprime as espécies
inteligíveis no intelecto possível99. Assim, a obra única da primeira
operação do intelecto é a definição ou conceito, conquanto ‘conceito’
seja mais profundo do que ‘definição’, pois carece esta última nos
análogos mais amplos, como os transcendentais, tema os quais
abordaremos no momento oportuno.
98 Todas as coisas são transcendentais, pois ‘transcendental’ significa aquilo que pode dizer-se de
todas as coisas.
99 De modo simpliciter, Porfírio em sua Isagoge, divide o próprio ou propriedade da seguinte forma:
“próprio é aquilo que convém a todos [de uma espécie] só e sempre”. Por exemplo, ser racional
convém a toda a espécie humana e só a ela, e sempre, pois para sempre o homem terá intelecto,
mesmo um homem com problemas cerebrais, visto que o intelecto vem da alma racional, não de um
órgão material, como supõe alguns contemporâneos.
Já Aristóteles, nos Tópicos do Órganon, diz que: “próprio [ou propriedade] é aquilo que sem referir ou
dizer à quididade da coisa in quid, pertence, porém, só a esta coisa e pode converter-se com ela”, ou
seja, “sem se referir ou dizer a quididade da coisa”; ora, a quididade de ‘homem’ é animal (gênero
próximo) racional (diferença específica). Se não me refiro como ‘animal racional’, digo que, como
propriedade, o homem possui capacidade de rir (ter senso de humor), ou que é político, ou civilizado,
apto a conviver na pólis. Estas são propriedades que pertencem somente ao homem e tão somente a
ele; e toda propriedade decorre da natureza, da essência, da quididade. E estas propriedades de ‘ser
ridente’ ou ‘ser político’ possuem essa convertibilidade com a quididade de ‘animal racional’, visto
que somente o homem pode ser tanto racional, quanto político, quanto ridente; são do homem e
somente dele tais propriedades.
100 Juan Jose Sanguineti, Logica, EUNSA, 1982
101 Aristóteles, Metafísica, l. 1, c.1.
proposição, compusemos dois conceitos entre si; não julgamos
(porque pelo contrário impedimos nosso assentimento, abstendo-nos
de dizer: ‘É assim’ ou ‘Não é assim’). [...] Se os filósofos desleixam às
vezes essa distinção, é porque as enunciações simplesmente
enunciativas estão encobertas, por assim dizer, pelas enunciações ou
proposições judicativas, que são inteiramente semelhantes quanto à
expressão verbal, manifestando um juízo feito. É também porque às
vezes o espírito compõe e julga ao mesmo tempo num único ato,
como ao enunciarmos alguma coisa evidente ou já conhecida, por
exemplo: ‘Pedro é homem’, ‘O cavalo é um animal’. Isso não impede
que esse ato materialmente uno se decomponha em duas ações
formalmente distantes: a ação de compor os conceitos e a ação de
julgar ou de assentir102”
Na segunda operação do intelecto, como já dissemos, há uma
única obra, a enunciação, cujo signo é a proposição oral ou escrita.
Quanto ao ato, que também é único, compõe-se do juízo, cuja
comparação se faz de duas coisas a saber: uma a modo de sujeito, a
outra a modo de predicado. Por exemplo: “A árvore [é / não é] verde”.
Ademais: sobre a divisão e a composição, Mirko Škarica,
professor adjunto da Universidad Católica de Valparaíso no Chile, em
seu comentário ao Peri Hermeneias103 dá-nos um panorama histórico
acerca da “doutrina dos dois atos básicos do entendimento”. Explana
ele sobre a necessidade de introdução, a partir do séc. XV 104 de uma
composição de tipo neutro entre a intelecção do indivisível e a
composição ou divisão, que recebeu o nome de ‘enunciação mental
apreensiva’ a fim de distingui-la da judiciativa ou veritativa. Assim,
entre as noções que se acham como apreensão, excetuando-se
noções simples, deram eles noções complexas de caráter
proposicional. As últimas, portanto, seriam objeto de ato posterior, de
assentimento ou dissentimento, constituindo o juízo.
102 A partir do séc. XIII e XIV até o outono da Idade Média, em grande parte por correntes
nominalistas e scotistas, traduziu-se erroneamente a palavra grega ὄυ por ser e εἶναι, que quer dizer
ser, por existência. O erro se torna ainda pior porque estes são temas caros à Filosofia. A partir do
equívoco desses conceitos, cuja sucessão acabou em um descarrilamento metafísico, assistimos,
por exemplo, à negação do evidente no pós-cartesianismo ou nos chocamos na cegueira do
nôumenon kantiano ou caímos no “esquecimento do ser” em Heidegger a partir da contraposição
entre essência e existência etc. Vejamos: Se se diz que ente é o ser, é a mesma coisa que dizer que
ser é o que tem ser ou ser é o que tem que ser, o que não faz sentido. Esclarecendo: ὄυ (lat. ens,
entis) é ente e εἶναι (lat. esse) é ser. Adiante, ainda neste tomo, estudaremos estes conceitos mais a
fundo.
103 Álvaro Calderón, La naturaleza y sus causas, tomo I, Ed. Corredentora, 2016, p.175.
104 Entretanto, há nuances que as diferenciam secundum rationem, em todo e em parte
respectivamente: a essência referindo-se ao abstrato ao passo que a quididade ao concreto. Por
conseguinte, se considera a essência uma parte constitutiva e principal do ente, como que um
“núcleo”, enquanto a quididade significa todo o ente, mas por referência ao essencial. cf. Daniel
Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica.
Este que por sua vez não compõe ou divide, senão que é capaz
de assentir e dissentir com respeito a uma composição prévia que não
é verdadeira nem falsa enquanto apreensão. Além do simples ato de
apreensão, introduziu-se antes da composição judiciativa uma
composição em estado de mera apreensão, abandonando-se assim a
doutrina dos atos básicos do entendimento 105. Esta novidade106 fora
abraçada pela chamada Escolástica Tardia, tanto por nominalistas
quanto por escotistas e até por tomistas como De Soto e João de
Santo Tomás. Francisco Suárez, o Doutor Exímio, conquanto não
fosse tomista de modo estrito, aceita também esta distinção entre
“composição apreensiva” e composição judiciativa 107. No entanto, um
autor do Colégio de Coimbra que cremos desconhecido, no séc. XV,
contestou esta tese de que há “dupla composição”; uma de mera
apreensão, outra judiciativa, dando-a como afastamento da doutrina
aristotélico-tomista108.
Como visto acima, a primeira operação da razão possui apenas uma obra:
conceito ou definição. Veremos adiante que existe conceito sem uma definição
propriamente dita, como nos Transcendentais ou Análogos Supremos, a saber:
coisa, algo, bom, verdadeiro, belo, uno. Por hora, conceito ou definição são a
mesma coisa do ângulo da simples apreensão, pois, assim como uma mulher dá à
luz a um filho, da mesma forma a abstração gera um conceito ou definição cuja nota
é a universalidade. Por outro lado, a definição se refere antes à oração enquanto
conjunto de palavras que significa o que a coisa é, e o conceito exprime a mesma
coisa sem considerar que se trate de uma oração.
A respeito da simples apreensão, por analogia, podemos explicitar assim:
como o olho conhece a cor verde ou vermelha a ponto de definir a essência ou
simplesmente não a conhece, como no caso dos munidos de discromatopsia
(daltonismo), da mesma forma o intelecto, ou conhece a coisa conhecida ou não a
conhece, pois, se virmos um homem sem os braços, olharemos-no e saberemos
tratar-se de um homem.
Na simples apreensão, não há verdade ou falsidade porque respondemos
aqui a questão Quid est ou Quid sit (o que é?), enquanto na segunda operação do
intelecto, que é o juízo ou composição, respondemos à questão Quia [quia ita est],
porque é assim, onde há realmente o julgamento entre verdadeiro e falso, uma
espécie de “tribunal do intelecto”, pois esta é a pergunta pelas propriedades do ente
e se aquela pertence a este; ao passo que na terceira operação do intelecto, que é
o silogismo ou raciocínio, respondemos à questão Propter Quid [propter quid est ita],
que pergunta pelas causas113 e equivalente ao por que, separado e sem acento na
língua portuguesa, que pergunta por que tal propriedade pertence de fato a tal ente -
esta é a pergunta científica por excelência, e é exatamente por isso que está no
110 S. Tomás de Aquino, Comentário ao “De caelo et mundo” de Aristóteles, I, liç. 22; cit. em
Thonnard, ob. cit., pág. 3.
111 A primeira noção é puramente aristotélica (Metafísica, IV, cap. 1). Santo Tomás acrescenta “à
luz da razão natural” nas primeiras páginas da Suma Teológica (q. 1, a.1), a fim de distinguir a
filosofia da teologia (à luz da revelação).
112 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía, ed. Corredentora, 2011, p. 67.
113 Introducción al Tomismo, Gustavo Eloy Ponferrada, Biblioteca Argentina de Filosofía, 1985, p.
88
âmbito do silogismo, assim como uma interpretação de texto está centrada neste
escopo.
Há ainda, porém, outra espécie de pergunta que é respondida com as
propriedades: Quomodo sit, ou seja, de que modo é. Estas propriedades
relacionam-se com os acidentes, dado que estes possuem, como vimos, duas
classes, os acidentes próprios ou propriedades e os acidentes propriamente ditos.
Quomodo sit
Ao cabo de discernir o quid sit de tal coisa - aquele que busca sempre pelas
quididades de tal ou qual ente, ato contínuo, há de se desdobrar, por evidência, em
algo a mais: quomodo sit, isto é, suas propriedades. Assim, a questão quomodo sit
indaga quais atributos pertencem de fato a esta coisa que se dá aos sentidos e sem
os quais isto ou aquilo não poderia sê-lo o que é. Pois é-nos evidente que se se
chega a entender que ‘homem’ (Paulo, Natália, Amora, Pedro, e assim por diante),
de modo geral, pertence a um mesmo tipo de substância, foi justamente ao reparar
como certas características comuns entre eles se manifestaram de maneira
essencialmente idêntica.
Todavia, a pergunta quomodo sit não poderá versar sobre, por exemplo,
Natália ser ruiva e Paulo ser loiro (sabemos que ter cabelo é uma característica
comum entre ambos, que são animais racionais), pois a questão científica não
implica obviedade, senão que diz respeito ao não evidente. Assim sendo, a
pergunta pelas propriedades dar-se-á na distinção dos aspectos acidentais que
podem dar-se em uma espécie de substância e se elas pertencem propriamente a
esta.
No tópico acima, estudamos as duas classes de acidentes, a saber: os
acidentes propriamente ditos e os acidentes próprios ou propriedades. Do ponto de
vista da predicação, o gênero, a diferença específica, a espécie, e as propriedades
e acidentes são chamados predicáveis porque são modos de relacionar sujeito e
predicado. Estes são universais lógicos, estudados por Porfírio em seu clássico
Isagoge, concebido como uma introdução às Categorias de Aristóteles; constituem-
se como sujeito próprio da Lógica114.
Ao examinarmos as propriedades (ou acidentes próprios), dissemos que elas
sempre se dão em dada espécie de substância e que se tais propriedades não se
realizam naquela, acaba por incorrer uma imperfeição de tal substância, pois, se é
um acidente próprio, só pode decorrer de sua essência.
Há, contudo, outras perspectivas filosóficas para a busca perfeita da ciência,
uma vez que não basta saber “se existe” ou “o que é” e quando aterrisamos nosso
intelecto nisto, neste terreno arenoso de quomodo sit, ou seja, “como é”, sentimo-
nos como que afundando nesta areia que não oferece resistência, ao passo que
devemos então determinar se de fato tal propriedade se dá em determinada coisa.
114 Introducción al Tomismo, Gustavo Eloy Ponferrada, Biblioteca Argentina de Filosofía, 1985, p.
101
Questão Quia: a verdade científica
121 “Et haec ars est Logica, idest rationalis scientia. Quae non solum rationalis est ex hoc, quod est
sccundum rationem (quod est omnibus artibus commune); sed etiam ex hoc, quod est circa ipsum
actum rationis sicut circa propriam materiam. Et ideo videtur essc ars artium, quía in actu rationis nos
dirigit, a quo omnes artes proccdunt” in I Post. Anal. lect. 1, n. 2-3:
122 Anal. Post., lect. 1, n. 2-3.
O segundo modo se diz que uma coisa in re é verdadeira se há adequação
desta coisa ao intelecto. Com efeito, divide-se isto em modo objetivo/potencial,
quando se diz, por exemplo que “o homem é animal racional”, pois se trata de que o
intelecto conhece verdadeiramente a coisa, sua quididade ou essência; ao passo
que divide-se também em modo objetivo/atual quando se diz que “o homem
repousou” porque se isto aconteceu e eu digo que “ele [o homem] repousou”, então
isto vem da coisa para o intelecto.
Há, porém, um terceiro modo de dizer-se verdadeiras as coisas, que é como
adequação da coisa feita à arte de fazer. As coisas artificiais, como já dito ao tratar
a quididade destas, são aquelas fabricadas pelo homem - uma mesa, uma
escultura, uma tela à óleo -, são arte-factum, diz-se daquilo feito com arte ou
conforme as regras do bem-fazer. Assim, uma catedral gótica medieval, por
exemplo, será verdadeira se tiver sido feita conforme as regras da Arquitetura; um
texto será verdadeiro se tiver sido escrito segundo as regras da Gramática e assim
por diante123.
Então, quanto à verdade, esta palavra abstrata do transcendental verdadeiro,
diz-se de triplo modo, a saber:
Há, ainda, o modo como se diz verdadeiro do intelecto. Acima, tínhamos dito
como se diz verdadeiro da coisa real ao intelecto. Agora, pois, quanto ao intelecto,
diz-se verdadeiro como adequação dos conceitos às coisas e como adequação das
palavras às coisas. Quanto adequação aos conceitos, diz-se que o intelecto é
verdadeiro quando se apreende a quididade ou essência das coisas pela simples
apreensão, na primeira operação do intelecto, como em “homem: animal racional”.
Ademais, a modo de adequação dos conceitos às coisas, dá-se ainda de um
segundo modo, agora na segunda operação do intelecto, quando o intelecto
conhece o verdadeiro a partir do momento que se julga adequado à realidade.
Aqui, o intelecto julga-se a si mesmo quanto à obra da primeira operação do
intelecto, como em “o homem é animal racional”124. Seu conceito implica juízo ou
julgamento, expresso pela partícula ‘é’, um verbo de ligação, o qual veremos mais à
frente na segunda operação, pois se digo “o homem não é um animal racional”
tampouco deixei de fazer um juízo.
O segundo modo de dizer que o intelecto é verdadeiro é como adequação
das palavras às coisas. Diz-se que uma proposição é verdadeira quando esta se
corresponde à realidade significada, pois não é suficiente que corresponda ao que o
homem pensa dela, senão que é preciso que corresponda ao que é na realidade.
Portanto, em uma proposição, não é suficiente que haja aquilo que o homem
pense da coisa, isto é insuficiente, pois ele pode ser sincero no que diz sendo falso
na maneira como entende a realidade da coisa. Pode-se este incorrer em dizer uma
falsidade, quando se diz o contrário do que se pensa, ainda que por acidente seja
verdadeiro; a qual incorre em analogia de proporcionalidade, e mais do que esta,
analogia de atribuição125. A adequação, assim como a verdade e a falsidade, dão-se
primeiramente no intelecto, porque as coisas são o que são, cada qual a seu modo.
Assim como o predicado se diz de um sujeito, como por exemplo em: “João é
saudável”, assim também uma quididade se diz de outra quididade. Quando este
predicado é atribuído ao sujeito, seja por motivos acidentais ou contingentes,
chamamos-no predicado “per accidens”, ao passo que se o predicado se dá em
razão de essência ou de algum acidente próprio ou propriedade, chamamos-no
acidente “per se”.
Para exemplificar, se digo “Semana passada choveu muito”, esta é uma
oração que contém uma contingência (poderia ter feito sol), pois diz respeito a um
sujeito de algo acidental, logo é uma predicação “per accidens”.
Agora, se eu digo “João é animal racional” ou “Maria é risonha”, faço uma
predicação “per se”, pois no primeiro caso, prediquei um homem de sua essência e
126 No caso das Belas-Artes, estas impressões formais são mimético-significantes plasmadas em
determinado meio com o fim último de fazer propender ao bom e ao verdadeiro mediante o belo e
afastar-se do mau e do falso mediante o horrendo.
no segundo prediquei-o de sua propriedade, aquela que só se dá em sua espécie, a
saber: a ‘espécie humana’ a qual Maria pertence, ou seja de algo necessário.
Esta predicação per se pode ter vários modos, desde que se atribua um
predicado quiditativo ou acidente próprio (propriedade) ou mesmo outro predicado
que mantenha relação necessária com o sujeito127.
QUOMODO SIT
***
127 Pe. Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía: cuatro introducciones tomistas, 2011, 1ª edição,
p.131, tradução nossa.
128 Idem. Tradução nossa.
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Lógica gramatical
A Gramática possui duas vias: Gramática Geral e Gramática Especial. Sobre
o espectro cada uma, daremos voz à Irmã Miriam Joseph, PhD, especialista na obra
de Shakespeare e autora do grande livro Trivium - As artes liberais da lógica, da
gramática e da retórica, a qual diz:
A gramática geral é mais filosófica que as gramáticas especiais
porque está mais diretamente relacionada à lógica e à metafísica - ou
ontologia. Consequentemente, ela difere um pouco das gramáticas
especiais no que diz respeito ao ponto de vista e à classificação
resultante, tanto na análise morfológica quanto na análise sintática 132.
Gramática e Metafísica
A Metafísica é a Rainha das Ciências, porquanto trata do ente enquanto ente.
Ora, se algo não se dá nele mesmo, se algo não se dá nele enquanto é, não pode
ser propriamente ciência simpliciter. Foi o que aconteceu com a ciência moderna
com o cartesianismo e o kantismo. Ao substituir a ciência pela matematização que é
uma ciência média, a ciência perdeu seu valor intrínseco, em si mesmo, porque a
matemática não dá porquês a coisa alguma senão descreve relações e mede
quantidades.
A Lógica e a Gramática relacionam-se com a Metafísica de modo estreito,
pois esta é a ciência do ente enquanto ente, isto é, aquilo que é enquanto é. Esta
relação permanecerá sempre assim, pois a realidade existe em si mesma e só
depois é abstraída da espécie inteligível, que é princípio formal da operação
intelectiva, assim como a forma de qualquer agente é o princípio de sua operação 134.
Veremos mais adiante como conhecemos as coisas.
A Arte da Linguagem e a Metafísica, enquanto relacionadas entre si, pode ser
representada do seguinte modo:
O planeta Plutão já era uma entidade real, percorrendo sua órbita em torno
do Sol havia muitos e muitos milênios, por nós desconhecido e, portanto, sem
nome. A sua descoberta, em 1930 não o criou; porém, ao ser descoberto, tornou-se
entidade lógica. Quando lhe foi dado o nome Plutão, tornou-se uma entidade
gramatical. Quando, por seu nome, o conhecimento dessa entidade foi comunicado
a outros através desta palavra falada e escrita, o planeta Plutão tornou-se então
uma entidade retórica135.
133 Idem.
134 Summa contra Gentiles, 1, I, cap. XLVI,1.
135 Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica, Ir. Miriam Joseph, C.S.C, PhD,
É Realizações, 2008.
Plutão já existia metafisicamente, in re, na realidade mesma quando o
descobriram. Quando de sua descoberta, tornou-se entidade lógica porquanto à
Lógica cabe tratar da coisa como ela é conhecida utilizando-se para tanto
silogismos e conclusões; ao passo que quando foi dado seu nome original, Plutão
se tornou entidade gramatical porque este nome é seu símbolo, isto é, o signo
linguístico que comunicamos a todos sua existência.
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Apesar de o grande candeeiro da Filosofia de todos os tempos denominar-se
teólogo, Santo Tomás de Aquino dizia sempre que philosophia ancilla theologiae, ou
seja, a primeira é serva desta última, e assim falava sobre aquela: “o objetivo da
Filosofia não é saber o que os homens pensaram, mas sim qual é a verdade das
coisas”. Encontra-se em sua Metafísica, à revelia de Heidegger 137, uma legítima
Filosofia do Ser, como síntese original e única em toda a História da Filosofia.
A partir da encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII, a qual trouxe a lume filósofos
dispostos a voltarem-se ao mestre, ainda que, a exemplo de Juan Manuel Ortíz y
Lara, dentre outros, os filósofos cristãos nunca tivessem deixado o tomismo
136 Idem.
137 Um dos mais profícuos alunos de Martin Heidegger, Johannes B. Lotz, declarou em seu livro
Martin Heidegger e São Tomás de Aquino, Instituto Piaget, 1975, que o “esquecimento do ser” de
que falava o filósofo alemão, não poderia aplicar-se em hipótese alguma a Santo Tomás porque este
criara a Metafísica do Ser, ao contrário de seu mestre que, por almejar uma crítica contundente de
toda a história da filosofia ocidental, esqueceu-se do ser em sua própria obra. Cf. também Sidney
Silveira, Metafísica do Ser e Martin Heidegger, Contra Impugnantes, 2008.
arrefecer, houve uma recuperação da la chiave di volta138, a pedra angular da
metafísica tomista, que é a distinção entre essência e ato de ser ( esse), ao fazer
uma perfeita síntese entre a metafísica aristotélica de ato e potência e a noção de
participação platônica, cujo ápice culmina nesse descobrimento do ser como actus
essendi, isto é, o ato dos atos, primum intellectu cadit ens, aquele com respeito ao
qual tudo mais no ente, seja matéria seja forma, é potência.
Assim como o som é o primeiro audível, o Ser é o primeiro inteligível, diz
Santo Tomás. Este é o que de mais íntimo há em alguma coisa e o mais profundo
de todas as coisas; o mais absoluto, evidente e inteligível, o primeiro na realidade
das coisas, porque é atual e abarca a totalidade do real. E o princípio do Ser é Deus
mesmo, este que propriamente não “existe”, Deus não existe, senão que É. Pois o
verbo “existir” provém do latim “ex sistire”, isto é, “provir de [algum lugar]” (ex é
preposição latina de), o que seria impossível para um Primeiro Motor Imóvel, causa
do resto do movimento e dos efeitos da natureza. Assim, Deus precisamente É,
como provado no livro do Êxodo quando Deus diz a Moisés na Sarça Ardente “Eu
sou aquele que é139”, o Ipsum Esse Subsistens, o Ato dos Atos, onde Ser e Essência
se identificam e onde a própria essência (quididade) e existência (sem movimento)
permanecem coexistindo. Já os seres refletem o ato puro, o único ser subsistente,
pela doutrina da participação e por analogia, nunca por univocidade e jamais por
equivocidade, através de sua capacidade volitiva e cognoscitiva.
Daí que para Santo Tomás o ato não é propriamente forma, senão ato de ser
(actus essendi) que é participado pelo Ipsum Esse Subsistens; já a forma é ato com
respeito à potência, pois nos entes dotados de matéria e forma é possível encontrar-
lhes três princípios, a saber: matéria, forma e ser. O princípio do ser é a forma, já a
matéria participa do ser por receber a forma 140, como por exemplo no homem, onde
há o ser sendo que sua matéria é a porção corporal e a forma é sua alma, daí a
fórmula escolástica forma dat esse, onde o ser é participado na coisa por meio da
forma, no caso do homem, da anima, que é como instrumento do ser. O ente, que
está sempre em potência e à mercê de atualização para a perfeição de seu ser, pois
é sempre restringido e limitado por sua essência, exerce o ser porque é criatura do
Ser Primeiro, Ipsum Esse Subsistens, carregando assim o ser intrinsecamente à sua
natureza.
A existência (ato de existir) é mais perfeita que a essência, pois o ser é
inseparável desta. Essência e existência são assim como que princípios do ser, na
própria realidade, pois tudo que é ser já supõe existência - não em Deus, porém,
porquanto este É. O ser, porém, conquanto seja o primeiro inteligido, afirma-se per
se antes de ser afirmado pelo intelecto. É na metafísica tomista, portanto, que
essência, existência e ser são inconfundíveis e não se misturam. Essência é sua