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A CONSOLAÇÃO

DA ESTUPIDEZ HUMANA

Opúsculo

Lucas Daniel Tomáz de Aquino


Un buen tomista no sólo deja que le opongan razones
a la sentencia que defiende, sino que las busca de
propósito para que más brille la verdad de la respuesta.

 —  Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía


Proêmio

Uma flor exótica no jardim da ciência

Quem busca a Sabedoria entre os estudos humanos busca também o mais


perfeito, o mais sublime, o mais útil e o mais alegre 1. Do mesmo modo, quem faz um
proêmio busca em primeiro lugar, diz Santo Tomás em seu comentário ao De
Anima, ganhar a benevolência do leitor; em segundo, ganhar sua docilidade; em
terceiro, prender sua atenção. Assim, conquista-se a benevolência do leitor ao
demonstrar a utilidade da ciência a qual vai tratar. Em seguida, conquista a
docilidade do legente ao expor a ordem e a distinção de sua exposição. Por fim,
com o intuito de prender sua atenção, o filósofo desdobra as dificuldades que terá
no empenho do tratado.
Darei ao leitor, portanto, a demonstração, a ordem e a distinção do exposto,
além do empenho de perscrutação deste tratado. Antes, porém, a motivo de étimo,
farei uma breve exposição sobre o título da obra baseado, em última análise, na A
consolação da Filosofia, o magnum opus de Boécio, aquele que fora “o último dos
romanos, o primeiro dos escolásticos”, escrito por volta de 524, durante o cativeiro
que precedeu seu martírio pelas mãos do rei.
A palavra ‘consolatio’ (cum-solor2), tanto em Latim quanto na Língua de
Camões, é a junção de duas palavras. Assim, a preposição 'com' possui o sentido
de ‘estar junto’, pois é quase impossível que um indivíduo alcance a ciência e a
sabedoria solitariamente3, senão que se alcança os cumes “subindo em ombros de
gigantes”. Foi o que fiz neste tratado. Quando se retira o prefixo, dá-nos o latim a
palavra “solatio” e suas variações solatiolum, solaris etc, algo próximo de
“reconfortar, animar (no sentido de dar vida à), acalentar, estar sob o sol”, isto é,
aquele que se remete ao astro e é por este aquecido, assim como Santo Tomás -
imortalizado pelas telas de nomes como Benozzo Gozzoli, Diego Velázquez e Carlo
Crivelli, dentre outros -, o qual carregava sempre uma igreja e um livro nas mãos e
em seu peito um sol reluzente que dissipa as trevas da ignorância da anticiência e

1 A coisa-em-si que Kant dizia ser incognoscível.


2 Jacques Maritain, A ordem dos conceitos: Lógica Menor, ed. Agir, 6ª ed. 1970, p. 37
3 Intelligentia indivisibilium: Inteligentia ou apreensão porque escolhe (legit) ou capta o essencial e
indivisibilium ou simples porque a ideia ou conceito do essencial é algo uno e simples, enquanto a
imagem sensível é complexa em demasia. (Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofia, p. 53).
Praeterea, diz S. Tomás in Perihermeneias lib. 1, n. 1: «Sicut dicit Philosophus in III De anima,
duplex est operatio intellectus: una quidem, quae dicitur indivisibilium intelligentia, per quam scilicet
intellectus apprehendit essentiam uniuscuiusque rei in seipsa [...]». Tradução nossa: «Como diz o
Filósofo no livro III do De anima, a operação do intelecto é dupla: uma que de fato se diz inteligência
dos indivisíveis, por meio do qual o intelecto apreende as essências de cada uma das coisas em si
mesmas [...]».
Ademais: De Veritate, q. 15, a. 1 arg. 5: «Actus autem intellectus est simplex: est enim intelligentia
indivisibilium, ut dicitur in III De anima». Tradução nossa: «Ora, o ato do intelecto é simples: é, pois, a
inteligência dos indivisíveis, como se diz no livro III do De anima».
da filosofia perniciosa - comumente de cunho averroísta, representado nas telas de
pintura com um Averroes cabisbaixo e humilhado. Santo Tomás, o mais sábio dos
santos e o mais santo dos sábios, diz Caetano, por ter venerado profundamente os
mestres que o precederam, acabou herdando a sabedoria de todos eles 4.
Por seu turno, o étimo ‘estupidez’ deriva em nossa língua do verbo latino
stupere o qual tem como resultado “espantar-se, admirar-se, estupefazer-se” 5 e tem
na língua portuguesa a palavra ‘estupendo’ como co-irmã. Assim, se ‘estupidez’
guarda certa semelhança com a ‘admiração’, não o faz gratuitamente, visto que é
por esta última que nasce a Filosofia, porquanto “los hombres comienzan y
comenzaron siempre a filosofar movidos por la admiración”. Então, é a admiração e
este estupendo que leva o homem a perguntar-se sobre o Universo e colocar-se em

4 Aristóteles diz no Órganon que o nome das coisas podem ser: equívocos, unívocos e análogos.
Dos tomistas, quem melhor sistematizou a questão da analogia foi Santiago Ramírez, O.P., em sua
extensíssima obra De analogia secundum doctrinam aristotelico-thomisticam. De modo geral, há dois
tipos principais de analogia, a saber: Analogia de Atribuição e Analogia de Proporcionalidade.
Analogia de Atribuição divide-se em Analogia de Atribuição Intrínseca e Analogia de Atribuição
Extrínseca, enquanto a Analogia de Proporcionalidade divide-se em Analogia de Proporcionalidade
Própria e em Analogia de Proporcionalidade Imprópria.
Analogia de Atribuição Intrínseca é aquela que se dá quando o significado pelo nome se encontra
realmente em todos os analogados, ou seja, nos sujeitos do qual se predica esse nome, de modo,
porém, desigual por natureza - no primeiro analogado. Neste, de modo perfeito e principal e nos
demais analogados de modo imperfeito e secundário. É deste modo, contudo, que se conhece a
Deus na Metafísica.
Analogia de Atribuição Extrínseca é aquela que se dá quando o significado pelo nome encontra-se
tão somente em um dos analogados, no primeiro deles, ao passo que nos demais, os secundários,
não se encontram e jamais se aplica tal nome, senão por certas relações com o primeiro analogado.
O prof. Daniel Scherer, o qual somos estritamente caudatários, elucida-nos com um exemplo: «É o
caso clássico do são: quem tem saúde, quem é são, (ou seja, o primeiro analogado) é o animal,
enquanto a urina pode dizer-se sã por indicar a saúde do animal, o remédio, o alimento, as
caminhadas por causar a saúde do animal, etc». (A raiz antitomista da modernidade filosófica)
A Analogia de Proporcionalidade é equivalente a qualquer proporção matematizável. Ademais, pode ser
traduzida para a linguagem de notações quantificáveis: a/b = c/d → 10/2 = 5/1 ou A está para B assim como C
está para D {...}. Há dois tipos de Analogia de Proporcionalidade:
Analogia de Proporcionalidade Própria, cuja relação proporcional significada pelo nome análogo é
realizada de modo próprio em ambos os pares dos termos. A título de exemplo, recorreremos
novamente a Scherer, que nos diz: «a relação entre os sentidos e as espécies sensíveis é
proporcionalmente análoga à que se dá no intelecto e as espécies inteligíveis, e em ambos os casos
o nome conhecimento se toma em sentido próprio». (Idem.)
Analogia de Proporcionalidade Imprópria é metafórica. Quando dizemos “visão de mundo”, queremos
fazer uma analogia metafórica de proporcionalidade com a visão corporal. Neste caso, o nome
“visão” se aplica ao intelecto, à razão, de maneira imprópria, conquanto sirva de figura retórica à
linguagem e ao discurso. Esta analogia última é metafórica assim como no exemplo dado no corpo
do texto. A hiena, como animal superior - pois quanto mais sentidos internos, mais esses brutos são
elevados -, possui todos os sentidos externos, e mais os sentidos internos com sede no cérebro, a
saber: sentido comum, a memória e a estimativa, e é esta última que faz dela é uma exímia caçadora
selvagem, dado seu instinto predador. Deste modo, quando se diz que a hiena ri, fala-se por analogia
de atribuição imprópria, uma vez que, como já se disse, para sorrir é necessário ter senso de humor
e para tanto é indispensável a consecução de um intelecto, que é imaterial, uno e oriundo da alma
racional.
Sobre os tipos de analogia, somos caudatários do Padre Penido em seu clássico A função da
Analogia em Teologia Dogmática, 1946, p. 29 ,o qual arremata com precisão: «na atribuição, há
várias relações para um único termo; na proporcionalidade, ausência de termo único, mas
simplesmente relações proporcionadas entre si». Estudaremos, pois, as analogias ainda neste tomo.
5 In Aristotelis Libros Peri Hermeneias et Posteriorum Analyticorum Expositio, cum textu ex
recensione leonina. Cura et Studio R. Spinazzi. Taurini: Marietti, 1955.
marcha, em busca da ciência. Com efeito, aquele que busca a sabedoria, enquanto
stupidus, isto é, ao passo que é incapacitado a algo, enquanto que se move pela
estupefação e pela admiração filosófica, há de fazer as perguntas certas para que
se chegue às devidas respostas, ao fim apodíctico.
Mas a primeira dificuldade que se insinua é que não se pode se soltar se se
desconhece a atadura6, ou seja, ao desconhecer o problema que implica a ciência,
“causa final” da lógica, é impossível chegar em algum porto seguro. A Ars logica,
esta flor exótica no jardim da ciência, que é como nenhuma outra, propedêutica às
demais ciências e demais artes, entra exatamente aqui. A seguir vamos começar
desatar as ataduras, porque a seu modo, a Lógica é consoladora da estupidez e da
ignorância e o faz como uma mãe acalenta seu filho utilizando-se para tanto a
própria razão a qual tem por fim o alcance único e indiscutível da verdade.

A utilidade da ciência aristotélico-tomista

Um agente só se põe a fazer algo tendo em vista um fim. Dito isto, a fim de
desatar a primeira atadura, não é raro observarmos, contudo, um estudante
perguntar-se "Por que estudar a fórmula de Bháskara?" ou congêneres. Respondo.
A Revolução Científica arrancou à força todos os porquês de certas ciências
especulativas e deixou-nos sob o jugo da imposição ditatorial das matemáticas (ens
quantum), como na Física e na Química atuais. Ora, a matemática, ente segundo a
quantidade, é uma ciência média (scientiae mediae7). A Dinâmica não dá causa final
à Cinemática, por exemplo. Na Física moderna, você aprende o funcionamento e o
mecanismo de seus sujeitos, mas não faz ideia dos porquês da maioria deles.
Assim, as Leis de Newton são aplicáveis à realidade, mas como toda Lei - assim
como no Direito, onde há a hermenêutica jurídica - há de se ter um operador que as
interprete e que retire o véu que há por trás de certas leis.
Aristóteles, em sua Filosofia Natural, já havia resolvido isso com o método
das 4 causas: a mais importante delas, aliás, é a Causa Final - esta que se
aplicável, faria o estudante saber o motivo fundamentado pelo qual a fórmula de
Bháskara é importante. Ademais, se algo não se dá na Metafísica, como é o caso
da ciência moderna, a partir do séc. XVI e daí ladeira abaixo, justamente por
abandonar a Filosofia Primeira, nem ciência o é (pois como algo não consegue se
dar enquanto ele mesmo? Se um ente é aquilo que é, como não pode dar-se em si
mesmo?). No mínimo é um abortivo de ciência, como diz Calderón 8.
Esta incoação da ciência tem seu início após a morte de Santo Tomás,
especialmente com a condenação de suas teses por Étienne Tampier junto ao
aristotelismo que chegara ao Ocidente impregnado de filosofias árabes,
especialmente o averroísmo latino encabeçado por, dentre outros, Singer de
Brabante. Sucede-se aí uma decadência intelectual que culmina mais tarde, séculos
depois, com a publicação de Magna Didacta de Jean Amos Comenius, que promete

6 Álvaro Calderón, Logica Mayor, texto esotérico.


7 Álvaro Calderón, La naturaleza y sus causas, tomo I, 2016, p. 108
8 Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, Edições Santo Tomás, 2018, p.111
“ensinar rapidamente, sem preguiça ou aborrecimento” 9, e toda a convergência de
fatores que minaram pouco a pouco as Sete Artes Liberais do Trivium e do
Quadrivium. Tudo isto serviu de terreno para a Ciência Moderna, cuja degeneração
do pensamento englobou por um lado o Nominalismo e a negação dos Universais, o
Pietismo, que rejeitava toda forma de ciência, e por outro o materialismo filosófico e
o mecanicismo que resultou no desmonte da Física Geral aristotélico-tomista 10 em
detrimento da matematização das ciências, a começar pela Cosmologia (ens
mobile) - conquanto que, por seu turno, tenha caducado também certas partes da
Física aristotélica, especialmente os temas tratados em De caelo et mundo.
A partir da ciência experimental do século XVI, a Lógica aristotélica, assim
como acontecera com a Física, começa a ser posta em dúvida. Rompe-se assim a
secular lógica clássica em detrimento das críticas de nomes como Roger Bacon,
René Descartes, dentre outros. Assim, o método indutivo-experimental de Francis
Bacon tem a pretensão de fazer uma ascensão gradual, desde as correlações de
baixo grau de generalidade às de maior nível geral. Mais tarde, ao aplicar o cálculo
algébrico à Lógica, Leibniz reduziu o conhecimento científico ao conjunto de
operações de natureza mecânica a partir de notações combinadas artificialmente 11.
O que por si só é nocivo porque ao criá-las, estabelece-se raciocínios
automatizáveis que têm a pretensão de ter autonomia sobre a cadeia de
pensamentos lógicos e intuitivos por uma combinação de signos, de modo a criar
um alfabeto de pensamentos artificiais12 e forçosamente simples que impossibilitam
o atingimento do real - conquanto sirva de impulso à criação de máquinas
inteligentes.
Nada disso porém, chega aos pés da revolução que viria no século XIX.
Assim, os filósofos ultrapassaram não apenas a investigação dos fenômenos pela
lente do ens quantum, senão criaram uma nova linguagem simbólica de modo a
transformar a Lógica em cálculos e estruturas algébricas, apropriando-se daquela
como se os números fossem os fundamentos do pensamento humano. Logo, os
enunciados viriam a ser atemporais à semelhança das proposições matemáticas - o
que contraria a Lógica clássica, pois “Uma enunciação simples pode ser formada a
partir de um nome e de um verbo [isto é, temporal], mas sem eles não pode ser
formada” (Comentário de Santo Tomás ao Sobre a Interpretação de Aristóteles, cap.
3, p. 43). Ademais: “o verbo é o que não apenas transmite um significado particular,
como também possui uma referência temporal” (Aristóteles, Órganon, 16b5-25, p.
87.) Ou ainda: “Ora, o verbo é o que significa com o tempo, cuja parte separada não
significa nada, e é sempre um sinal dessas coisas que são ditas de outras”.
(Comentário de Santo Tomás ao Sobre a Interpretação de Aristóteles, cap. 3, p. 79).
Atribui-se a George Boole, um dos pais da computação, a criação mais
propriamente dita da lógica-matemática em sua obra Mathematical Analysis of
Logic, being an essay towards a calculus of deductive reasoning, tendo sido

9 S. Tomás, Quaestiones disputatae de anima, q. IV, a.3


10 A analogia é de Santo Tomás nas Quaestiones disputatae de anima, q. IV, a.7
11 Lat. conceptus, i.e., concebido [de outro], Dicionário do Latim Essencial, ed. Autêntica, 2008.
12 Dice Martínez Riu, Dicc. de Filosofía, Herder.
publicada a primeira edição em 1847 em Cambridge 13, onde a lógica foi reduzida a
simples cálculo de signos algébricos, nada obstante fundamental para o posterior
desenho de circuitos de computadores eletrônicos e linguagem de programação.
Nos séculos XIX e XX, o atomismo lógico de Bertrand Russell e a “virada linguística”
de Wittgenstein darão passos mais firmes e decisivos nesse viés matemático-
linguístico da Lógica, da Filosofia e da Linguagem, cada qual à sua maneira, seja
acreditando que o papel da Filosofia seja basicamente organizar a linguagem, seja
incutindo-lhe bases epistemológicas. Dá-se a partir daí uma “filosofia analítica”, que
mais tarde combinar-se-á erroneamente com o tomismo a ponto de surgirem nomes
e correntes como “tomismo analítico”, “tomismo transcendental”, “Tomismo de
Lublin”, “tomismo wittgensteiniano” e congêneres, os quais, por evidência, não
somos caudatários.
Lembremo-nos, pois, do que dissera Eric Voegelin, ainda nos anos 1920: “Se
há algo característico das ideologias e dos ideólogos é a destruição da linguagem,
ora no nível do jargão intelectual de alto grau de complexidade, ora no nível
vulgar”14, esse intercâmbio lógico, seja nos números, seja na sofística, irá
obscurecer ainda mais a mente do homem moderno, apto a cair em discursos
totalitários com aparência salvadora15, porque segundo o cientista político “se as
premissas estão erradas, tudo o que delas se segue também está errado, e é por
isso que um bom ideólogo precisa impedir que sejam discutidas”, ou seja, por falta
de lógica pura e simples. Tão artificial quanto os números.
Tais filosofias eivadas de equívocos não carregam erros somente lógicos. Ao
negar a metafísica, (que é um “patamar” acima da lógica, pois trabalha com o ente e
demais objetos da lógica), por exemplo, chega-se de certo modo à Fenomenologia .
Gilles Deleuze, por exemplo, em Critique et clinique et L’Île Déserte disse que Alfred
Jerry, o grande dramaturgo francês, com sua ‘Patafísica, abrira espaço para a
Fenomenologia - um precursor, portanto. Com efeito, a ‘Patafísica é “a ciência das
soluções imaginárias”, que utiliza o nonsense para explicar a existência e o absurdo
existencial, e que tem por missão sarcasticamente “explicar os campos negligenciados
da física e da metafísica”, pois para eles esta ciência imaginária significa
etimologicamente “o que está acima do que está além da física”.
Assim, em 1941, criou-se um ‘Collegivm Pataphysicvm’ cujos membros, dentre
os quais Duchamp e Boris Vian, dedicavam tempo à invenção de trocadilhos e a jogos
de Oulipo ou a escrever romances sem a vogal “e” (a mais usada na língua francesa).
Além disso, a ‘Patafísica nega o princípio de identidade e rejeita o princípio da não-
contradição, aceitando assim mundos opostos e ilógicos por puro divertimento e caindo
no trivialismo. Dessa negligência lógica e metafísica só pode nascer algo como a
Fenomenologia, isto é, a redução daquilo que é a própria realidade em si mesma por
“objetos da consciência” e seus desdobramentos, de modo individualizante, para cada
13 Santo Tomás de Aquino, El ente y la esencia (De ente et essentia opusculum - 1252-1256), 4ª
edición, M. Aguillar Editor, Biblioteca de inicición filosofica, Buenos Aires, 1963.
14 Álvaro Calderón, Lógica Mayor, texto esotérico
15 Há uma divisão anterior na Árvore de Porfírio acerca da substância, a saber: corporea e
incorporea na Substantia e que é o início do problema porfiriano, pois, “incorporea” se trata das
substâncias separadas ou criaturas espirituais (que são forma sem matéria) da qual trataremos
especificamente em nosso Tratado de Metafísica.
indivíduo - o que aliás cai como uma luva a qualquer ficção freudiana. Para eles, a
‘Patafísica é uma nova compreensão do fenômeno, não como uma aparição de Husserl,
mas o fenômeno em si mesmo, irônico e ficcionalmente. Lembremo-nos, pois, de
Heiddeger, que dizia que “a ontologia só é possível como fenomenologia”. Daí que
chegam até o limite do nonsense, porquanto a ‘Patafísica é a própria fronteira entre
ficção e realidade. Considerada como “ciência” e se esta se serve como matéria prima à
Fenomenologia, a quem crê no princípio de não-contradição, o resultado é evidente.
Já em Boole, contudo, seguido por lógicos posteriores, cometeu o erro de ter
acabado com as restrições impostas à lógica aristotélica que afirmava que existia
uma infinidade de raciocínios válidos e não válidos (princípio de não-contradição,
dentre outros).
Esta é a grande distinção a qual defendemos aqui: a lógica-matemática
serve-se à máquina, à tecnologia, ao hic et nunc, isto é, ao aqui e agora, serve-se
mais secundum quid ao homem em si porque tem seu fim em outra coisa, na
máquina16; faz-se aí uma descrição matematizada da realidade e do sujeito o qual
se debruça. Ao passo que a Lógica aristotélico-tomista, de viés mais propriamente
orgânico, serve-se ao homem de modo simpliciter, ao pensamento diacrônico e
temporal, como veremos nas três operações do intelecto, este que o acompanha
desde a aurora dos tempos.
A descrição do mundo jamais há de ser quantitativa, senão buscada pela
essência das coisas.
Tanto o é que aquela pergunta inicial feita pelo estudante hipotético ainda
perdura e se questiona sempre sobre as causas. A ciência é um conhecimento
pelas causas, identificar a causa das coisas é ciência, diz o aristotelismo-tomismo,
porque a ciência para este não se desprende da filosofia como o faz a ciência
moderna. Neste sentido, ciência e filosofia são a mesma coisa. Esta é a utilidade de
nossa ciência tomista, ao contrário do que diz a atual pseudociência.
E ao filósofo moderno, que diz que a lógica aristotélica já foi superada e que
brada nas universidades que se se quebra o princípio de não-contradição chega-se a
outros patamares, digo que está corretíssimo, pois se você tiver dor de dente, basta
decepar sua cabeça.

A ordem e a distinção da exposição desta ciência

Entende-se por ciência ao mesmo modo de filosofia uma vez que ambas
debruçam-se sobre a mesma coisa, o mesmo sujeito: a realidade. Esta que, por
evidência, é una. Se vemos um carro se chocar contra um poste, vemos e ouvimos
tudo ao mesmo tempo, conquanto cheguem a nós por dois sentidos externos
diferentes, a saber, a visão e a audição, que são unificados em nosso intelecto pelo
sentido comum. Então, se há uma adequação da realidade ao intelecto ao se
constituir uma verdade e esta mesma realidade una é sujeito (ou objeto formal) da
ciência e da filosofia, logo, ambas só podem significar a mesma coisa.

16 Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, Edições Santo Tomás, 2016, p. 25
A Lógica, que conduz o ato da razão a fim de alcançar seu fim com ordem,
com facilidade e sem erro, consoladora de nossas iniquidades intelectuais, utiliza-se
da própria razão a qual tem por fim o alcance da verdade ou da ciência
propriamente dita. Assim, nosso pensamento deve ser ordenado, preciso e coerente
para que se mature a inteligência, que é o que fará mais adiante o estudo da lógica,
esta ciência-arte que não é um fim em si mesma, senão que este “prêmio” dada por
ela que não é nada mais do que pensar retamente estará, pouco a pouco, a serviço
do conhecimento da verdade. É para esta meta última a que se há de orientar o
pensamento lógico17.
Então, para que se entenda cabalmente isto em nosso Tratactus Logiae,
daremos uma breve Introdução à Filosofia que servirá de umbral à Lógica, não
obstante uma faça parte da outra, apresentando as primeiras noções filosóficas
relativas aos conceitos que servirão de pedra angular à Lógica Menor e Lógica
Maior, propriamente ditas. Começa-se portanto pela noção do que primeiro nos
chega aos sentidos, seguido dos métodos para reconhecimento daquilo que
circunda a realidade, o que é próprio do lógico, do físico e do metafísico, sua
simples evidência inicial.
Explicaremos o ente e suas implicações na realidade e na mente do homem,
motivo aliás da famosa Querela dos Universais, questões que se propagam ao
longo do tempo na História da Filosofia e chega-nos até nós como problema
insolúvel nos dias hodiernos, como em, por exemplo, o Tractatus Logico-
Philosophicus, de Wittgenstein, de 1921. Daremos em seguida as substâncias, os
acidentes, as quididades e os processos de definição e divisão, dando também as
perguntas pelas propriedades das coisas e se estas se dão em tal ou qual coisa,
sempre seguindo uma reflexão de ordem lógica até chegarmos às três operações
do intelecto, coração da chamada Lógica Menor.
Como a Lógica é uma ciência propedêutica, convém iniciar sabendo como as
coisas chegam até nós e como nós as abstraímos. Ademais, debruçaremos sobre
seu sujeito, os entes de razão, e como nós tratamos as coisas reais em relação ao
intelecto. Em seguida, aparecerá como a Lógica pode ser entendida como ciência e
arte ao mesmo tempo, quais seus sujeitos e definições; suas propriedades: sua
unidade, sua verdade e sua bondade enquanto universal, isto é, enquanto
necessidade. Daremos por fim o método da Lógica, sua relação com a linguagem e
a gramática (causa material, causa formal, causa eficiente e causa final) e sua ordo
disciplinae. Na Lógica Maior daremos vazão à Lógica em si mesma, os Predicáveis,
os quais estarão a Isagoge de Porfírio como introdução ao Órganon, em seguida
estudaremos propriamente as Categorias, depois as Analogias e seus tipos e
modos, os Transcendentais, as Proposições e suas implicações, o tratado da
Demonstração e fecharemos com a Sofística, abarcando assim a totalidade de
nosso tratado.

17 Álvaro Calderón, Umbrales a la Filosofía: cuatro introducciones tomistas, 1ª ed., Moreno, edição
do autor, 2011, p. 43.
Acerca do empenho deste tratado

Sobre o trabalho e sua virtude meritória, diz Santo Tomás que nem sempre
uma obra possui maior mérito por ser mais laboriosa e difícil. Depois dá um quadro
geral sobre os dois modos pelos quais uma obra pode ser concebida à duras penas:
i. pela grandeza da obra, e assim a grandeza do trabalho deve pertencer ao
aumento do mérito porque a caridade, ainda que possa converter as coisas terríveis
e violentas em fáceis e quase nulas, não deve diminuir o trabalho, antes porém,
deve fazer acometer maiores empresas - porquanto, mais meritórias; pois, como diz
S. Gregório, quando existe, faz grandes coisas;
ii. por defeito do agente mesmo, o qual tem em vista um fim, pois a cada qual
é penoso e difícil o que não faz com pronta vontade; e tal trabalho diminui o mérito e
é anulado pela caridade18.
Espero que esta obra não tenha sido concebida por defeito do agente, pelo
menos de forma culposa, levando-se em conta as debilidades do mesmo. Sabe-se
que “de todos os bens, o mais espiritual é a sabedoria” e isto, como já dito, não se
alcança individualmente. Ao erigir a catedral que é este tratado, tentamos seguir
fielmente à letra e o espírito de Santo Tomás e aos Tomistas. Seja clareando certas
partes, seja analisando pontos de vista entre os diversos seguidores do Aquinate ao
passar dos séculos, tentando refutar, na medida do possível, com a letra de nosso
Doctor Universalis, as teorias contemporâneas que vão contra à razão, o que não é
fácil em uma sociedade que quando muito relativiza a verdade, tomando-a, na maior
parte das vezes como inexistente.
Santo Tomás escreveu a Summa Contra Gentiles a pedido de S. Raimundo
de Penaforte, conselheiro do rei de Aragão, Jaime I, o Conquistador, a fim de
debelar os erros dos povos gentios da Península Ibérica. Na primeira parte, diz o
Doutor Angélico que para dialogar com os judeus seria sensato utilizar somente o
Antigo Testamento.
Ao dialogar com os albigenses ou cátaros e demais cristãos hereges
bastava-lhe o Novo Testamento, pois eles reconheceriam a autoridade escriturística
deste. Aos árabes, maometanos, mouros etc, teria que disputar, contudo,
recorrendo à razão natural “com a qual todos são obrigados a concordar 19”.
Hoje, no mundo contemporâneo, rebentado de secularismos de gêneros e
espécies sortidas, devemos recorrer mais uma vez à razão natural (conquanto
pareça sumamente redundante dizê-lo), porque, como diz Daniel Scherer:
“precisamos de um tomismo de raiz para confrontar a cultura moderna, porque a
cultura moderna é, ao menos em parte, antitomista em sua raiz”. Os prolegômenos
deste confronto, conquanto tarefa árdua, são facultados em sua razão natural pela
arte da Lógica que aplaina de modo seguro o caminho concreto em direção à

18 Álvaro Calderón, Umbrales de la filosofía, 1ª ed., 2011, p. 44


19 Lat. unium versus, isto é, ‘um para’ - um para a totalidade. «Universale est quod pluribus inesse
natum est.». Segue tradução nossa: «Diz-se universal aquilo que por natureza se dá em muitos»
Aristóteles, Metafísica, l.7, cap. 13, 1038 b 11.
verdade. Dito isto, fica evidenciado portanto a que parte da Filosofia este livro
pertence, qual sua necessidade e qual é o seu lugar nos livros de Lógica 20.

CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO À FILOSOFIA

Conta Cícero, que Leonte, rei dos filiacos, admirado com a sabedoria de
Pitágoras, perguntou-lhe qual era seu ofício. Eis que o sábio respondeu: Não sou

20 Idem.
ninguém em particular, sou um simples filósofo (φιλόσοφος). Mais tarde, assim
ficaram conhecidos os que se dedicavam a investigar as mais altas verdades da
ciência e da arte e de todos os que atingiam, ainda que só pelas luzes da razão
natural, a vida contemplativa do homem21.
Apesar de o grande candeeiro da Filosofia de todos os tempos denominar-se
teólogo, Santo Tomás de Aquino dizia sempre philosophia ancilla theologiae, ou
seja, a primeira é serva desta última, e assim falava sobre aquela: “o objetivo da
Filosofia não é saber o que os homens pensaram, mas sim qual é a verdade das
coisas”22.
Assim, o vocábulo Filosofia provém do grego φιλοσοφία e significa “amor à
sabedoria” ou “amor à verdade”, pois não é outra coisa senão sábio aquele que
alcança a verdade. Alguns afirmam ainda que a palavra latina philosophia traz sua
origem do hebraico, porque o étimo sophós (σοφία) que entra em sua composição
grega tem seu radical enraizado em um verbo hebraico que significa “contemplar” 23.
A tradição clássica que vem de Heródoto atribui a origem do alfabeto grego
ao alfabeto semítico ocidental, similar ao hebraico. Tal consenso dá-se porque, em
primeiro lugar, de acordo com a tradição ateniense, o alfabeto grego foi introduzido
pelos fenícios; em segundo lugar, os nomes das letras do alfabeto grego ( alfa, beta,
gamma, delta etc.) não possuem significado próprio, somente equivalentes
semíticas (alef, beth, gimmel, dalet etc); em terceiro, a sequência das letras gregas
são mantém parentesco com as do aramaico e do hebraico 24. Logo, parece haver
um ancestral comum da escrita dos idiomas hebraico e grego.
Isto posto, vemos que a palavra hebraica chokhmah (‫ )חכמה‬parece
corresponder mais exatamente ao vocábulo grego “sophós”, visto que é a tradução
corrente da bíblia hebraica para o grego koiné. Ademais, o étimo sophós (σοφός),
que se traduz como "sábio" junto com seu substantivo abstrato “sophia”,
compartilha a mesma raiz proto-indo-europeia que o verbo latino “sapere”
(saborear/discernir/saber), de onde se origina o substantivo sapientia, de significado
literal “sabedoria”25.
Filosofia26 ou “amor à sabedoria”, portanto, nasce da admiração do homem,

21 Idem..
22 Álvaro Calderón, Umbrales de la filosofía, 1ª ed., 2011, p. 45
23 In II Post. Analyt. lect. 2, n. 419.
24 Lógica Mayor, texto esotérico
25 «Praeterea, definitio proprie competit speciei. Ea ergo quae non sunt definibilia, non videtur esse
in speciei. Sed Angelus et anima non sunt definibilia, cum non sint composita ex materia et forma, ut
supra ostensum est; in omni enim definitione est aliquid ut materia, et aliquid ut forma, ut patet per
philosophum in VII Metaph.: ubi ipse dicit quod si species rerum essent sine materia, ut Plato posuit,
non essent definibiles. Ergo Angelus et anima non proprie possunt dici specie differre» Questões
Disputadas sobre a alma, q. 7, ad 16., É Realizações, 2014, p. 144-145.
26 «Manifestum est enim quod cum potentia et actus dividans ens et cum quodlibet genus per actum
et potentiam dividatur; id communiter materia prima nominatur quod est in genere substantiae, ut
potentia quaedam intellecta praeter omnem speciem et formam, et etiam praeter privationem; quae
tamen est susceptiva et formarum et privationum, ut pater per. August. XII Confess. et I super Genes.
ad litteram, et per philosophum in VII Metaph.» Questões disputadas sobre as criaturas espirituais
(Questio disputata de spiritualibus creturis), a. 1; “Et primo quaeritur utrum substantia spiritualis sit
composita ex materia et forma”, respondeo, É Realizações, 2017, p. 34-37
de seu modo natural de se espantar com todas as coisas porque los hombres
comienzan y comenzaron siempre a filosofar movidos por la admiración, esta
admiração que fomenta no homem o desejo de saber e de se perguntar sobre as
coisas, sobre o Universo, sobre tudo, e o impulsiona a colocar-se em marcha em
busca da ciência e da verdade, isto é, da verdadeira sabedoria 27.
Assim, a Filosofia pode ser conceituada do seguinte modo:

“É a ciência do ser em si mesmo e nas primeiras causas à luz da razão


natural”28.

E esta mesma Filosofia traduz-se em uma forma superior de saber humano,


pois como ciência, é um conhecimento certo das causas e fruto de demonstração;
contudo, não basta conhecer as causas, o que poderia se dar por mera causalidade,
é necessário, porém, saber suas razões e propriedades, dada por demonstração,
esta sim científica29.
Para o Doutor Angélico, a ciência nada mais é do que um "hábito", isto é,
uma determinação permanente do espírito ou intelecto, adquirida pela repetição de
atos que possibilita a razão apreender com segurança e não com probabilidade as
causas do ser sobre o que versa sua investigação.
Esta chama, contudo, nasce sempre da natureza mesma do homem porque
toda natureza tem inclinação natural para a operação que lhe é própria, sendo, pois,
a operação principal do homem enquanto si mesmo conhecer e entender, tomar
posse da sabedoria, pois “todos os homens desejam por natureza saber” 30.
E esta sabedoria do homem não é conhecer propriamente senão de modo
especial ou excelente. Isto decorre da natureza, pois os animais, por exemplo,
conhecem, mas não sabem. Um cão, por exemplo, move seu pescoço ou
horizontalmente ou para baixo porque foi criado para conhecer o mundo sensível
que o circunda, por exemplo, quando ele cheira um alimento ou uma cadela etc; ao
contrário de um animal inferior que possui só o tato, como uma ostra ou uma
esponja-do-mar o tem.
Dos sentidos externos nos seres vivos, o mais alto é a visão, e é por isso que
quando passa um vulto próximo a nós, a tendência é que olhemos rapidamente para
este objeto que nos atravessa; e porquanto o tato seja o mais ínfimo, fiquemos com
receio de tocar algo desconhecido com as mãos. O homem, ao contrário dos
animais, move a cabeça também para o alto, para o céu, isto porque é capaz, a
partir do intelecto, de contemplar aquilo que os brutos, os irracionais, não são
capazes. Por exemplo: a beleza de um arco-íris.
Este intelecto humano, aquele que todos os homens têm a partir da alma
racional, ultrapassa sempre os sentidos e nos permite chegar ao conhecimento mais

27 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía, p. 46.


28 Idem.
29 Idem.
30 Idem.
excelente, que é a ciência ou filosofia. Portanto, se os sentidos externos têm um
objeto específico o qual se debruçam, o intelecto também o deve ter.

Ente, o primo cognitum

Assim como o objeto da visão é a cor e o objeto da audição é o som, o sujeito


do intelecto é aquilo que é. A palavra ente, em grego ὄυ e em latim ens, entis,
significa aquilo que é. Pelo intelecto nós podemos conhecer a realidade e pela
linguagem comunicamos tudo o que conhecemos, a começar pela pergunta “o que é
isto?” (quid sit?), a primeira pergunta da Filosofia. A realidade é exatamente o que é
conhecido por nosso intelecto e o ente é o primo cognitum, isto é, o primeiro
inteligido.
Todo conhecimento, pois, começa com a experiência sensível (tato, paladar,
olfato, audição e visão) sobre a qual podem ser desdobrados vários graus de
abstração. O mundo sensível nasce da realidade pura e existe independente de
nós. Se houvesse um cataclisma natural ou um ataque biológico que eliminasse
toda e somente a humanidade, o resto do mundo permaneceria como antes. As
árvores, por exemplo, farfalhariam ao influxo do vento da mesma forma, logo
prescindem de intervenção humana.
A noção de ente como primeiro na ordem do conhecer, distingue ‘algo’ de
‘nada’. O ente é aquilo que é ou tem que ser, mas não é o ser. Há o ente porque há
o ser, logo o ser precede o ente. Sobre o último, portanto, pode-se dizer de duplo
modo.
Em primeiro lugar, o ente se divide em dez gêneros ou categorias, acepção a
qual significa a substância e seus predicamentos. Se é assim, em segundo lugar
convém que a essência signifique algo comum a todas as naturezas pelas quais os
distintos entes se ordenem em gêneros distintos e em espécies distintas, como a
humanidade é a essência ou quididade do homem 31.
O vocábulo quididade é empregado pela tradução latina da definição
aristotélica de essência, em grego το τη εν είναι vertida para o latim Quod quid erat
esse, a qual responde a pergunta “o que é”32.
Portanto, se o ente é aquilo pelo qual alguma coisa é e tem que ser, então
sua definição está expressa na essência. E se isto é assim, a primeira pergunta a se
fazer, evidentemente, é “o que é esta coisa?” ou mais precisamente “Quais os
aspectos essenciais sem os quais não se pode conhecer tal ou qual coisa?”.
Em latim diz-se “quid est” ou “quid sit” a esta pergunta que distingue os
aspectos essenciais dos aspectos acidentais da qual decorre sua resposta: a
quididade. A quididade ou essência é a chave para tal pergunta.

31 Idem.
32 “A Ciência da Arte do Belo [é] calcada nas quatro causas aristotélicas: especificada por seu
sujeito [pois o sujeito especifica a arte como o fim determina o agente], suas partes, suas
propriedades, suas causas e seus efeitos, como toda ciência completa deve ser. Com efeito, se as
artes se definem por seu fim, como dizia Santo Tomás de Aquino, é cabal que haja uma ciência que
seja gênero das artes que lhes são espécie, a saber: a literatura, a música, a escultura, a pintura, a
dança, o cinema, et ita porro” Lucas Daniel Tomáz de Aquino, Sobre a Arte do Belo in Opúsculos
Tomistas. Para maior aprofundamento, por gentileza, cf. Carlos Nougué, Da Arte do Belo (Edições
Santo Tomás, 2018, 590 p.),
A noção de quidditas e essentia relaciona-se também com a problemática
medieval da distinção entre essência e existência. Santo Tomás emprega a noção
de essência entendida como forma que determina a matéria 33 e a essência constitui,
primeiramente, o polo oposto ao da existência. Tal qual a existência responde a
questão “se” um ente existe (An sit), a essência responde a “o que é” um ente (Quid
sit), e é por isso que uma essência se chama também quididade.
Já a palavra ‘quididade’ vem de quod quid est, e representa aquilo que a
coisa é: quidditas, quid, quididade34. Essência vem de essentialis que por seu turno
vem de esse (ser) e é aquilo em que consiste ser tal ou qual coisa 35.
Os aspectos dos entes ou são entes per se, dos quais decorre quididade ou
essência própria e una - como em, por exemplo, “homem” - ou são entes per
accidens dotado de quididades ou essências distintas - como em, por exemplo,
“homem músico”. Os aspectos da essência, conquanto esta seja una, se desdobram
em um processo pelo qual o intelecto elucida seu conhecimento das essências e
chama-se divisão, daí que o termo deste processo se chame mesmo divisão. Na
lógica maior isso é explanado de forma apodíctica.
«Dividimos propriamente uma quididade genérica
quando, entre aquelas coisas que participam desse aspecto
genérico essencial, achamos que umas possuem-no de certo
modo e outras de modo essencialmente diferente [...]. Nem
toda distinção essencial pode-se dizer “divisão” propriamente
dita. Esta se dá quando o gênero se divide naquilo mesmo que
o constitui como tal [...] Ao dividir as substâncias em viventes e
não viventes, nós o fazemos precisamente segundo as
maneiras de sub-stare [ao modo de substância] [...]. “Definir”
uma coisa é discernir entre os limites do que a coisa é, ou seja,
achar determinadamente todos os aspectos essenciais da coisa
de tal maneira que conheçamos perfeitamente seu quod quid
est res. Então, a “definição” de uma coisa é a explicação cabal
de sua quididade [...]. [Isto é] Uma definição tão genérica que
não inclua outra semelhança mais geral que esta [ela mesma]
com as demais coisas, como se passa com “substância”, a qual
significa “o que é sustentáculo de acidentes”, porém toda esta

33 “Ars est <<recta ratio factibilium>>; prudentia vero est <<recta ratio agibilium>>. Different autem
facere et agere quia, ut dicitur in IX Metaphys., factio est actus transiens in exteriorem materiam,
sicut aedificare, secare et huiusmodi, agere autem est actus permanens in ipso agente, sicut videre,
velle et huiusmod” Thomae Aquinatis in Summa Theologiae, I-II, q. 57, a.4.
A tradução livre é nossa: “Arte é a ‘reta razão das coisas factíveis’ [ou do fazer], enquanto a
prudência é ‘reta razão do agir’. São coisas diferentes o fazer e o agir, como diz o Filósofo no livro IX
da Metafísica. Fazer é um ato que transita para uma matéria exterior como construir, cortar etc; agir
é um ato que permanece no próprio agente tal qual ver, querer etc”.
34 Pe. Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofia: cuatro introducciones tomistas, 2011, 1ª edição,
p.129-130, tradução nossa.
35 Idem..
oratio segue denotando um único e simples aspecto quiditativo
presente ao espírito”36»

Assim, ao responder a quid sit ou quid est devemos levar em consideração


certos fatores dos quais resulta em abandonarmos os aspectos acidentais do ente e
ficarmos somente com seus aspectos essenciais. Destarte, para completa resposta
a quid sit ou quid est, é apodíctico analisar os conceitos que virão a seguir.

Substância e Acidente

Substância é aquilo que primeiro nos dá aos sentidos, aquilo que subsiste por
si mesmo e é suporte de acidentes, aquilo que sub-stat. O ato próprio da substância
é ser por si e em outro , ou seja, ser pela e na substância. Falamos de substância
quando esta indica aquilo que existe por si e em si mesmo, como que “sub-está”
neste suporte de aspectos acidentais. E bem, assim como vemos a cor da pele de
um homem ou mulher, umas mais claras outras mais escuras ou ouvimos suas
vozes, umas mais agudas e outras mais intensas. Estes aspectos que podem
modificar-se estão como que apoiados nesta substância mesma chamada 'homem'
e são chamados acidentes37.
Os acidentes, do latim accidens, de ad caere, isto é, literalmente “cair sobre”
ou filologicamente equivalente a “acontecer, ocorrer, suceder”, dizem respeito aos

36 Henri-Dominique Gardeil, Introdução à Filosofia de Santo Tomás de Aquino.


37 Toda substância sensível é sujeita à mudança (livro X da Metafísica). O maior nível de
transformação possível de um ente na “esfera sublunar”, segundo o Filósofo, é a geração e a
corrupção; mas a matéria sensível comporta outros tipos de mudanças, porque recebe outras classes
de contrariedades. A capacidade de movimento ou mudança da matéria se dá nas partes subjetivas
da Física Geral. Mas essa mudança se dá de modo mais substancial e mais propriamente na
geração e corrupção, ao passo que nas demais, a afetação se dá apenas por mudanças acidentais,
porquanto a substância permanece a mesma enquanto mudança. Nas partes da Física, está contida
a Psicologia ou alteração, assim «para a Psicologia Moderna, há uma negação da forma (alma) em
detrimento da matéria (corpo). Como se o último prescindisse do primeiro. Há que explicitar, porém,
que a alma está para o corpo como o ato está para a potência. Assim, se se nega a Anima (alma),
nega-se o Ser, posto que a animação da vida vem da alma, que, conquanto imóvel (La naturaleza y
sus causas, tomo I, p. 65), é princípio do ente móvel. A alma, portanto, tem 3 partes potenciais, a
saber: intelectiva ou racional, que ultrapassa a natureza corpórea e que é intrínseca ao homem; a
parte sensitiva, cuja operação dá-se também aos animais e por fim a alma vegetativa, princípio
anímico comum a todos os seres vivos. Porquanto a Física Geral é ciência do ens mobile, segue-se
que há capacidade de mudança na matéria ou na substância, logo:
Química - o ente segundo a essência, que é geração e corrupção (dada na essência a partir de
criação e destruição) o maior nível de transformação possível na esfera sublunar;
Biologia - ente segundo aumento e diminuição de quantidade, como mudança por agregação ou
dissolução da magnitude do objeto;
Cosmologia - ente segundo translação, movimento local ou ubiquidade, como se dá por exemplo nos
astros.
Psicologia - ente segundo a alteração de algo para não algo e não algo para algo (onde há mudança
na qualidade).
Não é gratuito, pois, que o pós-modernismo sofra transtornos diversos por dar preferência à matéria -
seja corpo, seja bens materiais - em detrimento de qualquer princípio formal. Psicólogo que faz
terapia é um destes sintomas.» Lucas Daniel Tomáz de Aquino, Da Psicologia - ente segundo a
alteração in Opúsculos Tomistas. Estudaremos detidamente tudo isso em nosso Tratado de
Psicologia.
demais aspectos. É-lhes próprio, como “ente débil”, ser por outro e em outro, isto é,
na substância. Estão, pois, os acidentes nas substâncias assim “como a ciência
humana é inteiramente dependente do espírito que a tem e a sustenta” 38.
Um exemplo para elucidar estes dois conceitos seria este: o homem é uma
substância, ele existe por si mesmo. Se ele tem olhos verdes ou castanhos, cor
negra ou parda, não faz diferença, pois jamais deixará de ser este homem in re e de
modo simpliciter; ou seja, esta ou aquela substância; já os aspectos cambiantes
desta substância, a cor dos olhos e da pele, os cabelos lisos ou crespos, i.e.,
particularidades secundum quid, são os acidentes.
É, pois, desprezando os aspectos acidentais e ficando com os aspectos
essenciais que chegamos à definição de “homem”, por exemplo, como em animal
racional. Esta substância chamada ‘homem’ por sua vez, tem por definição cabal:
substância, vivente, sensível, animal, racional e sua imagem intelectual é a imitação
daquilo que chamamos ‘homem’. Sua definição cabal dá-se porque falamos “animal
racional”
onde “animal” é seu gênero próximo e “racional” sua diferença específica.
Veremos estes conceitos mais adiante.O substantivo ‘homem’, é apenas o signo
verbal desta paixão que temos de homem, apesar de ‘homem’ ser também, em
última análise, um universal. Os substantivos, na gramática, vem de substância, é
um designador dela tal qual os pronomes. Veremos isso mais adiante na gramática
propriamente dita.
Sendo assim a substância é um gênero supremo, generalissimus, o qual não
se confunde com ente de forma alguma, este que não pode ser gênero, pois “todo
gênero comporta diferenças que não pertencem à essência deste gênero” 39, logo o
não-ente não pode constituir diferença. Em outras palavras, o ente é tudo que há, a
substância e os nove acidentes; a substância, o ente simpliciter ou cabal, os
acidentes, entes secundum quid ou por certo aspecto. Substância, em grego, οὐσία,
como veremos adiante, é, além de sustentáculo de acidentes, a primeira quididade
ou essência, o gênero supremo ou generalíssimo.
Os acidentes, portanto, só existem na substância. Aristóteles distinguia nove
gêneros de acidentes os quais, juntamente com a substância, que é gênero
supremo, compunham as dez categorias do ente em seu livro homônimo, o qual
abre o Órganon. Os nove gêneros de acidentes são, a saber: quantidade, qualidade,
relação, lugar ou onde, tempo ou quando, posição ou situação, hábito ou estado,
ação e paixão.
Além disso, há duas classes de acidentes: os propriamente ditos e as
propriedades (ou acidentes próprios). A primeira classe é composta de acidentes
propriamente ditos, os quais são de fácil reconhecimento.
Um acidente propriamente dito, só de olhar, percebemo-lo, como uma mesa
qualquer, por exemplo, de cor branca, a qual há potência para ser de outra cor. Se
há um pintor que a pinte de púrpura, está aí modificado o acidente propriamente
dito. Esta classe de acidentes, todavia, não responde a qualquer questão científica
38 Édouard Hugon, Os princípios da filosofia de Santo Tomás de Aquino, EDIPUCRS, 1998, p. 74.
39 Santo Tomás de Aquino, In Anal. Post., I, proem., n. 4.
em virtude de que a ciência não diz respeito ao evidente, senão à investigação, à
demonstração, ao silogismo.
A segunda classe de acidentes é chamada de acidentes próprios ou
propriedades. São os acidentes que sempre se dão em tal ou qual substância,
decorrente de sua essência, de modo que se lhe faltam estes aspectos, encerra
imperfeição na substância. Ademais, as propriedades implicam as questões ditas
acima: quid est ou quid sit, questão quia e propter quid, ou seja, as científicas.
A oração “o homem é um ser político” decorre de que, além de uma
qualidade no sentido adjetivado, está atrelada a noção de que “ser político” está no
homem e é inerente a este. Um animal irracional por exemplo é incapaz de ser
social ou político, pois é desprovido de intelecto. Se se falta esta qualidade, não se
pode tratar-se de um homem, posto que ser político e social só se dá pelo intelecto
que é intrinsecamente humano. Costumamos dizer que a hiena é um animal que
sorri, mas o fazemos somente por analogia, precisamente pela analogia de
proporcionalidade imprópria40, visto que rir, ter senso de humor, é decorrente do
intelecto humano, de sua alma racional.

Distinção numérica

Na distinção numérica há, como em outras diferenças substanciais,


semelhanças e diferenças. Nas noções acima descritas, havemos de notar uma
certa comparação de aspectos: do semelhante tomamos o essencial e do diferente
tomamos o acidental porque o intelecto somente alcança o essencial e quiditativo
por intermédio de comparações entre semelhanças e diferenças.
Duas coisas são semelhantes se forem parcialmente iguais e duas coisas
são diferentes se forem parcialmente diferentes, por conseguinte, não se pode
estabelecer uma similaridade sem estabelecer ao mesmo tempo uma diferença e
vice-versa. Por analogia, não podemos determinar um pai sem conhecer o filho,
porque ao mostrar que é igual em parte mostra-se por outra parte que é distinto e
vice-versa.
Quando nos atentamos às semelhanças e diferenças das coisas,
percebemos que existem substâncias diversas. Se há um halo dourado no céu não
podemos saber se é uma diferença acidental de uma mesma substância, como uma
esfera celeste, ou são diferentes substâncias, como o sol e o céu. Se vemos,
porém, um cão e um gato lado a lado, sabemos que ambos são semelhantes
enquanto substância, contudo sabemos inequivocamente que se trata de duas
substâncias diferentes: um cão é uma substância e um gato outro é outra
substância. Esta diferença é chamada distinção numérica, porque distingue as
substâncias pelo número, um é um, outro é outro. Logo, não é um contraste

40 Lat. phantāsma, ātis: imagem sensível. Os escolásticos deram o nome de «abstração» ao


procedimento pelo qual o intelecto concebe a ideia a partir do phantāsmata. Abstrair, por sua vez,
vem de abs-trahere; a preposição a, ab, abs quer dizer ponto de origem ou de referência, isto é, de
seu lugar propriamente dito, ao passo que trahere equivale ao verbo «trazer»; o que equivale
explanar então que abs-trahere é «trazer de algum lugar»: o ponto de partida a qual estava
originalmente.
acidental, mas essencial ou quiditativo. O gato não é essencial para o cão, nem o
cão para o gato. Ambas as substâncias são sujeitos diferentes de diferentes
sensações.

Distinção específica

Na distinção específica há, como em outras diferenças substanciais,


semelhanças e diferenças. Nessa classe de distinção, as espécies de substâncias
são essencialmente semelhantes e só acidentalmente diferentes, embora sejam
essencialmente distintas de outras coisas. Quando vemos que certos tipos de
substâncias são semelhantes na conjunção de aspectos sensíveis pelos quais são
conhecidos - aparência externa, modo de agir, modo de evoluir no tempo -
percebemos as diferenças secundárias pelas quais um e outro são distinguidos.
Muitas vezes consistem naqueles aspectos que verificamos que ocorrem e
não ocorrem na mesma coisa; por vezes um gera outros da mesma classe. Mesmo
que não tenhamos sido capazes de conhecer distintamente a quididade ou a
essência deste tipo de coisa, podemos, no entanto, afirmar que não pode ser que as
coisas que aparecem regularmente semelhantes nos aspectos que parecem mais
essenciais e diferentes em aspectos que parecem acidentais, não têm uma
qualidade específica idêntica. Ambas as distinções, numérica e específica, são
distinções essenciais ou quiditativas, mas de naturezas muito diferentes, pois duas
substâncias da mesma espécie são essencialmente o mesmo em um sentido e
distinto em outro.
Em maior grau, além de serem substância, o cão e o gato são viventes e
sensíveis. As árvores mantém similitude com o cão e o gato, conquanto em grau
menor, são substâncias viventes. As pedras mantém similitude com as árvores,
ainda que em menor grau, porque também são uma substância... et ita porro.

Distinção genérica

As similitudes entre os entes, mais amplas do que o simples fato de serem


substância, formam a distinção genérica, pois vemos em certos aspectos ou partes
essenciais gerais certa diferença com o resto. Na biologia, vemos animais se
moverem por si só, como um gato, e outros imóveis e que são são movíveis por
outros, como as ostras.
Destarte, pode-se distinguir quantitativa ou essencialmente as espécies de
substâncias em vivos e não vivos. A divisão do corpus entre animatum e
inanimatum, é pois, secundum quid, o início da divisão das substâncias na Árvore
de Porfírio41 a qual estudaremos adiante. Dentro das substâncias vivas, pode-se

41 «Quod autem intellectus comprehendit, in intellectu formatur, intelligibili quasi agente, et intellectu
quasi patiente. Et ipsum quod intellectu comprehenditur, intra intellectum existens, conforme est et
intelligibili moventi, cuius quaedam similitudo est, et intellectui quasi patienti, secundum quod esse
intelligibile habet. Unde id quod intellectu comprehenditur, non immerito conceptio intellectus
vocatur» Santo Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia (Compendium Theologiae ad fratrem
Raynaldum), ed. Concreta, 2015, p.114-115.
observar semelhanças e diferenças gerais entre os que se chamam os diferentes
modos de vida: a vida animal, na qual o próprio movimento se manifesta de maneira
mais patente e os vegetais, nos quais também há vida, mas não tão manifestos. Se
a vida é caracterizada por certo domínio - e do domínio dos próprios atos -, a vida
do animal tem por característica um maior domínio de suas ações, porque ele pode
estimar o que lhe convém e mover-se para alcançá-lo.
Essas semelhanças e diferenças entram em jogo quando perguntamos Quid
est ao vermos, por exemplo, um gato, pois, desprezando os aspectos acidentais e
ficando com os essenciais, como dito acima, chegamos à definição deste ser:
substância (quididade mais geral), vivente (quididade genérica de algumas espécies
de substância), sensível (menos genérica), gato (tal espécie de substância).
Substâncias de uma mesma espécie são aquelas às quais não têm diferença
essencial, excetuando-se a distinção numérica. Substâncias especificamente
diferentes pertencem a um mesmo gênero quando são semelhantes em partes
essenciais. O gênero mais amplo a que todas precisamente pertencem é a da
substância.

Questão An sit

Para responder a questão quid sit de dado ente, como visto acima, é
inequívoco que se proceda a divisão entre o essencial e o acidental a fim de
chegarmos à quididade da coisa analisada. Dos aspectos mais gerais, como vida e
substância, por exemplo, por sua simplicidade mesma, alcançamos a resposta quid
est com evidência, o que não ocorre quando tratamos de quididades mais
específicas.
O objeto próprio da inteligência é quidditas rei materialis, ou seja, a quididade
das coisas materiais cuja existência e quididades mais genéricas ou gerais é-nos
evidente, de modo que não seria de todo modo apropriado fazer a questão An sit
diante de questões como vida e substância, porquanto, como dito acima, estas nos
são evidentes. Por conseguinte, quando nos perguntamos sobre as diferenças entre
um e outro da mesma espécie ou gênero, se essas diferenças são essenciais ou
acidentais, é que levamos em conta a questão An sit (se é, se existe) de modo que
saberemos se existe no ente uma essência especificamente idêntica a do outro da
mesma espécie ou gênero, antes de descobrir de fato o que ele seja (quid sit)42.
Por exemplo, antes de começar a investigar o que é uma aranha, convém
inquirir se “aranha” corresponde a uma quididade específica, de modo que a
investigação nos aponte se todas as aranhas são essencialmente idênticas em suas
espécies ou gêneros e essencialmente distintas de outras criaturas, conquanto só
acidentalmente distintas entre os diferentes tipos de aranhas (armadeiras,
caranguejeiras) ou se há uma quididade genérica, de modo que haja diferenças
essenciais entre uma classe de aranha e outra 43.

42 Summa Contra Gentiles, Cap. II, 1.


43 Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, ed. Santo Tomás, 2018, p.29
Sucede que muitas vezes é dito que An sit se pergunta pela existência e
Quid sit pela essência de algo. Esclarecemos, porém, que a questão An sit tem
importância “científica” quando pergunta sobre a existência da essência comum.
Quando se apresenta An homo sit, não é uma questão para saber se “um homem”
existe, numericamente ao menos, senão pergunta-se se este algo a que chamamos
“homem” possui essência especificamente idêntica.

Abstração: Definição e divisão

A resposta de quid sit isto ou aquilo, como vimos, se dá por abstração.


Quando afastamos as aparências sensíveis, os acidentes e as propriedades até
sobrar só o essencial, fazemos uma divisão destes aspectos, abstraindo a quididade
da coisa e alcançando sua definição. Os aspectos essenciais, gerais e simples são,
por evidência, mais claros de se abstrair, ao passo que pouco a pouco vamos
alcançando os aspectos mais particulares e complexos do ente.
Quando definimos o homem em substância, vivente, sensível, animal,
racional, procedemos uma abstração. Abstrair quer dizer separar. Chama-se divisão
o processo pelo qual o intelecto alvorece ou clareia o conhecimento das essências,
culminando assim em sua definição.44 Em outras palavras, é pela correta divisão
que se alcança a definição da coisa, e a abstração nada mais é do que esse
composto.

Divisão

Dividimos propriamente uma quididade genérica quando, entre aquelas


coisas que participam desse aspecto genérico essencial, temos ciência de que
umas são de um modo e outras de outro modo essencialmente diferente. Destarte,
a forma de se dividir um gênero é aquela que o faz segundo o que é próprio a este
mesmo gênero.
Se se faz a divisão da substância, aquilo cujo sujeito é suporte de acidentes,
deverá fazê-lo naquilo que lhe é próprio, ou seja, proceder a divisão em substâncias
viventes e substâncias não-viventes, pois não se faz uma correta divisão de algo
sem suas regras. Começemos pelo gênero supremo ou generalíssimo, dentro do
qual decorrem as demais.
Deste gênero supremo (sub-stat: ens per se), decorre as espécies não-
viventes (ens tantum), os quais encerram defeito da substância, como por exemplo
os minerais. Por outro lado, decorre também as espécies viventes (ens et vivens)
que encerram perfeição da substância, como por exemplo as plantas, os animais
brutos mais elevados e o homem.
Se examinarmos mais detidamente, veremos estas espécies de viventes e
não viventes transformarem-se em gêneros de outras espécies. Portanto, do gênero
vivente (ens et vivens), onde estão os animais e o homem, podem nascer duas
44 In II Post. Analit. lect. 1, n. 409: “Tunc dicimur quaerere «quia»: non ita quod hoc quod dico
«quia» sit nota vel signum interrogationis, sed quia ad hoc quaerimus ut sciamus «quia ita est»”.
espécies, a saber, vegetativa ou nutritiva (vivens tantum) e outra sensitiva ou animal
(ens et vivens sentiens).
Ao proceder mais uma vez a divisão da substância, saímos do gênero animal
e ao fim e ao cabo dividimos este em duas espécies: irracional ou bruta (brutus ens
et vivens et sentiens tantum) e racional ou humana (homo ens et vivens et sentiens
et intelligens), o qual se encerra como espécie especialíssima. O homem é espécie
especialíssima porquanto não é gênero de espécie alguma e abaixo dele só há
acidentes.
Vamos analisar esta divisão a partir da Árvore de Porfírio.

ÁRVORE DE PORFÍRIO - Divisão em gêneros e em espécies


Autor(es): Eduardo Bordoni e Salmo Dansa
Introdução à Zoologia - Vol. 1
Fundação CECIERJ - canalcederj.cecierj.edu.br

O grande problema da Árvore de Porfírio começa na divisão da substância


em corpórea e incorpórea ou material e imaterial, dado que não podemos alcançar
esta divisão por simples abstração, senão que só a alcançamos de modo indireto.
Diz o Aquinate que se a quididade abstraída não é pura quididade, mas somente
coisa possuidora de quididade, de fato nosso intelecto chegar-se-á a abstraí-la, mas
indiretamente, conquanto possamos nomeá-las, pois quando se considera o ente
real enquanto existente, consideram-se seus princípios individualizantes; quando
captamos que “isto é algo”, captamos a abstratio totius, o todo e sua forma
substancial, ao passo que quando captamos que tudo possui um nome, captamos a
estrutura das coisas reais. Carlos Augusto Casanova Guerra dá-nos a síntese de
que “logo se entende que a noção de ente não se limita ao sensível, diferentemente
de todos os conceitos abstratos”. Logo percebemos que esta noção de ente não
pode se dizer propriamente de modo abstrato, não obstante possamos possuí-la
intencionalmente, isto é, imaterialmente enquanto noção geral 45.
Assim, o modo indireto de alcançar o incorpóreo ou imaterial, diz Santo
Tomás nas Quaestiones disputatae de anima, dou in extenso:

Ademais, à espécie compete propriamente a definição.


Logo, as coisas que não são definíveis não parecem estar
numa espécie. Mas o anjo e a alma [incorpóreos, pois] não são
definíveis, pois não são compostos de matéria e forma, como
se mostrou antes; pois em toda definição há algo como matéria
e algo como forma, como é patente segundo o Filósofo no livro
VIII da Metafísica, onde diz que, se as espécies das coisas
carecem de matéria, como supôs Platão, não seriam definíveis.
Logo, não se pode propriamente dizer que o anjo e a alma
difiram em espécie46[porquanto não teriam nem espécie].

Matéria, pois, pelo nome, é assim entendida:

«É manifesto, com efeito, que assim como a potência e o


ato dividem o ente, assim também todo e qualquer gênero se
divide pelo ato e pela potência; e comumente se chama matéria
prima ao que está no gênero da substância como certa
potência inteligida para além de toda espécie e de toda forma, e
ainda para além de toda privação; a qual, no entanto, é
susceptiva tanto de forma como de privação, como é
patenteado por Agostinho no livro XII das Confissões e no livro
Super Genes. ad Litteram, e pelo Filósofo no livro VII da
Metafísica47.»

45 Do latim contigens, entis, oriundo de contingere: cum [com] + tangere [tocar], o qual tem
proximidade semântica com accidere, que muitas vezes pode traduzir-se na Última Flor do Lácio por
acaecer, do lat. vulgar accadescere, derivação do verbo latino cadere, literalmente ‘cair’.
46 Do prefixo negativo latino ne- + cedere, isto é, ‘cair’. A semântica da palavra indica algo o qual
não pode ser evitado.
47 Lucas Daniel Tomáz de Aquino, Do equívoco linguístico dos filósofos tomistas que culminou na
Lógica, in Opúsculos Tomistas
Assim, negada a corporeidade, não se suprime a noção de substância e é
por isso que as criaturas espirituais ou substâncias separadas [da matéria], que são
entes incorpóreos, se podem incluir secundum quid no gênero da substância.
Ademais, tudo aquilo que está em um gênero se compõe de gênero e diferença,
como diz Santo Tomás nas Questio disputata de spiritualibus creturis. A diferença,
no entanto, é tomada da forma enquanto o gênero é tomado da matéria. Ademais,
quanto a Deus, não se pode univocamente dizer que Ele esteja no gênero da
substância, senão que se pode dizer que Eles está de modo análogo, o qual
faremos na altura dos Predicamentos e das Categorias e mais precisamente ainda
na Metafísica.
Os modos de ser da substância por si são as perfeições - viver, sentir e
inteligir. Destes modos ou perfeições é que se toma as divisões da substância, é a
divisão central deste gênero, do qual se diz que que há imperfeição ou defeito em
ens tantum ou ente somente e encerra perfeição quando há ens et vivens ou ente e
vivente, pois um gênero se divide por aquilo que lhe é próprio, segundo a unidade
de sua essência.
Assim, ser por si é o ato próprio da substância, ao passo que é próprio dos
acidentes ser em outro, isto é, na substância. Por isso, as diferenças que primeiro e
propriamente dividem a substância são as três que distinguem, como já se disse, os
modos de ser (por si): vivere, sentire et intelligere. Desta feita, toma-se aqui a
divisão central do gênero substância, como na Árvore de Porfírio (sub-stat, ens per
se), pois se o próprio da substância é ser por si, as diferenças que propriamente
dividem seu ato são as que distinguem os modos de ser. Devemos, porém, avançar
na divisão para além dos modos de ser.
Os não-viventes (inanimatum) como só entes (ens tantum) neles estão, por
exemplo, os minerais, tomados aqui como sentido geral de “inorgânico”, e dividem-
se segundo a unidade de sua essência: elementos, aquilo que primeiro se compõe
algo, e misto como compostos de elementos. Os vegetais, por sua vez, como entes
e viventes (ens et vivens) e assim somente (vivens tantum), que entre suas
atividades vitais se dividem em nutritiva, aumentativa e gerativa, dividem-se
segundo seus modos próprios de geratione: geração por divisão, ao modo próximo
dos minerais e geração por fecundação, como os animais.
Estes, por sua vez, dividem-se de modo triplo, segundo a perfeição sensitiva
comum a todos os animais (ens et vivens et sentiens), segundo sua escala
zoológica. Seguiremos dos brutos menos perfeitos aos mais perfeitos (ens et vivens
et sentiens tantum). Animais que possuem tato mas não possuem memória nem
estimativa, isto é, imóveis como as ostras. Animais que possuem memória, mas não
audição, isto é, não são ensináveis, como os insetos ou os peixes. Animeis que
possuem todos os sentidos e ato contínuo são ensináveis, como os animais
domésticos48.

48 Por isso se diz que a ciência é um conhecimento per causam.


Se, no entanto, na divisão da Árvore de Porfírio deixarmos de lado o
inanimatum, isto é, o não-vivente, atentando-nos para o gênero abaixo dela, corpus
animatum, e mais abaixo para a espécie irrationale, de gênero animal, representado
pelos animais brutos, entraremos em um dilema: abaixo de irrationale há somente
diferenças acidentais ou há quididades ou aspectos essenciais que façam com que
“irracional” seja gênero de outras espécies?
Observemos. Abaixo da espécie “homem”, que é espécie especialíssima, não
há espécies, ou seja, Platão e Sócrates não são gêneros de coisa alguma. Abaixo
destes só há diferenças acidentais49. Por conseguinte, para abrir esta porta e saber
com propriedade se ocorre o mesmo com a espécie irrationale, esse aspecto
quiditativo das espécies viventes e sensíveis, se as espécies de “irracional” se
constitui de algum modo como gênero de espécies abaixo dela, necessitamos de
algo a mais, que nada mais é do que a pergunta An sit.
Deve-se perguntar An sit, isto é, “se é” ou “se existe” outras espécies da
espécie irrationale, isto é, se na Árvore de Porfírio, “irracional” é, além de espécie de
animal, é gênero de outras espécies. Em outras palavras: An sit fará a investigação
da existência das espécies animais que constituem aspectos essenciais da pergunta
Quid sit acerca das quididades.
Uma divisão propriamente dita se dá quando o gênero se divide naquilo
mesmo que o constitui como tal. Caso queiramos dividir o gênero das substâncias
caracterizadas por ter patas, como um cão ou um gato, deve-se proceder a divisão
pelas patas e não por pés. Desta feita, um gênero se divide em espécies e que esta,
por sua vez, se constitui espécie de outros gêneros, à exceção da substância que é
gênero superior. Assim, diz-se da espécie especialíssima a espécie que não se
divide em diferenças quiditativas ou essenciais, só em diferenças acidentais 50.
É corolário, portanto saber que as substâncias de uma mesma espécie só
têm entre si uma distinção quiditativa, a distinção numérica. Ademais, substâncias
de espécies diferentes, quando semelhantes em certas partes essenciais,
pertencem a um mesmo gênero, por exemplo, entre um homem e um gato há em
comum o gênero animal, este é irracional ao passo que aquele é racional, e quanto
a este gênero temos paridade quiditativa e distinção específica. Ademais, o gênero
mais amplo, isto é, o ente generalíssimo, é aquele a que todos os demais
pertencem.
Pelas propriedades mesmas da divisão, prescinde dividir um gênero do qual
conhecemos sua existência (an sit) pelo que não conhecemos perfeitamente sua
essência (quid sit), uma vez que sua divisão deve ser feita observando os modos

49 Para maior aprofundamento sobre se a primeira operação do intelecto se compõe de um ou dois


atos ou se possui uma ou duas obras, cf. Carlos Nougué Das duas primeiras operações do intelecto:
uma crítica a Maritain e a outros tomistas, in Estudos Tomistas - Opúsculos, Edições Santo Tomás,
2016.
50 Intellectus autem duo format, secundum duas eius operationes. Nam secundum operationem
suam, quae dicitur indivisibilium intelligentia, format definitionem; secundum vero operationem suam,
qua componit et dividit, format enunciationem, vel aliquid huiusmodi. Et ideo, illud sic formatum et
expressum per operationem intellectus, vel definientis vel enunciantias, exteriori voce significatur.
Unde dicit philosophus quod ratio, quam significat nomen, est definition.
pelos quais a essência genérica pode ser dada, o que não se alcança se não se
entende cabalmente quod quid est.

Definição

Definir é verbo composto pela preposição “de”, que significa procedência, e


pela palavra “finire”, do qual decorre terminar, limitar, pôr fim. Quando se aglutina a
preposição supracitada, como em de-finir, de-limitar, de-terminar, estes verbos já
não indicam a ação de pôr limites, senão vão discernir aqueles que já os têm por
natureza51. Em vista disso, definir uma coisa é discernir as fronteiras do que a coisa
é, ou seja, encontrar-lhe todos os aspectos essenciais de maneira tal que se possa
determinar com precisão quod quid est res.
Santo Tomás nos diz em seu comentário aos Segundos Analíticos que:
Definitio est oratio significans «quod quid est» 52, ou seja, a definição é uma oração
(oratio) que significa aquilo que a coisa é, com toda a sua teia composta de mais de
uma palavra, justamente porque “definição” consiste em discernir os diferentes
aspectos essenciais da quididade da coisa. Em outras palavras: definição é uma
oração que significa aquilo que a coisa é.
Já definimos o que é o homem: substância, vivente, sensível, animal racional.
Então, “explicar” equivale a desdobrar. A definição dá os aspectos quiditativos
genéricos implícitos ao termo que significa a espécie, por isso a definição de
“homem” é esta que acabamos de dar e não outra, por exemplo, “bípede implume”,
pois lhe falta assim os aspectos que nos façam conhecer verdadeiramente esta
coisa a qual chamamos “homem”. Ou se é assim ou não se conhece de modo
perfeito sua definição.
Definir “homem” é assinalar todas as semelhanças genéricas que permitam
entender com perfeição seu quod quid est. A definição que normalmente se dá, é
sua versão resumida, animal racional, e faz-se pelo gênero próximo (aquele) e
diferença específica (este). A definição da quididade ou essência específica dos
entes é alcançada quando se parte da mais ampla e simples semelhança genérica,
cuja quididade é clara ao intelecto, derivando ordenadamente sua divisão, a fim de
delimitar o que é esta espécie de substância, como fizemos com “homem”. Portanto,
é a divisão que, ao seguir estritamente os princípios da lógica, nos faz chegar à
definição, esta regra máxima da ciência a qual nos permite conhecer com ordem,
facilidade e sem erro Quid sit e não somente An sit do objeto a ser considerado.
Assim, o homem que é animal racional possui seu gênero próximo (animal)
como aspecto quiditativo de algumas espécies de substâncias viventes e que

51 Santo Tomás de Aquino, Comentário ao Sobre a Interpretação de Aristóteles, Vide Editorial, 2018,
trad. Bernardo Veiga e Paulo Faitanin. Texto original In Aristotelis Libros Peri Hermeneias Et
Posteriorum Analyticorum Expositio, Cum Textu Ex Recensione Leonina, Taurini, 1955: «Sicut dicit
philosophus in III de anima, duplex est operatio intellectus: una quidem, quae dicitur indivisibilium
intelligentia, per quam scilicet intellectus apprehendit essentiam uniuscuiusque rei in seipsa; alia est
operatio intellectus scilicet componentis et dividentis. [...] Harum autem operationum prima ordinatur
ad secundam: quia non potest esse compositio et divisio, nisi simplicium apprehensorum».
52 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía.
constitui um gênero menos amplo que “viventes”, ao passo que contrapõe-se ao
gênero dos “vegetais”, e que reúne outras espécies de viventes; ato contínuo possui
sua diferença específica (racional) como aspecto quiditativo ou essencial de espécie
de substância sensível e que constitui espécie especialíssima - a qual sua espécie
não se divide em diferenças essenciais, somente acidentais (individuais) -, a
espécie homem que se contrapõe à espécie irracional que é gênero de outras
espécies53.

Se existe quididade nos acidentes

Quando os escolásticos queriam chegar à verdade nisto ou naquilo, os


mestres procediam algo que eles chamavam de Questão Disputada. Este é um dos
métodos de inquirição da verdade, o qual podia se dar, durante o Medievo, escrita
ou oralmente. Santo Tomás era mestre nisso. A própria estrutura da Summa
Theologiae segue este método, onde se dá a objeção a qual se defende antes de,
com uma passagem intermediária chamada sed contra, dar a resposta cabal e
apodíctica acerca de tal ou qual assunto. Mais adiante explanaremos este método.
Neste tópico, Se existe quididade nos acidentes, além de montar nossa tenda à
sombra do aristotelismo-tomismo, daremos um pouco deste método escolástico
partindo da pergunta que abre este tópico.
Et videtur quod sic: E parece que sim, isto é, pois parece que há quididade ou
essência nos acidentes, visto que se nos perguntamos “Quid est longitudo?”, o que
é o comprimento? Respondemos que esta é uma quantidade contínua, ao passo
que se nos perguntamos “Quid est album?”, respondemos que é uma cor, a cor
branca54. Todas estas respostas dizem algo que necessariamente pertencem ao
acidente sobre os quais são perguntadas, e indicam portanto quididades de
acidentes: a cor branca é uma qualidade e a quantidade discreta, dada
essencialmente nos números, apesar de haver também uma quantidade contínua
na geometria, é uma quantidade.
Todos estes, quantidade e qualidade, são acidentes e são Categorias. As
Categorias são a substância e os nove acidentes: quanto (quantidade), como
(qualidade), com o que se relaciona (relação), onde está (lugar), quando (tempo),

53 Santo Tomás de Aquino, Compêndio de Teologia (Compendium Theologiae ad fratem


Raynaldum), edição bilíngue latim/português, ed. Concreta, 2015 «Quod autem intellectus
comprehendit, in intellectu formatur, intelligibili quasi agente, et intellectu quasi patiente. Et ipsum
quod intellectu comprehenditur, intra intellectum existens, conforme est et intelligibili moventi, cuius
quaedam similitudo est, et intellectui quasi patienti, secundum quod esse intelligibile habet. Unde id
quod intellectu comprehenditur, non immerito conceptio intellectus vocatur».
54 S.Th. I,. q.85, a.2, ad 3: «Ad tertium dicendum quod in parte sensitiva invenitur duplex operatio.
Una secundum solam immutationem, et sic perficitur operatio sensus per hoc quod immutatur a
sensibili. Alia operatio est formatio, secundum quod vis imaginativa format sibi aliquod idolum rei
absentis, vel etiam nunquam visae. Et utraque haec operatio coniungitur in intellectu. Nam primo
quidem consideratur passio intellectus possibilis secundum quod informatur specie intelligibili. Qua
quidem formatus, format secundo vel definitionem vel divisionem vel compositionem, quae per vocem
significatur. Unde ratio quam significat nomen, est definitio; et enuntiatio significat compositionem et
divisionem intellectus. Non ergo voces significant ipsas species intelligibiles; sed ea quae intellectus
sibi format ad iudicandum de rebus exterioribus.”»
como está (estado), em que circunstância (hábito), atividade (ação) e passividade
(paixão) e estão todas na realidade patente, isto é, in re. Repare: se vejo um
homem, ele é antes de qualquer coisa, uma substância, e que tem certa cor (parda,
branca) como qualidade, tem certa altura e dimensões como quantidade, ele está
certamente em algum lugar e quem aí está não pode senão deixar de estar em dada
altura do tempo, e ele está, por evidência, em alguma situação, ou seja, sentado ou
de pé e pode andar armado ou calçado com seu hábito ou posse, e ele pode tocar
algum instrumento de sopro, como um oboé, ou seja praticando uma ação e
fazendo isso em seu quintal, à luz do dia, o qual recebe a paixão dos raios solares
incidindo em sua pele55.

Et videtur quod non:

E parece que não, isto é, pois parece que não há quididade ou essência nos
acidentes, visto que se nos perguntamos com mais rigor e de forma um pouco mais
estrita, veremos que isto não nos é de todo evidente. Porque o que tem a
quantidade e o que é branco não é a coisa em si, senão algo que é branco ou tem
quantidade. Se vemos uma mesa branca de certo tamanho, não vemos a brancura
da mesa, senão vemos a mesa de cor branca, a qual, aliás, por ter essa qualidade
acidental, poderia ter outra cor. A substância mesa que tem quididade, afinal,
ninguém jamais viu a cor branca sair andando por aí a esmo. Logo, parece que os
acidentes não têm quididade porque para achar a quididade da mesa é mister
afastar-lhe os aspectos acidentais.
E se isso é assim, não só é uma qualidade, ou seja, quod quid est, senão que
nos responde id in quo est, aquilo em que a coisa é. Do mesmo modo procede o
longitudo, que é uma substância, e que procede disto ter longura, extensão, porque
não é possível uma extensão que não seja acidente de uma substância. O espaço é
portanto uma substância, ainda que destituída de massa. Logo, aquilo que não
possui autonomia na realidade, exatamente porque não é substância e sim
acidente, não pode ter essência ou quididade 56. Diante disso, parece que realmente
não há quididade nos acidentes.
Respondeo: com efeito, a resposta para esta questão se dá por uma
distinção fundamental entre simpliciter e secundum quid. Aquele se refere a algo
absoluto, puro e simples, ao passo que este se refere a algo por certo aspecto, por
certo ângulo. Assim, de modo simpliciter, os acidentes não possuem quididade
porquanto, para que o tivessem, não poderiam ser em outro ou existir em outro,

55 Quodlib. V, a. 1 (V, q. 5, a. 2) «Dicendum, quod secundum Augustinum, XV de Trinit., verbum


cordis importat quoddam procedens a mente, sive ab intellectu. Procedit autem aliquid ab intellectu,
in quantum est constitutum per operationem ipsius. Est autem duplex operatio intellectus, secundum
philosophum in III de anima. Una quidem quae vocatur indivisibilium intelligentia, per quam intellectus
format in seipso definitionem, vel conceptum alicuius incomplexi. Alia autem operatio est intellectus
componentis et dividentis, secundum quam format enuntiationem. Et utrumque istorum per
operationem intellectus constitutorum vocatur verbum cordis, quorum primum significatur per
terminum incomplexum, secundum vero significatur per orationem»
56 Napoleão Mendes de Almeida, Gramática Latina, 20º edição, Saraiva, 1985.
como já se disse sobre a substância. Porém, secundum quid, podemos dizer que há
essência nos acidentes57.
Em concreto ou de modo simpliciter ou na realidade mesma (in re) os
acidentes não têm essência, pois o que tem essência é a substância o qual possui o
acidente de tal ou qual cor ou dimensão, porque se se pergunta “quid est album?”
não só se deve responder aquilo que é (quod quid est), mas também aquilo em que
esta coisa é (id in quo est), porque a essência em concreto é o conjunto de aspectos
essenciais que se encontra em divisão a partir da substância, que é o primeiro
aspecto essencial da quididade geral da coisa inteligida. Abstratamente, de certa
maneira ou secundum quid, porém, pode-se dizer que a cor branca é uma
qualidade que de certo modo os acidentes têm quididade, porque se queremos
saber algo dos acidentes, temos que responder pelos fundamentos disso na
substância. E se queremos saber o que é esse acidente, temos que responder além
de quod quid est, id inquo est. Logo, dos acidentes só podemos encontrar-lhe
quididade de modo abstrato, ou seja, secundum quid, porque não pertence
diretamente aos acidentes ser algo, senão é próprio da substância.

Se existe quididade nas coisas artificiais

As coisas artificiais são aquelas fabricadas pelo homem. A palavra artefato


(do grego ‘άρω: adaptar) chegou até nós oriunda do latim ars, artis e arte factum
opus, isto é, arte feita com arte e significa esta coisa que o homem faz, isto é, o
resultado de seu bem-fazer, do labor de suas mãos. Atualmente, pensa-se
automaticamente que arte reduz-se às chamadas Belas-Artes, a pintura, a
escultura, a arquitetura, a literatura, a música etc., as quais são espécies deste
gênero chamado Artes do Belo58.
A arte, pois, em sentido estrito é recta ratio factibilium59, a reta razão do fazer
(ou das coisas factíveis), e em sentido amplo não é outra coisa senão uma
ordenação certa da razão para que as três ordens de atos humanos - externos,
apetitivos e intelectivos - alcancem, por meios determinados, o fim devido 60.
Antes de tudo, as artes dividem-se em Artes Servis e Artes Liberais. Aquela
servem ao corpo e à ordenação de seus atos, enquanto esta voltadas à ordenação
dos atos da razão e das potências intelectivas. Com isto em mente, arte toma
aquele significado maior, isto é, tudo aquilo que produz algo artificial, como um par
de sapatos, uma mesa, um brinquedo ou um poema. Mas estas formas que se faz
com arte possuem quididade ou essência?

57 Carlos Augusto Casanova Guerra, Prólogo de Questões disputadas sobre a alma de Santo
Tomás de Aquino, É Realizações, 2ª impressão, 2014.
58 Dicionário do Latim essencial, Antônio Martinez de Resende e Sandra Braga Bianchet, ed.
Autêntica, 2ª edição, 2014, p. 403. Não considero que seja meramente acidental que os étimos
stupor e stuprum, por exemplo, guardarem sentidos analógicos com a palavra ‘estupidez’ e que
guardem, de certo modo, corruptelas semânticas.
59 Aristóteles, Metafísica.
60 No sentido de nunca se apoiar em autores e mestres.
Dá-se o mesmo aqui como se deu na objeção anterior de se há quididade
nos acidentes. Isso porque a essência secundum quid dos artefatos está na mente
do artista, este fim para o qual ele produz aquele artefato. Se eu aqui no Brasil, ouço
alguém falar em urdu, idioma oficial do Paquistão, uma língua a qual eu não
conheço, não soam a mim propriamente como palavras o que ouço, senão
“cadáveres de palavras”61 porquanto a essência das palavras está na mente de
quem as usa, seja oralmente ou seja durante sua escrita e em ambos estará, de
facto, mentalmente produzida.
É por isso que as artes se definem por sua finalidade traduzida na disposição
das coisas artificiais e faz com que aquela palavra seja aquele e não outra palavra.
De sorte que não se pode chamar propriamente essência secundum quid as coisas
feitas, os artefatos. Isto que parece, num primeiro momento a quididade dos
artefatos, está em primeiro lugar na mente do artífice e depois na mente do
interlocutor e o que tem efetivamente essência nas palavras é a voz, não as
palavras as quais se constituem formas acidentais desta mesma voz.

LÓGICA MENOR

Quid est Logica

Lógica, do grego λογική (logos), é uma ciência-arte propedêutica às demais


ciências às demais artes e é ela que dirige o próprio ato da razão a fim de alcançar
seu fim com ordem, com facilidade e sem erro 62, pois o fim da razão não é outro
senão alcançar a ciência. A Lógica atua sobre as três operações do espírito e a
razão nada mais é do que o intelecto em operação: por partes, diacronicamente no
tempo, como passos de uma equação matemática.
Por sua vez, arte, em sentido estrito, é recta ratio factibilium,isto é, a reta
razão das coisas factíveis (ou fazíveis), e em sentido amplo, é uma ordenação
correta da razão para se alcançar o devido fim. Por seu turno, a Lógica é arte de
modo lato e ao mesmo tempo ciência racional 63 não só porque é dirigida secundum
ratio, comum a todas as artes, mas também porque lida com a ciência, tratando a

61 Dicionário do Latim essencial, Antônio Martinez de Resende e Sandra Braga Bianchet, ed.
Autêntica, 2ª edição, 2014, p. 80.
62 Summa Theologiae, I-II, q. 114, a. 4.
63 Leão XIII, apud Caetano de Vio, Encíclica Aeterni Patris, agosto de 1879, tertia pars, nº 21.
razão como sua matéria própria. Assim sendo, a Lógica dirige-nos no ato da razão
donde procedem todas as outras artes64.
Aristóteles começa a Metafísica dizendo que é próprio do sábio saber
ordenar65. Assim, a ordem é comparada à razão de quatro modos. Em primeiro
lugar, há uma certa ordem que a razão não faz, mas somente a considera, como a
ordem das coisas da natureza. Em segundo, é a ordem que a razão faz em seu
próprio ato, quando ordena seus conceitos entre si e os signos dos conceitos que
são as palavras. Em terceiro, a ordem que a razão faz nas operações da vontade -
um agente só se põe em marcha a fazer algo tendo em vista um fim. Em quarto, a
ordem que a razão faz nas coisas exteriores de que ela mesma é causa.
A ordem que a razão faz em seu próprio ato pertence à ciência, que
corresponde considerar a ordem das partes entre si e dos princípios entre si com
respeito às conclusões no discurso. A Lógica considera a ordem das operações do
intelecto em universal, do mesmo modo da Ética, e por isso pode dizer-se ela
ciência ou filosofia racional. A esta última pertence a ordem das coisas que a razão
humana considera mas não faz, de modo que abaixo dela podemos incluir também
a Metafísica66. É ciência também porquanto é cognitio per causas, isto é, seu
conhecimento se dá pelas causas, e das mais elevadas, como por exemplo, o
silogismo67.
Ademais, a Lógica é ciência-arte, pois enquanto ciência visa apreender a
realidade tal qual ela é, ou seja, sem imprimir-lhe qualquer forma, ao passo que é

64 Como se massifica o ensino na modernidade? Diminuindo a dificuldade do saber e não


potencializando o intelecto. Esta é a receita de Igualitarismo que a Revolução Francesa e o Marxismo
apregoam. Como nem todos são inteligentes, a ponto da Igualdade se dar por si mesma, façamo-los
mais estultos. É mais fácil, pois, chamar os medianos de intelectuais do que tentar elevar a massa de
néscios a algum grau de intelecto. É justamente por isso que vemos por aí tantos sujeitos formados
no Brasil, conquanto desempregados, pois o ensino atual não tem por fim educar, senão distribuir
socialmente indivíduos "diplomados". E quando esses homens estão empregados, há uma imensa
dificuldade em fazer uma interpretação básica de textos simples ou há facilidade em cometer erros
ortográficos que fariam minha tia do Jardim de Infância ruborizar-se.
65 Conquanto haja diferenciação entre a Física Tomista e a Física Aristotélica em certos pontos,
como a da eternidade do mundo, por exemplo, esta última negada pelo Doutor Comum.
66 Não é à toa que a lógica computacional, o que equivale dizer que é uma lógica-matemática
secundum quid, restrinja-se basicamente à programação e à Ciência da Computação de modo lato. A
nomenclatura “artificial intelligence” dado a este tipo de resultado não é meramente acidental. Tem-
se aqui o exemplo de contradição com a Revolução Científica já citada, aquela que atrelava o
suposto “humanismo” à matematização das ideias. Um exemplo disso foi trocar orações inteiras de
valor metafísico, isto é, muito superior, por números - o que causa artificialidade à coisa. Como por
exemplo ao fazer o intercâmbio de: uma oração com premissa verdadeira por yes ou 1 e uma falsa
por 0 ou not, à sequência de demais algoritmos, quando se programa em C, C++, ou outra linguagem
artificial como método de programação de softwares ou aplicativos de celulares. Algumas diferenças:
Linguagem humana: "Se isso é assim, acontece isto"; Linguagem lógica proposicional: Se P→Q; Linguagem à
máquina: IF isso, THEN isto, ou 0 e 1, et ita porro.
67 Curiosamente há na folha de rosto desta primeira edição um excerto em grego dos Analiticos
Posteriores de Aristóteles, o qual diz no livro I, cap. XI “Os meios pelos quais os argumentos
retóricos convencem são precisamente os mesmos, uma vez que utilizam paradigmas (um tipo de
raciocínio indutivo) ou entimemas, que não um tipo de raciocínio silogístico” (Órganon, Edipro, 3ª ed.,
2016, p. 298).
arte de modo lato, visto que a arte não visa conhecer o mundo como é, senão
imprimir-lhe certa forma68.

O sujeito da Lógica
Toda ciência é especificada em razão de seu sujeito e o sujeito é aquilo que
a ciência ou a arte trata própria e simplesmente69. Por exemplo, o sujeito da
Psicologia é o homem integral, não é só a sua mão ou seus braços do qual se trata
de uma parte do homem. A Psicologia trata o homem própria e simplesmente em
sua totalidade como sujeito, o qual se chama assim justamente porque é dele que
se predicam as demais partes da qual a ciência ou a arte consideram, isto é, suas
partes, suas propriedades, suas causas e seus efeitos. Toda ciência ou arte se
especifica e se determina por seu sujeito. Este, por um lado, especifica a ciência
como a forma determina a matéria e por outro especifica a arte como o fim
determina o agente. Os elementos lógicos que constituem o sujeito da Lógica não
são aspectos das coisas conhecidas que lhes pertencem enquanto se dão no
intelecto70, tampouco são propriedades das coisas mesmas conhecidas, senão das
intenções pelo que as coisas se conhecem.

68 Neste sentido, é o que defendemos aqui, a lógica-matemática nos moldes que a conhecemos,
deve-se ser aplicada à Computação e seus campos: desenvolvimento de softwares e aplicativos,
Machine Learn, Blockchain, Ciência de Dados, Programação em geral e demais espécies desta
ciência de modo amplo. Ao homem, contudo, por ser uma criatura orgânica que pensa
diacronicamente, este tipo de lógica soa como um veneno ao conhecimento da verdade porquanto
descreve dados da realidade de forma artificial sem dar-lhes causa final.
69 Summa Contra Gentiles, cap. II, 4.
70 Última frase de Santo Tomás no Proêmio de seu Comentário ao ‘Sobre a Interpretação’ de
Aristóteles.
As três operações do intelecto

É da natureza do homem guiar-se pela razão. E esta, por sua vez, interessa
a outros ramos da filosofia. Se, por exemplo, concluirmos nós que a alma é imortal
porque não sendo ela um composto de matéria e forma, logo não suscetível à
corrupção; estaremos tratando, enquanto silogismo, de uma questão metafísica, a
da imortalidade da alma71, ao passo que também poderemos tratar esta questão
tendo em vista a Psicologia, que é a ciência que trata do ente segundo a alteração e
das partes potenciais da alma humana, a saber: intelectiva ou racional, sensitiva e
vegetativa72. Estes três pontos de vista formalmente distintos encontram-se, como
disse Gardeil, em toda atividade do espírito.
Assim, o intelecto e por extensão a Lógica é aquilo que distingue o homem
dos outros animais em termos de conhecimento das coisas. A Lógica (logos)
significa pois, razão, a diferença específica que nos distingue a nós dos outros
animais a ponto de fazer-nos espécie especialíssima. E a arte de pensar com esta
mesma razão é a que tem dado ao homem, através dos séculos, o conhecimento
científico. Todos os homens, por natureza, aprendem a pensar a partir da idade da
razão, lá pelos 7 ou 8 anos de idade, os quais já têm uma centelha de noções
factíveis sobre bem e mal ou sobre moralidade, por exemplo.

A tarefa da divisão da Lógica é delineada por Santo Tomás no proêmio ao


comentário aos Analíticos Posteriores, onde se refere a distinção a que faz Boécio
entre as partes resolutiva e compositiva da Lógica aristotélica, além de elencar as
três operações do intelecto com os três primeiros livros do Órganon. Diz o Aquinate:

«Três são os atos da razão, dos quais os dois primeiros


pertencem à razão enquanto intelecto (...). O primeiro ato do intelecto
é o conhecimento dos indivisíveis ou incomplexos, com o qual
concebe a ideia da essência da coisa (...). E ao estudo desta operação
é ordenada a obra das Categorias. A segunda operação do intelecto é
a composição e divisão do intelecto no qual se encontra o verdadeiro
e o falso. E deste ato da razão, Aristóteles se ocupa no livro intitulado
Peri Hermeneias. O terceiro ato da razão diz respeito ao que
especificamente é próprio da razão, pois discorre de uma coisa a

71 Carlos Nougué Das duas primeiras operações do intelecto: uma crítica a Maritain e a outros
tomistas, in Estudos Tomistas - Opúsculos, Edições Santo Tomás, 2016.
72 cf. Santo tomás de Aquino: Summa Theologiae., I, 40, a. 3; In I De Anima, lectio 4, n.o 6 ; In III
Metaph., lectio 2, n.o 6 ; De substatiis separatis, c. 1.
outra, de tal modo a alcançar o conhecimento do desconhecido a
partir do conhecido. E deste ato se ocupam os livros do Órganon 73».

Primeira operação do intelecto: Simples apreensão ou Inteligência dos


indivisíveis ou incomplexos

A primeira operação do intelecto ou simples apreensão é aquilo pelo que se


entende a expressão latina Quid sit res74, ou seja, a quididade ou essência da coisa.
Inicia-se aqui a abstração pela qual se abandonam os aspectos acidentais em
detrimento de uma análise de aspectos puramente essenciais.
O conceito ou definição de ‘homem’, por exemplo, dá-se por esta abstração
que irá separar os elementos essenciais dos elementos acidentais. Procedendo tal
divisão desprezando a diferença numérica e retendo a quididade através da
abstratio. Abstrair quer dizer, etimologicamente, ‘trazer de’, isto é, trazer da imagem
sensível (ou phantasmata) o essencial a fim de chegar-se ao conceito de dada
coisa.
A nota característica da abstração da imagem sensível, que é a definição,
conceito ou paixão, portanto, é a universalidade75. A palavra “universal” (unium
versus) que dizer um para muitos, aquilo que por natureza se dá em muitos. Esta
universalidade que irá se remeter à Querela dos Universais e que implica “algo uno
que se diz de uma totalidade”. Cada um de nós somos algo de uno, somos todos
homens, logo homem é um universal, porque é uno que sae diz de todos os
homens.
Deste modo, nossos conceitos são universais, pois abstraímos da realidade
- e trazemos da imagem sensível -, no desprezo dos aspectos acidentais, o que é
essencial das coisas que são universais que são imagens fiéis de algo uno para a
totalidade das coisas. Tudo que se disse até aqui está ainda na primeira operação
do intelecto: a simples apreensão.
Aristóteles, no livro I do Peri Hermeneias ou Sobre a interpretação diz-nos
como conhecemos as coisas. A realidade é exatamente aquilo que é conhecido por
nosso intelecto e o ente é o primeiro conhecido, como já se disse, estando o

73 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía.


74 Cf, João de Santo Tomás, Cursus theologiae I, disp. 22, art. 3, n 11, éd. de Solesmes, p. 622b:
«Supponimus ex tribus actibus intellectus secundum, qui vocatur compositio et divisio, duos actus
habere seu formare: unum qui apprehendit seu format propositionem, alterum qui ludicat; et primus
vocatur enuntiatio apprehensiva, secundus iudicium. Dicitur autem uterque pertinere ad
compositionem et divisionem, quia uterque actus non fit solum per simplicem terminum, sed per
aliquam unionem seu copulam et verbum, quod vel ipsa extrema coniungit, vel super ipsa coniuncta
cadit iudicando: ut aim per iudicium dico: “Ita est, vel non est" ». Para a identificação entre julgamento
e assentimento cf. Cursus philosophiae, vol. III, Naturalis philosophiae, IV a P., q. 11, art. 3, d. Reiser,
369 b 33 sq: «Aliquando sumitur iudicium strictius pro assensu vel dissensu circa aliquam veritatem
vel falsitatem, quae iit affirmando aut negando ».
75 Para João de Santo Tomás, os dois atos pelos quais a inteligência compõe ou divide os conceitos
de primeira operação são enuntiatio apprehensium, chamada também de enuntiatio tantum
repraesentata e o indicium. Cf. Alain Contat, La relation de vérité selon Saint Thomas d’Aquin,
Pontificia Accademia di S. Tommaso, Libreria Editrice Vaticana, 1996.
inteligível como agente e o intelecto como paciente, daí que o que é compreendido
pelo intelecto se chame, não sem motivo, concepção do intelecto 76.
A realidade existiria por si mesma independente de meu nascimento ou do
seu, contra o que diz o idealismo radical da modernidade. Ocorre porém, que nosso
intelecto existe exatamente para conhecer o mundo e a realidade e este
conhecimento das coisas provoca-nos, como diz Aristóteles no Peri Hermeneias,
paixões. Paixão no sentido de receber o influxo de outrem. O mesmo sentido que se
usa na sintaxe da gramática, na voz passiva, quando o sujeito é paciente e recebe a
ação expressa pelo verbo. O sujeito aqui recebe uma paixão. Por exemplo: A neve
foi derretida pelo sol. Aqui o sujeito neve recebe a ação, recebe a paixão, o influxo
dos raios solares a qual a fez derreter.
Em sentido filosófico, a paixão que a realidade imprime em nossa alma são
imagens que o intelecto forma das coisas e que são reais mesmo, nunca falsas. E o
modo como comunicamos estas coisas aos outros são feitas por meio de signos
verbais, ou seja, palavras orais ou signos escritos os quais nós significamos as
palavras orais. As palavras são signos verbais das paixões que incidiram sobre
nosso intelecto, que por sua vez eram imagens fiéis dos entes da realidade
autônoma77.
As palavras, tanto orais quanto escritas, não significam de modo direto a
coisa senão que significam a coisa da realidade mediante as paixões, são signos
imediatos destas e das concepções que são imagens das coisas. Em outras
palavras, como signo, as palavras significam diretamente as paixões e
indiretamente a coisa que é mimetizada pela imagem, que são paixões do intelecto.
Assim, as paixões são imagens. A palavra imagem, vem do latim imago, do
verbo imitor, que significa mimetizar, imitar. Antes desta imagem das paixões do
intelecto, porém, existe uma outra imagem, esta mais propriamente dita, a imagem
sensível ou fantasma78. A imagem das paixões é fiel à realidade e estritamente
intelectual (conceito), ao passo que a imagem sensível, que vem primeiro, vem da
experiência.
Nós não temos conhecimentos inatos. Conhecemos as coisas como elas são
na realidade, primeiramente pelos cinco sentidos externos: tato, olfato, audição,
paladar e visão, abstraindo a essência da realidade. Após esse contato, a
informação vai para o primeiro sentido interno, chamado sentido comum, que unifica
os dados da realidade captados pelos sentidos externos. Desta forma, a abstração
do ente in re choca-se frontalmente com o nominalismo e faz frente a toda filosofia
moderna que nega a existência do ente como realidade cognoscível, especialmente
de Kant em diante.
Sucede então ao sentido comum, o sentido interno da imaginação ou fantasia
que elabora as imagens sensíveis ou fantasmas de todas as nossas experiências.
Por exemplo, todos sabemos o que é um gato e todas suas características. Se

76 Álvaro Calderón, Logica Mayor, texto esotérico.


77 A. Brodie, Notion and Object - Aprehensive Notions and Judiciative notions.
78 Francisco Suárez, Disput. Metaph. VII, IV, 4
virmos na rua um gato vermelho do tamanho do Cristo Redentor, saberemos que
essas características não batem com nossa experiência sensível de um gato.
Todo o conjunto de nossas experiências sensíveis inclui-se na imagem
sensível elaborada pela imaginação que comporta todas essas variantes individuais.
O conhecimento dá-se pela abstração dos universais a partir das imagens
inteligíveis abstraídas dessas imagens sensíveis ou fantasmas dadas pela
experiência, que são formadas na imaginação ou fantasia. É por esta abstração que
“o intelecto pode considerar uma essência ou quididade, a partir do momento que
deixa de lado os aspectos acidentais”79.
Assim, a imagem sensível é sustentada pela memória. Após este
sustentáculo entra o último sentido interno chamado estimativa ou, nos homens,
chamado cogitativa ou razão inferior porquanto submetido à razão superior. Ele
compara ou estima as imagens guardadas na memória e a partir daí tira certas
conclusões individuais e particulares, sempre sensíveis. Esse fantasma 80 ainda não
é o universal inteligido, porquanto o fantasma é sensitivo, conquanto seja uma
espécie de síntese imaginativa das possibilidades do ente em concreto 81.
Do fantasma criado pela imaginação, ato contínuo, são abstraídas as
espécies inteligíveis pelo intelecto agente, que nada mais transforma “os inteligíveis
em potência a inteligíveis em ato” 82, tal qual a luz do sol ilumina as cores 83. As
espécies inteligíveis então são recebidas pelo intelecto possível que as reduz a ato
podendo assim abstrair os universais e conhecê-los por meio das três operações do
intelecto, a saber: a simples apreensão, juízo ou composição e raciocínio. Em outras
palavras, o intelecto agente vai separar os elementos universais do que é concreto,
individual e particular e imprimir o que é universal no intelecto possível, que ficará
com a forma da coisa que conhecemos na realidade. Este ato formará o verbo
mental.
A imagem intelectual, a paixão que é fiel à coisa real, produz definição ou
conceito84, que é concebido no intelecto. A definição ou conceito apodíctico de
homem é substância, vivente, sensível, animal, racional. Para se chegar a ela há de
se extrair os acidentes e ficar somente com o que lhe é essencial. Abstrair, como já
se disse, é separar estes dois aspectos para se chegar à quidditas ou quididade de
um ente. A abstração se encontra na primeira operação de nosso intelecto, a saber,
a simples apreensão ou inteligência dos indivisíveis 85, aquela que capta o objeto da
79 Cf. Late-Scholastic ans humanist Theories of the proposition, parte 1, 5.1.
80 «Utrum enuntiatio mentalis dividenda sit in aprehensivam et iudiciativam». Comentarii
conimbricensis in dialeticam Aristotelis; In libros Aristotelis De Interpretatione; cap. IV, q. IV, a. 1
81 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía, 2011.
82 Carlos Nougué Das duas primeiras operações do intelecto: uma crítica a Maritain e a outros
tomistas, in Estudos Tomistas - Opúsculos, Edições Santo Tomás, 2016
83 Quaest. Disp. De Anima, a. 3 ad 1: “Veritas est adaequatio intellectus ad rem”. Super Ev.
Iohannis, cap. 14, lect. 2: “Nihil enim aliud est veritas quam adaequatio rei ad intellectum, quod fit
quando intellectus concipit rem prout est. Veritas ergo intellectus nostri pertinet ad verbum nostrum,
quod est conceptio eius. Sed tamen licet verbum nostrum sit verum, non tamen est ipsa veritas, cum
non sit a seipso, sed ex hoc quod rei conceptae adaequatur”.
84 Eric Voegelin, Reflexões autobiográficas, É Realizações, 2008.
85 Lembre-se que Hitler, a princípio, queria salvar a economia alemã do colapso imposto a esta no
Tratado de Versalhes, que responsabilizou unicamente a Alemanha por todas as perdas e danos
realidade86. Ora se por evidência o ente real é simples, implica indivisibilidade, e se
assim o é, logo, é um incomplexo. Na simples apreensão, não está em jogo a
verdade ou a falsidade da coisa e dela nada se afirma ou se nega 87, pois na primeira
operação do espírito o homem age analogamente como agem seus sentidos
externos; tampouco, frisamos aqui, qualquer raciocínio ou silogismo faça-se
presente. Assim, por não comportar veracidade ou falsidade quanto ao objeto real, a
simples apreensão essencialmente não erra e se o faz é por acidente, como ocorre,
por exemplo, a um daltônico que não distingue a cor vermelha ou a cor verde que
existe in re na coisa que contém esta qualidade.
Em outros termos, a imagem intelectual, ou seja, a imitor fidelíssima da coisa
a qual chamamos homem, que por sua vez concebe o conceito de ‘homem’ assim
como a mãe dá à luz um filho, faculta-se por abstração. Quando o intelecto intelige
sem afirmar veracidade ou falsidade, a coisa, separando aspectos acidentais dos
essenciais, desprezando a diferença numérica, e posteriormente, operando a
divisão, se chega à obra, que não é senão o conceito, paixão ou definição de
‘homem’: substância, vivente, sensível, animal, racional - cuja nota é universalidade,
pois todas as experiências que temos disto que é o homem já estão incutidas no
intelecto - ao passo que na abstração, a palavra ‘homem’ por si só se faz
meramente signo verbal de homem.
Quanto ao relativo à obra da primeira operação do intelecto, devemos fazer
uma ressalva. Na simples apreensão, distingue-se operação da obra. Assim, a obra
é o conceito quiditativo ou definição, ao passo que operação se chama simples
apreensão. De outra forma: a obra, enquanto mental, se chama conceito. Seu signo
linguístico é a definição - uma oração que significa o que a coisa é. Na simples
apreensão, o conceito mental, chama-se antes conceito quiditativo, e seu signo
linguístico se chama definição. Distingue-se assim:

Operação: Simples apreensão ou inteligência dos indivisíveis.


Obra: Conceito quiditativo ou definição.

Alguns autores, porém, dentre os quais Jacques Maritan, dizem que a


primeira operação do intelecto possui dois atos e duas obras distintas. Como
explanado no tópico anterior, somos contra tal conclusão. Dá-se o mesmo quando
João de Santo Tomás diz que a segunda operação do intelecto, a composição ou
divisão, que implica juízo, possui dois atos pelos quais a inteligência compõe ou
divide os conceitos de primeira operação. O porquê disso transcrevo in extenso o
parecer:

sofridos pela Tríplice Entente durante a Primeira Guerra Mundial, obrigando-a a pagar uma
reparação onerosa à França, ao Reino Unido e ao Império Russo. Exatamente por isso ele veio a se
tornar Der Führer.
86 Sobre a Alma (De anima),430a, 25-28, Obras completas de Aristóteles, Universidade de Lisboa,
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2010.
87 Jacques Maritain, Agir, 6ª edição, 1970, p. 113-115.
«O dominicano João de Santo Tomás em seu Cursus
Philosophicus Thomisticus influenciou fortemente Jacques Maritain em
seu Éleménts de Philosophie II  —  L’Ordre des Concepts: Petite
Logique o qual se lê que a primeira operação do intelecto comporta
dois atos diferentes, a saber: “o ato de formar um conceito e o ato de
formar uma definição”. (A ordem dos conceitos: Lógica Menor, Ed.
Agir, 6º ed.1970, p. 102). Com efeito, lê-se em seu clássico:
“Dizemos que a definição é a primeira obra da razão porque ela
é a primeira obra da inteligência reunindo entre si os conceitos”
( ‘preliminares’ p. 23, rodapé).
Ademais:
“Portanto, assim como a segunda operação do espírito
comporta dois atos distintos entre si: [1] o ato de formar uma
proposição e [2] o ato de julgar e assentir, assim também a primeira
operação do espírito comporta dois atos diferentes: [1] o ato de formar
um conceito e [2] o ato de formar uma definição. A formação dos
conceitos é por assim dizer a primeira etapa ou a primeira operação,
de maneira que a simples apreensão deve ser considerada como
ordenada à definição como sendo o seu produto mais evoluído e mais
perfeito, uma vez que a simples apreensão é por si ordenada ao juízo
e ao raciocínio.” (p. 102).
Esta última parte, como diz o grande Maritain, é cabal. A
simples apreensão ordena-se ao juízo e estes ordenam-se, por
evidência, ao raciocínio. Tal ordem das operações estão umas para
com as outras assim como os três primeiros livros do Órganon estão
uns para com os outros: as Categorias subordinam-se ao Peri
Hermeneias e estes para os dois livros dos Analíticos, cujos tomos
tratam respectiva e ordenadamente cada qual sua operação.
Ato contínuo, Maritain cita diversas passagens do Aquinate para
atestar o que diz (De verit., q. 1, a. 3; q. 14, a. 1; STh., I-II, q. 90, a. 1,
ad 2; I, q. 17, a. 3; in III De anima, lectio 11; Quodlibet. V, a. 1; e ao
Comment. in Joannes., cap. I, lectio I, n.o 1). Não citaremos todas
elas, porquanto entendemos que as mais importantes já darão sentido
a esta exposição. Ao fim e ao cabo, penso até os dois últimos excertos
seriam-nos suficiente para tal entendimento. Com efeito, vamos a elas:

a. Comment. in Joannes., cap. I, lectio I, n.o 1, no qual diz (com


tradução de Carlos Nougué88):

‘Segundo suas duas operações, o intelecto forma duas coisas:


com efeito, segundo a operação sua que se chama inteligência dos
indivisíveis, ele forma uma definição; segundo, ademais, sua operação

88 Comentario al libro de Aristóteles sobre la interpretación, Pamplona, EUNSA, 1999, p. XLIII-XLIV


pela qual compõe e divide, ele forma uma enunciação [...]. E o que é
assim formado e expresso pelas operações do intelecto em que ele
define ou compõe e divide é significado pela voz [ou palavra] exterior.
Por isso diz Aristóteles que a definição é a razão que o nome
significa’89.
Há um equívoco de Maritain aqui, já que no texto Santo Tomás
diz que uma operação intelige ou apreende os indivisíveis (primeira
operação do intelecto) «indivisibilium intelligentia, format definitionem» e a
outra compõe ou divide e tem por obra a enunciação 90 «...qua componit
et dividit, format enunciationem» (segunda operação do intelecto).
Ademais, Santo Tomás ratifica o exposto em seu Comentário
ao Peri Hermeneias ou Sobre a Interpretação. Vo-los dou in extenso:

b. ‘A operação do intelecto é dupla, como diz o Filósofo no livro


III do Sobre a Alma [De Anima, c.6,430a, 26-28]. Uma operação é a
intelecção dos indivisíveis, a saber, a operação pela qual o intelecto
apreende a essência de cada coisa em si mesma. Outra operação do
intelecto é a de compor e dividir. [...] A primeira dessas operações
ordena-se à segunda, porque só pode haver composição e divisão se
houver a simples apreensão91’
Ademais: diz o Aquinate que uma operação apreende a
essência enquanto a outra, a segunda (juízo ou composição), compõe
e divide, por óbvio, pois neste último há verdade e falsidade na coisa.
Na primeira operação do intelecto, com efeito, quanto às coisas não
separadas secundum rem, pode-se dar a abstração de dois modos 92: i.
como abstractio formae, pela qual se abstrai a forma da matéria,
conquanto não se possa abstrair a forma da matéria de que aquela
dependa segundo a razão da essência; ii. como abstractio totius, pela
qual se abstrai o todo das partes, não obstante não se possa abstrair o
todo das partes que lhe são partes essenciais93.

89 O exemplo é do Pe. Calderón em Umbrales de la Filosofía.


90 A ideia motriz de Leibniz é puramente cartesiana. Fundamenta-se em uma ideia de matemática
universal e a isso dá o nome de Speciosa generalis (Historia de la Filosofía Moderna, Roger Vernaux,
Editorial Herder, Barcelona, 1977). Speciosa significa álgebra ou "Arte combinatória". No intento,
Leibniz buscou criar uma "ciência integral" que a princípio reduziria todos os conceitos possíveis em
conceitos simples, que se combinariam uns com os outros de todas as maneiras possíveis. Para
tanto, pensava ele, bastaria aplicar-lhes símbolos, assim como se faz numa operação algébrica. A
esta tarefa deu-se o nome de "característica universal".
91 Epistemología General, Roger Verneaux, Barcelona, Editorial Herder, 1985. Este mesmo
idealismo inicial que desembocará em Fichte, Schelling, Hegel e nos demais filósofos do Idealismo
Alemão.
92 Gossahm Olara, Le flamee thomiste de la vérité, in Revue des sciences philosophiques et
théologiques, 1921; Kremer, La Systkése thomiste de la vérité, en tRevue néoscolastique, 1933;
Rometer, La doctrine de saint Thomas sur la verité, in «Archives de philosophie» III, Von Balthasar,
Phénoménologie de la vérité.
93 Carlos Nougué, Terminologia, texto esotérico.
c. ‘O que o intelecto compreende forma-se no intelecto, sendo o
inteligível como o agente e o intelecto como o paciente. E o próprio
compreendido pelo intelecto, existente em seu interior, é conforme ao
inteligível movente, pois é sua semelhança, e ao intelecto como
paciente segundo o inteligível que ele possui. Daí que aquilo que o
intelecto compreende se chame idoneamente concepção do
intelecto94’’.
Ademais: o intelecto, em sua primeira operação não erra, pois
este é paciente, ao passo que recebe recebe o influxo do inteligível em
ato, como paixão. A concepção do intelecto se ordena à coisa
inteligida quanto a seu fim, porquanto é para conhecê-la que o espírito
forma em si esta concepção.

d. ‘Deve dizer-se que há na parte sensitiva uma dupla


operação. Uma tão somente segundo imutação: e assim se perfaz a
operação do sentido quando este é imutado pelo sensível. A outra
operação é a formação, segundo a qual a vis imaginativa forma para si
um fantasma de uma coisa ausente, ou nunca vista. Estas duas
operações se reúnem no intelecto. Pois em primeiro lugar há que
considerar a paixão do intelecto possível segundo a qual é informado
pela espécie inteligível. Assim formado, ele forma em segundo lugar
ou uma definição ou uma divisão ou composição, o que é significado
pela voz. Dessa maneira, a razão que é significada pelo nome é a
definição; enquanto a enunciação significa a composição ou divisão do
intelecto. As vozes, portanto, não significam as próprias espécies
inteligíveis; mas aquilo que o intelecto forma para si com o propósito
de julgar das coisas exteriores95’
Ademais: Dá-se, porém, que quanto à primeira operação do
espírito, o intelecto possível forma uma definição OU conceito
quiditativo da coisa inteligida, cuja característica é a universalidade,
como dito pelo Filósofo. O que corrobora com o que ele diz no De
Anima: «O pensamento sobre os indivisíveis diz respeito às coisas
acerca das quais não existe o falso. Naquelas a respeito das quais
existem quer o falso, quer o verdadeiro, existe já uma espécie de
composição de pensamentos como se fossem uma única coisa 96».

94 Álvaro Calderón, Logica Mayor, texto esotérico.


95 Idem.
96 Elucida-nos Carlos A. Casanova em Física e Realidade - Reflexões metafísicas sobre a ciência
natural, Vide Editorial, 2013, p. 17-18: «Aristóteles aceitou que o objeto da matemática estava
despojado de matéria sensível, mas apenas em nossa alma, pois não podia existir a não ser
encarnado nessa matéria. Tinha que ser abstraído pelo intelecto agente. Esta maior imaterialidade e
abstração da matemática era a causa de suas peculiaridades frente à física. Em ambas as
disciplinas, na matemática e na física, é possível conhecer verdades antes de conhecer sua causa,
[...] Em ambos os casos, a admiração é a fonte da investigação, e esta deseja enxergar a respectiva
verdade à luz de sua causa. Mas na matemática isso é freqüentemente possível, enquanto na física
as causas às vezes se conhecem apenas por seus efeitos».
e. ‘Deve dizer-se que, segundo Agostinho em Da Trindade, XV,
o verbo cordial comporta algo que procede da mente ou intelecto. Algo
procede do intelecto enquanto é constituído por sua própria operação.
Ora, é dupla a operação do intelecto, segundo o Filósofo em Da Alma,
III. Uma, denominada inteligência dos indivisíveis, pela qual o intelecto
forma em si a definição ou conceito de algo incomplexo. A outra
operação é a do intelecto que compõe e divide, segundo a qual forma
uma enunciação. E essas duas coisas constituídas pela operação do
intelecto são denominadas ‘verbo cordial’: a primeira é significada por
um termo incomplexo; a segunda é significada por uma oração’ 97.
Ademais: Assim como na Summa Theologiae, a qual Santo
Tomás diz: «Qua quidem formatus, format secundo VEL definitionem
VEL divisionem VEL compositionem, quae per vocem significatur»,
quanto em seu Quodlibet, o qual diz «Una quidem quae vocatur
indivisibilium intelligentia per quam intellectus format in seipso
definitionem VEL conceptum alicuius incomplexi», percebe-se
inequivocamente que se forma uma coisa só, que ora se denomina
definição, ora se denomina conceito (a modo de alternância) e que no
entanto, não são coisas distinguíveis entre si como o querem alguns
filósofos.
Por conseguinte, dizemos que, a priori, isto é um erro
gramatical e que só posteriormente descarrilou para a Lógica, quando
se deu tal divisão. Analisemos, pois, a gramática: VEL, em latim, abr.
ue (-ue), é partícula aglutinante. Como enclítica, coordena termos ou

97 Sobre a Revolução Científica, diz Edward Faser em A Última supertição - uma refutação ao
neoateísmo p. 138: «a ciência moderna, longe de refutar a metafísica de Aristóteles, foi
simplesmente definida de tal maneira que não se permitiria que nada que cheirasse a causas finais e
formais aristotélicas fosse considerado verdadeiramente “científico”. Não houve nenhuma
“descoberta” aqui; houve apenas estipulação, uma insistência em forçar todo objeto de investigação
científica a se espremer em uma cama fabricada para ser não-aristotélica e – se necessário –
simplesmente negar a existência de qualquer coisa que não pudesse ser enfiada nela. Pois as
categorias do aristotelismo escolástico levavam, na concepção de pensadores como Locke, a um
perigoso “dogmatismo” em questões religiosas e filosóficas. (Em outras palavras, se aceitarmos
essas categorias, teremos de admitir que todo o sistema escolástico é mais ou menos racionalmente
inevitável). E na perspectiva de Bacon, elas nos distraem da única coisa necessária. (Em outras
palavras, se Aristóteles estiver certo, então vamos acabar passando mais tempo contemplando
primeiros princípios e o estado das nossas almas e menos tempo inventando novas engenhocas.)
Embora impliquem com este ou aquele argumento de Aristóteles, Tomás de Aquino e companhia
aquilo de que os filósofos modernos e seus sucessores realmente não gostam são as
conclusões .Admita que as causas formais e finais entrem no mundo e você estará aferrado –
racionalmente aferrado – a Deus, à alma e à lei natural. O projeto secular progressista da
Modernidade se torna inviável. Assim, é preciso redefinir “razão” de modo que torne essas
conclusões impossíveis, ou pelo menos severamente enfraquecidas. As categorias metafísicas
clássicas, especialmente as aristotélicas e tomistas, devem ser completamente banidas da ciência,
por decreto. O jogo deve ser manipulado de maneira que Aristóteles e Tomás de Aquino não possam
sequer entrar em campo; então, séculos depois, os sucessores dos primeiros modernos, bastante
contentes com o resultado da proeza dos predecessores e sem grande interesse em perguntar-se
como ela foi alcançada, podem fingir que a recusa a sequer jogar o jogo valeu como “vitória”».
noções semelhantes ou que pouco importam distinguir 98. Ainda como
partícula enclítica (conquanto haja seu uso como prefixo indicando
privação), corresponde à conjunção 'ou', nas expressões alternativas.
Serve para diferenciar, mesmo que por vezes levemente, dois termos,
como é o caso. (Dicionário do Latim Essencial, Autêntica, 2017, p.
441).
Colige-se assim o seguinte: ao falar sobre as operações do
intelecto, não se fala de algo senão segundo o intelecto possível, do
mesmo modo como a vis imaginativa é a da operação própria dos
sentidos. Assim, as três operações do intelecto pertencem ao intelecto
possível, isto é, ao que precisamente intelige e raciocina, enquanto o
intelecto agente, cuja tarefa é fazer o intelecto possível agir per se e
desencadear suas operações próprias, abstrai e imprime as espécies
inteligíveis no intelecto possível99. Assim, a obra única da primeira
operação do intelecto é a definição ou conceito, conquanto ‘conceito’
seja mais profundo do que ‘definição’, pois carece esta última nos
análogos mais amplos, como os transcendentais, tema os quais
abordaremos no momento oportuno.

Quanto à segunda operação do intelecto, João de Santo


Tomás, por identificar o sujeito da Lógica com a resolutio, acaba
fazendo a distinção entre a matéria e a forma na mesma, tal qual
distingue a matéria e a forma da composição 100 como duas operações
distintas101. Daí que Jacques Maritain, discípulo do Doutor Profundo,
no mesmo Lógica Menor, diz que
“o ato de construir uma enunciação (ato de compor e dividir)
seja coisa diversa do ato mesmo de julgar, percebemo-lo de maneira
particularmente clara quando articulamos uma enunciação duvidosa,
por exemplo: ‘O número de astros é par?’ Formulando semelhante

98 Todas as coisas são transcendentais, pois ‘transcendental’ significa aquilo que pode dizer-se de
todas as coisas.
99 De modo simpliciter, Porfírio em sua Isagoge, divide o próprio ou propriedade da seguinte forma:
“próprio é aquilo que convém a todos [de uma espécie] só e sempre”. Por exemplo, ser racional
convém a toda a espécie humana e só a ela, e sempre, pois para sempre o homem terá intelecto,
mesmo um homem com problemas cerebrais, visto que o intelecto vem da alma racional, não de um
órgão material, como supõe alguns contemporâneos.
Já Aristóteles, nos Tópicos do Órganon, diz que: “próprio [ou propriedade] é aquilo que sem referir ou
dizer à quididade da coisa in quid, pertence, porém, só a esta coisa e pode converter-se com ela”, ou
seja, “sem se referir ou dizer a quididade da coisa”; ora, a quididade de ‘homem’ é animal (gênero
próximo) racional (diferença específica). Se não me refiro como ‘animal racional’, digo que, como
propriedade, o homem possui capacidade de rir (ter senso de humor), ou que é político, ou civilizado,
apto a conviver na pólis. Estas são propriedades que pertencem somente ao homem e tão somente a
ele; e toda propriedade decorre da natureza, da essência, da quididade. E estas propriedades de ‘ser
ridente’ ou ‘ser político’ possuem essa convertibilidade com a quididade de ‘animal racional’, visto
que somente o homem pode ser tanto racional, quanto político, quanto ridente; são do homem e
somente dele tais propriedades.
100 Juan Jose Sanguineti, Logica, EUNSA, 1982
101 Aristóteles, Metafísica, l. 1, c.1.
proposição, compusemos dois conceitos entre si; não julgamos
(porque pelo contrário impedimos nosso assentimento, abstendo-nos
de dizer: ‘É assim’ ou ‘Não é assim’). [...] Se os filósofos desleixam às
vezes essa distinção, é porque as enunciações simplesmente
enunciativas estão encobertas, por assim dizer, pelas enunciações ou
proposições judicativas, que são inteiramente semelhantes quanto à
expressão verbal, manifestando um juízo feito. É também porque às
vezes o espírito compõe e julga ao mesmo tempo num único ato,
como ao enunciarmos alguma coisa evidente ou já conhecida, por
exemplo: ‘Pedro é homem’, ‘O cavalo é um animal’. Isso não impede
que esse ato materialmente uno se decomponha em duas ações
formalmente distantes: a ação de compor os conceitos e a ação de
julgar ou de assentir102”
Na segunda operação do intelecto, como já dissemos, há uma
única obra, a enunciação, cujo signo é a proposição oral ou escrita.
Quanto ao ato, que também é único, compõe-se do juízo, cuja
comparação se faz de duas coisas a saber: uma a modo de sujeito, a
outra a modo de predicado. Por exemplo: “A árvore [é / não é] verde”.
Ademais: sobre a divisão e a composição, Mirko Škarica,
professor adjunto da Universidad Católica de Valparaíso no Chile, em
seu comentário ao Peri Hermeneias103 dá-nos um panorama histórico
acerca da “doutrina dos dois atos básicos do entendimento”. Explana
ele sobre a necessidade de introdução, a partir do séc. XV 104 de uma
composição de tipo neutro entre a intelecção do indivisível e a
composição ou divisão, que recebeu o nome de ‘enunciação mental
apreensiva’ a fim de distingui-la da judiciativa ou veritativa. Assim,
entre as noções que se acham como apreensão, excetuando-se
noções simples, deram eles noções complexas de caráter
proposicional. As últimas, portanto, seriam objeto de ato posterior, de
assentimento ou dissentimento, constituindo o juízo.

102 A partir do séc. XIII e XIV até o outono da Idade Média, em grande parte por correntes
nominalistas e scotistas, traduziu-se erroneamente a palavra grega ὄυ por ser e εἶναι, que quer dizer
ser, por existência. O erro se torna ainda pior porque estes são temas caros à Filosofia. A partir do
equívoco desses conceitos, cuja sucessão acabou em um descarrilamento metafísico, assistimos,
por exemplo, à negação do evidente no pós-cartesianismo ou nos chocamos na cegueira do
nôumenon kantiano ou caímos no “esquecimento do ser” em Heidegger a partir da contraposição
entre essência e existência etc. Vejamos: Se se diz que ente é o ser, é a mesma coisa que dizer que
ser é o que tem ser ou ser é o que tem que ser, o que não faz sentido. Esclarecendo: ὄυ (lat. ens,
entis) é ente e εἶναι (lat. esse) é ser. Adiante, ainda neste tomo, estudaremos estes conceitos mais a
fundo.
103 Álvaro Calderón, La naturaleza y sus causas, tomo I, Ed. Corredentora, 2016, p.175.
104 Entretanto, há nuances que as diferenciam secundum rationem, em todo e em parte
respectivamente: a essência referindo-se ao abstrato ao passo que a quididade ao concreto. Por
conseguinte, se considera a essência uma parte constitutiva e principal do ente, como que um
“núcleo”, enquanto a quididade significa todo o ente, mas por referência ao essencial. cf. Daniel
Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica.
Este que por sua vez não compõe ou divide, senão que é capaz
de assentir e dissentir com respeito a uma composição prévia que não
é verdadeira nem falsa enquanto apreensão. Além do simples ato de
apreensão, introduziu-se antes da composição judiciativa uma
composição em estado de mera apreensão, abandonando-se assim a
doutrina dos atos básicos do entendimento 105. Esta novidade106 fora
abraçada pela chamada Escolástica Tardia, tanto por nominalistas
quanto por escotistas e até por tomistas como De Soto e João de
Santo Tomás. Francisco Suárez, o Doutor Exímio, conquanto não
fosse tomista de modo estrito, aceita também esta distinção entre
“composição apreensiva” e composição judiciativa 107. No entanto, um
autor do Colégio de Coimbra que cremos desconhecido, no séc. XV,
contestou esta tese de que há “dupla composição”; uma de mera
apreensão, outra judiciativa, dando-a como afastamento da doutrina
aristotélico-tomista108.

Logo, podemos concluir acerca da segunda operação do


intelecto que, em primeiro lugar, o juízo é um ato único e indivisível,
conquanto tenha uma matéria ou objeto complexo. Ademais,
considerando a matéria do juízo ou composição, percebemos que se
trata da comparação de duas coisas: uma que é concebida a modo de
sujeito, a segunda a modo de predicado (atributo), comparação que se
propõe para compor ou dividir, explanada como já se disse: “A árvore
[é / não é] verde”109. Logo, se considerarmos o juízo no próprio ou
formal, teremos na afirmação ou negação de “é” ou “não é”. Não
obstante, por serem claramente distinguíveis podemos ter o primeiro
sem o segundo, conquanto não possamos ter o segundo sem o
primeiro. Na questão Quia, propõe-se a composição da qual há
julgamento a modo material, não como juízo, senão como problema:

105 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía, 2011, ed. Corredentora, p. 52.


106 “Sicut dicit Philosophus in III de Anima, duplex est operatio intellectus: una quidem, quae dicitur
indivisibilium intelligentia, per quam scilicet intellectus apprehendit essentiam uniuscuisque rei in
seipsa; alia est operatio intellectus scilicet componentis et dividentis. [...] Harum autem operationum
prima ordinatum ad secundam: quia non potest esse compositio et divisio, nisi simplicium
apprehensorum”, in Periherm.I, n. I.
107 Como dito acima, Pitágoras foi o primeiro homem a intitular-se “filósofo”, pois antes seus
predecessores se auto-intitulavam como “sábios”; termo impróprio, visto que para o homem, a ciência
é sempre e de alguma forma limitada e imperfeita. cf. Juan Manuel Orti y Lara, Psicologia y Logica,
Madri, Imp. de Tejado, 1863.
108 "Trata-se, para o filósofo, de sistematizar a vida, de exprimir o mundo em termos abstratos cujos
laços, apertados em juízos particulares e depois em sínteses sucessivas, devem exprimir, quanto
possível, as verdadeiras relações das coisas". A.D. Sertillanges, Saint Thomas d'Aquin; 4.º ed., Paris,
Alcan, 1925; 1º v., p. 17.
109 “Consideramos portanto a filosofia como uma ciência, constituída por tudo quanto há de
verdadeiro no trabalho dos filósofos de todos os tempos [tomismo como síntese]; e como dever de
cada filósofo contribuir para o seu progresso, eliminando o que, porventura, seja errado e passe por
bom, e estudando assuntos ainda não tratados, onde haja novas verdades a descobrir”. Manuel
Correa de Barros, Lições de Filosofia Tomista, p. 105.
“[Utrum] homo est [vel no est] politicus”, ou seja, “[(Se) o homem é (ou
não é) político]”110.
A modo de conclusão, portanto, no que tange à segunda
operação do intelecto, não se trata apenas de ato único, senão de
única obra, a saber, a enunciação, cujo signo é a proposição, seja oral,
seja escrita. Ademais, em enunciações interrogativas não há
quaisquer “impedimentos111” ao assentir ou dissentir. Fazemo-las
materialmente, em ordem ao juízo. Ademais, o ato da segunda
operação é um composto em que o formal é uno, isto é, a própria
cópula “é/não é”, ao passo que material é que é complexo.112»

Como visto acima, a primeira operação da razão possui apenas uma obra:
conceito ou definição. Veremos adiante que existe conceito sem uma definição
propriamente dita, como nos Transcendentais ou Análogos Supremos, a saber:
coisa, algo, bom, verdadeiro, belo, uno. Por hora, conceito ou definição são a
mesma coisa do ângulo da simples apreensão, pois, assim como uma mulher dá à
luz a um filho, da mesma forma a abstração gera um conceito ou definição cuja nota
é a universalidade. Por outro lado, a definição se refere antes à oração enquanto
conjunto de palavras que significa o que a coisa é, e o conceito exprime a mesma
coisa sem considerar que se trate de uma oração.
A respeito da simples apreensão, por analogia, podemos explicitar assim:
como o olho conhece a cor verde ou vermelha a ponto de definir a essência ou
simplesmente não a conhece, como no caso dos munidos de discromatopsia
(daltonismo), da mesma forma o intelecto, ou conhece a coisa conhecida ou não a
conhece, pois, se virmos um homem sem os braços, olharemos-no e saberemos
tratar-se de um homem.
Na simples apreensão, não há verdade ou falsidade porque respondemos
aqui a questão Quid est ou Quid sit (o que é?), enquanto na segunda operação do
intelecto, que é o juízo ou composição, respondemos à questão Quia [quia ita est],
porque é assim, onde há realmente o julgamento entre verdadeiro e falso, uma
espécie de “tribunal do intelecto”, pois esta é a pergunta pelas propriedades do ente
e se aquela pertence a este; ao passo que na terceira operação do intelecto, que é
o silogismo ou raciocínio, respondemos à questão Propter Quid [propter quid est ita],
que pergunta pelas causas113 e equivalente ao por que, separado e sem acento na
língua portuguesa, que pergunta por que tal propriedade pertence de fato a tal ente -
esta é a pergunta científica por excelência, e é exatamente por isso que está no

110 S. Tomás de Aquino, Comentário ao “De caelo et mundo” de Aristóteles, I, liç. 22; cit. em
Thonnard, ob. cit., pág. 3.
111 A primeira noção é puramente aristotélica (Metafísica, IV, cap. 1). Santo Tomás acrescenta “à
luz da razão natural” nas primeiras páginas da Suma Teológica (q. 1, a.1), a fim de distinguir a
filosofia da teologia (à luz da revelação).
112 Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía, ed. Corredentora, 2011, p. 67.
113 Introducción al Tomismo, Gustavo Eloy Ponferrada, Biblioteca Argentina de Filosofía, 1985, p.
88
âmbito do silogismo, assim como uma interpretação de texto está centrada neste
escopo.
Há ainda, porém, outra espécie de pergunta que é respondida com as
propriedades: Quomodo sit, ou seja, de que modo é. Estas propriedades
relacionam-se com os acidentes, dado que estes possuem, como vimos, duas
classes, os acidentes próprios ou propriedades e os acidentes propriamente ditos.

As propriedades das coisas

Quomodo sit
Ao cabo de discernir o quid sit de tal coisa - aquele que busca sempre pelas
quididades de tal ou qual ente, ato contínuo, há de se desdobrar, por evidência, em
algo a mais: quomodo sit, isto é, suas propriedades. Assim, a questão quomodo sit
indaga quais atributos pertencem de fato a esta coisa que se dá aos sentidos e sem
os quais isto ou aquilo não poderia sê-lo o que é. Pois é-nos evidente que se se
chega a entender que ‘homem’ (Paulo, Natália, Amora, Pedro, e assim por diante),
de modo geral, pertence a um mesmo tipo de substância, foi justamente ao reparar
como certas características comuns entre eles se manifestaram de maneira
essencialmente idêntica.
Todavia, a pergunta quomodo sit não poderá versar sobre, por exemplo,
Natália ser ruiva e Paulo ser loiro (sabemos que ter cabelo é uma característica
comum entre ambos, que são animais racionais), pois a questão científica não
implica obviedade, senão que diz respeito ao não evidente. Assim sendo, a
pergunta pelas propriedades dar-se-á na distinção dos aspectos acidentais que
podem dar-se em uma espécie de substância e se elas pertencem propriamente a
esta.
No tópico acima, estudamos as duas classes de acidentes, a saber: os
acidentes propriamente ditos e os acidentes próprios ou propriedades. Do ponto de
vista da predicação, o gênero, a diferença específica, a espécie, e as propriedades
e acidentes são chamados predicáveis porque são modos de relacionar sujeito e
predicado. Estes são universais lógicos, estudados por Porfírio em seu clássico
Isagoge, concebido como uma introdução às Categorias de Aristóteles; constituem-
se como sujeito próprio da Lógica114.
Ao examinarmos as propriedades (ou acidentes próprios), dissemos que elas
sempre se dão em dada espécie de substância e que se tais propriedades não se
realizam naquela, acaba por incorrer uma imperfeição de tal substância, pois, se é
um acidente próprio, só pode decorrer de sua essência.
Há, contudo, outras perspectivas filosóficas para a busca perfeita da ciência,
uma vez que não basta saber “se existe” ou “o que é” e quando aterrisamos nosso
intelecto nisto, neste terreno arenoso de quomodo sit, ou seja, “como é”, sentimo-
nos como que afundando nesta areia que não oferece resistência, ao passo que
devemos então determinar se de fato tal propriedade se dá em determinada coisa.
114 Introducción al Tomismo, Gustavo Eloy Ponferrada, Biblioteca Argentina de Filosofía, 1985, p.
101
Questão Quia: a verdade científica

A questão Quia, visa portanto a saber se realmente esta propriedade - ou


acidente próprio - se dá na substância ou se algo pertence de fato àquela essência.
Quia é uma partícula da questão Quia ita est115, porque é assim, e se responde Ista
est, é assim. Esta por sua vez nos remete, ou melhor, nos coloca de joelhos perante
a questão da verdade, esta que não é uma substância em si, senão uma
propriedade que está nas coisas, já em nossa mente, e por essa razão é
propriamente uma relação, uma conformidade entre o ente em si e o ato intelectivo
o qual se inclina a ele e vice-versa.
A verdade dá-se, portanto, na segunda operação do intelecto, justamente
onde está a questão Quia, a qual pergunta sobre as propriedades de dado ente da
realidade, pois aqui entra o tribunal do intelecto que visa inquirir sobre a verdade ou
a falsidade. Por exemplo, rir é próprio do homem?, essa propriedade pertence
efetivamente a ele? Já vimos que para rir é necessário ter senso de humor e para
dar-se este é preciso intelecto, que por sua vez se dá no homem. Logo, Ista est
porque rir é uma propriedade do homem e somente dele, dado que se dá somente
nesta espécie de sub-stat e se lhe falta isto, o riso, o senso de humor, logo seu
intelecto, falta-lhe algo para a perfeição desta substância a qual chamamos
‘homem’.
A definição de verdade, portanto, famosa em Santo Tomás, a qual diz que
‘verdade é adequação do intelecto à coisa’, é uma via de mão dupla, onde se dá a
verdade da coisa: adaequatio rei ad intellectum e a verdade do pensamento:
adaequatio intellectus ad rem. Assim, há dois tipos de verdades: as verdades
contingentes116, aquelas que ainda que sejam de um modo, poderiam sê-lo de outro;
e as verdades necessárias117, aquelas que não poderiam ser de outra maneira. As
verdades necessárias, por sua vez, dão-se de duplo tipo: relativas às quididades e
relativas às propriedades. Delas tomemos o exemplo: o homem ser racional é
necessário e essencial, pois sem isso não o poderia sê-lo; e no entanto, o homem
ser ridente é necessária e acidental, pois poderia não o ser deste último modo, mas
ao contrário, poderia encontrar-se descontente e taciturno, todavia, por motivos
quaisquer.
Ademais, a questão Quid implica a questão das Categorias, porque com
efeito, as propriedades estão intrinsecamente nos predicamentos. Como a
substância é o gênero máximo dos aspectos quiditativos, os gêneros máximos dos
acidentes, e que compõe os outros nove, os são dos acidentes, são modos ou
aspectos da substância. Temos assim que há verdades de diferentes modos, mas
nem todas dizem respeito à verdade da ciência, pois uma proposição científica
pode-se dar como provável ou como certa, e é papel da Lógica estudar as

115 Álvaro Calderón, Curso de Física, texto esotérico, p.24


116 Santo Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 3, a. 5, respondeo.
117 Filosofía Elemental, Tomo I, Zeferino Gonzáles.
condições essenciais para se alcançar a ciência. Cabe assim a nós, ainda no âmbito
da questão Quia, que versa sobre a verdade ou a falsidade, fazermos uma reflexão
sobre este movimento, o qual se dará no âmbito da segunda operação do intelecto.

Segunda operação do intelecto: Juízo ou composição e divisão

Em sua “Lógica transcendental”, Kant diz que: A definição nominal de


verdade, como concordância do conhecimento com seu objeto, está aqui [em sua
doutrina] admitida e presuposta. O problema da fórmula kantiana, além de incorrer
em grave e evidente equívoco, é que implica já de início todo o idealismo118, isto é, o
ponto motriz do subjetivismo.
Dizemos, pois, que a definição de verdade não é, ao contrário do Kantismo,
somente “nominal” ou subjetiva, senão que a questão da verdade é in re, na
realidade mesma das coisas119. Assimilemos, pois, como se dá a verdade e qual sua
operação.
Na segunda operação do intelecto, cujo nome é juízo ou composição e
divisão, há o tribunal do intelecto em ação, como já dito; um julgamento acerca de
sujeitos e predicados. Chama-se composição porquanto afirma uma quididade a
respeito de outra e chama-se divisão quando se nega uma quididade no tocante à
outra. É uma via de mão dupla, portanto.
A segunda operação do intelecto supõe a verdade (ou a falsidade), pois a
questão Quia pergunta pela verdade de uma proposição científica. Com efeito, para
refletir sobre o ato do espírito que nos dará a resposta a esta questão, convém dizer
previamente Quid est veritas?, ou seja, qual a quididade ou essência da verdade.
Pois bem, o que é a verdade? Não é difícil notar que primeiramente não se
trata de uma substância, que fosse assim suporte de acidentes.
Trata-se então de uma propriedade, tanto das coisas que são inteligidas,
como do próprio ato do intelecto que conhece as coisas 120. Mas não em qualquer ato
de nosso intelecto, pois podemos conhecer falsamente as coisas, como quando
falamos “A grama é azul”, sendo que por natureza esta é verde. Há presença da
verdade quando aquilo que nós inteligimos corresponde ao que se adequa ao que
esta coisa a que nos referimos é na própria realidade, como quando falamos “A
grama é verde”.
Assim sendo, se a verdade não é uma substância, não pode constituir-se
também quantidade, pois estas são magnitudes ou dimensões; muito menos será
ela uma ação ou situação; tampouco um lugar no tempo ou no espaço - pois são
estes todos eles acidentes, são as outras nove categorias fora da substância que é
gênero supremo.

118 Dennis Bessada, Javan e a origem do povo jônio.


119 Linguistics Research Center, "Indo-European Lexicon", College of Liberal Arts, The University of
Texas, Austin
120 “Ars direttiva ipsius actus rationis per quam scilicet homo in apsu acto rationis oradinate et
faciliter et sine errore procedat”, S. Tomás de Aquino, Anal. Post. lib. I, lect. 1.
Por certo ângulo, a verdade pode até parecer uma qualidade, mas se
considerarmos de modo mais restrito, perceberemos que não, porquanto a
qualidade é um atributo de algo considerado em si mesmo.
Assim sendo, aquilo que é verdadeiro - e seu substantivo abstrato, a verdade
- é um dos transcendentais, a saber: um acidente próprio ou propriedade 121.
Observada pelo âmbito das Categorias, a verdade se dá propriamente como
relação, isto é, como adequação entre o intelecto que abstrai a coisa e a coisa
mesma que é inteligida; tal qual a relação de um pai para com um filho e um filho
para com seu pai. Sem esta relação não há verdade e é por isso que a Filosofia
Moderna a rejeita com tamanho vigor.
A verdade, então, é uma relação entre dois termos, o intelecto e o inteligido;
daí que a coisa faz-se verdadeira se é como se pensa, ao passo que o ato do
intelecto é verdadeiro se se adéqua à coisa real tendo-a tal como é. Daí que os
escolásticos definiam a noção de verdade como Adequatio rei et intellectu, a
adequação da coisa ao intelecto.
Ocorre que, como já dito, há uma mão dupla onde a verdade faz esta relação
entre os dois termos. Por um lado, é Adequatio rei ad intellectum, a adequação da
coisa ao intelecto, que trata da verdade da coisa; por outro lado é Adequatio
intellectius ad rem, isto é, adequação do intelecto à coisa122.
Então temos:
● A coisa que é verdadeira se é como se pensa.
● O ato do intelecto que é verdadeiro se se adéqua à coisa real, ao
pensar que a coisa é tal como é.
Ato contínuo, além de uma categoria aristotélica de relação, temos isto ainda
como um transcendental, o verdadeiro, porque ora, a verdade é o substantivo
abstrato de verdadeiro, o que significa que são o mesmo por ângulos diferentes.
Chamam-se transcendentais porque ora pode dizer-se de muitas coisas, essas que
por sua vez são ente (ens), coisa (res), uno (unus), algo (aliquid) belo (pulcher), bom
(bonus) e verdadeiro (verus) - estes os últimos seis são sempre ente mais a noção.
Mas então, o que é o verdadeiro?
Este verus diz-se das coisas reais de diversos modos. Em primeiro lugar,
como adequação entre essência e aparência. Se não há esta adequação, então se
dirá falsa; se o há, dirá que uma coisa real é verdadeira. Como no caso clássico do
ouro e do ouropel. Daquele se diz verdadeiro ouro porquanto há perfeita adequação
entre a essência do ouro e sua aparência, conquanto neste, diz-se “falso ouro” ou
“ouropel”, porque implica imperfeição da verdade e do verdadeiro, pois não
corresponde à essência perfeita do ouro verdadeiro, é ‘ouro de tolo’, por exemplo o
dissulfeto de ferro (pirita), um mineral reluzente e muito semelhante ao ouro, mas
que, se aquecido, solta dióxido sulfúrico, uma espécie de gás venenoso.

121 “Et haec ars est Logica, idest rationalis scientia. Quae non solum rationalis est ex hoc, quod est
sccundum rationem (quod est omnibus artibus commune); sed etiam ex hoc, quod est circa ipsum
actum rationis sicut circa propriam materiam. Et ideo videtur essc ars artium, quía in actu rationis nos
dirigit, a quo omnes artes proccdunt” in I Post. Anal. lect. 1, n. 2-3:
122 Anal. Post., lect. 1, n. 2-3.
O segundo modo se diz que uma coisa in re é verdadeira se há adequação
desta coisa ao intelecto. Com efeito, divide-se isto em modo objetivo/potencial,
quando se diz, por exemplo que “o homem é animal racional”, pois se trata de que o
intelecto conhece verdadeiramente a coisa, sua quididade ou essência; ao passo
que divide-se também em modo objetivo/atual quando se diz que “o homem
repousou” porque se isto aconteceu e eu digo que “ele [o homem] repousou”, então
isto vem da coisa para o intelecto.
Há, porém, um terceiro modo de dizer-se verdadeiras as coisas, que é como
adequação da coisa feita à arte de fazer. As coisas artificiais, como já dito ao tratar
a quididade destas, são aquelas fabricadas pelo homem - uma mesa, uma
escultura, uma tela à óleo -, são arte-factum, diz-se daquilo feito com arte ou
conforme as regras do bem-fazer. Assim, uma catedral gótica medieval, por
exemplo, será verdadeira se tiver sido feita conforme as regras da Arquitetura; um
texto será verdadeiro se tiver sido escrito segundo as regras da Gramática e assim
por diante123.
Então, quanto à verdade, esta palavra abstrata do transcendental verdadeiro,
diz-se de triplo modo, a saber:

● Adequação entre a coisa in re e o intelecto (adequatio rei et intellectu);

● Adequação da coisa ao intelecto, que trata da verdade da coisa


(adequatio rei ad intelectum);

● Adequação do intelecto à coisa, que trata da verdade do intelecto


(adequatio intellectus ad rem);

E quanto ao transcendental verdadeiro, cujo abstrato é ‘verdade’, diz-se


também de triplo modo, a saber:

● Adequação entre essência e aparência, tal qual o ouro e o dissulfeto


de ferro, no qual este significa somente aparência - porquanto só brilha
como tal e quando aquecido solta gás venenoso; e aquele, o ouro
verdadeiro, onde há perfeita adequação entre o binômio essência e
aparência;

● Adequação da coisa ao intelecto, onde há:


○ Modo radical ou potencial: o que o intelecto pode conhecer da
coisa é o verdadeiro; sua quididade ou essência.
○ Modo objetivo ou atual: o homem deitou-se ou repousou (se de
fato o fez).

● Adequação da coisa feita à arte de fazer, que segue normas de sua


arte em questão, tal qual a Catedral de Notre Dame em Paris segue as
123 Metafísica, l. 1, c.2.
regras da Arquitetura Gótica, como por exemplo nos arcobotantes ligados
aos contrafortes das catedrais, a fim de aumentar a altura da abóbada,
inserindo função (estrutura) e forma (beleza) arquitetônica.

Há, ainda, o modo como se diz verdadeiro do intelecto. Acima, tínhamos dito
como se diz verdadeiro da coisa real ao intelecto. Agora, pois, quanto ao intelecto,
diz-se verdadeiro como adequação dos conceitos às coisas e como adequação das
palavras às coisas. Quanto adequação aos conceitos, diz-se que o intelecto é
verdadeiro quando se apreende a quididade ou essência das coisas pela simples
apreensão, na primeira operação do intelecto, como em “homem: animal racional”.
Ademais, a modo de adequação dos conceitos às coisas, dá-se ainda de um
segundo modo, agora na segunda operação do intelecto, quando o intelecto
conhece o verdadeiro a partir do momento que se julga adequado à realidade.
Aqui, o intelecto julga-se a si mesmo quanto à obra da primeira operação do
intelecto, como em “o homem é animal racional”124. Seu conceito implica juízo ou
julgamento, expresso pela partícula ‘é’, um verbo de ligação, o qual veremos mais à
frente na segunda operação, pois se digo “o homem não é um animal racional”
tampouco deixei de fazer um juízo.
O segundo modo de dizer que o intelecto é verdadeiro é como adequação
das palavras às coisas. Diz-se que uma proposição é verdadeira quando esta se
corresponde à realidade significada, pois não é suficiente que corresponda ao que o
homem pensa dela, senão que é preciso que corresponda ao que é na realidade.
Portanto, em uma proposição, não é suficiente que haja aquilo que o homem
pense da coisa, isto é insuficiente, pois ele pode ser sincero no que diz sendo falso
na maneira como entende a realidade da coisa. Pode-se este incorrer em dizer uma
falsidade, quando se diz o contrário do que se pensa, ainda que por acidente seja
verdadeiro; a qual incorre em analogia de proporcionalidade, e mais do que esta,
analogia de atribuição125. A adequação, assim como a verdade e a falsidade, dão-se
primeiramente no intelecto, porque as coisas são o que são, cada qual a seu modo.

Princípio material e formal do juízo

A segunda operação do intelecto se chama composição ou divisão


(compositio vel divisio) isto porque aqui o intelecto faz um julgamento (juízo), como
ato único e indivisível, afirmando (compositio) ou negando (divisio) uma coisa e
outra. Por exemplo, podemos dizer “A árvore é verde.” fazendo assim uma
composição, ao passo que podemos negar a oração ao falar “A árvore não é
verde.”, caso em que procedemos uma divisão do que é “verde” e do que é “árvore”.
Chama-se juízo também porque na segunda operação do intelecto, como
dissemos acima, este julgamento, este juízo, é um ato único e indivisível do qual

124 Álvaro Calderón apud Ethic., lect. 1. n.1-2


125 H.D. Gardeil, Introdução à Filosofia de Santo Tomás de Aquino, Tomo I, Lógica e Cosmologia,
Paulus, 2013, p. 29
possui um objeto complexo. Não existe dois passos, um de compor e outro de
dividir, são uma coisa só, conquanto perfeitamente distinguíveis.
O princípio material do juízo é sempre uma comparação de suas coisas,
aquilo mesmo que compõe e divide, as quididades, a saber: um sujeito e um
predicado. Já o princípio formal do juízo é a própria afirmação ou negação da
composição ou divisão, é o próprio verbo. Em outras palavras, a parte material é a
que será composta ou dividida enquanto que a parte formal é aquela mesma que as
compõe ou as divide e um está para o outro como o corpo (matéria) está para a
alma (forma).
Vejamos o dito acima esquematicamente:
A árvore [é/não é] verde.
⬇️ ⬇️ ⬇️
Sujeito Verbo Predicado
(matéria) (forma) (matéria)

Na segunda operação do intelecto, pois, nós distinguimos a operação (juízo


ou composição, ou composição e divisão) daquilo que é a obra. (o conceito ou verbo
mental chamado enunciação ou proposição mental), tal como ocorria na simples
apreensão. A segunda operação sempre supõe a primeira porque se vamos compor
ou dividir quididades, devemos supô-las primeiro na simples apreensão 126 - assim
como a terceira operação do intelecto irá supor esta.
Portanto, a obra da primeira operação do intelecto que é o conceito mental,
enquanto quiditativo, é chamado conceito, e tem por signo linguístico a definição,
que significa o que a coisa é. Já a segunda operação do intelecto, tem por obra o
signo linguístico chamado proposição oral ou escrita, sendo seu conceito mental
propriamente enunciativo.

Predicação per se e per accidens

Assim como o predicado se diz de um sujeito, como por exemplo em: “João é
saudável”, assim também uma quididade se diz de outra quididade. Quando este
predicado é atribuído ao sujeito, seja por motivos acidentais ou contingentes,
chamamos-no predicado “per accidens”, ao passo que se o predicado se dá em
razão de essência ou de algum acidente próprio ou propriedade, chamamos-no
acidente “per se”.
Para exemplificar, se digo “Semana passada choveu muito”, esta é uma
oração que contém uma contingência (poderia ter feito sol), pois diz respeito a um
sujeito de algo acidental, logo é uma predicação “per accidens”.
Agora, se eu digo “João é animal racional” ou “Maria é risonha”, faço uma
predicação “per se”, pois no primeiro caso, prediquei um homem de sua essência e

126 No caso das Belas-Artes, estas impressões formais são mimético-significantes plasmadas em
determinado meio com o fim último de fazer propender ao bom e ao verdadeiro mediante o belo e
afastar-se do mau e do falso mediante o horrendo.
no segundo prediquei-o de sua propriedade, aquela que só se dá em sua espécie, a
saber: a ‘espécie humana’ a qual Maria pertence, ou seja de algo necessário.
Esta predicação per se pode ter vários modos, desde que se atribua um
predicado quiditativo ou acidente próprio (propriedade) ou mesmo outro predicado
que mantenha relação necessária com o sujeito127.

Propter Quid e o problema das causas.

Uma vez passando pelas propriedades da substância, pela pergunta


Quomodo sit (como é?), na qual se desprezam os acidentes simples em detrimento
dos acidentes próprios ou propriedades, e dividindo esta em diversas outras
perguntas como Quantum est (quantidade), Qualis est (qualidade), Ad quid est
(relação), Ubi est (onde), Quando est (quando) etc., todas se referindo às
Categorias, podemos determinar características de uma vasta gama de
propriedades possíveis da substância, até a pergunta mestra, a questão Quia: se tal
acidente pertence propriamente e de modo necessário a tal ou qual substância, se
se pode dizer esta verdade ou falsidade quanto à verdade científica. Vejamos a
seguir, após um pequeno resumo, a questão Propter quid.

QUOMODO SIT

● Primeira Operação do Intelecto: Pergunta pela essência da coisa (Quid sit).


● Segunda Operação do Intelecto: Pergunta pela veracidade (verdadeiro ou
falso) de dada coisa ou de certa propriedade da substância (Quia).
● Terceira Operação do Intelecto: Pergunta pela causa deste pertencimento
dado à substância (Propter quid).

A questão Propter quid, versa sobre o problema das causas e é o umbral da


terceira operação do intelecto, isto é, o raciocínio, que nada mais é do que “o objeto
principal da lógica128”. Isto porque, assim como na questão Quid sit perguntamos
pela essência de determinado ente e assim como na questão Quia perguntamos
acerca da verdade de determinada propriedade a tal ou qual substância, do mesmo
modo a questão Propter quid pergunta pela causa de tal ou qual pertencimento.

***

127 Pe. Álvaro Calderón, Umbrales de la Filosofía: cuatro introducciones tomistas, 2011, 1ª edição,
p.131, tradução nossa.
128 Idem. Tradução nossa.
________

[O SUJEITO DA LÓGICA - CONTINUAR…]

Breve história da Gramática


A Gramática como a conhecemos hoje surge no bojo das Sete Artes Liberais
- o Trivium (Gramática, Retórica e Dialética 129) e o Quadrivium130 (Aritmética,
129 Antes da chegada das obras completas de Aristóteles ao Ocidente, especialmente pelas mãos
de Guilherme de Morbeck, chamava-se Dialética no Trivium a disciplina estudada para o bem-
raciocinar e que incluía em sua filosofia, além do platonismo e do aristotelismo, o estoicismo de, por
exemplo, João, O Gramático, a quem se deu a tese de que o nominativo é caso, conquanto outros
autores, incluindo Santo Tomás, o dizem que é vogal temática, o mesmo título das vogais temáticas
nominais em língua portuguesa.
130 A teoria do número não compreende apenas a matemática - a ciência do ens quantum, ou seja o
ente enquanto quantidade, perfeitamente mensurado, explicitado aqui como aritmética, mas também
álgebra, cálculo, equações, dentre outros ramos da matemática superior. Ademais, enquanto teoria
do número, inclui-se a música entendida como princípio, distinta da instrumental aplicada que
constitui Belas-Artes, incluindo medições descontínuas de quantidade como a física especial
(cosmologia) e a química. Já a teoria do espaço tem em seu escopo alguns princípios de geografia,
agrimensura, engenharia e arquitetura - conquanto de certo modo também esta seja Arte-Liberal,
porque Belas-Artes secundum quid.
Geometria, Música e Astronomia) - que era o conjunto de estudos que antecedia o
ingresso na Universidade. De

Santo Tomás de Aquino à Shakespeare, todos passaram pelas Sete Artes


Liberais. Estas são chamadas assim porquanto servem ao espírito ou intelecto em
contraponto às artes servis como a marcenaria, por exemplo, donde se serve ao
corpo - afinal, são trabalhos braçais.
A Arte é recta ratio factibilium, isto é, a reta razão do fazer. Em sentido
estrito, a Arte se divide em arte servil e arte liberal, as primeiras mais ao facere
porque se valem do corpo ou algo corpóreo em favor do corpo 131. Já as artes liberais
dizem-se desta forma porque tratam do intelecto. Em sentido amplo, Arte é uma
ordenação da razão pela qual os atos humanos alcancem por determinados meios o
devido fim.
O conjunto das Sete Artes Liberais, portanto, é muito provável que tenha
surgido de modo primário em Alexandria, no século II, cujos estudos sempre
atrelados ao Cristianismo, eram chamados Didaskaleion. Remontava-se
historicamente ao evangelista São Marcos e a fórmula usada no Medievo, porém, só
ganhou definitiva com as Capitulares de Carlos Magno e Alcuíno, que organizara a
escola carolíngia em Aix-de-Chapelle.
De início, como se dava mais ênfase à Lógica, a Gramática ainda não fazia
parte de tal ciência-arte, menos estritamente à Retórica e menos ainda à Poética.
Só mais tardiamente, foi incorporada à ciência da linguagem como “a ciência de
falar sem erro”, em designação exata de Hugo de São Vítor.

Lógica gramatical
A Gramática possui duas vias: Gramática Geral e Gramática Especial. Sobre
o espectro cada uma, daremos voz à Irmã Miriam Joseph, PhD, especialista na obra
de Shakespeare e autora do grande livro Trivium - As artes liberais da lógica, da
gramática e da retórica, a qual diz:
A gramática geral é mais filosófica que as gramáticas especiais
porque está mais diretamente relacionada à lógica e à metafísica - ou
ontologia. Consequentemente, ela difere um pouco das gramáticas
especiais no que diz respeito ao ponto de vista e à classificação
resultante, tanto na análise morfológica quanto na análise sintática 132.

A partir disso, primeiramente devemos conhecer a Gramática Geral, ao


menos sua introdução, para podermos ter mais certeza de pisarmos neste universo
que é a Gramática Especial, a qual estudamos na escola. A Lógica e a Retórica
formam com a Gramática as três Ciências da Linguagem, esta que se desenvolve a
partir da natureza mesma do ser humano, pois a racionalidade é intrínseca a este.

131 Carlos Nougué in Das artes Liberais: a necessária revisão.


132 Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica, Ir. Miriam Joseph, C.S.C, PhD, É
Realizações, 2008.
Ao inventar símbolos que exprimem as experiências práticas, construímos a
existência e as palavras quando escritas ou faladas tornam-se termos e entram nos
domínios da Lógica. As palavras são categorizadas por sua relação com o Ser e,
em contato com as Categorias ou Predicamentos, traduz o símbolo linguístico em
proposição, silogismo, sorites, entimemas, falácias et ita porro.
A Lógica, nada mais é que a ciência-arte propedêutica às demais artes e
demais ciências, pois nos ensina a pensar com competência e a Gramática é a arte
de inventar símbolos para expressar tais pensamentos 133. Ademais, a Gramática
une elementos das mais diversas formas como versificação (poética), retórica e
crítica literária, conforme expresso por Dionísio de Trácia (166 a.C), grego que
escreveu a primeira gramática que se tem notícia. Em seu livro há figuras de
linguagem, etimologia, alusão, analogias, análise literária, proposições etc todos
elementos usados até hoje na gramática e na lógica de argumentação.

Gramática e Metafísica
A Metafísica é a Rainha das Ciências, porquanto trata do ente enquanto ente.
Ora, se algo não se dá nele mesmo, se algo não se dá nele enquanto é, não pode
ser propriamente ciência simpliciter. Foi o que aconteceu com a ciência moderna
com o cartesianismo e o kantismo. Ao substituir a ciência pela matematização que é
uma ciência média, a ciência perdeu seu valor intrínseco, em si mesmo, porque a
matemática não dá porquês a coisa alguma senão descreve relações e mede
quantidades.
A Lógica e a Gramática relacionam-se com a Metafísica de modo estreito,
pois esta é a ciência do ente enquanto ente, isto é, aquilo que é enquanto é. Esta
relação permanecerá sempre assim, pois a realidade existe em si mesma e só
depois é abstraída da espécie inteligível, que é princípio formal da operação
intelectiva, assim como a forma de qualquer agente é o princípio de sua operação 134.
Veremos mais adiante como conhecemos as coisas.
A Arte da Linguagem e a Metafísica, enquanto relacionadas entre si, pode ser
representada do seguinte modo:

O planeta Plutão já era uma entidade real, percorrendo sua órbita em torno
do Sol havia muitos e muitos milênios, por nós desconhecido e, portanto, sem
nome. A sua descoberta, em 1930 não o criou; porém, ao ser descoberto, tornou-se
entidade lógica. Quando lhe foi dado o nome Plutão, tornou-se uma entidade
gramatical. Quando, por seu nome, o conhecimento dessa entidade foi comunicado
a outros através desta palavra falada e escrita, o planeta Plutão tornou-se então
uma entidade retórica135.

133 Idem.
134 Summa contra Gentiles, 1, I, cap. XLVI,1.
135 Trivium - As artes liberais da lógica, da gramática e da retórica, Ir. Miriam Joseph, C.S.C, PhD,
É Realizações, 2008.
Plutão já existia metafisicamente, in re, na realidade mesma quando o
descobriram. Quando de sua descoberta, tornou-se entidade lógica porquanto à
Lógica cabe tratar da coisa como ela é conhecida utilizando-se para tanto
silogismos e conclusões; ao passo que quando foi dado seu nome original, Plutão
se tornou entidade gramatical porque este nome é seu símbolo, isto é, o signo
linguístico que comunicamos a todos sua existência.

A gramática é um conhecimento experimental dos modos de escrever nas


formas correntes entre poetas e prosadores de determinada língua e está dividida
em seis partes: i. leitura instruída com atenção especial à prosódia e poética; ii.
exposição em acordo com a retórica (figuras poéticas); iii. exposição dialética e de
alusões; iv. aparição de etimologias; v. cuidado com as analogias; vi. crítica poética,
que constitui a parte mais nobre desta arte136.

_________________________
Apesar de o grande candeeiro da Filosofia de todos os tempos denominar-se
teólogo, Santo Tomás de Aquino dizia sempre que philosophia ancilla theologiae, ou
seja, a primeira é serva desta última, e assim falava sobre aquela: “o objetivo da
Filosofia não é saber o que os homens pensaram, mas sim qual é a verdade das
coisas”. Encontra-se em sua Metafísica, à revelia de Heidegger 137, uma legítima
Filosofia do Ser, como síntese original e única em toda a História da Filosofia.
A partir da encíclica Aeterni Patris, de Leão XIII, a qual trouxe a lume filósofos
dispostos a voltarem-se ao mestre, ainda que, a exemplo de Juan Manuel Ortíz y
Lara, dentre outros, os filósofos cristãos nunca tivessem deixado o tomismo

136 Idem.
137 Um dos mais profícuos alunos de Martin Heidegger, Johannes B. Lotz, declarou em seu livro
Martin Heidegger e São Tomás de Aquino, Instituto Piaget, 1975, que o “esquecimento do ser” de
que falava o filósofo alemão, não poderia aplicar-se em hipótese alguma a Santo Tomás porque este
criara a Metafísica do Ser, ao contrário de seu mestre que, por almejar uma crítica contundente de
toda a história da filosofia ocidental, esqueceu-se do ser em sua própria obra. Cf. também Sidney
Silveira, Metafísica do Ser e Martin Heidegger, Contra Impugnantes, 2008.
arrefecer, houve uma recuperação da la chiave di volta138, a pedra angular da
metafísica tomista, que é a distinção entre essência e ato de ser ( esse), ao fazer
uma perfeita síntese entre a metafísica aristotélica de ato e potência e a noção de
participação platônica, cujo ápice culmina nesse descobrimento do ser como actus
essendi, isto é, o ato dos atos, primum intellectu cadit ens, aquele com respeito ao
qual tudo mais no ente, seja matéria seja forma, é potência.
Assim como o som é o primeiro audível, o Ser é o primeiro inteligível, diz
Santo Tomás. Este é o que de mais íntimo há em alguma coisa e o mais profundo
de todas as coisas; o mais absoluto, evidente e inteligível, o primeiro na realidade
das coisas, porque é atual e abarca a totalidade do real. E o princípio do Ser é Deus
mesmo, este que propriamente não “existe”, Deus não existe, senão que É. Pois o
verbo “existir” provém do latim “ex sistire”, isto é, “provir de [algum lugar]” (ex é
preposição latina de), o que seria impossível para um Primeiro Motor Imóvel, causa
do resto do movimento e dos efeitos da natureza. Assim, Deus precisamente É,
como provado no livro do Êxodo quando Deus diz a Moisés na Sarça Ardente “Eu
sou aquele que é139”, o Ipsum Esse Subsistens, o Ato dos Atos, onde Ser e Essência
se identificam e onde a própria essência (quididade) e existência (sem movimento)
permanecem coexistindo. Já os seres refletem o ato puro, o único ser subsistente,
pela doutrina da participação e por analogia, nunca por univocidade e jamais por
equivocidade, através de sua capacidade volitiva e cognoscitiva.
Daí que para Santo Tomás o ato não é propriamente forma, senão ato de ser
(actus essendi) que é participado pelo Ipsum Esse Subsistens; já a forma é ato com
respeito à potência, pois nos entes dotados de matéria e forma é possível encontrar-
lhes três princípios, a saber: matéria, forma e ser. O princípio do ser é a forma, já a
matéria participa do ser por receber a forma 140, como por exemplo no homem, onde
há o ser sendo que sua matéria é a porção corporal e a forma é sua alma, daí a
fórmula escolástica forma dat esse, onde o ser é participado na coisa por meio da
forma, no caso do homem, da anima, que é como instrumento do ser. O ente, que
está sempre em potência e à mercê de atualização para a perfeição de seu ser, pois
é sempre restringido e limitado por sua essência, exerce o ser porque é criatura do
Ser Primeiro, Ipsum Esse Subsistens, carregando assim o ser intrinsecamente à sua
natureza.
A existência (ato de existir) é mais perfeita que a essência, pois o ser é
inseparável desta. Essência e existência são assim como que princípios do ser, na
própria realidade, pois tudo que é ser já supõe existência - não em Deus, porém,
porquanto este É. O ser, porém, conquanto seja o primeiro inteligido, afirma-se per
se antes de ser afirmado pelo intelecto. É na metafísica tomista, portanto, que
essência, existência e ser são inconfundíveis e não se misturam. Essência é sua

138 Cornelio Fabro, Breve introduzione al tomismo, 1960.


139 O significado de tal dá-se na sintaxe do hebraico «’ ehyeh ’ asher ’ ehyeh» literalmente traduzido
por “Eu sou aquele que sou” ou “Eu sou aquele que é”, o que corresponde a que Deus é o único e
verdadeiramente existente, conforme proferido pelo próprio Deus: “Assim dirás aos Israelitas: EU
SOU [quid est] me enviou até vós” (v.14). Cf. Bíblia de Jerusalém, Ex. 3, 13-15.
140 Quaestiones disputatae de anima, q. vi, resp.
quididade (quod quid erat esse141) e aquilo que sua definição significa 142, ao passo
que existência é o fato de ser, ou seja, o ser em ato; enquanto, por fim, ser é, como
já dito, o próprio actus essendi ou ato de ser. Dito isto, não me parece acidental que
Santo Tomás seja o Doutor que mais recebeu títulos da Igreja de Roma ao longo
dos séculos: Doctor angelicus, comunis, humanitatis, universalis, justamente porque
é em Santo Tomás que aparece de forma única na História da Filosofia, uma
legítima Filosofia do Ser.

141 De ente et essentia, cap. I, 5


142 Compendium Theologiae, cap. X, I

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