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ASHERÁH:
Sua presença em Canaã
em concordância com a Bíblia hebraica e apesar dela
Marisa Furlan1 e Aquiles Ernesto Martínez2
Supostas representações de Asheráh em uma postura típica ligada a ideia da capacidade de dar vida
(século VIII AEC., Judáh, Museu Eretz Israel)3
1
Mestra em Ciências da Religião (UMESP), possui graduação em Teologia pela Faculdade de
Teologia da Universidade Metodista de São Paulo (Fateo/UMESP). Membro do grupo de pesquisa
"Arqueologia do Antigo Oriente Próximo - Universidade Metodista de São Paulo", mestranda em
História pelo Centro Universitário Internacional (UNINTER) e Profª de História pelo Governo do
Estado de São Paulo. Contato: marisa.furlan28@gmail.com
2
Ministro ordenado na Igreja Metodista Unida, Professor de Bíblia e Religião na Universidade
Reinhardt, Waleska, GA, E.U.A., e membro do grupo de pesquisa "Arqueologia do Antigo Oriente
Próximo - Universidade Metodista de São Paulo". Prof. Martínez obteve seu Ph.D. da University of
Denver e Iliff School of Theology.” Contato: aem@reinhardt.edu
3
Com excessão da primeira figura em 2.8, p. 14 (https://www.imj.org.il/en/exhibitions/tree-life-
goddess, Museu de Israel), todas as demais imagens nesse ensaio tem os direitos reservados a
Aquiles Ernesto Martínez.
ABSTRACT: A profile of goddess Asheráh and RESUMEN: Perfil de la diosa Aserá y el culto
the cult in her honor that developed in the que se desarrolló en su honor en la tierra de
land of Canaan, reconstructed from selected Canaán, reconstruido a partir de textos
texts from the Hebrew Bible and despite its selectos de la Biblia hebrea y a pesar de su
hostile and violent ethnocentrism. etnocentrismo hostil y violento.
Key Words: Asheráh, goddesses, Canaanites, Palabras claves: Aserá, diosas, cananeos,
Canaan, biblical exegesis, Ancient Near East, Canaán, exégesis bíblica, Antiguo Oriente
and fertility Próximo y fertilidad
1. Introdução
4
Para tais narrativas, usamos a Bíblia Hebraica Stuttgartensia, 2009 e a Bíblia de Jerusalém, 2002.
5
LEUENBERGER (2021, p. 187) concorda com nossa abordagem ao dizer que devemos estudar os
textos bíblicos que falam sobre ֲא ֵׁש ָרהAsheráh de forma crítica, a fim de extrair inferências sobre
esta deusa ֲא ֵׁש ָרהAsheráh é mencionada em algumas fontes ugaríticas, mas não há iconografia com
seu nome impresso ou anexado com o qual uma conexão direta pode ser feita. Na verdade, 23 dos
127 objetos descobertos que têm a ver com deusas mencionam apenas Anat, Astarde e Qedeshet
(CORNELIUS, 2008, p. 87, 89, 99-100). Uma possível exceção poderia ser a figura de ֲא ֵׁש ָרהAsheráh
como uma árvore em um dos frascos encontrados em Kuntillet Ajrud, mas mesmo lá a conexão
não é direta. A epigrafía tem sido interpretada como uma referência ao deus egipcio Bes e à sua
consorte (Ver Religião e Literatura na antiga Palestina. Acesso em 27/09/2022
https://www.religionofancientpalestine.com/?page_id=131).
6
Veja Asheráh (Dt. 16:21; Jz 6:25f, 28, 30; 1Rs 15:13; 16:33; 18:19; 2Rs13:6; 17:16; 18:4; 21:3, 7; 23:4, 6-7,
15; 2Cr 15:16; Mq. 5:14); Asherim (Ex 34:13; Dt 7:5; 12:3; 1Rs 14:15, 23; 2Rs 17:10; 23:14; 2Cr 14:3; 17:6;
24:18; 31:1; 33:19; 34:3s, 7; Is 17:8; 27:9; Jr. 17:2); Asherot (Jz 3:7; 2Cr. 19:3; 33:3).
7 Veja, TRONETTI, 2022, p. 1-2; CROATTO, 2001, p. 30-36, cf. p. 36-39; KAEFER e PALAZZI, 2019, p. 9-
12; MONTEIRO, 2019, p. 352-370. Uma possível exceção é o artigo escrito por ANTHONIOZ (2014,
p. 125-139) embora sua abordagem não esteja completa, ela tem o propósito de comparar essa
“deusa” com a Astarde, especialmente em termos de uso do plural para referir-se à pluralidade de
ambas as divindades.
Uma leitura bem focada da Bíblia hebraica, com a ajuda de procedimentos metodológicos
adequados, nos dá uma resposta inicial a pregunta: “Quem era Asheráh”? E isso é possível
quando, depois de peneirar a areia da predisposição hebraica contra as culturas
canaanitas, o politeísmo reinante e a chamada "idolatria", nos concentramos nas "pedras
de ouro" que permanecem na peneira. O que a Bíblia hebraica e até mesmo sua tradução
grega (Septuaginta ou LXX9) dizem sobre esta “deusa” e seu culto?
A primeira coisa que se destaca é que Asheráh é identificada por um nome próprio no texto
hebraico, e nada mais. O seu nome é ( ֲא ֵׁש ָרהAsheráh),10 no singular, e ~yrIv
ß ea (Asherim),
no plural. Sua etimologia é incerta.11 Entretanto devemos levar em conta que as muitas
referências bíblicas sobre ela e seus cultos não são uma validação de seu status como uma
“deusa” entre inúmeras deidades canaanitas, muito menos uma confissão de fé. Em sua
campanha para desacreditar o politeísmo, os autores hebraicos usam o nome ֲא ֵׁש ָרה
Asheráh (em suas formas singular e plural) apenas para identificá-la na comunicação de
8
Para isso, contamos com textos ugaríticos, e egípcios assim como inscrições fenícias e greco-
romanas. A partir dessas fontes, podemos conhecer ֲא ֵׁש ָ ָֽרהAsheráh melhor, e também as deusas
Astarde, Anat e Qedeshet (ver CORNELIUS, 2008; BINGER, 1977; MAIER, 1986).
9
A Septuaginta é a tradução grega do Antigo Testamento hebraico. A partir de agora leia-se LXX.
De agora em diante, usaremos a palavra hebraica ֲא ֵׁש ָ ָֽרהpara identificar a deidade pesquisada
10
nesse ensaio.
11
Há dificuldades em identificar a origem e o significado da palavra ( ֲא ֵׁש ָ ָֽרהBINGER, 1997, p. 143-144;
cf. SILAS, 2016, p. 16). Embora milhares de estatuetas femininas tenham sido descobertas
representando algumas deusas, e o estudo delas tenham representado um avanço (SILAS, 2016, p.
17), não há realmente nenhuma relação direta, clara e definitiva entre elas e א ֵׁש ָ ָֽרה.
ֲ
Estatuetas de várias épocas (2. 950-732 AEC.; e 3. 1550-1200 AEC) que mostram a
necessidade popular de representar a feminilidade ou a capacidade de gerar e sustentar
a vida, com possíveis vínculos com ֲא ֵׁש ָ ָֽרהou outras divindades (Megiddo, Instituto
Oriental, Chicago).
Acerca de ֲא ֵׁש ָרהnão há explicação sobre sua posição e atributos ou as principais crenças
de seus seguidores. Não há mitos. Rituais e cerimônias estão inseridos no fundo religioso
12
As traduções do texto hebraico ao Português erram quando adicionam a palavra “deusa” (Dt
12:3; 16:21; Jz 3:7; 6:25; 1Sm 7:3; 12:10; 1Rs 11:5, 33; 2Rs 23:7, 14; 2Cr 33,7, 34:4; Jr 7:18).
A origem ou nexo exclusivo de ֲא ֵׁש ָרהcom qualquer cultura ou grupo particular em Canaã
não está explicitada na Bíblia hebraica. Ou seja, ela não é uma deidade de nenhuma pessoa
ou nação específica. Não há afirmativa direta que ֲא ֵׁש ָרהteria sido uma “deusa Canaanita"
ou "Fenícia", por exemplo.14Nenhuma cidade foi nomeada com o nome dela, como
aparentemente aconteceu com a deusa Astarot.15 Ela era uma deidade canaanita apenas
no sentido de que era apaixonadamente venerada no território onde habitavam, além dos
israelitas, os cananeus, heteus, jebuseus, amonitas, ferezeus, heveus, e outros grupos, e
cujas fronteiras geográficas a Bíblia hebraica as vezes delimita.
13
Não há evidência de que crianças tenham sido sacrificadas em adoração a esta “deusa”. Em
relação a este tema, ver MOSCA, 1975.
14
Ao contrário do que acontece com a ; ֲא ֵׁש ָרהAstoret, que é "a deusa dos sidônios" (1Rs 11:5, 33).
15
Ou seja, a cidade que leva o mesmo nome desta “deusa” (como a mesma “deusa”), que está
localizada em Bashan e onde Sehon reinou (Dt 1:4; Js 9:10; 12:4; 13:12, 31; 1Cr 6:71).
16
O gênero feminino, com e sem o artigo específico: Ex. 34:13; Dt. 7:5; 12:3; Jz 3:7; 1Rs 14:15; 2Rs
17:10; 23:14 (artigo); 2Cr 19:3 (artigo); 33:3; Mq. 5:14 (v. 13 no texto hebraico); e Jr 17:2. Também no
plural masculino com o artigo: 1Rs 14:23; 2Cr 14:3; (v. 2 no texto hebraico) 17:6; 24:18; 31:1; 33:19;
34:3-4, 7; e Is 17:8; 27:9.
O fato de haver quarenta referências nos textos bíblicos que mencionam ֲא ֵׁש ָרהpelo nome
e sancionam fortemente sua adoração, bem como edifícios, altares, lugares altos e objetos
para fins cerimoniais, não só nos diz de sua presença imponente em Canaã, mas também
que a religião que se formou ao seu redor era totalmente antagônica aos interesses de
Israel e de seu deus legitimador. Essa popularidade, inferida dos textos bíblicos com
cautela,18chegou a tal extremo que os próprios israelitas acabaram assimilando aquilo do
que deveriam separar e censurar. Aparentemente ela não era uma ameaça séria durante o
tempo de Josué e Juízes. O culto oficial de YWHW ainda não havia sido institucionalizado.
A grande recepção que a religião de ֲא ֵׁש ָרהteve pode ser inferida a partir das referências
geográficas onde a adoração dela foi estabelecida por um longo tempo e contra a qual
alguns reis fiéis a aliança mosaica, tiveram que lutar. Houve presença deste culto nos reinos
de Judá (2Cr 17:6; 24:3; 31:1) e Israel (2Rs 23:15; 18:19; 2Cr 34:7), bem como em todo o
território supostamente ocupado pelo povo hebreu. Santuários, altares e imagens dessa
deidade também são mencionados em Ofra (Js 6:11, 25-26), Samaria (2Rs 21:7; 23:4, 6; 2Cr
34:3), Jerusalém (2Rs 21:7; 23:4, 6; 2Cr 34:3) e possivelmente em Betel (2Rs 23:4,15).
Tal foi o encanto ou poder desta “deusa” que os líderes do Reino do Norte e Judá por
influência cultural, adaptação cultual ou conveniência, colocaram sua fé em ֲא ֵׁש ָרה, usando
sua posição de privilégio e recursos para promover a adoração dela. Enquanto vários reis
e religiosos lutavam contra esta “deusa”, como parte de seu esforço para erradicar a
idolatria e nem sempre com coerência absoluta (por exemplo Josias, Ezequias e Asa; 1Rs
17
Corroboramos com a ideia de Römer ao usar o termo “forçosamente” para referir-se a sua
titularidade como “deusa” (2017, p.165), visto que para essa designação não há respaldo concreto,
direto e definitivo, ou seja, não há evidências materiais, bíblicas ou arqueológicas para justificar
essa pertença.
18
A popularidade e a força desafiadora da adoração de ֲא ֵׁש ָרהé o que o discurso bíblico pressupõe.
E embora a iconografia feminina seja abundante na região e dado o fato de que não há inscrições
para identificar as muitas imagens existentes, devemos aceitar sua popularidade com certo
cuidado, especialmente quando as Escrituras tendem a "inflar" ou "caricaturar" a realidade.
Sem descartamos o estímulo que essa “deusa” possa ter especificamente para as
mulheres, possivelmente em torno de sua posição e funções domésticas, algumas
evidências bíblicas (tomadas como uma representação fiel da realidade) sugerem a
popularidade desta “deusa” tanto para homens como para mulheres; assim como para
várias classes sociais e grupos étnicos. Seus seguidores incluem a realeza e as pessoas em
geral. A proporção de adoradores e a intensidade e frequência de adoração entre ambos
os sexos, é claro, não podem ser medidos. Milhares de estatuetas descobertas não
provam em si mesmas ou automaticamente que esta deidade foi seguida particularmente
por mulheres.
No entanto, embora a religião de ֲא ֵׁש ָרהcomo a Bíblia hebraica sugere pudesse ser
relativamente inclusiva, não deveríamos nos surpreender que as mulheres se
ֲא ֵׁש ָרהfoi uma “deusa” venerada e adorada por seus seguidores, isso é uma realidade que
é dada como um fato em todas as passagens que rejeitam violentamente seu culto. Neste
sentido, falar dela como “deusa” ou como um “objeto” em si mesmo não é uma distinção
que os escritores bíblicos tentam fazer. Para eles ela foi “nada”.19 A crítica é dirigida à seu
culto (TRONETTI, 2022, p.3) e as mediações ou representações físicas dela (ANTHONIOZ,
2012, p. 134). O que fica claro, é que a criação e uso de diversos objetos e espaços religiosos
em sua homenagem pressupõe uma profunda devoção a esta “deusa”: altares, lugares
altos, representações físicas, objetos consagrados, santuários, pessoas à seu serviço, etc.
Apenas em Jz 3:7, como parte de uma crítica incisiva da infidelidade religiosa do povo de
Israel durante o tempo dos juízes, é abertamente dito que os israelitas fizeram "mal aos
19
Em sua análise da terminologia e iconografia associando o deus 'El com ֲא ֵׁש ָרהem Kuntillet 'Ajrud
e Khirbet el-Qom, Emerson identifica essa “deusa” como um "objeto de adoração" em vez de uma
deidade como tal (EMERTON, 1999). E mesmo que alguns pesquisadores não saibam se ela foi um
símbolo de culto ou uma “deusa” (WHITE, 2022; HADLEY, 2000), nossa pesquisa, contudo, reforça
a ideia de que ela foi um objeto embasado em dois argumentos: 1) Do ponto de vista do autor
implícito ou dos autores do texto hebraico, esta divindade nunca é apresentada de forma clara e
direta como uma “deusa”. É apenas um ser maior para aqueles que acreditam nela, sejam eles
canaanitas ou apóstatas hebraicos. 2) Além disso, os tradutores da LXX consideram ֲא ֵׁש ָ ָֽרהcomo
um objeto de culto representado materialmente; ou seja, como "bosques". E embora seja verdade
que essa mediação material pudesse ter sido apenas um símbolo, não devemos rejeitar a ideia de
que para muitos, árvore ou árvores representem a mesma “deusa”, com uma possível conotação
"panteísta".
As muitas condenações de ֲא ֵׁש ָרהe a propagação de sua adoração em Canaã devem ser
entendidas, não como um mero fato informativo ou casual, mas como um grande desafio
a ideologia religiosa dos hebreus que buscavam se impor a força. Do ponto de vista das
relações de poder e da sociologia da legislação, essa “deusa” era muito mais do que uma
das muitas escolhas religiosas. Era, de fato, uma rival poderosa e imprudente que teve que
ser eliminada através de denúncia e atos de violência. ֲא ֵׁש ָרהera um verdadeiro perigo. Os
redatores da história deuteronomista tiveram medo dela. A criação, promoção e
implementação de leis contra o culto a ֲא ֵׁש ָרהrevelam claramente que esta religião era
uma grande rival ao monoteísmo hebraico até sua morte ou sobrevivência em outras
formas de adoração séculos depois. Se não, por que insistir tanto em desacreditar sua
imagem, proibir as práticas em sua honra, destruir sua representação física, acabar com
cada objeto e construção dedicado a ela, e punir severamente seus praticantes e
promotores? Lembremos que a pena de morte deveria ser aplicada a todos os idólatras.20
De acordo com os escribas bíblicos, ֲא ֵׁש ָרהfoi representada física e/ou materialmente, o
que foi um desvio da lei mosaica (Ex 20:4-6). Seus seguidores criaram estátuas ou efígies
dela e de outras divindades. Esta situação alarmante justifica, obviamente, para os
opositores deste culto, a criação e implementação de mandamentos contra a elaboração
de imagens. Infelizmente e por razões óbvias, na Bíblia hebraica muitos detalhes
20
Ex 22:30; Dt 13:1-10; 17:2-7; 18:20-22; Lv 20:1-5; 27:29 e Nm 25:1-9.
21
Na verdade, há milhares de figuras ou estatuetas femininas na Síria-Palestina e regiões
circunvizinhas, representando o tema da fertilidade ou das deusas (NOLL, 2001).
22
VON RAD indica que eles poderiam até ter uma forma ou sentido fálico (1966, p. 115).
Dentro do tema das representações tangíveis de ֲא ֵׁש ָרה, há uma relação entre essa
divindade e as árvores, até o ponto em que ambos os elementos são a mesma coisa, como
foco de adoração.23 Várias chaves textuais inseridas no Texto Massorético e a LXX apoiam
essa leitura (Ex 34:13; Dt 7:5; 16:21; 2Rs 23:4, 6, 14, 15; 2Cr 14:3; Jr 17:2; Mq 5:13),
especialmente quando consideramos a rejeição da idolatria, o lugar e o papel centrais que
as árvores tinham nesta concepção pluralista do divino (Dt 12:2; 2Rs 16:4; 2Cr 28:4; Is 57:5;
Jr 2:20; 3:6, 13; Ez 6:13; 20:28).
Essa ideia é sugerida pela ações de “corte”.24 [d;G" (gadac) no plural masculino (Dt 7:5; 12:3;
2Cr 14:3, 31; 34:4,7) mas principalmente como tr;K' (karat), no singular feminino (Jz 6:25-
26, 28, 30; 1Rs 15:13; 2Rs 18:4; 2Cr 15:16) e no plural masculino (Ex 34:13; 2Rs 23:14),
pressupõe a existência de troncos, plantas, ou árvores que devem ser removidas para ser
destruídas. Também a ação de "arrancada"(vt;n") (natash) (Mq 5:14) e a proibição de
23
A associação com as árvores, segundo o LXX, ocorre tanto no plural quanto no singular (em suas
formas femininas e masculinas), e não apenas no plural. Portanto, não é apropriado afirmar que a
forma singular se refere à “deusa” ou imagem dela, e que o plural se refere a ela como um objeto
de adoração. Em todas as referências bíblicas, e especialmente no LXX, ֲא ֵׁש ָרהé denunciada como
um objeto de culto e não apenas em Crônicas. Ela não existe, ela não é nada, portanto, ela não é
uma deusa (v. KAEFER e PALAZZI, 2020, p. 13-14, etc.).
24
DE VAUX (1976, p. 379) está de acordo com nossa leitura.
de 2Cr 5:16 e 2Cr 24:18, o termo ֲא ֵׁש ָרהé a;lsoj (alsos) (“arvoredos”), confirmando nossa
interpretação.
Mas em Jr 17:2, dada a configuração não
tão clara de seu conteúdo,
consistentemente traduzido como
"bosques" ou grupo de árvores
frondosas, temos a impressão de que
esta deidade (se fizermos uma leitura
literal de ֲא ֵׁש ָרהcomo uma entidade
distinta, imagem ou deusa), era algo
diferente do bosque que na denúncia do
profeta. Porque seria muito estranho
falar de "bosques" ao lado de "árvores
frondosas".
Deuteronômio 16:21 reafirma a
possibilidade de uma árvore específica
Este objeto na forma de um tronco e com
desenhos de árvores pode ter simbolizado de ֲא ֵׁש ָרהe YWHW. O fato de haver
ֲא ֵׁש ָרהou outra deidade. Mas o possível nexo pedras, imagens ou ídolos, devido ao seu
com esta deidade é uma inferência caráter geral e que eles também
(https://www.imj.org.il/en/exhibitions/tree-life- poderiam ter sido colocados entre essas
goddess, Museu de Israel)
árvores, sustenta a ideia de que esta
“deusa” pode ter tido sua árvore
própria.
Tudo isso é sugerir que falar sobre ֲא ֵׁש ָרהe esse tipo de árvores, para os hebreus, afinal,
seria a mesma coisa. Não existe uma separação ou uma marcação distinta. O fato de
Maaca, mãe de Asa, ter criado uma ֲא ֵׁש ָרה, que a LXX entende como uma "árvore", reforça
essa hipótese (2Cr 15:16). Em sua condenação profética contra Judá, Jeremias refuta o
pecado desse povo, que está gravado, não apenas nas tábuas do coração, mas nos "chifres
de seu altar", cujas ligações com as árvores que representam ֲא ֵׁש ָרהsão praticamente
sinônimos (Jr 17:1-2). Indo além do testemunho bíblico, foram descobertos em sítios
25
O uso do verbo #t;n" (natats) (2Cr 34:7), que significa "entrar em colapso", pode sugerir a ideia
de um objeto vertical que poderia muito bem ser feito de madeira, pedra ou outro material
semelhante.
Com base em todas essas observações, a grande questão exegética é: que significado ou
função essa “deusa” tinha com as árvores? E diante do silêncio dessas passagens e da
ausência de informações de seus antecedentes na narrativa bíblica, somos novamente
deixados de fora do código de comunicação. No entanto, com base no senso comum
preconcebido, só podemos conjecturar que essa deidade possivelmente teve algo a ver
com a criação, manutenção e desenvolvimento da vida, das quais as árvores podem muito
bem ter sido símbolo mediático. O símbolo da árvore está presente em outras religiões, e
esse paralelismo incita um estudo transcultural. 27
26
Para Römer, por exemplo, estatuetas-postes, foram encontradas em grande quantidade nas
cidades judaítas mais importantes dos sécs. VIII-VII AEC (Jerusalém, Arad, Bersabéia, Beit-Mirsim,
Bet-Sames, Laquis), onde a forma mais frequente é composta por um poste (tronco de árvore),
feito à mão, sobre o qual se fixava um busto feminino postos em relevo, na maioria das vezes
sustentado pelas mãos (2017, p. 165).
27
Por exemplo, esse símbolo tem nexos com uma estátua do Imperador Cláudio (41-54 E.C.),
encontrada em Megara, talvez representando Zeus e cujo suporte parece ser uma águia na forma
de um tronco de árvore (Museu Arqueológico de Atenas). Em uma versão do mito da origem da
“deusa”, contado em parte pelo geógrafo Estrabo, temos imagens de arvoredos perto de Celçuk,
Turquia. E protegido por espíritos divinos, em um relevo de Assurbanipal II no Museu Britânico,
A partir do testemunho bíblico, inferimos que, embora muito se diga sobre várias formas
de representação física de ֲא ֵׁש ָרה, realmente não sabemos nada de sua aparência. Então,
por que detalhar graficamente quem é considerada uma mentira, uma fabricação humana
e inimiga do deus hebreu, e cuja adoração foi uma violação da lei mosaica? Falar de pilares,
postes, pedras, imagens e ídolos não nos ajuda. A coisa mais próxima deste tópico seriam
referências a bosques ou troncos. E ainda assim, essa ideia não é precisa devido a imensa
variedade de árvores em Canaã. Nem mesmo as descobertas arqueológicas de estátuas ou
figuras femininas foram capazes de estabelecer uma conexão clara, direta, decisiva e
consistente entre esta parte da cultura material existente e a identidade desta deidade. De
fato, a sua iconografia é um “mistério”.28 E como estamos lidando com algo
diante o deus Shamash, duas imagens deste rei aparecem olhando uma árvore ao centro de ambas
(Nimrud, 865-860 AEC.).
28
Seu nome é mencionado em algumas fontes ugaríticas, mas não há iconografia com seu nome
impresso ou anexado. Na verdade, dos 127 objetos descobertos que têm a ver com deusas, apenas
2.10 Altares
Para o culto as divindades utilizavam móveis e estruturas estáveis ou fixas que, dentro ou
muito próximas de espaços geográficos, eram usadas para sacrifícios, oferendas e outras
cerimônias religiosas. Mas em torno de ֲא ֵׁש ָרה, só sabemos da existência do que os
(fusiastárion), não como βωμός (bōmós) (2Rs 21:3; 2Cr 34:4, 7). Embora exista a
possibilidade de que esses termos sejam sinônimos, é possível que existam certas nuances
semânticas distintas que os textos bíblicos não esclarecem. De qualquer forma, o
decepcionante sobre a menção de altares é que a narrativa não dá detalhes sobre esses
representantes da cultura material canaanita. Então não sabemos nada específico sobre
materiais mais fortes e duráveis, como pedras. Felizmente, descobertas arqueológicas nos
dão uma boa ideia dos tipos de altares que eram usados em tempos bíblicos, entretanto
não preenchem esse vazio. Vale ressaltar que a criação e o uso desse tipo de objeto, com
suas peculiaridades cultuais, são parte integrante de toda as religiões.
Mais uma vez, no contexto da animosidade e do preconceito religioso, por que reservar
tempo e espaço para descrever as crenças, objetos e práticas daqueles que eram inimigos
de Israel, em benefício de pessoas que têm interesse no estudo comparativo das religiões?
23 deles têm inscrições com nomes específicos de deusas. Entretanto, ֲא ֵׁש ָרהnão está entre eles
(LEUENBERGER, 2021, p. 87, 89, 99-100).
29
Não seria estranho oferecer canábis, especialmente quando consideramos que algumas
amostras desta substância foram encontradas no altar menor em Tel Arad, que alguns afirmam ter
dedicada a א ֵׁש ָרה.
ֲ Sobre o tema de canábis num sentido geral e algumas descobertas, ver ARIE,
ROSEN e NAMDAR, 2020, p. 5-28; KOMP, 2022.
Embora não sejam dados detalhes sobre isso, apenas um texto em particular nos diz sobre
outros objetos da cultura material que foram destruídos por ter tido contato ou ter sido
criados com o propósito de promover a adoração a ֲא ֵׁש ָרה. Dizem-nos que o rei Josias, em
seu esforço para cumprir as estipulações da lei mosaica, ordenou que Hilquias removesse
a ( כ ִליkeli) traduzida como σκεῦος (skeuos na LXX, “objetos”) da Casa do Senhor. Este
sacerdote, além de obedecer ao comando do rei, queimou esses objetos fora de Jerusalém
nos campos de Cedron e, em seguida, levou suas cinzas para Betel (2Rs 23:4).
Este vocábulo parece ser uma referência a vasos, utensílios ou algum tipo de recipiente
para fins cerimoniais. Mas dada a natureza ampla deste termo, é possível incluir como
referência objetos como suportes, copos, jarros, lâmpadas e afins. A partir deste breve
texto, também podemos deduzir que tanto para os cananeus quanto para os hebreus
havia uma distinção marcante entre lugares e objetos que eram e os que não eram
especiais. Além disso, em um contexto de luta pelo poder, o que é sagrado para um grupo
é sacrilégio para outro. Tanto na ideologia religiosa hebraica, como em outros grupos
religiosos com uma filosofia semelhante do universo, até mesmo objetos são culpados de
idolatria por associação.
Parte da excessiva boas-vindas que ֲא ֵׁש ָרהteve, pode ser vista nos esforços para organizar
a adoração em sua honra, especialmente entre os próprios hebreus e a liderança a seu
serviço, como já notamos. Para sermos um pouco mais específicos, pelo menos uma vez
somos informados de grupos de profetas servindo outras divindades durante o tempo do
rei Acabe (1Rs 19:1-6). Também de 400 profetas ligados a ֲא ֵׁש ָרהe de sua comunhão com
Na conceituação deuteronomista de ֲא ֵׁש ָרהe nas atividades e objetos que mediam sua
relação com o divino, observamos que dada a sua condição religiosa preeminente, cada
objeto ou atividade que tem a ver com ela não foi algo comum ou um símbolo de rotina,
mas de valor supremo e incalculável. Dentro dessa concepção do universo, então, para os
adoradores dessa divindade há uma diferenciação marcante entre "o sagrado" e "o
profano", "o transcendente" e "o imanente", com um valor superior dado ao sagrado e ao
transcendente. Tanto que a destruição de qualquer objeto de adoração, pelo valor
diferenciado imputado por aqueles que criam nela, merecia "a pena de morte". É por isso
que os homens da cidade de Ofra, ao saber que Gideão havia destruído o altar de Ba’al e
ֲא ֵׁש ָרה, exigiram que Joás tirasse o seu filho Gideão de casa para ser executado por este
Com precedentes nas mulheres que serviram na entrada do tabernáculo (Ex 38:8; 1Sm 2:22) (De
30
Embora não se aplique explicitamente a tudo o que tem a ver com ֲא ֵׁש ָרהe sua adoração,
é poderosamente impressionante que, segundo Isaías, "os altares" para ela não vieram do
nada ou simplesmente apareceram, mas foram feitos por seus devotos: "altares que são
obra de suas mãos ... altares de incenso que seus dedos fabricaram (ênfase nossa)" (Is 17:8),
assim como as capas ou mantos para ( ֲא ֵׁש ָרה2Rs 23:7). Por implicação e bom senso, a
palavra tem a ver também com imagens, altares e santuários, como revela a linguagem
utilizada, embora essa característica não seja diretamente mencionada em cada
passagem. Para tal finalidade, observe a ênfase nas ações de "fazer", "levantar",
"derreter", que pressupõe a ação humana (Dt 16:21; 1Rs 14:15, 23; 15:13; 16:33 2Rs 17:10, 16;
18:4; 21:7; 23:7, 14-15; 2Cr 33:3; 15,16; 33:19).
Para os escritores bíblicos, nenhum objeto, pessoa ou prática que tenha algo a ver com
"idolatria" é de origem divina ou literalmente reproduz tal coisa. Embora as evidências
possam ser entendidas de maneira diferente em algumas ocasiões31, as deusas e deuses,
para muitos, não existem. Na linguagem moderna e além da predisposição bíblica, tudo é
construção social mediado pelo visível e tangível. As mesmas regras se aplicam aos
israelitas.
31
Por exemplo, não ter deuses "antes" do Deus da Aliança não implica necessariamente a aceitação
da existência de outras deidades. Pode ser lido como se esse Deus estivesse acima dos outros (Ex
20:3, 23).
O que se fala do altar de Ba’al e ֲא ֵׁש ָרהjuntos em algumas narrativas nos lembra das
descobertas feitas em Tel Arad e da proibição do texto bíblico de não "... levantar qualquer
imagem de ֲא ֵׁש ָרהjunto ao altar que você construir para o Senhor. Também não deve
erguer pedras, pois o SENHOR seu Deus as odeia” (Dt 16:1-22; Jz 6:25). Neste sítio
arqueológico foram encontrados um altar principal (que possivelmente se refere ao deus
‘El) e um menor (com uma possível associação com ֲא ֵׁש ָרהou Astarde), colocado no que
parecia ser "um lugar santíssimo". E embora não saibamos se o altar maior pode ter algo
a ver com Ba’al primeiro, em outro momento antes de ser transferido para o deus 'El ou
simultaneamente, a associação entre uma divindade masculina e outra feminina é notável,
assim como sua representação material e espacial. Quando levamos em consideração a
sequência de eventos na trama da história de Israel, as referências a ֲא ֵׁש ָרהao lado de Ba'al
e depois ao lado de YWHW e em seu templo (Dt 16:21; cf. 2Rs 21:7; 23:6-7) sugerem, não
apenas uma estreita associação entre essa “deusa” e esses deuses, mas também a passagem
Além Ba’al e ֲא ֵׁש ָרה, e para diversificar a crença em muitas deidades, outro grupo de forças
superiores adoradas e representadas materialmente foram "as estrelas do céu", sem que
tenhamos sua identidade ou traços específicos. Os israelitas prostraram-se em adoração
diante de "todo o exército do céu" ~yIm;êVh
' ; ab'cä .-lk'l (2Rs 17:16; 21:3; 23:4-5), que a LXX
entende como "poder" (du,namij) e que então se traduz como "exército" para se referir e
criticar fortemente a devoção de Manassés a idolatria (2Cr 33:3). Nessas passagens,
esclarecidas por outros, a referência é ao sol, lua, estrelas e outras entidades semelhantes
(Dt 4:19, 17:3; Sl 33:6; Jr 3:19; 8:2; 33:22; 19:13; Is 34:4; 40:26; 45:12; Sf 1:5; Ne
Altares e estelas descobertos em Tel Arad e expostos no museu de Israel sugerem uma relação
diferenciada e hierárquica entre as divindades, que alguns ousam atribuir a 'El e ֲא ֵׁש ָרהou Astarde,
muitas vezes sem se abrir a outras possibilidades.
32
A partir da iconografia encontrada em Kuntillet 'Ajrud pode ser deduzido que havia uma relação
hierárquica próxima com o deus 'El e segundo o qual ambos abençoaram seus fiéis
(LEUENBERGER, 2021, p. 179-190; SMOAK e SCHNIEDEWIND, 2019, p. 5-6; DEVER, 2005; TRONETTI,
2022, p. 4-6). Essa relação pode-se presumir da própria Bíblia, mas sem qualquer detalhe.
evidente. Mas podemos supor, que essas estrelas são mencionadas junto com ֲא ֵׁש ָרהe,
acima de tudo, porque elas são objeto de ira e destruição. Evidências extra bíblicas e
transcultural certifica a reinante devoção a chamada astrologia entre os cananeus.
O conceito de ֲא ֵׁש ָרה, como aconteceu com o de Ba’al, também parece ter sofrido algumas
mudanças, como parte de um processo de diversificação conceitual e de simplificação e
formalização linguística, e como fruto de outra localização social de quem utilizava tal
terminologia. Em algumas passagens, no texto hebraico curiosamente, se fala não de uma
ֲא ֵׁש ָרהno singular,33 mas de várias (tAr)vea]h' ou Asherot),34 “Asheráhs”, em feminino e
plural e em masculino plural (]~yrIßva
e ]ou Asherim).35 Algo semelhante acontece com a deusa
"Astaret" de quem se fala como tro+T'v.[;h ouou Astarot de acordo com a LXX (Jz 2:13; 10:6)36,
uma deusa intimamente relacionada com ֲא ֵׁש ָרה. Tanto que estas se confundem ou
equiparam-se na troca cultural de ideias para os escritores bíblicos (Dt 1:4; Js 9:10; 12:4;
13:12, 31; Jz 2:13; 1 Sm 7:3-4; 12:10; 31:10).
Essa mudança de número gramatical pode interpretar-se de várias maneiras. Pode ser
tomada simplesmente como uma referência gramatical a muitos “bosques” ou “árvores”
(como mediações físicas de ) ֲא ֵׁש ָרהem Israel (como é refletido na interpretação da LXX)
ou representações locais da mesma deidade em muitos lugares, seja na corte ou templo
ou em áreas fora do contexto oficial.37Mas, em sua forma feminina com as marcas
patriarcais e inclusivas no termo Asherim, essa mudança nos leva a pensar em uma
33
Dt 16:21; Jz 6:25-26, 28, 30; 1Rs 15:13; 16:33; 18:19; 2Rs 13:6; 17:16 (sem o artigo); 18:4; 21:3 (sem o
artigo), 7; 23:4, 6-7, 23:15.
34
Ex. 34:13; Dt. 7:5; 12:3; Jz 3:7; 1Re 14:15; 2Re 17:10; 23:14 (com artigo); 2Cr 19:3 (com artigo); 33:3;
Mq. 5:14 (v. 13 na Bílbia Hebraica); e Jr 17:2.
35
1Re 14:23; 2Cr 14:3 (v. 2 na Bíblia Hebraica) 17:6; 24:18; 31:1; 33:19; 34:3-4, 7; Is 17:8; 27:9.
36
E mesmo com a própria Astarde (2Cr 5:16; cf. 1Cr 24:18).
37
Não acreditamos que o uso do plural (em suas formas femininas ou masculinas) deve-se
unicamente ou principalmente a um esforço para distinguir ou mesmo contrastar a religião
"popular" de א ֵׁש ָרה,
ֲ daquela considerada "oficial" (ver VON RAD, 1966, p. 115; v. ANTONIOZ, 134-
137).
femininas. E se a pluralização de ֲא ֵׁש ָרהdo ponto de vista dos novos usuários, conota a
existência de outras deusas além da “deusa original”, então as deidades femininas
canaanitas e seus adoradores foram, em vários períodos da história de Israel, uma ameaça
mais grave do que a ameaça da “deusa original” conhecida por esse nome e mencionada
nos textos bíblicos. O mesmo poderia ser deduzido se aceitarmos que essas passagens
testemunham muitos bosques, com base na interpretação que a LXX faz de ~yrIßva e Asherim
ao traduzí-lo para o grego, bem como para o plural.
Consistente com o tema de outras Asheráhs, chama a atenção que na LXX, em algumas
narrativas, o termo hebraico ֲא ֵׁש ָרהnão é traduzido como "bosque" ou “arvoredo”, mas
é substituído pela palavra VAsta,rth (astártei) que se refere a deusa Astarde (2Cr 5,16), e
mesmo em sua forma plural VAsta,rtaij (astártais) para reproduzir o hebraico no mesmo
número gramatical (2Cr 24:18).38
Essa mudança é significativa por muitas razões. Além de reafirmar que as deusas em Canaã
realmente eram um problema sério para os hebreus, também reflete a localização social
do tradutor e a livre ressignificação dos termos, além da prática comum de associar ou
mesmo equiparar outras deidades ou deusas com suas próprias deidades por terem as
mesmas funções e atributos.
No estudo das religiões e na interação entre elas, muito pouco é fixo e imutável. Toda
ideia, crença, mediação material ou prática é redefinida e muda. O mesmo acontece com
as palavras. No final, é tudo sobre o contexto e a perspectiva a partir das quais se
interpreta e como esta interpretação cria ou colore essa realidade desde seu início. Este
ciclo não termina, apenas se diversifica.
38
Essa prática de equiparar deusas estrangeiras ou resignificá-las hermeneuticamente era comum
em tempos bíblicos. Dentre vários exemplos podemos destacar o que a tradição hagádica fez com
a figura de Lilith e sua deificação. Ela foi um tipo de א ֵׁש ָרה,
ֲ associada com a lua, os ventos,
tempestades, água, pássaros noturnos, as serpentes e a fertilidade (SCHWARTZ, 1991, p. 120-122).
Tentar recuperar parte da identidade de ֲא ֵׁש ָרה, seus seguidores e a relação entre eles
mediado por crenças, práticas e objetos tangíveis e viabilizado na linguagem bíblica, tem
sido possível neste ensaio, mas com importantes qualificações dignas de visibilidade. Com
alguns precedentes metodológicos semelhantes ao que compartilhamos aqui e que os
leitores podem consultar sobre o tema das deidades e religiões a partir da mesma Bíblia
(MARTÍNEZ, 2020 a b, 2021, 2022), reiteramos que toda fonte de informação está
posicionada e, portanto, tem uma maneira muito particular de replicar a realidade. E nela,
gostemos ou não, "a realidade" dos fatos se mistura com as "interpretações", muitas
vezes parciais e até tendenciosas. A Bíblia hebraica não é única nesse sentido, assim como
outras fontes antigas. E embora seja verdade que os "testemunhos” da história podem
ser hostis, idealistas ou românticos em sua representação do mundo para definir sua
identidade social (especialmente em contextos de guerras e sobrevivência), é possível,
pelo menos em teoria, reunir alguns "retalhos” de informações um pouco mais factuais ou
menos tendenciosos, em nossa tarefa titânica de montar o quebra-cabeça do passado. E
ao pensar nesse fenômeno, questionamos veementemente o hábito de demonizar os
outros, não apenas visceralmente e baseado em preconceitos e estereótipos, mas como
um recurso, muitas vezes inconsciente, para fortalecer a identidade e as crenças.
Assim, coerente com esses princípios, não nos deixando enganar pela retórica anti-
canaanita da Bíblia hebraica e com a intenção de recuperar o “outro lado” de ֲא ֵׁש ָרה, neste
artigo apresentamos "algo" dessa deidade, seus devotos, atividades e religiões. Em outras
palavras, temos tentado ouvir as “vozes silenciadas” desta “deusa” e seu culto e, ao fazê-
lo, de alguma forma temos apresentamos seu ponto de vista sem que aceitemos suas
crenças. As passagens que condenaram essa religião, paradoxalmente, são as mesmas que
forneceram dados importantes para reconstruir parte de sua identidade.
Esta tem sido uma abordagem justificável, especialmente quando consideramos que a
Bíblia hebraica, em seu etnocentrismo excludente e visceral, posicionou-se radicalmente
contra tudo o que não concorda, assim como com a adoração do deus hebreu para, entre
outras coisas, legitimar a posse da terra e a aniquilação de seus habitantes em uma versão
idealizada e seletiva da história. Mas também, e apesar da postura bíblica, nesta tentativa,
acreditamos e reafirmamos biblicamente o grande impacto que essa “deusa”
aparentemente teve sobre Canaã e o projeto fracassado para eliminar sua adoração e
memória (Dt 12:3).
Ao longo desta jornada, que merece purificação, a Bíblia hebraica, astutamente lida, tem
sido útil para nós como um primeiro movimento no qual privilegiamos a terminologia que
literalmente fala de ֲא ֵׁש ָרהe o que se sugere, mas de uma perspectiva relativamente
39
Se há uma relação entre esta divindade e o título "a rainha do céu" (Jr 7:18; 44:17-19) e o tema de
árvores e deusas; também se há referências a ֲא ֵׁש ָרהem Zc 5:5-11 e Os 2:4-7, 12ss (ver RIBEIRO, 2014),
e também se há personagens na Bíblia que, tendo promovido a idolatria, tinham algo a ver com
א ֵׁש ָרה,
ֲ nesse caso, Jezabel, Nehusta e Ataliah.
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