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Departamento de Teologia

MITOLOGIA CANANEIA E ANTIGO TESTAMENTO: A FIGURA DE


BAAL E SEU CULTO NO LIVRO DE
OSEIAS À LUZ DE TEXTOS DE UGARIT

Aluna: Quézia de Melo Souza


Orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima

Introdução
A compreensão da narrativa bíblica pode ser mais efetiva a partir do auxílio de fontes extra
bíblicas. Exemplo disso são os artefatos encontrados em Ugarit, que nos dão um vislumbre da
cultura religiosa da antiga Canaã, local que a religião israelita cresceu. A partir de uma análise
feita sobre a relação dos textos ugaríticos com o Antigo Testamento, e aqui enfatizaremos a
literatura profética, é possível entender com maior clareza a religião do antigo Israel.
Em termos gerais, os livros proféticos do Antigo Testamento, expressam claramente que,
a religião israelita, em seus estágios formativos, incluía, nas camadas populares, o culto a várias
divindades cananeias, embora Yahweh fosse o Deus primário. É possível perceber na narrativa
bíblica uma variedade de rituais religiosos destinados a deuses cananeus. Entretanto não é
possível reconstruir essas manifestações cúlticas com base, apenas, no texto bíblico. Isso porque
a narrativa bíblica foca nos discursos de aversão à idolatria, e dessa forma não fica evidente
como aconteciam esses rituais religiosos e por que esse tipo de adoração atraiu os israelitas.
Sendo assim parece apropriado juntar todas as fontes disponíveis para uma compreensão mais
profunda das formas de culto nessas civilizações.

1. A figura de Baal e seu culto nos textos de Oseias


A religião cananeia possuía um panteão repleto de deuses. Muitos deles personificavam
as forças da natureza. Baal exerceu grande influência dentro desse panteão. O Ciclo de Baal é
um dos textos religiosos encontrados em Ugarit que revelam a proeminência desse deus.1
Muitos indícios atestam que Baal foi venerado em Israel e em Judá. A narrativa bíblica faz
menção a templos que foram construídos em sua honra em Samaria (1 Rs 16,32 e 2 Rs 10,18–
27) e em Jerusalém (2 Rs 11,18; 2 Crônicas 23,17). Os nomes pessoais e os topônimos
transmitidos pela Bíblia Hebraica e pelos Óstracos de Samaria confirmam a presença de Baal
nas terras altas da Palestina Central. Com todas essas evidências é possível afirmar que a
oposição profética contra o baalismo foi baseada em situações reais.2
O livro de Oseias demonstra um amplo conhecimento de elementos cananeus. Um dos
assuntos que aborda em sua narrativa são as influências que o culto a Baal exercia sobre o povo
no Israel do Norte e suas consequências.

1.1 Baal em Oseias


Na narrativa do livro de Oseias o termo baal pode aparecer como um substantivo comum,
expressando um sentido coletivo e indeterminado, indicando assim, diferentes configurações
que o culto poderia assumir e aos diversos locais que poderiam acontecer. O substantivo,

1 LETE, Gregorio Del Olmo. Mitos y Leyendas de Canaan Segun la Tradicion de Ugarit. Madrid: Ediciones
Cristiandad, 1981.
2
ANDERSON, J.S. Monotheism and Yahweh’s Appropriation of Baal. London: T&T Clark, 2015, p.47-62.

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antecedido por um artigo, pode também, indicar um nome próprio sugerindo que por detrás da
variedade de nomes estava uma única figura de Baal como divindade cananeia antagônica a
Yahweh.3 Esse substantivo ocorre sete vezes no livro (Os 2, 10.15.18.19; 9,10; 11,2; 13,1).
Destas, três estão no plural, Os 2,15.19 e 11,2; E duas vezes no singular, Os 2,10 e 13,1. Uma
citação que precisa ser analisada cuidadosamente está no capítulo 2,18 do livro, onde lemos
“meu baal” como uma denominação que não deveria mais ser usada sendo então substituída por
“meu marido”.4
Podemos considerar aqui que entre essas referências, a mais fácil de interpretar é a que
está na passagem 9,10 pois nessa citação o termo se refere a um local cf. Nm 25,3.
Uma interpretação comum para o termo baal entre os estudiosos é que, tanto no plural
quanto no singular o substantivo faz referência a divindades cananeias. O termo exibido no
plural, poderia ser entendido como sinônimo para "outras divindades" ou então como uma
indicação para diversos lugares de culto. Alguns comentaristas, como por exemplo
James S. Anderson5, consideram a possibilidade de um sincretismo religioso de Yahweh com o
deus cananeu.
Há ainda aqueles que defendem que na maioria das passagens o termo baal não está
relacionado a divindades, mas a reis, líderes políticos e alianças políticas.6 Brad E. Kelle é um
exemplo daqueles que seguem essa linha. Em seu estudo sobre o capítulo 2 de Oséias ele
desenvolve essa ideia construindo um corpo de argumentos para defender que o termo baal não
está necessariamente vinculado a uma polêmica contra as divindades cananeias e o culto
politeísta, mas a alianças internacionais. Segundo ele é preciso examinar o termo para
determinar as tradições bíblicas e extrabíblicas e então lançar luz sobre como a palavra funciona
em cada endereço retórico específico de Oséias. Para ele o substantivo baal é comumente uma
terminação genérica que geralmente pode ser usada de maneira metafórica.7
No entanto, os argumentos levantados por Kelle não se adequam a algumas passagens do
livro de Oséias e o mais recomendado parece ser considerar que todas essas referências fazem
alusão a divindades contrárias a Yahweh.
Segundo Ben Zvi, a falta de esclarecimento com relação à identidade de Baal/baals (ou
aos amantes, como por vezes são aludidos) é coerente com a tendência que o livro tem de
dissociar o texto do momento histórico. Com isso, o livro procura inculcar uma ideia principal,
a de que Baal/Baals/amantes não devem ser adorados pois são impotentes.8

1.2 O culto cananeu em textos de Oseias

3
SIMIAN-YOFRE, Horacio. El desierto de los dioses: Teología e historia en el Libro de Oseas. Córdoba: Ediciones
El Almendro de Córdoba S.L, 1993; p. 210
4
BODA, MARK J. and J. GORDON McConville. Dictionary of the Old Testament: Prophets. Downers Grove, IL:
IVP, 2012. Academic, 2012; p. 239-241.
5
ANDERSON, James S. Monotheism and Yahweh’s Appropriation of Baal, London: Bloomsbury T&T Clark, 2015.
6
DEARMAN, J. Andrew. The Book of Hosea. NICOT. Eerdmans, 2010; p. 400-405
7
KELLE, Brad E. Hosea 2: Metaphor and Rhetoric in Historical Perspective. Atlanta: Society of Biblical Literature,
2005; p.137-163.
8
BEN ZVI, E. Hosea. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans.2005; p.62-72

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Apresentaremos aqui algumas análises de passagens do livro de Oséias com o objetivo de


traçar algumas características do culto cananeu dentro da narrativa bíblica. Privilegiamos as
passagens nas quais o termo baal se destaca.

1.2.1 Os 2
O primeiro bloco do livro de Oséias (capítulo 1 ao 3) é composto por uma unidade literária
que tem em comum o tema da prostituição e do adultério. Em Oséias 1, o profeta recebe ordens
de Yahweh para casar-se com Gomer, “uma mulher de prostituição” (Os 1,2) ou também pode
ser entendido como uma mulher que se envolve em relações sexuais fora do casamento. O
casamento do profeta com uma mulher imoral projeta a infidelidade de Israel para com Yahweh.
O capítulo 2 conta a metáfora do marido e da esposa com o intuito de exortar Israel a voltar dos
seus "amantes". Essa passagem tem como pano de fundo a discussão sobre a fonte da
prosperidade na terra de Israel. Em seu discurso o profeta se empenha em comprovar que a
prosperidade que Israel experimentou foi um presente de Yahweh, o Senhor da aliança (Os
2,10.11.14). Em Oséias 3, o profeta narra em sua própria voz um relato de uma ordem de
Yahweh para casar-se com uma mulher adúltera.
A questão por trás da metáfora do casamento em Oséias é o conflito entre a adoração ao
Deus de Israel e as práticas da religião Cananéia, particularmente o culto a baal. A idolatria é
uma grande preocupação na pregação do profeta que, por sua vez, manifesta de várias maneiras
em seu discurso uma resistência ao baalismo.9

a) V. 10
“Mas ela não reconheceu que era eu quem lhe dava o trigo, o mosto e o
óleo, quem lhe multiplicava a prata e o ouro que eles usavam para Baal!”

O artigo definido com o substantivo singular, conforme aparecem nesta passagem, podem
sugerir que baal é um epíteto e não um nome próprio.10
O grão, o mosto e óleo eram produtos fundamentais dentro da agricultura israelita e faziam
parte da dieta do povo. Por serem elementos fornecidos diretamente da natureza eram
considerados dádivas divinas. Dessa forma, essa sequência poderia ter a pretensão de insinuar
que Yahweh era o único responsável pela fertilidade e não Baal.11
É interessante notar que a palavra hebraica que se refere grão (trigo) nesse verso é a
mesma que era usada para Dagon, uma divindade conhecida como pai de Baal e associada a
produção de grãos na literatura mitológica. Dagon é equiparado a El e antecede a Baal nas listas
de sacrifícios dos textos rituais encontrados em Ugarit. A polêmica contra Baal e seu pai parece
ficar explícita na narrativa.
O versículo termina com uma alusão a Baal e deixa claro que quem forneceu a prata e o
ouro para os israelitas foi Yahweh. Dessa forma o texto parece confrontar aqueles que

9
BIRCH, BRUCE C. Hosea, Joel, and Amos. Westminster Bible Companion. Louisville: Westminster John Knox,
1997; p.32-35.
10
DEARMAN, J. Andrew. The Book of Hosea. NICOT. Eerdmans, 2010; p. 400-405
11
ANDERSEN, FRANCIS I. and FREEDMAN, DAVID NOEL. Hosea. A New Translation with Introduction and
Commentary Anchor Bible. Garden Cit, NY.: Doubleday, 1980; p.242

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acreditavam que Baal era o responsável pela prosperidade. A narrativa deixa explicito o erro
dos israelitas de receber presentes de Yahweh, mas continuar cultuando o deus cananeu.12
Com relação ao termo usado para se referir a “Vinho novo” (Tirosh), pode ser algum tipo
de alusão à divindade ugarítica Tiratu (trt). Essa é uma deusa que faz parte do enredo do Ciclo
de Baal.
Dagon, Tirosh e Yitzhak (que significa “óleo recém-prensado”) são substantivos que
frequentemente aparecem juntos na Bíblia Hebraica (Dt. 7,13; 11,14; 12,17; 14,23; 18,4; 28,51
e aqui em Oseias 2,10.24). Na narrativa bíblica esses substantivos podem representar os
principais produtos de subsistência israelita em seu estado primário. Essa sequência parece fazer
uma conexão entre bênção e crescimento natural. Por causa disso alguns autores sugerem que
os escribas usaram intencionalmente os nomes dos deuses e suas personificações divinas para
se referirem às bençãos de Yahweh. Sendo assim, os substantivos que antes seriam menções aos
supostos doadores divinos da fertilidade, passaram a ser usados como resultados da fertilidade
que tem sua origem em Yahweh. No Deuteronômio, por exemplo, Dagon e Tirosh aparecem
frequentemente juntos como produto da terra e uma manifestação da benevolência de Yahweh.
Lá os nomes são tratados como substantivos comuns e não divindades, que, sendo esse o caso,
seriam colocadas sob o controle de Yahweh. Dessa maneira, a crença mitológica dos
agricultores nos deuses da fertilidade cananéia seria desconstruída.13
A alusão no versículo de que “eles usavam” ouro para Baal retira o foco de Gomer que
aparece no início (“ela não reconheceu”) e aponta para o povo Israel. Dessa forma, Gomer vai
para um segundo plano na narrativa e Israel passa para o primeiro plano.
O ouro, juntamente com a prata, era um bem precioso usado para joias e como medida
para a troca de bens e serviços. O fato de Israel ter usado ouro para Baal como um ato de
devoção, reflete a crença do povo de que Baal o havia provido para os israelitas.14 O texto não
deixa claro se as dádivas de Yahweh foram ofertadas para os ídolos ou se elas foram usadas
para fazer imagens cultuais. Parece possível que os israelitas tenham usado alguns desses
elementos para construir imagens pagãs.15

b) V. 15
Eu castigarei pelos dias dos baals, aos quais queimava incenso.
Enfeitava-se com seu anel e o seu colar e corria atrás de seus amantes,
mas de mim ela se esquecia! Oráculo de Iahweh.

A metáfora do casamento continua, só que agora mencionando a exibição da esposa diante de


seus amantes. Para Oséias, é principalmente durante os festivais cultuais que a atividade adúltera
(metaforicamente) de Israel ocorre. Ele descreve essa série de festas como "seus prazeres" e
demonstra que Yahweh não tinha nada a ver com nenhuma dessas celebrações.

12
ANDERSON, J.S. Monotheism and Yahweh’s Appropriation of Baal. London: T&T Clark, 2015; p.63-85
13
ROBERT P. GORDON . The God of Israel. University of Cambridge Oriental publications 64; Cambridge
University Press, 2007; p.167-170.
14
DEARMAN, J. Andrew. The Book of Hosea. NICOT. Eerdmans, 2010; p. 115.
15
WOLFF, HANS WALTER. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, trans. Gary Stansell,
ed. Paul D. Hanson, Philadelphia: Fortress, 1974; pág 37

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Nessa passagem Oséias faz uma associação entre "amantes" e "baals". O termo baal aqui
aparece no plural. Há boas razões para dizer que esse plural em Oséias pode fazer referência
não somente aos inúmeros santuários de Baal, mas também a distintos deuses. Nessa passagem
vemos um exemplo no qual o termo "baal" pode representar um coletivo para diversas
divindades cananeias. Outra possibilidade é que o plural indicaria não diversas divindades, mas
diversos locais de culto.16
"Os dias dos baals" são as celebrações cúlticas dos cananeus, com suas festividades ao ar
livre, nos lugares altos e debaixo das árvores sagradas. Já a declaração "Israel vai atrás de seus
amantes" pode indicar aqui uma espécie de procissão dentro do santuário, em vez de algum tipo
de peregrinação.17
Dearman afirma que, nesse versículo, queimar incenso é uma manifestação de culto
direcionada aos baals. Segundo ele o verbo qāțar significa “queimar no altar com fumaça” (Lev
1, 9. 13. 15. 17). Dessa forma o incenso pode ser usado para criar fumaça e um aroma calmante
no lugar de carne queimada e sangue derramado.18
Essa passagem menciona a aparência de Gomer e comenta sobre as jóias finas que ela
coloca para homenagear os baals. Os detalhes da narrativa revelam uma cuidadosa devoção a
eles. Menção à ornamentação e a artigos de vestuários semelhantes é encontrada em uma
descrição da deusa Anatu em Ugarit. A decoração dos seios da deusa com joias é descrita em
um momento em que ela está se preparando para atividades sexuais. Pode ser que as devotas de
Baal se vestissem conforme sua consorte divina, e que a adoração a ela ou a alguma outra deusa
cananéia estivesse presente, mesmo que de forma oculta, aqui no texto bíblico.19

c) V. 18
Acontecerá, naquele dia, – oraculo de Yahweh que me chamaras “Meu
marido” e não mais me chamarás “Meu Baal”.

Em 2, 18, o profeta representa Yahweh dizendo que Israel não o chamará mais de Baal.
Isso pode indicar que alguns em Israel associavam Yahweh a Baal. O que poderia pressupor um
sincretismo religioso no qual o Senhor era adorado com as características de Baal. Em
fragmentos encontrados em Samaria, provavelmente datando da terceira década do século VIII,
existem dez nomes formados com o substantivo Baal e onze nomes formados com Yahweh. O
primeiro ocorre com mais frequência entre as classes mais baixas (oito, em comparação a seis
nomes de Yahweh) do que entre as classes mais altas (duas, em comparação a cinco nomes de
Yahweh). Seja como for, essas evidências poderiam caracterizar um envolvimento latente no
culto de Israel com Baal, porém é difícil determinar. Um exemplo de uma possível "baalização"
de Yahweh pode ser encontrado nos papiros Elefantinos.20

16
SIMIAN-YOFRE, Horacio. El desierto de los dioses: Teología e historia en el Libro de Oseas. Córdoba: Ediciones
El Almendro de Córdoba S.L, 1993; p. 208.
17
WOLFF, HANS WALTER. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, trans. Gary Stansell,
ed. Paul D. Hanson, Philadelphia: Fortress, 1974; p. 38-40.
18
DEARMAN, J. Andrew. The Book of Hosea. NICOT. Eerdmans, 2010; p. 118-119
19
ANDERSEN, FRANCIS I., and DAVID NOEL FREEDMAN. Hosea: A New Translation with Introduction and
Commentary. AB 24. Garden City, NY: Doubleday, 1980; p. 260-263.
20
WOLFF, HANS WALTER. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, trans. Gary Stansell,
ed. Paul D. Hanson, Philadelphia: Fortress, 1974; p. 48.

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A palavra baal era um termo que também podia ser usado para se referir a marido (Dt. 24,
4), mas por causa de sua associação com o culto sincretista, o texto pode querer retirar o termo
do vocabulário israelita pelo fato de eles usarem a palavra em uma forma censurável, com
referência à divindade cananeia.21

d) V. 19
Afastarei de seus lábios os nomes dos baals, para que não sejam mais
lembrados por seus nomes.

Não está claro aqui se “afastar dos lábios os nomes dos baals” está se referindo ao nome
pessoal da divindade cananéia ou se simplesmente está fazendo uma alusão ao epíteto
"mestre/senhor". O plural "baals" pode significar "deuses pagãos" ou pode se referir também às
várias denominações atribuídas a esse deus. O que podemos dizer é que este versículo é
claramente uma oposição ao culto cananeu e que nele contém uma recomendação para que o
povo de Deus não use mais o termo baal. Parece que seguindo essa orientação a divindade cairá
no esquecimento.22

1.2.2 Os 9

a) V 10
Como uvas no deserto, assim eu encontrei Israel, como um fruto em uma
figueira nova, assim eu vi os vossos pais. Eles, porém, logo que chegaram
a Baalfegor, consagraram-se à vergonha e tornaram-se tão abomináveis
como o objeto do seu amor!

Nessa passagem o profeta está fazendo uma comparação de seus contemporâneos com os
antepassados. O texto aqui dá a entender que a lembrança de Baal Peor continuava perturbando
a consciência de Israel.
Oséias chama a atenção de Israel para lembrar de uma transgressão específica de seus
ancestrais. De acordo com a narrativa de Números 25, os males cometidos em Baal Peor tinham
relação com cultos cananeus. Porém nessa passagem, Oséias não esclarece o que aconteceu em
Baal Peor. O que ele faz é expressar sua grande aversão ao episódio.
O significado da terminação "Baal Peor" não fica evidente. Esse versículo pode ser o
primeiro exemplo de uma adoração explicita a Baal. Porém segundo alguns estudiosos a
interpretação não deve ser simplesmente associada ao grande deus cananeu. Com relação ao
substantivo Peor, provavelmente é o nome de um lugar (Josué 22,17), mas esse termo também
pode conter um significado etimológico.23

21
MCCOMISKEY, Thomas Edward, The Minor Prophets, Exegetical and Expository Commentary, vol. 1. Grand
Rapids: Baker Academic, 1992; p. 44.
22
MCCOMISKEY, Thomas Edward, ed. Minor Prophets, Exegetical and Expository Commentary, vol. 1. Grand
Rapids: Baker Academic, 1992; p. 44.
23
ANDERSEN, FRANCIS I., and DAVID NOEL FREEDMAN. Hosea: A New Translation with Introduction and
Commentary. AB 24. Garden City, NY: Doubleday, 1980; p. 538.

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Durante muito tempo o culto cananeu foi associado a práticas sexuais, porém isso hoje é colocado
em dúvida.24

Os 11
a) V. 2
Mas quanto mais eu os chamava, tanto mais eles se afastavam de
mim. Eles sacrificavam aos baals e queimavam incenso aos ídolos.

Esse versículo assinala a infidelidade de Israel para com Yahweh. A narrativa descreve a
desobediência do povo e aponta para as suas atitudes transgressoras.
Eles “ofereciam sacrifício aos baals e queimavam incenso aos ídolos”, esta descrição funciona
como uma exposição da apostasia de Israel. O termo ídolos (sing. pāsîl) no v. 2, indica que o
ídolo é fabricado, é obra de um artesão. Essa terminação pode ser uma referência especifica a
imagens de bezerros. Oséias não usa esse termo em outros lugares, embora ele faça várias outras
referências a imagens de divindades (cf. Os 4,17; 8,4; 13,2; 14,9).25

1.2.3 Os 13
a) V. 1
Quando Efraim falava, era o terror, ele era sublime em Israel, mas
tornou-se culpado por causa de Baal e morreu.

Esse versículo fala que Efraim provocou amargamente o Senhor por meio de seu
relacionamento "com baal". O termo baal é apresentado no singular.
Tudo indica que a sentença de morte para Efraim nesse versículo está preparando o terreno
para um desenvolvimento do tema da morte em todo o capítulo 13. A narrativa fala que Efraim
está morto e adverte que ele não retornará pois Yahweh não terá compaixão. Oséias parece fazer
uma alusão a divindade moribunda e ressuscitada do mito cananeu e com esse discurso insinuar
que o deus da fertilidade não voltará do mundo dos mortos. Segundo a religião cananeia, Baal
não se levantar do mundo dos mortos implica em um colapso nas forças da fertilidade em
homens, animais e vegetação.26

2. A figura de Baal e seu culto segundo os dados do livro de Oseias em relação aos
textos de Ugarit.
Alguns intérpretes alegam que não fica claro no livro de Oséias se o profeta está
condenando uma adoração falsa a Yahweh, ou uma adoração apóstata a Baal, ou mesmo se os
dois são identificados no culto oficial, com Baal sendo usado como título para Yahweh. 27
Algumas linhas de interpretação chegam a considerar que o livro de Oséias poderia representar

24
Culto no Israel do Norte, no século VIII a.C.: a concepção do livro de Oseias”: Revista de Cultura Teológica 93
(2019) 25-53.
25
DEARMAN, J. Andrew. The Book of Hosea. NICOT. Eerdmans, 2010; p. 280-281).
26
G. MAY. The fertility Cult in Hosea. The American Journal of Semitic Languages and Literatures. Volume XLVIII.
Number 2. Oriental Institute University of Chicago. January 1932, p 73-98.
27
ANDERSEN, FRANCIS I., and DAVID NOEL FREEDMAN. Hosea: A New Translation with Introduction and
Commentary. AB 24. Garden City, NY: Doubleday, 1980; p. 48-50.

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uma luta entre Javé e Baal pelo posto mais alto dentro de um suposto panteão israelita. Seja
como for, um ponto em comum entre os estudiosos é que o livro de Oséias é uma manifestação
veemente contra a religião cananeia e principalmente contra o culto a Baal.

2.1 Os textos ugaríticos e sua contribuição para a compreensão da figura de baal em


Oseias.
Através de uma cuidadosa leitura dos textos encontrados em Ugarit 28 é possível perceber
que Baal era considerado a divindade heroica da religião cananeia. Era conhecido como o deus
da tempestade que enviava a chuva e fazia o grão crescer. Responsável por prover os principais
elementos de subsistência daquela civilização, passou a ser adorado como deus da fertilidade.
Em uma sociedade agrária na qual a produtividade da terra é tão importante, a adoração a
Baal pode se tornar irresistível, considerando o fato de que ele é a divindade que personifica os
poderes da natureza favoráveis a colheitas prósperas. Dessa forma, o culto a Baal atrai todo
aquele que acredita que se ele for honrado e celebrado com os rituais apropriados, a terra irá
produzir abundantemente.29 Provavelmente essas características tenham sido suficientes para
atrair a atenção de muitos dentro do povo de Israel.
Em um dos mitos encontrados em Ugarit, a "chuva de Baal" é descrita como "doce para a
terra". Lá encontramos a mesma série de três palavras que aparecem descritas em Oseias: grão,
vinho e o óleo. Como Baal era associado a fertilidade e esses elementos representavam os
produtos básicos da agricultura israelita é bem provável que houvesse uma associação do mito
com essa passagem em Oseias.30
Baal foi adorado em toda a Síria-Palestina. Muitos objetos religiosos com caráter sacro
que faziam referência a ele foram encontrados no sítio arqueológico de Ugarit: estátuas de pedra,
de metal, estelas de culto, pequenos ídolos e pingentes feitos de metais preciosos. Essa
informação pode trazer luz para as passagens nas quais Oseias se refere a confecção de ídolos.
Muitos dos santuários de Baal estavam localizados no topo de colinas, geralmente em
bosques com muitas árvores para representar a fertilidade promovida pelo culto a Baal. Pode ter
sido por isso que muitos profetas (cf. Jr 2,20; 3,6.13; Ez 6,13; 20,28) pregavam contra bosques
sagrados.
Em Ugarit Baal pode ter sido usado como um termo genérico para deidades locais sendo
representado no plural por Baalim (baals). Ele também podia receber nomes diferentes de
acordo com a região na qual era adorado. Cada lugar enfatizava um ou outro de seus atributos e
desenvolvia “denominações” especiais, refletindo uma espécie de “Baalismo”. Isso prova que
era uma divindade altamente adaptável. Essas podem ser algumas evidências que ajudam na
interpretação de algumas passagens do livro de Oséias nas quais Baal aparece no plural. Oseias
podia estar se referindo aos vários baals que tinha em mente.

28
Mitologia Cananeia: A Figura de Baal e seu culto no “Mito de Baal” de Ugarit: Revista de Cultura Teológica 63
(2019) 756-770.
29
BIRCH, BRUCE C. Hosea, Joel, and Amos. Westminster Bible Companion. Louisville: Westminster John Knox,
1997, p.32-35.
30
WOLFF, H. W. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea, trans. Gary Stansell, ed. Paul
D. Hanson, Philadelphia: Fortress, 1974; p.

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Alguns dos textos encontrados em Ugarit são instruções sobre como realizar rituais de
sacrifício (textos prescritivos), enquanto outros são registros de sacrifício que foram realmente
realizados (textos descritivos). O sacrifício sangrento de animais fazia parte do coração do culto
cananeu. A constatação mais interessante dessas listas tem a ver com a quantidade de vezes que
o nome de Baal aparece nelas. Baal está efetivamente entre as divindades mais apreciadas e que
mais recebiam ofertas. O que Oseias fala em sua narrativa sobre os sacrifícios e ofertas
realizados para Baal parece encontrar base nessas listas.
A cura é outro aspecto importante associado a Baal, que recebe o epíteto “curador”. Baal
cura as asas dos pássaros em um dos textos mitológicos. Em um outro texto ele é qualificado
como uma divindade que é capaz de trazer de volta à vida e, portanto, é retratado como um deus
que pode revivificar os mortos. A polêmica da cura aparece em Oséias 14,5, onde o Senhor
promete curar a apostasia de Israel. No culto aos reis mortos em Ugarit, Baal era visto como o
líder e espírito vital dos reis deificados31
Tudo parece indicar que Oséias fez uma releitura dos mitos cananeus com a intenção de
corrigir o culto israelita. Com relação a Baal, Oseias parecia conhecer muito bem os atributos
do deus cananeu. É possível perceber isso na forma peculiar como ele combate cada um deles
em sua narrativa.

2.2 Os textos ugaríticos e sua contribuição para a compreensão do culto cananeu


conforme apresentado em Oseias.
Os israelitas viveram no meio da cultura cananéia. Alguns historiadores chegam a
considerar a possibilidade da cultura de Israel ter sido um desenvolvimento da cultura dos
cananeus. Ambas as civilizações compartilharam de idiomas semelhantes e ocuparam um
território com padrões culturais comuns. Existem até aqueles que alegam que o conflito entre a
religião israelita e cananeia é entre duas religiões nativas de uma mesma região. Em um cenário
como esse não é de se admirar que muitos israelitas fizessem confusão com relação ao culto.32
As práticas pagãs enfrentadas no livro de Oséias não são fáceis de identificar. Em sua
narrativa só é mencionado o deus cananeu Baal. Mas por meio de uma leitura meticulosa é
possível perceber que muitas outras palavras são usadas para se referir a várias formas de
idolatria. É impressionante o número de referências usadas nos textos de Oséias que se
assemelham a mitologia cananeia.33
No mito cananeu, Baal é um deus que conquista seu lugar no panteão depois de lutar com
deuses ferozes. Após uma luta com o deus Mot Baal morre e fica no submundo até que é
resgatado por Anatu sua irmã/consorte. O entendimento típico por trás dessa visão mitológica é
que no inverno, pensava-se que Baal morresse e fosse para o mundo subterrâneo. Mas na
primavera Anatu o resgatava e por meio de uma suposta relação sexual entre eles concluía-se o
ciclo da fertilidade.34

31
ANDERSON, J.S. Monotheism and Yahweh’s Appropriation of Baal. London: T&T Clark, 2015, p.47-62
32
BIRCH, BRUCE C. Hosea, Joel, and Amos. Westminster Bible Companion. Louisville: Westminster John Knox,
1997; p.32-35.
33
ANDERSEN, FRANCIS I., and DAVID NOEL FREEDMAN. Hosea: A New Translation with Introduction and
Commentary. AB 24. Garden City, NY: Doubleday, 1980; p. 649.
34
Mitologia Cananeia: A Figura de Baal e seu culto no “Mito de Baal” de Ugarit: Revista de Cultura Teológica 63
(2019) 756-770.

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Na mitologia ugarítica o casamento entre deuses é colocado como algo imprescindível


para que qualquer divindade do panteão tenha um papel relevante diante dos demais. Isso fica
claro quando observamos o papel do deus Attaru, um deus que segundo a trama mitológica, não
pode concorrer com os outros porque não é casado. Outro exemplo de casal que aparece no Ciclo
de Baal é El (o pai dos deuses) e sua consorte Atiratu (mãe dos deuses).
Por meio de uma linguagem metafórica Oséias introduz o conceito de casamento, adultério
e divórcio em sua narrativa. Essa metáfora do casamento divino é apresentada logo nos primeiros
capítulos do livro. Porém a narrativa transfere para Yahweh e Israel, isto é, para Deus e seu
povo histórico, o que a mitologia ugarítica falava sobre os deuses e as deusas.
O culto cananeu parecia celebrar o casamento sagrado e o "acasalamento" dos deuses.
Principalmente inspirados na relação de Baal e Anatu. O culto cananeu pode ter incluído rituais
com relações sexuais para encenar esse ciclo de fertilidade de Baal. Muitos estudiosos modernos
discordam dessa ideia alegando que os achados arqueológicos não trazem nenhuma evidência
dessa forma de culto.35
De fato, é importante observar aqui que nem na Bíblia nem nos textos ugaríticos fica
explícito um culto com uma manifestação evidente de orgias cultuais. Tanto em Israel quanto
em Ugarit, as festas parecem ter sido apenas celebrações referentes a colheitas prósperas. Nessas
celebrações eram utilizadas “tendas” para moradias temporárias nos campos durante a época da
colheita. De acordo com a versão ugarítica, essas tendas eram montadas no topo de um templo
ou palácio e então eram habitadas pelos deuses. Sendo assim a depravação sexual que alguns
afirmam ser característica do culto cananeu não deixou nenhuma evidência concreta.36

Conclusão
Possivelmente o culto propriamente javista se manteve, ao menos em parte. Falar de culto
israelita é o mesmo que falar de culto javista, ou seja, praticado nos santuários da religião de
YHWH.
A adoração a divindades do panteão ugarítico fazia parte de muitos rituais praticados por
israelitas. É possível perceber no livro de Oseias muitas referências associadas a mitologia
cananeia. Com base nessas observações, podemos afirmar que a teologia de Oseias estabelece
um diálogo aberto com a mitologia de sua época. Oseias parece desenvolver um notável
processo de adaptação e polêmica contra os mitos cananeus. A impressão que temos é que o
profeta desconstrói o mito por dentro e transforma cada elemento mítico em parábolas que se
opõem firmemente a influências cananeia. Oseias demonstra conhecer com profundidade tanto
a história do povo de Israel, quanto os elementos que estruturavam a cultura e a religião dos
cananeus. Dessa forma, o livro demonstra que o conhecimento é fundamental para um culto
autêntico e original a Yahweh.
O aprofundamento dos textos mitológicos e sua comparação com textos de Oseias nos
ajudou a compreender melhor a figura de Baal e seu culto e a reconhecermos a influência da
religião cananeia dentro deste livro profético.

35
BIRCH, BRUCE C., op. cit.
36
PARDEE, D.; LEWIS, T. J. Ritual and Cult in Ugarit. Atlanta, Ga.: Society of Biblical Literature 2002 p.233-235

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Referências
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T&T Clark, 2015.

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Introduction and Commentary Anchor Bible. Garden Cit, NY.: Doubleday, 1980.

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4- BIRCH, B. C. Hosea, Joel, and Amos. Westminster Bible Companion. Louisville:


Westminster John Knox, 1997.

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Downers Grove, IL: IVP, 2012.

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7- GORDON, R. P. The God of Israel. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

8- MAY, H. G. The fertility Cult in Hosea. The American Journal of Semitic Languages
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January 1932, p 73-98.

9- KELLE, B. E. Hosea 2: Metaphor and Rhetoric in Historical Perspective. Atlanta:


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10- LETE, Gregorio Del Olmo. Mitos y Leyendas de Canaan Segun la Tradicion de
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11- LIMA, M.L.C, Culto no Israel do Norte, no século VIII a.C.: a concepção do livro
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12- MCCOMISKEY, T.E. The Minor Prophets, Exegetical and Expository


Commentary, vol. 1. Grand Rapids: Baker Academic, 1992.

13- MAY, H. G. The fertility Cult in Hosea. The American Journal of Semitic Languages
and Literatures. Volume XLVIII. Number 2. Oriental Institute University of Chicago.
January 1932, p 73-98.

14- PARDEE, D.; LEWIS, T. J. Ritual and Cult in Ugarit. Atlanta, Ga.: Society of
Biblical Literature 2002.

15- SIMIAN-YOFRE, H. El desierto de los dioses: Teología e historia en el Libro de


Oseas. Córdoba: Ediciones El Almendro, 1993.

16- WOLFF, H.W. Hosea: A Commentary on the Book of the Prophet Hosea.
Philadelphia: Fortress, 1974.

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