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Deusas, demônios, maçãs e serpentes

Entender Deusas, demônios, maças e serpentes como epicentro da discussão sugerida,


contorna a questão dentro da narrativa de criação do Gênesis, onde encontramos a célebre passagem
da tentação do fruto da árvore do conhecimento, que protagoniza a decaída Eva e a serpente
corruptora, dando origem ao problema do mal.

A história é uma das mais famosas na literatura sagrada da nossa civilização: a humanidade, recém-
criada pela divindade, habita pura, nua e ignorante o jardim encantado no Éden. Certo dia, Eva, a
mulher do homem feito de terra, Adão, tem a sua atenção atraída pela serpente, animal inteligente,
que seduz Eva com o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Eva se interessa, mas recua
pois o fruto daquela árvore, interditado pelo criador, causaria a sua morte. A serpente esclarece a
pobre criatura, e a informa que o criador mente, e que ela não morrerá se comer do fruto, mas se
aproximará da condição do seu artesão divino. Eva, a mulher, acredita na serpente e come do fruto,
seus olhos se abrem e ela percebe sua nudez. De fato, a serpente estava certa: Eva não morre. Nem
Adão, diga-se se passagem, que, persuadido pela mulher também come do fruto proibido. Ambos
são expulsos do jardim encantado pela divindade enfurecida, que teme que essa humanidade
devoradora de maças e frutos proibidos se aproprie do fruto da árvore de vida, e se torne como
“nós”, diz essa divindade aparentemente se dirigindo a outros seres celestes, ou a sua natureza
múltipla.

Porém, essa expulsão do paraíso perdido não é apenas uma ação pragmática. A expulsão é
acompanhada por uma maldição proferida pela divindade. A serpete, animal terrível, será o mais
odioso entre todos os animas, rastejará sobre a terra e comerá o pó todos os dias de sua vida. A
mulher desejará o homem, que a dominará, e parirá com dor. Além disso, a amizade entre a mulher
e a serpente também será amaldiçoada. Uma lhe ferirá o calcanhar, a outra lhe esmagará a cabeça
com uma pedra. O homem, por sua vez, trabalhará para comer, da terra, sua mãe ancestral, será
inimigo e retirará a força de muito suor o alimento precário. A mulher, a maça e a serpente
protagonizam, nessa narrativa, a origem do mal. O pecado original se dá através da amizade e
confiança entre a mulher e a serpente. O homem, feito da terra, tem a relação amaldiçoada com a
própria terra e dominará sua mulher, cujo corpo é análogo ao corpo da terra.

Símbolos como o fruto proibido ou os pomos encantados aparecem em diversas narrativas como um
meio para a conquista de alguma qualidade, titularidade, status ou poder mágico. O pomo de ouro,
lançando pela deusa da discórdia Éris no banquete de casamento de Peleu e Tétis, atribui a sua
detentora o título de “mais bela” e as três Deusas gregas Atena, Afrodite e Hera competirão por ele,
colocando em curso as engrenagens do destino que culminará na realização da ruína de Troia. A
romã que a jovem e primaveril Core come no submundo a vincula permanentemente ao Deus Hades
e seus domínios, tornando-a Perséfone, a rainha dos mortos, além de senhora das flores. Avalon, a
ilha das maças, afunda a cada dia mais para dentro das brumas, mas talvez um andarilho ou
andarilha sensível, ao sentir o cheiro das maças da Ilha sagrada, encontre pelo reino das fadas um
caminho. O fruto proibido da árvore do conhecimento do Bem e do Mal, no jardim do Éden
aproxima aquele que o consumir da condição divina. A maça oferecida pela bruxa má no conto
medieval da Branca de Neve mergulha a princesa exilada em um sono estranho como o de Orfeu,
tornando-a morta em vida. Os pomos encantados permeiam as narrativas sagradas de todas as eras.

A serpente, por sua vez, também prefigura histórias importantes. Nós a conhecemos como animais
perigosos e venenosos. A conhecemos por ser, em parte responsável, pelo decaimento da condição
humana. Também como símbolo da medicina, veículo de uma substância de essência múltipla, que
pode ser tanto remédio como veneno. As serpentes foram expulsas da Irlanda, terra que,
aparentemente, nunca teve serpentes, por São Patrício. Os magos no deserto são conhecidos por
encantar as serpentes. As feiticeiras e mulheres sinistras frequentemente são representadas junto de
serpentes que enroscam seu corpo. A própria Lilith foi compreendida como um demônio fêmea de
longos cabelos que se metamorfoseia em serpente. A serpente, além de tudo isso, é um dos símbolos
mais antigos associados a antiga Deusa que era cultuada pelos povos agricultores que remontam ao
neolítico e aos primeiros assentamentos humanos. A serpente, símbolo da Deusa, representava a
capacidade de se renovar, nascer e morrer, trocar de pele, sem deixar de ser o que é. A vida
integrada na morte, o remédio do veneno, os ciclos da existência, assim como os ciclos da estação
do ano, da lua, da terra, das plantas e árvores, e dos corpos, principalmente os femininos. A
demonização da serpente significa, de muitas maneiras, a demonização do feminino na forma de
corpo do planeta e dos corpos das mulheres.

Eva, a mulher decaída e corruptora é, por sua vida corrompida e seduzida pela serpente, que se
torna, no imaginário medieval, a própria Lilith, primeira mulher, além de demônia e insubmissa. A
grade Deusa, totalmente desprovida de sua dignidade, é amaldiçoada e torna-se hostil e,
eventualmente submetida, a uma humanidade que um dia foi amiga e integrada. O homem, inimigo
da terra, torna-se dominador da mulher. Os frutos de sabedoria são perigosos e exilam a
humanidade da sua condição originária. A narrativa de expulsão do jardim do Éden dá início ao
exílio da humanidade e da sua jornada nomádica e errática. A humanidade, tal como compreendida
pelo antigo livro dos Hebreus deixa a terra fértil em busca de uma terra que jorre leite e mel,
também fértil. O Deus bíblico ressente-se da amizade entre a serpente e a mulher e parece ser,
sozinho, o criador e gestor do universo.

De todo modo, uma leitura que sugere simplesmente que uma deidade tribal masculina se sobrepõe
a grande Deusa e a substitui completamente, instaurando o domínio masculino tanto no âmbito
espiritual como na vida cotidiana não parece ser uma saída simples demais para a compreensão do
fenômeno do patriarcado? Será que essa deidade não tinha uma consorte cósmica que, por diversos
motivos, foi ocultada da narrativa sagrada escrita? No próximo texto da série exploraremos melhor
essa questão e buscaremos entender se existiu uma Deusa hebraica.

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