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01/02/2021 Filhas de Lilith: a construção social das mulheres a partir dos mitos lilithianos – M.A.P.

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Filhas de Lilith: a construção social das


mulheres a partir dos mitos lilithianos
POR BEATRIZ DE FREITAS CARDENETE · PUBLISHED 05/05/2020 · UPDATED 07/05/2020

Lilith como a Senhora das Bestas, representação Suméria de cerca de 2000 AEC.

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Este ensaio procura re etir sobre a gura de Lilith, a partir dos mitos presentes na obra O livro
de Lilith. O resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal, de Barbara Koltuv (2017). Lilith foi
dita a primeira mulher, a assassina de crianças, a esposa de demônios, a que se aproveita dos
homens durante a noite com sua fatal sedução e, até mesmo, aquela que recusou a se deitar por
baixo do homem durante a relação sexual. Não são poucas e nem recentes as histórias
envolvendo Lilith, personagem presente em diversas mitologias (como a suméria, assíria,
babilônica, persa, entre outras) e que sempre aparece em contraposição à bondade e
masculinidade de Deus. Tal força que emana dela é um ponto de partida para re etirmos não só
sobre a gura de Lilith em si, mas também sobre a construção histórica do estereótipo da
mulher e sobre a Lilith que ainda vive dentro de cada mulher.
A autora inicia seu estudo tendo como ponto de partida o Zohar . Segundo ela, a origem de
Lilith é tão antiga quanto o surgimento da própria Terra. Quando a Lua e o Sol foram criados
ambos tinham a mesma luz, porém os dois não se sentiam à vontade ao conviverem juntos e
Deus, prontamente, ordenou que a Lua se afastasse, o que fez com que ela perdesse o seu brilho.
Essa diminuição da luz da Lua teve como resultado uma k’lifah (ou casca do mal), da qual teria
nascido Lilith que, por esta razão, também é chamada de Lua Negra. Diz o Zohar que, após este
acontecimento, Lilith foi expulsa do céu e enviada a Deus para conviver com a humanidade. Nas
palavras de Koltuv (2017, p. 27): “Com o advento do patriarcado, o poder de vida e morte
tornou-se uma prerrogativa do Deus masculino, enquanto a sexualidade e a mágica foram
separadas da procriação e da maternidade.”.
Na tradição bíblica, mais especi camente em Gênesis 1:27, consta que “Deus criou o homem à
sua imagem e semelhança, à imagem de Deus o criou, macho e fêmea os criou”. Em Gênesis
2:18, porém, está escrito que:

 Jeová Deus disse: ‘Não é bom que o homem esteja só. Eu lhe farei uma ajudante’ […] Então
Jeová Deus fez o homem cair num sono profundo. E enquanto ele dormia, tomou uma de suas
costelas e envolveu-a com carne. Da costela que tomara de Adão, Jeová Deus fez uma mulher
e conduziu-a ao homem.

No mesmo versículo Adão responde que: “Esta sim é osso dos meus ossos / e carne da minha
carne!”. Uma possível interpretação para tal passagem é que, antes de Eva, a mulher feita da
costela de Adão, haveria sido criada outra mulher, produzida de barro e, portanto, igual ao
homem. Apesar do nome de Lilith só ser citado em livros apócrifos , acredita-se que ela possa
ser a primeira mulher que Gênesis 1:27 narra.
Assim como Eva é conhecida por ser a responsável pela queda do homem e pelo pecado original,
Lilith é vista também como uma gura sedutora e diabólica. O Zohar associa sempre Lilith e Eva
em sua pecabilidade e “adverte, repetidas vezes, que os homens, ao encontrar uma mulher,
devem se precaver contra Lilith sedutora.” (KOLTUV, 2017, p.95). Segundo o Zohar, Adão depois
da queda teria feito a penitência de car durante 130 anos sem ter relações com Eva:


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 Durante esse tempo, Lilith visitou Adão enquanto ele dormia sozinho, sonhando, e se
satisfazia, montada nele, provocando-lhe poluções noturnas. […] O Zohar prossegue dizendo
que Lilith se esconderá nos vãos das portas, em poços e latrinas, e continuará a
desencaminhar os homens até o dia do juízo nal. (KOLTUV, 2017, p. 68-69)

A relação de Lilith e Adão também é comentada no Alfabeto de Ben Sira , o material


bibliográ co mais antigo referente à Lilith e que a rma que ela é a primeira mulher criada por
Deus. Segundo Ben Sira:

 Deus criou Lilith, a primeira mulher, do mesmo modo que havia criado Adão, só que ele usou
sujeira e sedimento impuro em vez de pó ou terra. Adão e Lilith nunca encontraram a paz
juntos, Ela discordava dele em muitos assuntos e recusava-se a deitar debaixo dele na
relação sexual, fundamentando sua reivindicação de igualdade no fato de que ambos haviam
sido criados da terra. Quando percebeu que Adão a subjugaria, proferiu o inefável nome de
Deus e pôs-se a voar pelo mundo. Finalmente passou a viver numa caverna no deserto, às
margens do Mar Vermelho. Ali, envolveu-se numa desenfreada promiscuidade, unindo-se
com demônios lascivos e gerando, diariamente, centenas de Lilim ou bebês demoníacos.
(apud KOLTUV, 2017, p. 40)

Lilith e Eva, as duas primeiras mulheres

Apesar de também ter sido criada da terra, Lilith tem consciência de que não é matéria inerte e
se recusa a viver para sustentar Adão. Ela é a que se nega a uma vida de dependência e
submissão e a que igualmente se recusa a se deitar por baixo. Lilith quer igualdade e o poder de
ir, vir e agir por si. Ela é “aquela qualidade pela qual uma mulher se nega a ser aprisionada num

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relacionamento.” (KOLTUV, 2017, p. 44) e que luta para romper com o patriarcado. Eva, pelo
contrário, não consegue alcançar a liberdade que Lilith tanto almeja, ela “sente-se acorrentada
à Terra pelos homens e pelos lhos” (KOLTUV, 2017, p. 124). Dessa forma, Eva e Lilith vivem
dentro de todas as mulheres que, por um lado, querem estabelecer uma família e cuidar dos
lhos e, por outro lado, gerar ideias e projetos.
Também são diversos os mitos que falam sobre a permanência de Lilith no deserto após ter
fugido de Adão. Muitos deles convergem ao relatar a existência de duas Liliths, que
supostamente fazem referências a duas das quatro faces da Deusa e, consequentemente, da Lua
da qual Lilith teria nascido : a Lilith-Avó, esposa de Samael, rei dos demônios, e a Lilith-Moça,
esposa de Ashmodai, que também é rei dos demônios. De suas três relações (Adão, Samael e
Ashmodai), Lilith teria dado origem a um exército de espíritos, demônios e Lilim, que teriam
sido capazes de destruir o mundo.

Representação de Lilith feita por Günther Zainer, provavelmente do ano 1473 EC

Outra versão cabalística da história conta que as duas prostitutas que apareceram diante do Rei
Salomão para disputar seus lhos recém-nascidos eram Lilith, a estranguladora de bebês, e
Igrat, a sedutora do Rei Davi. Segundo o mesmo mito, ambas as mulheres, juntamente com
Mahalath e Naamah, teriam sido as responsáveis por estrangular o lho de uma mulher
sunamita. Como bem mostra Koltuv (2017, p. 125-126), Lilith é uma gura bastante
contraditória neste quesito: ela brinca com os bebês enquanto eles dormem, entrelaçando seus
cabelos, fazendo-lhes cócegas e provocando risos e bons sonhos, porém, Lilith também é a que
provoca epilepsia e morte nas crianças. Em uma época em que a ciência não explicava os
natimortos e a mortalidade infantil, a justi cativa dada era divina e feminina.
Atualmente, Lilith não é mais considerada a responsável pelos males das mulheres, da
humanidade e das crianças, mas sim parte de um ciclo que é natural e sagrado:

 Eva é o lado do feminino instintivo que nutre a vida, enquanto Lilith é o seu oposto, aquele
que lida com a morte. Diz-se que as lhas de Eva estão sujeitas à dor de Lilith a cada
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diminuição da Lua. Lilith rege os Equinócios e os Solstícios. Do mesmo modo que Hécate,
seus poderes são superiores nas encruzilhadas instintivas da vida de uma mulher: na
puberdade, em cada menstruação, no início e no m da gravidez, da maternidade e da
menopausa. (KOLTUV, 2017, p. 118-122)

Com esse breve repasso dos mitos lilithianos desenvolvidos até aqui a partir da obra de Barbara
Koltuv, sobressai o fato de que estas histórias foram criadas, em grande parte, por religiosos do
Velho Testamento, judeus, acerca da imagem da mulher. Estas histórias serviam como método
de disciplinamento do comportamento e do corpo feminino. Quando ocorre a inquisição feita
pelos católicos e, portanto, homens do Novo Testamento, apesar da mudança de religião a tática
de disciplinamento das mulheres permaneceu a mesma.
No período da inquisição a associação das mulheres com a gura do Diabo, a crença de que elas
tinham poderes sobrenaturais e que eram portadoras de fatal sedução permaneceu a mesma que
havia sido moldada durante o judaísmo. Os cristianismos católico e protestante, porém, foram
além, uma vez que não só criaram estes mitos sobre a mulher maldita, como também matavam
e puniam quem não seguisse a ordem vigente sobre como deveria ser o comportamento
feminino. Silvia Federici (2017, p. 314) mostra muito bem como a inquisição católica levou a
uma verdadeira caça às mulheres e criou a gura da bruxa, associada às mulheres comuns, que
detinham o conhecimento sobre o seu próprio corpo e sobre os ciclos da vida:

 Embora a caça às bruxas estivesse dirigida a uma ampla variedade de práticas femininas, foi
principalmente devido a essas capacidades – como feiticeiras, curandeiras, encantadoras ou
adivinhas – que as mulheres foram perseguidas, pois, ao recorrerem ao poder da magia,
debilitavam o poder das autoridades e do Estado, dando con ança aos pobres em sua
capacidade para manipular o ambiente natural e social e, possivelmente, para subverter a
ordem constituída.

Essas mulheres ditas bruxas, em síntese, eram um problema para a inquisição por serem
insubordinadas. O mesmo ocorre com Lilith, que traz à luz questões discutidas até hoje: o
prazer feminino desta mulher que quer se deitar por cima do homem, a decisão da mulher para
partir, a igualdade entre homens e mulheres e a consequente demonização das mulheres que
buscam pela sua liberdade. Na realidade, todas nós somos lhas de Lililith e de uma sociedade
patriarcal e misógina, visto que teve sua construção fundamentada no controle e no
disciplinamento das mulheres.

1. O Zohar é um livro da parte mística e, portanto, cabalística dentro do judaísmo e traz


uma re exão a respeito da Torá. É interessante ressaltar que a leitura e interpretação do
Zohar eram fechadas somente para os grandes sábios da religião (e que necessariamente
eram homens), fato este que reitera o caráter patriarcal das religiões monoteístas.
2. Os apócrifos são livros referentes ao Novo ou Velho Testamento que não foram incluídos
na Bíblia pelo Magistério da Igreja Católica. A justi cativa para esta exclusão é que estas

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obras são heréticas, não portam a verdadeira palavra de Deus e tampouco foram
reveladas pelo Espírito Santo.
3. Ben Sira também foi o responsável por escrever o livro apócrifo Eclesiásticos, que
pertence ao Velho Testamento. Apesar dessa obra não fazer parte da Bíblia Sagrada
canônica, ela era relativamente aceita pelos judeus de Alexandria, fazendo parte,
inclusive, dos livros deuterocanônicos presentes na Septuaginta, antiga tradução em
grego do Antigo Testamento.
4. Barbara Koltuv em sua obra não faz a associação das duas fases de Lilith com a
Deusa/Lua. São diversos os estudos que abordam o tema do Sagrado Feminino e relatam
a essência tripartite da Deusa cultuada principalmente pelo povo Wicca, vide, por
exemplo, Barroso (2017). A Lua Crescente é associada à Deusa-Virgem, determinada e
responsável por novos começos; a Lua Cheia pela Deusa-Mãe, doadora da vida e grande
nutridora; e a Lua Minguante pela Deusa-Anciã, detentora de toda a sabedoria.

Bibliogra a
Fotos: Google Imagens
BARROSO, Eduarda Neto de. Resgate do sagrado feminino: Fundamentos e práticas da Wicca.
(Trabalho de conclusão de curso). Juiz de Fora: UFJF, 2017. Disponível em:
[http://www.ufjf.br/bach/ les/2016/10/EDUARDA-NETO-DE-BARROSO.pdf]
FEDERICI, Silvia. O Calibã e a Bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
Elefante, 2017.
KOLTUV, Barbara Black. O livro de Lilith. O resgate do Lado Sombrio do Feminino Universal.
São Paulo: Cultrix, 2017.

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