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A necessidade da ação dos sentidos na teoria do conhecimento de

Tomás de Aquino: Suma de Teologia Iª, 84

André de Deus Berger1

Resumo:

Inserido no ambiente universitário do século XIII do ocidente cristão, Tomás de Aquino lança-se
à linha de frente dos debates de sua época, propondo uma crítica ao que chamará de platonismo
e às leituras por ele consideradas errôneas de Aristóteles, imbuídas de interpretações de
filósofos como Avicena e Averróis, que chegam à Europa latina nos últimos séculos do medievo.
Um de seus alvos é a consideração sobre o intelecto agente e o ato de intelecção. Em Suma de
Teologia Iª, 84, o autor descreve o funcionamento deste ato, situando seu início na impressão
causada pelos sensíveis nos sentidos, e o papel do intelecto agente para a formação do
conhecimento. Em suas proposições, apresentará uma particular leitura de Aristóteles e uma
cuidadosa interpretação de Agostinho, além de críticas gerais ao platonismo.

Palavras-Chave: Filosofia. História da Filosofia Medieval. Tomás de Aquino (1225-1274).


Intelecção. Sentidos.

Abstract:

Inserted in the universitarian ambient of the XIIIº century of the christian occident, Thomas
Aquinas throw himself to the frontline of contests of his own time, proposing a critique to what
he will name platonism and to the readings of Aristotle that he considerate completely wrong,
imbued of interpretations from philosophers like Avicena and Averroes, who arrived to the Latin
Europe in the last centuries of the medieval age. One of his targets is the consideration about the
agent intellect and the intellection's act. In Summa Theologiae Iª, 84, the author describes the
functioning of this act, situating the beginning in the impression that came from the sensitives in
the senses, and the part of the agent intellect in the formation of the knowledge.

Keywords: Philosophy. History of Medieval Philosophy. Thomas Aquinas (1225-1274).


Intellection. Senses.

A leitura e análise de Suma de Teologia (doravante citada ST) Iª, 84 permite ao


leitor atento uma apresentação bastante ampla das discussões que permeiam a obra
tomasiana. Dividida em oito artigos, o objetivo desta questão de ST é estabelecer que a
alma humana não só pode adquirir conhecimentos acerca dos sensíveis como deve,
necessariamente, voltar-se a eles para que consiga realizar sua operação própria, que é o
inteligir. Segundo o autor, esta operação é realizada pela ação de um intelecto agente e
por ocasião da própria natureza da alma, que é dar forma a um corpo.

1
Bacharel em Filosofia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP – Campus de Marília. Orientador:
Profº. Drº. Carlos Eduardo de Oliveira. andredb@bol.com.br.

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Nos artigos finais de ST Iª, 84, Tomás estabelecerá os motivos pelos quais se
deve considerar que, quanto ao conhecimento dos sensíveis que lhe são inferiores, a
alma conhece pelo intelecto utilizando os sentidos para deles retirar a matéria da causa
do conhecimento (TOMÁS, 2006, p. 115 grifo nosso)2, qual seja, a natureza das coisas
sensíveis que é seu próprio objeto (TOMÁS, 2006, p. 121)3. Isto pode ser verificado
pois a falta de um sentido acarreta a falta de ciência deste sentido, o que acaba por
impedir o juízo perfeito do intelecto (TOMÁS, 2006, p. 125)4.
Formular um juízo é, para o Aquinate, dizer que certa forma existe atualmente
em um sujeito, seja ela substancial ou acidental. Para tal, o verbo “ser” é utilizado, já
que o mesmo significa principalmente a atualidade, e acessoriamente se refere à
composição entre a forma e o sujeito. O juízo é a fórmula que exprime esta composição
(GILSON, 1944, pp. 62-63) 5.
De acordo com a declaração tomasiana, o ser humano conhece o mundo, no
estado da vida presente, através da comparação com os sensíveis, o que se verifica no
próprio estabelecimento da ciência natural, cujo fim é o que se apresenta de acordo com
o sentido, formulada através do juízo sobre as coisas naturais (TOMÁS, 2006, p. 125)6.
Os sentidos propiciam o primeiro hábito do intelecto que é a inteligência. É por
meio desta virtude que é disposto ao intelecto o conhecimento dos princípios. O que é
verdadeiro pode ser conhecido por dedução ou evidentemente por si, e no último caso,
desempenha o papel de princípio (GILSON, 1944, p. 365)7. No caso das verdades que

2
ST Iª, 84, 6, Respondeo.
3
ST Iª, 84, 7, Respondeo.
4
ST Iª, 84, 8, Respondeo.
5
GILSON, 1944, pp. 62-63: “Or, former un jugement, c’est signifier qu’une certaine forme, donc un
certain acte, existe actuellement dans un sujet. (…). Ce que désigne exactement la copule, c’est donc bien
encore une composition; non plus, cette fois, celle d’essence et d’existence, mais celle de toute forme
avec le sujet qu’elle determine; et comme cette composition est due à l’actualité de la forme, le verbe est,
qui signifie principalement l’actualité, est naturellement employé pour la designer. Voilà porquoi ce verbe
est le seul qui joue le rôle de copule. C’est parce que le verbe est signifie d’abord l’actualité, qu’il peut
signifier accessoirement, ou, comme dit saint Thomas, ‘consignifier’, la composition de toute forme avec
le sujet dont elle est l’acte. La formule où cette composition s’exprime est précisément la proposition, ou
jugement.” (grifo do autor).
6
ST Iª, 84, 8, Respondeo.
7
GILSON, 1944, p. 365: “Parmi les vertus intellectuelles, quatre sont d’une importanc prépondérant:
l’intelligence, la science, la sagesse et la prudence. Les trois premières sont purement intellectuelles et
s’ordonnent d’ailleurs sous la sagesse, comme les puissances inférieures de l’âme s’ordonnent sous l’âme
raisonnable. Le vrai peut être en effet ou évident et connu par soi, ou connu médiatement et conclu. En
tant qu’il est connu par soi et immédiatement , le vrai joue le rôle de principe. La connaissance immédiate
des principes au contact de l’expérience sensible est le premier habitus de l’intellect et sa première vertu;
c’est la première disposition permanente qu’il contracte et la première perfection dont il s’enrichit; on
appelle donc intelligence, la vertu qui habilite l’intellect à la connaissance des vérites immédiatement

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são deduzidas e concluídas, há um movimento da razão que pode apontar para
conclusões provisórias ou absolutas, recebendo o nome de ciência no primeiro caso e de
sabedoria no segundo. A ciência é o hábito das conclusões deduzidas dos princípios, e
depende da inteligência que é o hábito dos princípios. A sabedoria se coloca
hierarquicamente acima delas, julgando tanto a inteligência e seus princípios quanto a
ciência e suas deduções (GILSON, 1944, pp. 365-366)8.
O tema da aquisição da ciência da natureza pelo intelecto perpassa todo o corpo
de ST Iª, 84. É por sua própria ocorrência que se evidencia a função dos sentidos no que
concerne à intelecção das coisas sensíveis. Vejamos como isso ocorre:
No argumento em sentido contrário de ST Iª, 84, 1: “Se a alma conhece os
corpos pelo intelecto” (TOMÁS, 2006, p. 77)9, o autor afirma que a ciência está no
intelecto, e se o intelecto não conhece os corpos não há ciência da natureza, que trata do
corpo mutável (TOMÁS, 2006, p. 77)10. Esta ciência se caracteriza pelo conhecimento
do movimento e da matéria, e pelas explicações pelas causas motoras e materiais
(TOMÁS, 2006, p. 79)11, apreendidas pelas operações sensitivas.
O terceiro argumento inicial para um posicionamento negativo à pergunta sobre
a possibilidade de conhecimento dos corpos pela alma: “O intelecto diz respeito ao
necessário e que se apresenta do mesmo modo. Ora, os corpos são mutáveis e não se
apresentem sempre do mesmo modo. Portanto a alma não pode conhecer os corpos pelo
intelecto.” (TOMÁS, 2006, p. 77)12, é respondido com a proposta de não haver
incoerência na possibilidade de um conhecimento imutável (ciência) das coisas
mutáveis, já que toda mobilidade supõe algo imóvel (TOMÁS, 2006, p. 83)13.
Na pergunta de ST Iª, 84, 3, sobre o conhecimento das coisas materiais ocorrer

évidentes, ou principes.”
8
GILSON, 1944, pp. 365-366: “Si nous considérons, d’autre part, les vérités qui ne sont pas
immédiatement évidentes, mais déduits et conclues, elle ne dépendront plus de l’intellect, mais de la
raison. Or, la raison peut tendre à des conclusions qui soient derniéres dans un certain genre et
provisoirement, ou bien elle peut tendre à des conclusions qui soient absolument les dernières et le plus
hautes de toutes. Dans le premier cas, elle prend le nom science; dans le second, elle prend le nom de
sagesse (...). La science, habitus des conclusions que l’on déduit des principes, dépend de l’intelligence,
qui est l’habitus des principes. Et science aussi bien qu’intelligence dépendent l’une et l’autre de la
sagesse, qui les contiente et les domine, puisqu’elle juge de l’intelligenc et des ses principes comme de la
science et de ses conclusions (...).”
9
ST Iª, 84, 1.
10
ST Iª, 84, 1, Sed Contra.
11
ST Iª, 84, 1, Respondeo.
12
ST Iª, 84, 1, arg. ini. 3.
13
ST Iª, 84, 1, Ad 3m.

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na alma por espécies naturalmente introduzidas nela (TOMÁS, 2006, p. 89)14, a resposta
será obtida após a argumentação de que a falta de algum sentido acarreta a falta de
ciência apreendida por aquele sentido; a conclusão é a de que “(...) a alma não conhece
o que é corporal por espécies naturalmente introduzidas.” (TOMÁS, 2006, p. 93)15.
Verificamos que sua objeção se dá em relação à teoria nomeada pelo Aquinate
como de Platão de que “(...) o intelecto humano está naturalmente pleno de todas as
espécies inteligíveis, mas é impedido pela união do corpo, não podendo elevar-se ao
ato.” (TOMÁS, 2006, p. 93)16, que nos remete ao problema da união da alma com o
corpo. Para sua resolução, Tomás apóia-se na resposta ao sexto argumento de ST Iª, 76,
1 (TOMÁS, 2003, vol. II, p. 378)17, cujo postulado é o de ser da natureza da alma unir-
se ao corpo, e que portanto seria incoerente que uma outra operação que lhe é natural –
o inteligir – seja impedido por algo que é da sua natureza. Isto se verifica no caso do
cego de nascença, que não pode conhecer as cores, o que poderia não se dar se, na
alma, fossem naturalmente introduzidas as noções das coisas (TOMÁS, 2006, p. 93)18.
O terceiro argumento inicial em favor de uma resposta positiva: “Ora, alguém
mesmo ignorante, não tendo ciência adquirida, responde o verdadeiro a respeito de tudo,
contanto que seja interrogado ordenadamente, como se conta no Mênon de Platão19 a
respeito de alguém.” (TOMÁS, 2006, p. 91)20, será respondido com a afirmação de que
a ciência é causada na alma a partir de interrogações ordenadas que procedem de
princípios comuns e evidentes por si mesmos para o que é próprio (TOMÁS, 2006, p.
95)21:

Donde, ao responder o verdadeiro a respeito daquilo sobre o que é


interrogado em seguida, isto não é porque o conhecesse anteriormente,
mas porque o aprende pela primeira vez então. De fato, pouco
importa, se aquele que ensina procede de princípios comuns às
conclusões de modo expositivo ou interrogativo; em ambos os casos o
14
ST Iª, 84, 3.
15
ST Iª, 84, 3, Respondeo.
16
ST Iª, 84, 3, Respondeo.
17
ST, Iª, 76, 1, Ad 6m: “Quanto ao 6º, deve-se dizer que convém à alma, em si, estar unida ao corpo, como
ao corpo leve manter-se suspenso no ar. O corpo leve permanece leve ao separar-se de seu lugar natural,
guardando, contudo, a aptidão e a inclinação para voltar-se a ele. Da mesma forma, a alma humana
conserva seu ser quando é separada do corpo, mantendo uma aptidão, inclinação natural a se unir com
ele.”
18
ST Iª, 84, 3, Respondeo.
19
PLATÃO, Mênon, 82 a 87.
20
ST Iª, 84, 3, arg. ini. 3.
21
ST Iª, 84, 3, Ad 3m.

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ânimo do ouvinte é certificado do que é posterior pelo que é anterior.
(TOMÁS, 2006, p. 95)22.

A proposição de que a carência de um sentido acarreta a falta de ciência dos


sensíveis deste sentido é elencada novamente no argumento em sentido contrário de ST
Iª, 84, 4 (TOMÁS, 2006, p. 97)23. O questionamento: “Se as espécies inteligíveis
advêm à alma a partir de certas formas separadas.” (TOMÁS, 2006, p. 95).24, receberá
uma resposta negativa que aponta a necessidade da união da alma com o corpo por uma
questão operacional:

Ora, parece sobretudo que o corpo é necessário à alma intelectiva


para a operação própria dela, que é o inteligir, pois, de acordo com o
seu ser, não depende do corpo. Se, porém, a alma, de acordo com sua
natureza, fosse apta por nascença para receber as espécies inteligíveis
apenas por influência de certos princípios separados, e não as
recebesse dos sentidos, não teria precisão do corpo para inteligir.
Donde estaria unida ao corpo inutilmente. (TOMÁS, 2006, p. 101grifo
nosso)25.

Esta negativa terá como pressuposto novamente o argumento da impossibilidade


do conhecimento das cores pelo cego de nascença (TOMÁS, 2006, p. 103)26, e na
resposta ao primeiro argumento inicial de ST Iª, 84, 4, Tomás se apoiará em Dionísio pra
propor que a ciência é adquirida através da forma das coisas sensíveis, pela ocorrência
de uma participação nas espécies pelo intelecto:

Ao primeiro argumento cumpre, portanto, dizer que as espécies


inteligíveis, das quais participa o nosso intelecto, reduzem-se como à
causa primeira a um certo princípio inteligível por sua essência, isto é,
a Deus. Mas, procedem deste princípio pela mediação das formas das
coisas sensíveis e materiais, das quais recolhemos a ciência, como diz
Dionísio. (TOMÁS, 2006, p. 103)27.

Merece atenção o corpo da resposta de ST Iª, 84, 5, sobre a possibilidade do


conhecimento das coisas materiais se dar pelas razões eternas (TOMÁS, 2006, p. 103)28.

22
ST Iª, 84, 3, Ad 3m.
23
ST Iª, 84, 4, Sed Contra.
24
ST Iª, 84, 4
25
ST Iª, 84, 4, Respondeo.
26
ST Iª, 84, 4, Respondeo.
27
ST Iª, 84, 4, Ad 1m.
28
ST Iª, 84, 5.

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Neste artigo Tomás realizará uma leitura de Agostinho para postular dois modos pelas
quais se dá o conhecimento de algo. O primeiro é reservado aos bem-aventurados, que
“(...) vêem a Deus e tudo nele (...).” (TOMÁS, 2006, p. 107)29. O outro modo é o
apropriado ao estado da vida presente: “Deste modo, é necessário dizer que a alma
humana conhece tudo nas razões eternas, por cuja participação conhece tudo.”
(TOMÁS, 2006, p. 107)30. As declarações agostinianas serão interpretadas de forma a
reforçar uma posição em favor da necessidade da intermediação dos sensíveis para
termos ciência das coisas, além da luz intelectual presente na alma que garante a
participação nas razões eternas. É das coisas sensíveis que o ser humano, no estado da
vida presente, recebe as espécies inteligíveis (TOMÁS, 2006, p. 107)31:

Daí Agostinho dizer no livro IV Sobre a Trindade: “Por acaso, porque


os filósofos ensinam com argumentos certíssimos que tudo o que é
temporal se faz por razões eternas, puderam por isso ver nas próprias
razões ou concluir a partir delas quantos são os gêneros de animais e
quais os germes de cada um? Por ventura não buscaram tudo isso pela
descrição dos lugares e dos tempos?” (TOMÁS, 2006, p. 109)32.

Para uma resposta positiva à pergunta de ST Iª, 84, 6: “Se o conhecimento


intelectual é recebido das coisas sensíveis.” (TOMÁS, 2006, p. 109)33, o Aquinate
interpretará a proposição dita por ele como de Aristóteles de que o intelecto realiza uma
operação sem comunicação com o corpo. Esta operação é aquela pela qual o intelecto
agente intelige as imagens recebidas pelos sentidos, voltando-se a elas para abstraí-las.
Pode-se dizer, no caso das fantasias, que a operação intelectual é causada pelos sentidos,
que lhe fornecem a matéria da causa (TOMÁS, 2006, p. 115)34.
É pelo exposto acima que a pergunta de ST Iª, 84, 7 sobre a possibilidade de o
ato intelectivo se dar sem a volta do intelecto às fantasias (TOMÁS, 2006, p. 117)35, terá
sua resposta iniciada com a declaração de que é possível provar de duas maneiras que o
intelecto, no estado da vida presente, nada pode inteligir se não se voltar às fantasias

29
ST Iª, 84, 5, Respondeo.
30
ST Iª, 84, 5, Respondeo.
31
ST Iª, 84, 5, Respondeo.
32
ST Iª, 84, 5, Respondeo.
33
ST Iª, 84, 6.
34
ST Iª, 84, 7, Respondeo.
35
ST Iª, 84, 7.

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(TOMÁS, 2006, p. 119)36.
A primeira destas maneiras é descrita como aquela que aponta para a
necessidade do funcionamento dos sentidos para o ato intelectivo: “Donde se tornar
manifesto que, para que, o intelecto intelija, não apenas recebendo a ciência pela
primeira vez, mas também usando a ciência já adquirida, requer-se o ato da imaginação
e das outras capacidades.” (TOMÁS, 2006, p. 119)37.
O sentido e a imaginação são os responsáveis pela apreensão das coisas no
particular, única maneira de o intelecto se deter sobre a qüididade delas que é seu
objeto próprio de conhecimento. (TOMÁS, 2006, p. 121 grifo nosso).38.
O que resta à pergunta de ST Iª, 84, 8: “Se o juízo do intelecto é impedido pela
ligadura dos sentidos” (TOMÁS, 2006, p. 123)39, é uma resposta positiva. O autor se
apoiará em sua leitura de Aristóteles para propor que, se os sentidos forem ignorados,
não existe a possibilidade de conhecimento a respeito das coisas naturais: “Ora, diz o
Filósofo no livro III Sobre o Céu ‘assim como o fim da ciência operativa é a obra,
igualmente o fim da ciência natural é principalmente o que se apresenta de acordo com
o sentido.” (TOMÁS, 2006, p. 125)40. O problema que tal ocorrência geraria é o da
impossibilidade de reconhecimento do mundo, uma vez que: “(...) tudo o que
inteligimos no presente estado, é conhecido por nós por comparação com as coisas
sensíveis naturais.” (TOMÁS, 2006, p. 125)41. Este 'presente estado' ao qual se refere o
autor delimita o ser humano a sua atual condição de existência como um conjunto
composto de alma e corpo, é por isso que a resposta é iniciada com a lembrança de
como e qual é o objeto próprio do conhecimento humano: “(...) cumpre dizer que assim
como foi dito, o objeto próprio proporcionado a nosso intelecto é a natureza da coisa
sensível.” (TOMÁS, 2006, p. 125 grifo nosso)42.
Se os sentidos ficarem bloqueados por qualquer motivo que seja, o intelecto não
tem como se voltar a seu objeto próprio de conhecimento, o que impossibilita a
ocorrência de algum juízo perfeito de sua parte (TOMÁS, 2006, p. 125)43.

36
ST Iª, 84, 7, Respondeo.
37
ST Iª, 84, 7, Respondeo.
38
ST Iª, 84, 7, Respondeo.
39
ST Iª, 84, 8.
40
ST Iª, 84, 8, Respondeo.
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ST Iª, 84, 8, Respondeo.
42
ST Iª, 84, 8, Respondeo.
43
ST Iª, 84, 8, Respondeo.

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A resposta ao primeiro argumento, que postulava o não impedimento do juízo do
intelecto pelo bloqueio dos sentidos pela superioridade do primeiro sobre o segundo
(TOMÁS, 2006, p. 123)44, reafirma que é pelos sentidos que o intelecto recebe seus
elementos fundamentais, e que por isso o inteligir fica prejudicado pelo seu bloqueio.
(TOMÁS, 2006, p. 125)45.
Segundo Nascimento, a afirmação de que a qüididade ou natureza existente das
coisas corpóreas é o objeto próprio do intelecto humano apresenta alguns problemas:

Um primeiro surge de sua comparação com outra afirmação não


menos clara e reiterada de Tomás de Aquino: a de que o ente se
apresenta primeiro na concepção do intelecto. Esta última afirmação é
feita em um paralelismo entre enunciados e conceitos. Assim como
todos os enunciados supõem estruturalmente ou na ordem lógica um
primeiro enunciado, o princípio de contradição, condição de
possibilidade de todos os demais enunciados, também todos os outros
conceitos se reduzem a um primeiro – o ente. Sem o qual, inclusive o
primeiro enunciado é impossível, pois este supõe as noções de ente e
não ente, assim como o enunciado de que o todo é maior que as partes
supõe as noções de todo e de parte. (NASCIMENTO, 2006, pp. 33-
34).

A afirmação que se refere ao objeto próprio do intelecto humano pode ser


considerada como uma determinação da afirmação sobre o ente. A proporção entre
potência de conhecimento e objeto de conhecimento, observada pelo Aquinate: “A razão
disso é que a potência cognoscitiva se proporciona ao cognoscível.” (TOMÁS, 2006, p.
121)46, tem em vista o próprio objeto, que é aquilo que entra em contato primeiro com o
intelecto. (NASCIMENTO, 2006, p. 34). Isto permite a conclusão de que o intelecto
conhece primeiro as naturezas das coisas materiais, mas chega a um conhecimento
negativo sobre elas:

(...) é o indivíduo humano quem conhece por seu intelecto ativo e


recipiente, não porque se confronte com um intelecto transcendente ou
se volte para ele, mas porque se confronta com as imagens ou
fantasias que os sentidos lhe proporcionam. O acesso às realidades
imateriais transcendentes tem de passar necessariamente pelo trato
com o mundo material; trata-se de um conhecimento
fundamentalmente negativo: pode-se conhecer que são, mas não o que

44
ST Iª, 84, 8, arg. ini. 1.
45
ST Iª, 84, 8, Ad 1m.
46
ST Iª, 84, 7, Respondeo.

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são e sim apenas o que não são. (NASCIMENTO, 2006, p. 39 grifo
nosso).

Os elementos fundamentais que permitem a intelecção são as naturezas das


coisas sensíveis; iniciando por elas, é possível propor a ocorrência de formas imateriais.
Isto se dá a partir de um movimento causal do intelecto a partir dos efeitos, por remoção
ou ultrapassamento (NASCIMENTO, 2006, pp. 34-35). Para Tomás, o acesso ao
conhecimento se dá por um juízo negativo, a partir das noções advindas dos sensíveis,
que permite apenas a elaboração de definições descritivas (NASCIMENTO, 2006, pp.
35-36).
Pelo exposto, verificamos o porque – segundo o Aquinate – da necessidade de o
intelecto voltar-se ao dados recebidos pela operações sensitivas: Esta é a única maneira
possível de o ser humano, por sua condição no estado da vida presente, estabelecer
parâmetros que lhe permitem definir o mundo.

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