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Anamnese

teoria do saber e busca pela verdade

Introdução

Anamnese é um conceito filosófico milenar desenvolvido por Pla-


tão.

Neste texto buscarei traçar uma brevíssima evolução do conceito e


suas diferentes aplicações à história e prática do pensamento reflexivo/fi-
losófico a fim de demonstrar sua importância para a busca do conheci-
mento da verdade.

1. O conceito de Anamnese

1.1 Seu uso na medicina

Anamnese é um termo utilizado na área da saúde que se refere ao


processo de coleta de informações e história clínica de um paciente. É uma
técnica importante para o diagnóstico e tratamento de doenças, pois per-
mite ao profissional de saúde conhecer a história médica do paciente, seus
antecedentes familiares, hábitos de vida, sintomas atuais e passados, den-
tre outros aspectos relevantes para a avaliação da saúde e do bem-estar do
paciente.

Durante a anamnese, o profissional de saúde geralmente faz per-


guntas específicas para obter informações sobre a saúde do tratado. Essas
perguntas podem incluir informações sobre o histórico de doenças, aler-
gias, medicações em uso, sintomas, hábitos alimentares, atividade física,
tabagismo, consumo de álcool e outras informações relevantes para a ava-
liação do estado de saúde do paciente. Ela é uma técnica importante para
que o profissional de saúde possa realizar um diagnóstico preciso e indicar
o tratamento mais adequado para cada caso.
1.2 Anamnese em Filosofia

Atribui-se origem do termo anamnese a Platão. Em filosofia, a


anamnese refere-se a uma teoria proposta por Platão sobre a natureza do
conhecimento humano. Segundo Platão, o conhecimento não é adquirido
através da experiência empírica, mas sim através da rememoração de co-
nhecimentos pré-existentes na alma humana.

Na teoria da anamnésica, Platão argumenta que a alma humana já


possui conhecimentos universais e imutáveis antes mesmo do nascimento,
e que esses conhecimentos são relembrados ao longo da vida através da ex-
periência e da razão. Assim, para Platão, a verdadeira educação consiste em
ajudar a pessoa a recordar esses conhecimentos pré-existentes em sua
alma, em vez de apenas transmitir novas informações ou habilidades.

2. Anamnese em Platão

A teoria da anamnese de Platão é apresentada em diálogos, como o


Mênon e o Fedro, onde ele argumenta que a alma humana é eterna e
imortal, e que o conhecimento verdadeiro é inato, não sendo aprendido ou
adquirido por meio de estímulos externos, mas sim pela recordação daquilo
que a alma já sabe.

A teoria da anamnese de Platão é uma das suas mais importantes


contribuições para a Filosofia e, em particular, para a teoria do conheci-
mento. Para Platão, a alma humana é imortal e possui uma natureza divina,
pois é capaz de contemplar os princípios eternos e imutáveis que estão
acima do mundo sensível. Esses princípios são as ideias, que existem inde-
pendentemente das coisas materiais e são acessíveis apenas através da ra-
zão.

Segundo Platão, a alma humana é capaz de conhecer as ideias por-


que ela já as conhece de alguma forma antes mesmo de nascer no mundo
sensível. Na teoria da anamnese, Platão argumenta que a alma humana é
pré-existente e que ela adquiriu conhecimentos universais e imutáveis em
uma existência anterior, antes de ser aprisionada no corpo humano.

Ao nascer, a alma esquece esses conhecimentos, mas eles não de-


saparecem completamente. Em vez disso, eles ficam latentes na alma e po-
dem ser relembrados por meio do processo de anamnese, que consiste em
trazer à consciência aquilo que a alma já sabe, mas esqueceu.

Platão acreditava que a anamnese podia ser alcançada por meio do


diálogo filosófico e da contemplação das ideias. Por meio do diálogo, o filó-
sofo poderia ajudar o interlocutor a recordar o que já sabia, ao fazer per-
guntas e conduzir a reflexão. Por meio da contemplação das ideias, o filó-
sofo poderia estimular a alma a recordar as verdades eternas e imutáveis
que ela já conhecia antes de nascer.

Assim, para Platão, o conhecimento verdadeiro não é adquirido por


meio da experiência empírica, mas sim por meio da recordação das verda-
des universais e imutáveis que estão latentes na alma. A anamnese, por-
tanto, é uma técnica fundamental para a filosofia platônica e para a teoria
do conhecimento em geral, pois permite ao indivíduo transcender o mundo
sensível e alcançar a verdadeira natureza da realidade.

Embora seja muito pouco discutido este aspecto está no cerne da


psicanálise freudiana. Afinal, o que é a escuta freudiana senão um processo
de anamnese?

Na escuta freudiana, também conhecida como escuta analítica, o


analista ouve atentamente o que o paciente está dizendo, sem julgamento
ou interrupção, para compreender suas experiências e emoções internas.
Embora haja pouca intervenção do analista, sendo essas, na maioria das
vezes, uma maiêutica socrática, isto é: fazem-se perguntas para ajudar o
paciente a descobrir suas próprias crenças, ideias e conhecimentos, achar
suas dúvidas e reconhecer seus anseios, angustias e afins, num processo em
que ocorre uma espécie de historiografia interior a fim de que o analisado
— seja enquanto analisando ou enquanto analisante — encontre por si
mesmo as respostas para suas questões.

Embora se possa considerar, dentro da perspectiva do diálogo pla-


tônico, o diálogo entre o psicanalista e o paciente escasso, não se pode negar
que essa técnica promove um profundo diálogo interior e uma verdadeira
história das ideias por parte do sujeito que, durante o tratamento, investiga
a própria alma. Isto é: um processo anamnésico.

3. Anamnese em Aristóteles

Aristóteles é um dos pioneiros da Teoria do Conhecimento ou Epis-


temologia. Em suas investigações, o estagirita desenvolve uma discussão
sobre o método dialético para a investigação filosófica. Ele se debruça sobre
a natureza dos argumentos dialéticos e como eles diferem dos argumentos
científicos ou demonstrativos, alegando que os argumentos dialéticos são
baseados em opiniões comuns, ao invés de princípios universais e necessá-
rios como os argumentos científicos. Ele faz isso nos Analíticos Posteri-
ores, no “Livro II”, e no capítulo 8 desse livro a anamnese aparece, reto-
mando Platão, durante a reflexão sobre o “paradoxo de Mênon”. Mas é na
Metafísica que Aristóteles faz uma breve referência à teoria anamnésica,
a qual chama de “recordação” ou “evocação”.
Pessoalmente, filio-me ao ponto de vista aristotélico, embora per-
ceba que ambos, Platão e Aristóteles, estão no caminho certo — e se com-
plementam.

De acordo com Aristóteles, a evocação, isto é a anamnese, ocorre


quando a alma é levada a recordar algo que já experimentou anteriormente,
mas que havia esquecido. Isso pode ser feito por meio da associação de
ideias, onde a lembrança de uma coisa leva à lembrança de outra, ou por
meio do uso de pistas ou sugestões externas que ajudam a reativar a lem-
brança adormecida. (Note que aqui há uma “semente amnésica" da Psica-
nálise, já que a livre associação é parte da estrutura psicanalítica)
No entanto, diferentemente de Platão, Aristóteles não acredita que
a alma humana possua conhecimento prévio inato das coisas universais,
nem que esse conhecimento seja acessado por meio da evocação. Para Aris-
tóteles, o conhecimento das coisas é alcançado por meio da experiência sen-
sorial e do processo de abstração e generalização, onde a mente humana é
capaz de extrair conceitos universais a partir das coisas particulares que
encontra na experiência.

4. Anamnese em Eric Voegelin

Eric Voegelin foi um filósofo político do século XX que se interes-


sava pela história das ideias políticas e religiosas. Em sua obra, Voegelin
retomou o conceito de anamnese de Platão e o aplicou à análise da experi-
ência política.

Para Voegelin, a anamnese é um processo de recordação da ordem


divina que governa o mundo. Essa ordem divina é a base do conhecimento
humano, e o processo de anamnese permite que o indivíduo acesse essa
ordem e compreenda sua posição na hierarquia cósmica.

Na obra de Voegelin, a anamnese é um tema recorrente, e ele usa o


conceito para explicar a natureza da experiência política e da história hu-
mana. Para ele, a história humana é caracterizada por um movimento de
afastamento e retorno à ordem divina. A humanidade se afasta da ordem
divina quando busca estabelecer ordens políticas e sociais baseadas em ide-
ologias ou projetos humanos. Essas ordens são ilusórias e levam à desor-
dem e à violência.

No entanto, a história humana também é marcada por momentos


de retorno à ordem divina. Esses momentos ocorrem quando os indivíduos
se voltam para a experiência religiosa e buscam compreender a natureza da
ordem divina que governa o mundo. A anamnese é o processo que permite
esse retorno à ordem divina, e é através dela que a humanidade pode en-
contrar a verdadeira ordem política e social.
Para Voegelin, a anamnese é uma experiência que transcende o in-
divíduo e o coloca em contato com a ordem divina. Essa experiência é difícil
de ser descrita ou explicada, pois ela envolve a transcendência da condição
humana. No entanto, para o filósofo, a anamnese é fundamental para a
compreensão da natureza da política e da história, e é por meio dela que a
humanidade pode alcançar a verdadeira ordem política e social.

5. Anamnese em Bergson

Henri Bergson utilizou o conceito de anamnese para descrever a


relação entre a memória e a percepção do mundo. Em sua obra Matéria e
Memória, Bergson argumenta que a memória não é uma simples repro-
dução do passado, mas uma recriação constante do passado no presente. A
anamnese, nesse contexto, é a experiência de se lembrar de algo que ocor-
reu no passado, mas que é trazido de volta à consciência no presente.

Para Bergson, a anamnese é uma das fontes da intuição, que é a


capacidade de captar a realidade de forma imediata e direta, sem a media-
ção do pensamento conceitual. Ele argumenta que a intuição é uma forma
de acesso à realidade que é mais profunda do que a percepção sensorial e
que nos permite captar a essência das coisas.

A anamnese, para Bergson, não é apenas uma questão de lembrar


o passado, mas também de recriá-lo no presente. Ele argumenta que a me-
mória não é uma simples armazenagem de dados, mas um processo criativo
que nos permite construir uma imagem da realidade a partir de nossas ex-
periências passadas.

Chamo atenção ao fato de que essa última abordagem é problemá-


tica e rica para uma polêmica filosófica frutífera, mas não me aterei a ela
para que não se perca o foco desta argumentação.

Assim, a anamnese em Bergson é um processo dinâmico e criativo


que nos permite compreender melhor a nós mesmos e ao mundo ao nosso
redor. É um processo que nos permite transcender a percepção sensorial e
acessar uma dimensão mais profunda da realidade.

6. Anamnese em Mário Ferreira dos Santos

Mário Ferreira dos Santos apresenta uma visão da filosofia como


uma busca pelo conhecimento verdadeiro e como um processo de recorda-
ção, isto é, anamnese, das verdades eternas que já estão presentes em nossa
alma, mas que foram obscurecidas pelo mundo material e pelas contingên-
cias da vida cotidiana.

Segundo o Mário, a anamnese é um processo de recordação que


ocorre em três níveis:

No nível da sensibilidade, a anamnese é a recordação das per-


cepções sensoriais que tivemos durante nossas experiências no
mundo material.

No nível da inteligência, a anamnese é a recordação dos concei-


tos abstratos e universais que usamos para compreender o mundo.

No nível do espírito, a anamnese é a recordação das verdades


eternas e universais que estão presentes em nossa alma, mas que
foram obscurecidas pelas contingências da vida cotidiana.

Dessa forma, para Mário Ferreira dos Santos, a anamnese é um


processo de purificação da alma, que nos permite acessar as verdades eter-
nas e universais que estão presentes em nós. A filosofia, nesse sentido, é
uma busca pelo conhecimento que nos liberta das limitações da vida coti-
diana e nos permite acessar as verdades eternas que estão presentes em
nossa alma.
7. Refazer o caminho para descobrir a resposta

Geralmente quando alguém se esquece de algo, uma das estratégias


mais comuns é refazer o caminho, o passo a passo a fim de recordar por
onde esteve e o que fez a visando encontrar aquilo que perdeu ou lembrar
aquilo de que se esqueceu. Mães são boas em ensinar isso aos filhos.

Com base nos pressupostos apresentados até aqui, a anamnese é


um processo de investigação que busca recuperar conhecimentos prévios
que se encontram na memória. Para a filosofia, essa técnica é essencial, pois
permite a reflexão sobre conceitos e ideias que já estiveram presentes na
mente humana e, portanto, são considerados universais e atemporais.

Como visto, para Platão, a Anamnese é uma ferramenta fundamen-


tal para a busca do conhecimento verdadeiro. Segundo ele, a alma humana
possui um conhecimento inato que deve ser recuperado através da recor-
dação. Na obra Mênon, Platão apresenta a história de um escravo que, por
meio da anamnese, consegue resolver um problema matemático que nunca
havia sido ensinado a ele. Platão argumenta que o conhecimento que o es-
cravo recuperou estava presente em sua alma, mas havia sido esquecido.
Essa ideia de que o conhecimento verdadeiro é inato e deve ser recuperado
através da anamnese é um dos pilares da filosofia platônica.

O pensamento platônico reverbera mais de 2 mil anos no tempo e


em Mário Ferreira dos Santos a anamnese passa a ser uma ferramenta para
a investigação dos arquétipos. Segundo ele, a Anamnese permite que o fi-
lósofo acesse os arquétipos, que são padrões universais que estão presentes
em todas as culturas e épocas. Assim, por meio dela, anamnese, o filósofo
pode recuperar esses padrões e, assim, compreender as estruturas funda-
mentais da realidade. Em sua obra Filosofia Concreta, o Mário Ferreira
afirma que a anamnese é uma forma de investigação dos arquétipos, per-
mitindo que o filósofo compreenda a realidade em sua totalidade.

Se a anamnese é uma ferramenta fundamental para a busca do co-


nhecimento verdadeiro, ela pode ser aplicada para ajudar as pessoas a
compreenderem melhor a si mesmas e aos seus valores pessoais, já que
muitas pessoas podem sentir que estão vivendo em desacordo com seus va-
lores pessoais, mas não conseguem identificar qual é o problema. A reflexão
anamnésica pode ajuda-las a recuperar conhecimentos prévios que já pos-
suíam e, assim, compreender melhor o que realmente é importante para
elas.

Quando em face do andamento da sociedade atual alguém se sente


está vivendo em um mundo desordenado e sem sentido, esse recurso con-
tribui para recuperar sua conexão com a ordem cósmica e, assim, compre-
ender melhor seu lugar no mundo. Alguém que sinta que sua vida não tem
propósito pode recuperar conhecimentos prévios que já possuía sobre o que
realmente é importante para ela. E alguém que possa se ver sem um propó-
sito claro na vida é capaz de recuperar conhecimentos prévios sobre arqué-
tipos universais como o herói e sua jornada, e, assim, compreender melhor
qual é o seu caminho na vida. Há valores eternos que nos quais podemos
nos sustentar em busca da nossa realidade.

8. Anamnese como ponte de conhecimento

Esse processo não se reduz à sua aparente abstração subjetiva. O


conhecimento sobre a Revolução Francesa não é inato, como não é inato o
conhecimento sobre o conceito kantiano da coisa em si ou o conceito ni-
etzscheano de vontade de potência.

Conhecer tais coisas, como conhecer gramática requer estudo. Es-


tudo paciente, lento, calmo, duradouro e profundo. Requer ver e rever, vi-
sitar e revisitar.

É possível que se aprenda regras gramaticais, mas o conhecimento


gramatical profundo depende de compreender, até onde seja possível, a
história da formulação de suas regras. Não se estuda linguística sem que se
recorra ao Crátilo, de Platão — datado do século IV a.C. —, ao Rig Veda
— texto sagrado, sem autoria, escrito cerca de um milênio a.C —, ou ao
Ashtadhyayi, escrito pelo gramático Pāṇini — também datado do século
IV a.C. —, ou o Natyashastra, escrito pelo poeta Bharata Muni — escrito
por volta do século III a.C.

Não é possível fazer uma “arqueologia do saber” ou uma história


das ideias sem que se recorra a um retorno ao passado, à origem daquele
objeto: fato, fenômeno, ideia etc.

As ideias se constroem por associações livres e dirigidas, por ade-


são e rejeição, por exemplo e contraexemplo. Não se compreende a verdade
sem que faça um movimento anamnésico em direção ao conhecimento.

Não se poderá compreender a verdade do niilismo de Nietzsche


apenas em Nietzsche. Antes, se faz necessário reconhecer a trajetória do
pensamento nietzscheano: a aquilo tudo a que ele se refere, ao que adere e
ao que busca refutar. Caso contrário, corre-se o risco de submeter-se a su-
perfícies de pensamento — o que transforma o saber filosófico em um
dogma ideológico.

Conclusão

Embora não se possa descartar as diversas, variadas formas de


busca pelo conhecimento este breve intercurso buscou apresentar esse va-
lioso conceito filosófico que, penso, deva ser essencial a todo e qualquer ser
humano pensante, mas muito especialmente aos que se dedicam à Filoso-
fia. “Conhece-te a ti mesmo”, disse Sócrates.

Alçado a adágio na atualidade, esse princípio socrático ensina que


para alcançar a sabedoria e a verdadeira compreensão do mundo é neces-
sário, primeiro, se conhecer bem, compreender suas próprias forças, fra-
quezas, crenças e valores. Aqui nasce a base da reflexão platônica que re-
sultara na construção da ideia e conceito de anamnese, que, mais de dois
milênios depois, juntamente com sua dialética, direta ou indiretamente
será apropriada por Sigmund Freud para — ao lado de outros princípios —
o desenvolvimento de sua terapia para que seus pacientes conhecem-se a si
mesmos a fim de resolverem suas questões mais problemáticas.
Atualizando o conceito à busca pelo conhecimento formal e/ou fi-
losófico, anamnese opera como uma investigação que busca encontrar a
fonte mais antiga de certa coisa conhecida, de certo conhecimento e traçar
um percurso tanto cronológico, quanto hierárquico dos conjuntos de sabe-
res e/ou ideias a fim de que se possa fazer as mais variadas e complexas
reflexões a partir de processo de pensamento sistematizado.

Alcançado tal conhecimento profundo, este deverá fazer-se parte


do espírito do que o alcança, produzindo transformação interior manifesta
na realidade concreta — resultando em conhecimento concreto. Só assim o
estudante/filósofo poderá se encontrar com a verdade.

Elton Carvalhal Santana

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