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Grupo de Estudos

Bioética – Canal Resenha Forense


Prof. Marcelo Pichioli da Silveira

Grupo de Estudos em Bioética

Material examinado:
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo:
Edipro, 2012.

Canal RESENHA FORENSE

MARCELO PICHIOLI DA SILVEIRA


Professor. Mestrando em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Graduado em
Direito pela Universidade Estadual de Maringá/PR. Especialista em Direito Processual Civil pela
Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Especialista em Direito Administrativo pela
Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito
Processual (ABDPro). Parecerista da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista
Eletrônica de Direito Processual (REDP). Editor, escritor e produtor do Resenha Forense.

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Bioética – Canal Resenha Forense
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Como todos os outros materiais do Grupo de Estudos em Bioética do Canal Resenha


Forense, este material foi também examinado em versão audiovisual nesta playlist aqui.

Obra examinada
Enquanto estudamos A Alma do Embrião Humano, de LUIZ CARLOS LODI DA CRUZ
(ver aqui), é de bom alvitre encararmos a Metafísica de ARISTÓTELES, imprescindível para
um estudo do embrião segundo a premissa tomista.

Livro I, ponto 1
As primeiras linhas da Metafísica já sinalizam a proposta gnosiológica de
ARISTÓTELES: “todos os seres humanos naturalmente desejam o conhecimento. Isso é
indicado pelo apreço que experimentamos pelos sentidos, pois independentemente do uso
destes nós os estimamos por si mesmos, e mais do que todos os outros, o sentido da visão”1.
No paradigma filosófico grego, a intelectualidade revela-se como potência, vocacionada ao
vislumbrar da verdade (conceito de ser ao lado do bem e da beleza). Sendo assim, é seguro
afirmar que a inteligência é atributo destinado ao captar do ser como verdade. E a verdade
é um juízo de ajustamento do intelecto ao ser2.
Diferentemente da modernidade kantiana, p. ex., a gnosiologia de ARISTÓTELES
capta conceitos como moral, justiça ou norma como coisas verdadeiras3. Para dar um exemplo
do direito: o intérprete que lê x no trecho de lei que diz y afrontará a realidade e, assim, a
própria verdade. Assim como PLATÃO, ARISTÓTELES definiu o intelecto “como faculdade de
pensar”. Aquele mencionava que o intelecto confere limites, ordem e medida às coisas; este
declara entender por intelecto “‘aquilo graças a que a alma raciocina e compreende’ (Dean.,
III, 4, 429a 23), significado genérico que já fora dado por Parmênides (Fr. 16, Diels) e por
Anaxágoras (Fr. 12, Diels)”. É importante frisar que “todos aqueles que, como Anaxágoras,

1
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 41
2
No seu Comentário à Metafísica, TOMÁS DE AQUINO aponta: “cada coisa é desejável para que se uma ao seu
princípio, pois é nisso que consiste a perfeição de cada coisa. Por isso, o movimento circular é perfeitíssimo,
como se prova no livro VIII da Física, porque o fim se une ao princípio” (SANTO TOMÁS DE AQUINO.
Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial,
2016, p. 32). Os “avanços” da Inteligência Artificial, I. A., estão traindo esses pressupostos, pois o fim está
desligado do princípio – quebra da perfeita circularidade.
3
“Todos os homens por natureza tendem ao saber. — Esta é uma cifra verdadeiramente emblemática do
pensamento grego em geral, além de ser também do pensamento aristotélico. É a raiz da qual nasceu e na
qual se funda a filosofia (particularmente a metafísica)” (REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório,
texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São
Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 5).
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Platão e Aristóteles atribuíram ao I. a função de ordenar o universo não o entenderam como


atividade ou técnica específica, mas no significado mais genérico de atividade pensante,
capaz de escolher, coordenar e subordinar”4.
Aliás, lê-se da Suma de SANTO TOMÁS DE AQUINO, a respeito, o seguinte: “o nome
de intelecto implica um conhecimento íntimo; pois, inteligir significa quase ler
interiormente. E isto aparecerá claro a quem considerar na diferença entre intelecto e
sentido”. Outrossim, “o conhecimento sensível tem por objeto as qualidades exteriores
sensíveis; ao contrário, o conhecimento intelectual penetra até a essência das coisas,
porquanto o seu objeto é a quididade das mesmas como diz Aristóteles [III De Na.]”. Sendo
assim, “começando o conhecimento do homem pelos sentidos, como pelo que é quase
exterior, é manifesto que, quanto mais forte for a luz do intelecto, tanto mais profunda será
a sua penetração. Ora, o lume do nosso intelecto, sendo de virtude finita, tem um grau
limitado de penetração. Por isso o homem necessita de um lume sobrenatural, para chegar
a certos conhecimentos que não pode alcançar pelo só lume natural. E esse lume
sobrenatural dado ao homem chama-se dom do intelecto”5-6.
Toda esta construção filosófico-gnosiológica deixa em xeque as propostas
contemporâneas no sentido de querer atribuir “personalidade jurídica” aos animais. Como
já afirmei anteriormente, “é difícil, na perspectiva fenomenológica, defender a atribuição de
personalidade jurídica para animais: só o ser humano age finalisticamente dirigido a algo; só o ser
humano é voltado aos fins. O direito só encontra razão de ser enquanto estrutura de significação
humana; só a estrutura inteligível humana pode captar comandos do dever ser. Não faria sentido, e.
g., impor pena ao animal que avança sobre o homem para matá-lo: o animal não age
com finalidades fenomênico-humanas. Age como animal: não pode empreender sentidos,
valores e bens albergados pelo ordenamento jurídico. Não há na cabra, no leão ou no
cachorro o dolo, nem a culpa: animais não se comportam com a voluntariedade humana”7.
Vimos em TOMÁS DE AQUINO que inteligir é ler o ser em seu interior: animais não poderão,
jamais, “ler a norma dentro” – nem a título de injusto culposo (um cachorro jamais “saberá”
ter “agido imprudentemente”, pois ele não é dotado de potência intelectiva para apreender o
que é [e o que não é] uma “conduta” que afronte um dever objetivo de cuidado), nem a título
de injusto doloso, pois a vontade também é potência da alma, embora dirigida ao bem (outro

4
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi, com revisão de Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 571.
5
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v. 3 (IIa IIae), q. 8, a. 2. Trad. Alexandre Correia.
Campinas: Ecclesiae, 2016, p. 80.
6
“O intelecto é o hábito dos primeiros princípios da demonstração, a ciência é o hábito da conclusão tirada
dos princípios inferiores e a sabedoria é o hábito que versa sobre as primeiras causas” (SANTO TOMÁS DE
AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide
Editorial, 2016, p. 46).
7
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O Direito como Experiência, de Miguel Reale. Empório do Direito,
Florianópolis, out. 2017. Disponível em: https://goo.gl/3NWbTF. Acesso em 03 nov. 2017.
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atributo do ser) – aqui pode-se ler uma potência invertida: um querer dirigido ao mal (que
não deixa de ser atributo de ser) (um criminoso – ser humano, naturalmente –, num delito
doloso, acaba inteligindo toda a esfera objetiva do tipo penal)8. Mais tarde, XAVIER ZUBIRI
reformou as sentenças tomistas. Como notou CRISTHIAN ALMONACID DÍAS, “si consideramos
esta propuesta zubiriana, visualizamos una superación de la conocida sentencia tomista: nil est in
intellectu quod prius non fuerit in sensu, que se sucede a la idea aristotélica de tabula rasa.
Y esto porque toda intelección es al mismo tiempo un sentir. El sentir la realidad es formalmente anterior
(no en términos cronológicos, sino en términos de primacía) y se constituye en posibilidad de la actividad
intelectiva que concibe, juzga, abstrae. Esto porque para Zubiri no existe una intelección por sí sola
separada de los sentidos. Toda actividad intelectiva es originariamente posibilitada por la estructura
biológica de los sentidos. De allí que no se separen inteligir y sentir, ni tampoco haya una primera
actividad sensitiva y una posterior actividad intelectiva, sino una sola actividad intelectiva sentiente.
No es una unificación al modo de una síntesis kantiana, sino de una unidad que involucra un solo acto:
aprehensión de realidad. Esta propuesta, a nuestro juicio, es la efectiva y definitiva superación del
dualismo sentir e inteligir, que ha atravesado la historia de la filosofía y que se aplica tanto en el
racionalismo como en el empirismo”9.
Vejamos, aliás, o que ARISTÓTELES diz sobre animais: “os outros animais [além do
ser humano] vivem com base em impressões e lembranças, contando apenas com uma
modesta parcela de experiência: a raça humana, entretanto, vive também com base na arte
e no raciocínio. É a partir da memória que os seres humanos adquirem experiência, porque
as numerosas lembranças de uma mesma coisa acabam por produzir o efeito de uma única
experiência”10-11. Depois, ARISTÓTELES cita PÓLO, um sofista que aparece no diálogo
platônico intitulado Górgias, que dissera a SÓCRATES: “a experiência produz arte, mas a
inexperiência, acaso” [Górgias, 448c]. Pois bem: o direito é ordem da conduta humana, sento
tal premissa válida em marcos teóricos até variados. No positivismo jurídico, HANS KELSEN,

8
“Nos homens, a prudência é segundo a deliberação da razão, segundo a qual eles devem agir. É por isso que
se diz no livro VI da Ética, que a prudência é a reta razão das ações. Contudo, diz-se providência no animal o
juízo que ele faz sobre uma ação a ser realizada, mas não a partir da deliberação da razão, senão a partir de
algum instinto natural. Por isso, a providência do animal é o juízo ou a apreciação natural acerca daquilo que
ele deve buscar como conveniente e de evitar como nocivo, como o cordeiro que segue a mãe e foge do
lobo” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e
Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 36).
9
DÍAZ ALMONACID, Cristhian. Sentir e inteligir em Zubiri. Dos momentos, uma aprehensión de realidad.
Revista Académica UCMaule, n.º 41, dez. 2011, p. 26.
10
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 41.
11
“Nos homens, abaixo da memória [...] encontra-se a experiência [...]. A experiência provém da coleção
comparativa das recepções de muitos singulares na memória. Essa capacidade de coleção é própria do homem
e pertence à potência cogitativa, que se denomina razão particular, que reúne e compara a intenção das
intenções individuais, como a razão universal reúne e compara as intenções universais” (SANTO TOMÁS
DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas:
Vide Editorial, 2016, p. 38).
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e. g., dissera que “as normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana”12. Entre
nós, MIGUEL REALE reconhecia que só o ser humano pode agir e se dirigir finalisticamente: a
ação e a omissão só pertencem ao homem, sendo impossível cogitar-se, então, de uma ação
ou de uma omissão derivada de um animal ou de um raio 13. Por isso que penalistas de estirpe
finalista depositaram tanta preocupação com a concepção de uma estrutura dogmática hábil
a abranger a ação humana como fato distinto de mera causalidade, de mero evento natural14.
O jurista-dogmático-penal sempre buscará avaliar se o agente, tendo o conhecimento causal
e o domínio do fato circunscrito a certos limites, dirigiu mesmo um comportamento que se
completou com a realização de um fim. Há uma antecipação espiritual do objetivo aliada a
uma eleição dos meios de ação necessários para o atuar da ação no mundo real15.
Voltemos, porém, ao texto da Metafísica. ARISTÓTELES procede uma diferenciação
entre a arte, de um lado, e a experiência, de outro. São juízos diferentes entre si, mas não é
possível afirmar que há uma “hierarquia” entre uma e outra sabedoria 16: “pareceria que, para
propósitos práticos, a experiência não é, de modo algum, inferior à arte; de fato, vemos
homens da experiência obtendo mais êxito do que aqueles que dispõem de teoria sem
experiência”. Na verdade, a experiência se liga ao “conhecimento dos particulares”,
enquanto “a arte o é dos universais”. Um médico procede com ações de seu ofício: os efeitos
daí decorrentes “dizem respeito, todos, ao particular”, já que o médico não cura o ser
humano, mas um ser humano. Por isso, “se alguém dispõe de teoria sem experiência
[lembrando: sabedoria do particular], e conhece o universal [lembrando: universal é algo da arte],
mas não conhece o particular [que vem da experiência] nele contido, com frequência falhará
em seu tratamento, uma vez que é o particular que tem que ser tratado”17-18.

12
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p.
33.
13
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 378.
14
JESCHECK, Hans-Heinrich; WEIGEND, Thomas. Tratado de Derecho Penal, Parte General. Granada:
Comares. p. 226.
15
Cf. WELZEL, Hans. Naturalismus und Weltphilosophieimstrafrecht. Mannheim, 1935.
16
Foi minha interpretação inicial. Aparentemente, outra foi a leitura de TOMÁS DE AQUINO: “divide [o
filósofo] a primeira parte em duas. Primeira, mostra a geração da arte e da experiência. Segunda, mostra a
proeminência de uma sobre a outra” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles,
v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 38-39).
17
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 42.
18
“Nesse capítulo Aristóteles quer demonstrar que todos os homens entendem por sapiência (σοφία) a forma mais elevada
de saber e que esta é o conhecimento das causas e dos princípios. [...]. — A experiência (assim como a sensação)
refere-se sempre ao particular; a arte e a ciência referem-se ao universal, ao porquê e à causa das coisas. — Do ponto
de vista da utilidade prática, a experiência pode ter mais sucesso do que a ciência, mas, do ponto de vista do saber, ela
é muito inferior: a experiência (assim como a sensação) limita-se aos dados de fato, enquanto a arte e a ciência alcançam
o conhecimento do porquê e da causa dos fatos. [...]. — Ademais, a experiência não é comunicável nem ensinável aos
outros, mas sim a arte e a ciência (justamente porque são conhecimentos de causas e princípios)” (REALE, Giovanni.
Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários e comentário. Trad.
Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 5).
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Mas há uma diferença importante entre a arte (que abrange algo universal, mais
abrangente) e a experiência (que é mais particular, mais pontual)19- 20: aqueles que conhecem a
arte, conhecem a causa, diferentemente daqueles que lograram “só” a experiência, os quais
“conhecem o fato, mas não o porquê; os artistas, contudo, conhecem o porquê e a causa” 21-
22. O filósofo ainda avisa que a diferença entre arte e a ciência e as demais atividades mentais

afins foi indicada em Ética a Nicômaco, mais precisamente Livro VI23.


Daí se pode compreender, talvez com mais precisão, o significado de metafísica:
“a razão da presente discussão deve-se ao fato de supor-se geralmente que aquilo que é
chamado de sabedoria diz respeito às causas primeiras e aos princípios, de maneira que,
conforme já foi indicado, julga-se o homem da experiência mais sábio do que os meros
detentores de qualquer faculdade sensorial, o artista mais do que o homem da experiência,
o mestre mais do que o artesão; e as ciências especulativas mais ligadas ao saber do que as
produtivas. Assim, fica claro que a sabedoria é o conhecimento de certos princípios e
causas”24. Note-se, ainda:
• que o termo “metafísica”, no original, seria algo como sofian (nota do tradutor
EDSON BINI); e
• que ARISTÓTELES considerava as ciências especulativas (theoretikai) mais
importantes, sendo aquelas que “não têm e prescindem de uma finalidade que
as transcende”, aí inseridas a física, a matemática e a metafísica (sofia, no

19
“A arte se ocupa dos universais e a experiência dos singulares [...]. Aqueles que conhecem a causa e o
porquê de algo ser feito possuem mais conhecimentos e são mais sábios do que aqueles que ignoram a causa
e só sabem o porquê do fazer. Ora, os homens de experiência conhecem o porquê do fazer, mas desconhecem
a causa do porquê de algo ser feito. Os homens de arte, de fato, conhecem a causa e o porquê de algo ser
feito, e não só o porquê de fazer. Portanto, são mais conhecedores e mais sábios os homens de arte do que
os homens de experiência” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad.
Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 40-41).
20
“O conceito grego de ‘arte’ e relações entre arte e experiência. — ‘Arte’ (Τέχνη) é algo muito próximo da ciência,
enquanto implica, justamente, conhecimento dos universais. Na linguagem moderna a palavra ‘arte’ não tem
mais o antigo sentido e, portanto, existe o risco de equívocos” (REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio
introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine.
5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 8-9).
21
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 42.
22
“Aqueles que possuem a experiência são mais eficazes na operação do que aqueles que possuem o
conhecimento da noção universal da arte, mas que não possuem a experiência” (SANTO TOMÁS DE
AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide
Editorial, 2016, p. 40).
23
“A diferença aí estabelecida entre ciência e arte é a seguinte: ciência é conhecimento demonstrativo do que
é necessário e eterno; a arte é, ao contrário, ‘disposição ou hábito produtivo acompanhado de razão’, tendo
como objeto não o necessário e o eterno, mas ‘aquelas coisas que podem ser diferentes do que são’” (REALE,
Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários e
comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 11).
24
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 43-44.
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original, além da teologia); as ciências produtivas (poietikon)25, que


“resultam num produto que as transcende, como a medicina, a construção de
embarcações, a tecelagem, a carpintaria e as artes em geral”; e ainda a chamada
ciência prática (práxis), “que envolve a ação humana, individual ou coletiva”
(economia, ética e política) (nota do tradutor EDSON BINI).

Enfim: metafísica, para ARISTÓTELES, seria a “filosofia primeira”, a “ciência que


estamos procurando”. Por isso, a metafísica implica “uma enciclopédia das ciências, um
inventário completo e exaustivo de todas as ciências, em suas relações de coordenação e
subordinação, nas tarefas e nos limites atribuídos a cada uma, de modo definitivo”26.

Livro I, ponto 2
Diante disso, há a necessidade de “considerarmos quais são as causas e princípios
cujo conhecimento é sabedoria”27. Neste momento, ARISTÓTELES tem a pretensão de exibir
quais, afinal, são as causas e os princípios que ele considera (até porque no ponto antecedente28

25
Certamente, aqui ARISTÓTELES está a pensar na causa eficiente. As causas serão estudadas
posteriormente. Na filosofia aristotélica, fala-se em três causas: a causa formal; a causa material e a
causa eficiente. A tríade forma-matéria-eficiência, em ARISTÓTELES, é bem explicada por MÁRIO FERREIRA
DO SANTOS. Ele dá o exemplo do vaso de barro. Num vaso de barro, o “de barro” é a causa material
[a matéria é o barro]. A forma “de vaso” é a causa formal [a forma é de vaso]. Finalmente, a ação humana que
o modelou é a causa eficiente [o barro se tornando um vaso] (ver SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise.
São Paulo: É Realizações, 2017). ARISTÓTELES não menosprezava a quididade, a natureza real das coisas. Essa
questão descambou em espíritos esclarecidos como o de MIGUEL REALE: adaptando ARISTÓTELES ao texto
de REALE, podemos vislumbrar a tríade aristotélica causal em ser/ontologia [causa material], em dever
ser/deontologia [causa formal] e em ser enquanto dever ser/axiologia [causa eficiente]. De qualquer
maneira, veja-se interpretação simular: “Lo stesso utilizzo da parte di Aristotele di kinetikon e poietikon, traducibili
in italiano con principio motore (kinetikon) ed efficiente (poietikon) indicano che Aristotele sta pensando ad una causa
efficiente, attiva e in grado di produrre il movimento (Metaph., Lambda, 6, 1071b11). L’uso di queste espressioni indica
che Aristotele non sta pensando a una causa qualsiasi di movimento, e in particolare non a quella finale visto che una di
esse è usata da Aristotele in altri luoghi per distinguere la causa efficiente da quella finale dicendo esplicitamente che la
causa finale non può essere poietikon (De gen. et corr. I, 7, 324b13-14)” (MONACO, Davide. La causalità del
motore immobile in Aristotele, metaphysica, libro lambda. Su alcune recenti interpretazioni. Bollettino della
Società Filosofica Italiana, Nuova Serie, n.º 209, mai./ago. 2013, p. 27).
26
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi, com revisão de Ivone Castilho
Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 661.
27
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 44.
28
Sobre o ponto 1, aliás, recomenda-se a leitura de CECÍLIO, Guilherme da Costa Assunção. O proêmio da
Metafísica de Aristóteles: uma interpretação de Metaph. A1. Archai, n.º 23, mai./ago. 2018, p. 15-44.
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ele mostrou que a sabedoria seria ciência capaz de versar sobre as causas) 29-30. A percepção
sensorial, por si só, nada tem a ver com a sabedoria (afinal, ela é comum a todos). Um sábio
ordena as coisas, e “em todo ramo do conhecimento um indivíduo é mais sábio
proporcionalmente à sua maior informação precisa e à sua melhor capacidade de expor as
causas”31. Ora, o sábio conhece o máximo das possibilidades, embora não logre o
conhecimento de todos os singulares. Supor tal capacidade seria um equívoco, já que é
impossível apreender, com o intelecto, toda a singularidade (infinita que é)32.
O a priori da metafísica: “o conhecimento de todas as coisas tem,
necessariamente, que pertencer àquele que, no mais elevado grau, possui conhecimento do
universal, porque ele conhece, num certo sentido, todos os particulares compreendidos no
universal. Estas coisas, quais sejam, as mais universais, são talvez as de mais difícil apreensão
para o ser humano, porque são as mais distanciadas dos sentidos. Que se acresça que as
ciências mais exatas são as que concernem aos primeiros princípios, pois as que estão
baseadas em poucos princípios são mais exatas do que aquelas que incluem princípios
adicionais; por exemplo, a aritmética é mais exata que a geometria. Além disso, a ciência
que investiga causas é mais instrutiva do que a ciência que não o faz [...]. Ademais, o
entendimento e o conhecimento que são desejáveis por si mesmos são mais atingíveis no
conhecimento daquilo que é mais cognoscível, uma vez que aquele que deseja o
conhecimento por si mesmo desejará maximamente o mais perfeito conhecimento, e este é
o conhecimento do mais cognoscível, e as causas que são as mais cognoscíveis são primeiros
princípios e causas, pois é através destes e a partir destes que outras coisas passam a ser
conhecidas”33. Sendo assim, “o termo que estamos investigando enquadra-se na mesma
ciência, a qual deve especular sobre primeiros princípios e causas, uma vez que o bem ou
seja, o fim, é uma das causas”34. Como se nota, ARISTÓTELES reserva ao sábio a capacidade
do conhecimento de coisas difíceis (= virtude do intelecto). É sábio aquele que logra mais
certeza das coisas em cognição, razão pela qual ele pode ensinar35. Objetivamente, a ciência

29
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 48.
30
“Estabelecido que a sapiência [...] é ciência de certas causas e de certos princípios, Aristóteles quer agora precisar
quais são essas causas e esses princípios, e conclui que estes são as causas e os princípios primeiros ou supremos”
(REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários
e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 12).
31
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 44.
32
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 49.
33
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 45.
34
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 45.
35
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 49.
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será de “mais sapiência” conforme seja mais acentuada a capacidade de seu ensino; e uma
ciência é tanto mais ensinável quanto mais indagável as causas 36.
A filosofia não é uma “ciência produtiva”. O filósofo tem atitude de maravilhamento:
a) primeiramente diante de perplexidades óbvias; e b) depois, progressivamente, diante de
questões inerentes às grandes matérias, a exemplo da origem do universo. O filósofo,
destarte, prova que ama o conhecimento pelo simples fato de não visar qualquer utilidade
prática. Exemplo do raciocínio é dado por SANTO TOMÁS DE AQUINO: “ora, as artes
mecânicas são subalternas, pois são executadas pelas operações manuais e seguem as ordens
dos artífices superiores, aos quais, acima, denominamos arquitetos e sábios”. Logo, “as
ciências subalternas são ordenadas pelas superiores”, e “as subalternas orientam-se ao fim da
arte superior, como a arte da equitação ao fim militar 37. Em síntese: “quanto mais algumas
ciências naturalmente são primeiras, tanto mais são certas: evidencia-se assim pois as ciências
que existem por adição de outra são menos exatas do que aquelas que se compõem de menos
princípios, como a aritmética é mais exata do que a geometria, pois o que há nesta é por
adição do que há na aritmética [...]. O universal compreende poucos princípios em ato, mas
muitos em potência. E tanto mais certa é uma ciência quanto menos requer princípios em
ato para considerar o seu sujeito. Assim, as ciências práticas são mais incertas, pois precisam
considerar muitas circunstâncias das operações singulares” 38. É de se notar, desta vez com
apoio em GIOVANNI REALE, “particularmente o fato de que o termo universal não tem o
significado de universal abstrato; os princípios e as causas primeiras, de que Aristóteles fala
passim nesse livro, não são meras abstrações mentais: eles indicam os fundamentos, as
condições, as razões metafísicas de todas as coisas, e são ditos ‘universais’, antes ‘universais
supremos’, justamente enquanto explicam todas as coisas. Portanto: as causas primeiras são
universais, porque causas de todas as coisas”39. O exemplo da geometria e da matemática seria,
assim, bastante claro: “a matemática tem a ver com os números e com os princípios do
número, a geometria acrescenta a estes o princípio da extensão (cf. Bonitz, Comm., p. 50)”40.
Antes de avançarmos, é importante deixar claro que, segundo MÁRIO FERREIRA
DOS SANTOS, não houve delimitação clara do conceito da atividade metafísica. A definição

36
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 14.
37
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 49-50.
38
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 51-52.
39
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 13-14.
40
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 14.
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tomista (que, por ora, nos apetece), seria a seguinte: “1) é transfísica, pois aborda, estuda e
examina entes não físicos; 2) em sua actividade deve partir das realidades sensíveis”41.

Livro I, ponto 3
Neste terceiro trecho do Livro I da Metafísica, ARISTÓTELES aduz que, nesta quadra,
está evidente que temos a necessidade de lograr um conhecimento das causas primeiras,
“porque é quando pensamos compreender sua causa primeira que reivindicamos conhecer
cada coisa particular”42.
Há quatro tipos reconhecidos de causa:
• o primeiro é a essência ou a natureza essencial da coisa (“uma vez que o
‘porquê’ de uma coisa é, em última instância, reduzível à sua fórmula, e o
‘porquê’ em última instância é uma causa e princípio”);
• o segundo é a matéria ou substrato;
• o terceiro é o princípio do movimento; e
• o quarto é a causa que se opõe a isso, nomeadamente a finalidade ou “bem” (já que
isso é o fim de todo processo gerador e motriz)43.

Em resumo, são tipos reconhecidos de causa: 1.º) a essência; 2.º) a matéria; 3.º) o
princípio do movimento; e 4.º) o bem44. O filósofo diz que isto foi investigado na obra Física.
SANTO TOMÁS DE AQUINO nota que aí se arrolam as quatro causas aristotélicas. A
primeira é a causa formal, própria da substância da coisa (conhecer a coisa em si), sendo
“manifesto que a forma seja uma causa, pois à pergunta que diz ‘por que razão algo é’
respondemos reduzindo a resposta à causa formal”. A segunda é a causa material. A
terceira é a causa eficiente (= princípio do movimento45). A quarta e última é a causa

41
SANTOS, Mário Ferreira dos. Teoria do conhecimento. Gnoseologia e criteriologia. 3.ª ed. Enciclopédia de
Ciências Filosóficas e Sociais, v. IV. São Paulo: Livraria e Editora Logos, 1958, p. 21
42
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 47.
43
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 47.
44
“Considerando esto, se puede presentar la siguiente lista de las distintas expresiones que el Estagirita emplea para
presentar los distintos tipos de causa: (1) ηὴν ὕλην (la materia), ηὸ ἐξ οὗ γίγνεηαί ηι ἐνςπάπσονηορ (aquello inmanente
desde lo que se genera algo), ηὸ ὑποκείμενον (el sustrato), ηὸ ηίνων ὄνηων ἀνάγκη ηοῦη΄ εἶναι (las cosas que, cuando
son, esto ha de ser) (2) ηὸ κινῆζαν (el motor, lo que mueve), ἡ ἀπσὴ ηῆρ μεηαβολῆρ (el principio del cambio), ἡ ἀπσὴ
ηῆρ κινήζεωρ (el principio del movimiento) (3) ηὸ εἶδορ (la forma), ηὸ παπάδειγμα (el modelo), ηὸ ηί ἦν εἶναι (lo qué
era ser), ἡ οὐζία (la esencia) (4) ηὸ οὗ ἕνεκα (el ‘aquello para lo cual’), ηὸ ηέλορ (el fin), ηἀγαθόν (lo bueno)”
(ALEJANDRO MARZOCCA, Pablo. ¿Caballo o caballeidad? Una interpretación antisténica de “lo que era
ser”. XVI Congreso Nacional de Filosofía AFRA, mar. 2013, p. 2).
45
GIOVANNI REALE diz que a causa eficiente também pode ser chamada causa motora (REALE, Giovanni.
Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários e comentário. Trad.
Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 18).
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final, “que se opõe à causa eficiente, como a oposição que há entre o princípio e o fim. Ora,
o movimento começa pela causa eficiente e termina com a causa final. E essa é, pois, aquela
causa pela qual algo é feito e que é o bem de qualquer natureza” (grifei)46. De se notar que
a causa final: i) “é o fim do movimento, por isso se opõe ao princípio do movimento” (que
é a causa eficiente); ii) o bem “é o que todos desejam”, de maneira que, “ao expor o modo
como a causa final se opõe à eficiente, diz que é o fim da geração e do movimento, dos quais
é princípio a causa eficiente”47. As causas já foram examinadas por ARISTÓTELES na obra
Física48. A respeito, MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS expressou, no Dicionário, o seguinte:

Aristóteles parte da totalidade do mundo na ordem como ela se


apresenta e procura os elementos que condicionem a sua existência.
Como Platão já tinha distinguido entre uma causa (aitia), que determina
o caráter qüididativo de um ser e a causa que faz com que alguma coisa
exista, não é de admirar que Aristóteles também chegasse a estabelecer
uma pluralidade de causas, que combinam a sua doutrina sobre os
problemas de matéria e forma, e de potência e ato. As quatro causas que
Aristóteles enumera como razões constitutivas de cada ser são: 1) a causa
formal (ê ousia,to ti einai, eidos, logos, paradeigma); 2) a causa material (ê
hylê, to hipokeimenon, oû gignestai); 3) a causa eficiente (ê arkhê tes kineseôs);
4) a causa final (to ou eneka, t'agathon, to telos). A tradução das quatro
causas aristotélicas se baseia nos respectivos termos latinos da escolástica
(causa formalis, materialis, efficiens, finalis), que interpretam perfeitamente
o sentido das respectivas expressões gregas49.

Avança ARISTÓTELES, então, como num compêndio daqueles filósofos


antecedentes que trabalharam com alguma investigação da realidade (pensando sobre a
verdade), até porque “claramente também eles reconheceram certos princípios e causas” 50.
De início, ARISTÓTELES afirma que a maioria desses primeiros filósofos concebeu somente
os princípios materiais para todas as coisas. Depois, arrola TALES DE MILETO (para o qual o
princípio permanente é a água); ANAXÍMENES DE MILETO e DIÓGENES DE APOLÔNIA (para
os quais o ar antecede a água); HIPASO DE METAPONTO e HERÁCLITO DE ÉFESO (que
destacaram o fogo); e ANAXÁGORAS DE CLAZOMENA (que sustentou um número infinito de
primeiros princípios). A lista tem outros detalhes acrescentados pelo próprio ARISTÓTELES,

46
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 68.
47
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 68.
48
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 18.
49
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 264-265.
50
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 47.
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mas nada que nos interesse neste estudo51. De qualquer maneira, esses dados incutiriam a
ideia segundo a qual “a única causa é a do tipo classificado como ‘material’”52. A posição
aristotélica, aqui, é de clara reprovação53. É que “esses pensadores caíram na conta de que esse
princípio não era suficiente para explicar o devir das coisas, e assim foram obrigados pela própria
realidade a buscar um princípio ulterior: o princípio movente”54.
Mas reflete ARISTÓTELES: “à medida em que os homens prosseguiram por esse
caminho [aquele dos filósofos acima, pautados pelo tipo “material” da causa primeira] as próprias
circunstâncias do caso os conduziram adiante e os impeliram a avançar em suas buscas;
porque se é realmente verdadeiro que toda geração e destruição procede de um elemento,
ou mesmo de mais de um, por que sucede assim e qual é a causa? Não é, certamente, o
próprio substrato que produz sua própria mudança. Quero dizer, por exemplo, que nem a
madeira nem o bronze são responsáveis pela transformação de si mesmos: a madeira não
fabrica um leito, nem o bronze uma estátua, mas é alguma coisa mais, que é a causa da
transformação. Ora, investigar isso significa investigar o outro tipo de causa: o princípio do
movimento, como deveríamos dizer”55.
Criticando, assim, os filósofos anteriores, ARISTÓTELES crava que nenhum deles
logrou “qualquer conceito desse tipo de causa” (suponho que esteja, ainda, se referindo ao
tipo n.º 3, i. e., princípio do movimento). E talvez PARMÊNIDES mereça uma nota de exceção,
embora não pareça haver maior entusiasmo por parte de ARISTÓTELES56. Por sinal, em
PARMÊNIDES DE ELEIA a única realidade é o ser (ingênito, imperecível, imóvel, completo,
perfeito e único) – o ser é, o não ser não é. O grande princípio de PARMÊNIDES “é o próprio
princípio da verdade”. Seria o seguinte: “o ser é e não pode não ser; o não-ser é e não pode ser de
modo nenhum”57. O estudo da ontologia, por PARMÊNIDES, é interessante para a divagação
filosófica sobre Deus. Como escreveu MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, no contexto de sua
Filosofia da Crise58, “no ser infinito, não há crisis, porque nele não há limites, pois estes são
fronteiras que separam os seres, e aquele, fonte e sustentáculo de todos os outros, não tem

51
Para aprofundar, cf. CRUZ, Luiz Carlos Lordi da. A alma do embrião humano: a questão da animação e o
fundamento ontológico da dignidade de pessoa do embrião. Anápolis: Múltipla, 2013, p. 19-29; REALE,
Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo Storniolo. São
Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 19 em diante; SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de
Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 69-77.
52
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 48-49.
53
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 69.
54
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 18.
55
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 49.
56
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 50.
57
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 33.
58
Ver nossa resenha a respeito dessa obra aqui: https://goo.gl/CFyqPU.
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fronteiras, mas apenas perfil, na linguagem tão poética e tão clara de Parmênides, porque
não há outro que a ele se oponha”59. Mas essa filosofia tem um problema: “reduziu tudo à
identidade, virtualizando a heterogeneidade a ponto de negá-la, por excesso de atualização
sincrética”. Por isso, a filosofia de PARMÊNIDES é uma filosofia de crise (não da crise)60.
Depois desses pensadores, com a descoberta das causas (insuficientes para explicar
a geração do mundo real), houve um novo impulso “da própria verdade para que se
investigasse o próximo primeiro princípio, isso porque presumivelmente carece de
naturalidade que o fogo ou a terra, ou qualquer outro desses elementos, faça coisas
existentes manifestarem excelência e beleza [...]. Tampouco era satisfatório atribuir uma
matéria de tal importância à espontaneidade e à sorte” 61. Enfim: para ARISTÓTELES, “das
opiniões desses filósofos, alguém só conhece uma causa, que está contida sob a espécie da
causa material”62. E, “de fato, causa da beleza e da bondade das coisas certamente não pode ser um
dos quatro elementos [fogo, ar, água, terra]”63.
Convém registrar, ainda, que ARISTÓTELES também tem a propensão de admitir
“também uma matéria inteligível, sobretudo para explicar os entes matemáticos (por
influência dos Platônicos)”64.

Livro I, ponto 4
ARISTÓTELES avança a obra com análise e crítica de pensadores passados (um
verdadeiro diálogo com muitos deles, chegando até PLATÃO). Na verdade, pode-se afirmar
que, neste capítulo, ele só “continua o exame da doutrina dos Pré-socráticos”65. SANTO TOMÁS DE
AQUINO avisa: ARISTÓTELES demonstrou o que pensa sobre a causa material. Agora, passa
a opinar sobre a causa eficiente, i. e., sobre o princípio do movimento66.
Em tese, diz ARISTÓTELES, alguém poderia afirmar que HESÍODO DE ASCRA teria
sido o primeiro a abordar essa questão, pois escrevera:

59
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 38.
60
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 75.
61
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 50.
62
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 77.
63
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 18.
64
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 20.
65
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 30.
66
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 81.
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Antes de todas as coisas, foi o Caos criado,


e depois a Terra de amplos seios...
e o Amor, o mais notável entre todos os imortais (Teogonia, 116-20)67-68.

Além dele, também poderia supor-se que PARMÊNIDES teria proposto o amor e o
desejo como um primeiro princípio das coisas, pois consta do Fragmento 13 de Diels: “Ela
concebeu o Amor de todos os deuses”. EDSON BINI, o tradutor que seguimos, traz dois avisos aqui.
O primeiro é o de que “amor” e “desejo” estão no sentido sexual dentro da linguagem grega
(erota e epithymian – έρωτα η επιθυμίαν). O segundo é o de que PARMÊNIDES estaria se
referindo a Afrodite (no trecho “Ela concebeu...”), i. e., “deusa do amor sexual, mãe de Eros
(Amor)”69-70.
Mas o que isso tem a ver com a provocação de ARISTÓTELES? Aparentemente, são
só exemplos am passam do filósofo. A ideia é mostrar que, em suma, alguém poderia sugerir
que deve haver no mundo algo (= causa) para mover as coisas, agregando-as.
Um terceiro nome dado por ARISTÓTELES (ainda sem ordenação, pois ele deixa claro
que “a questão de dispor esses pensadores numa ordem de prioridade pode ser tratada
posteriormente”71) é EMPÉDOCLES, cuja linguagem obscura revelaria o bem e o mal como
primeiros princípios, mais precisamente no sentido de que a causa das coisas boas é o bem
e de que as causas das coisas más é o mal72. EMPÉDOCLES, “notando no universo também a
existência de feiura e males, além da beleza e da ordem, introduziu, para explicar esses contrários, dois

67
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 51. Avisa o tradutor,
EDSON BINI, que “a citação de Aristóteles não é rigorosamente exata” (nota de rodapé n.º 31).
68
No original, lê-se o seguinte:
ἦ τοι μὲν πρώτιστα Χάος γένετ᾽, αὐτὰρ ἔπειτα
Γαῖ᾽ εὐρύστερνος, πάντων ἕδος ἀσφαλὲς αἰεὶ
ἀθανάτων, οἳ ἔχουσι κάρη νιφόεντος Ὀλύμπου,
Τάρταρά τ᾽ ἠερόεντα μυχῷ χθονὸς εὐρυοδείης,
ἠδ᾽ Ἔρος, ὃς κάλλιστος ἐν ἀθανάτοισι θεοῖσι.
Que pode ser lido assim:
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável
sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais (HESÍODO. Teogonia: a origem dos deuses. Trad. com notas de Jaa
Torrano. 3.ª ed. São Paulo: Ed. Iluminuras, 2007).
69
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 51, notas de rodapé n.º
28 e n.º 29.
70
A respeito, com profundidade e num campo psicanalítico, cf. CARUSO, Francesca. Melancholia, otium,
acedia: tre moti dell’animo nella vita sociale del mondo antico. Università Della Calabria, Dipartimento di Studi
Umanistici. Tesi de Laurea, 2013-2014.
71
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 51.
72
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 51.
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princípios: a Amizade e a Discórdia”73. TOMÁS DE AQUINO, criticando, apontou: “ora, nem o


fogo, nem terra, nem todos os corpos foram, pois, suficientes causas da boa disposição ou
estado que algumas coisas já têm e que outros adquirem por alguma produção [...]. Por isso,
não é razoável que fogo, terra ou similares sejam a causa da referida boa disposição das
coisas, nem era razoável que pensassem isso, nem considerassem que a boa disposição foi
por acaso, autômata, isto é, ocorrência casual, cuja causalidade fosse alterada apenas por
acaso, embora alguns pensadores dissessem isso, como Empédocles e os que afirmaram só a
causa material, como é evidente no livro II da Física” [...]. Por isso, foi necessário encontrar,
além dos quatro elementos, outro princípio da boa disposição da coisas” 74.
Todos esses pensadores – HESÍODO, PARMÊNIDES e EMPÉDOCLES – “parecem ter
apreendido duas das causas que definidos no tratado sobre a natureza [a Física]: a causa
material e o princípio do movimento, mas isso apenas de maneira vaga e obscura” 75. A
mesma crítica é dirigida a ANAXÁGORAS, cuja inteligência acabou servindo de “dispositivo
artificial para a produção de ordem”, arrastando “para todo lugar em que se encontra perdido
para explicar algum efeito necessário. Mas em todas as demais situações atribui a causa dos
eventos a qualquer coisa, menos à inteligência”76. O único relativamente poupado mesmo é
EMPÉDOCLES, porque ele, diferentemente dos antecessores, foi “o primeiro a introduzir a
divisão dessa causa, fazendo do princípio do movimento não apenas uma força, mas duas
forças contrárias e distintas”77-78. Em suma: “todos os filósofos até agora examinados, conclui

73
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 30.
74
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 83.
75
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 52.
76
Crítica de ARISTÓTELES à ANAXÁGORAS, segundo TOMÁS DE AQUINO: “Anaxágoras se serviu do
intelecto para a geração do mundo e pareceu falar artificialmente, e não duvidou em colocar o próprio
intelecto, caso necessitasse, como causa da geração do mundo, não se importando de reduzir a geração do
mundo a uma outra coisa distinta da coisa, que fosse em si tão distinta e não composta, como é o intelecto.
Mas, para todas as outras coisas designam as causas, que não é o intelecto, como para a natureza das coisas
especiais” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e
Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 90).
77
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 52.
78
Crítica de ARISTÓTELES à EMPÉDOCLES, segundo TOMÁS DE AQUINO: “Diz [...], primeiro, que
Empédocles por limitar à natureza das coisas particulares, valeu-se de mais causas que Anaxágoras, além dos
quatro elementos, o amor e ódio, porque a geração e a corrupção dos singulares são por essas causas e não
pelo intelecto, como disse Anaxágoras. Mas Empédocles errou duplamente. Primeiro, porque não propôs
causas suficientes dessa natureza. Usou como mais dignas e evidentes as que não são evidentes, como se diz
no livro I da Física. Assim, supunha como evidente que o ódio era dominante nos elementos por um tempo
determinado, e o amor por outro período de tempo. [...]. Segundo, porque falhou no que investigou, pois
não é encontrado o que ele professou, ou seja, o que supôs como princípio: que o amor une e o ódio
desagrega, porque, muitas vezes, precisa ocorrer o contrário, o amor separar, dividir e o ódio unir, juntar.
Quando o universo se dissolve pelo ódio em suas partes, como na geração do mundo, então todas as partes
do fogo se reúnem e são conjugadas umas com as outras e, de modo semelhante, cada uma das partes dos
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Aristóteles, entreviram duas causas: a material e a motora (só em pequena parte parte a final), ou
de modo inadequado (como Anaxágoras) ou contraditório (como Empédocles)”79. Ou ainda, nas
palavras de TOMÁS DE AQUINO:

Aqui [Aristóteles] expõe a opinião dos que disseram haver contrários desse
tipo e mostra, a seguir, o raciocínio deles. Ora, vê-se na natureza que há
coisas contrárias ao bem, pois na natureza não se encontra só o que é
ordenado e belo, mas, às vezes, o desordenado e feio. Ora, não se pode
dizer que os males não têm causa ou que são por acaso, pois há mais
males que bens, e mais coisas feias, em absoluto, que belas. Ora, as coisas
que são por acaso, sem causa definida, não ocorrem em muitos, mas em
poucos. Daí que se as causas dos contrários são contrárias, preciso que
não se coloque só o amor como causa das coisas, do qual provêm as
ordens e os bens, mas que se coloque também o ódio, do qual provêm
as desordens, as feiuras e os males. Assim, cada mal e bem teria suas
próprias causas.
[...].
Diz, então, que aqueles filósofos, ou seja, Anaxágoras e Empédocles,
ambos concordam ao proporem duas causas, dentre as quatro que são
definidas na Física, a saber, a material e a causa motora. Mas as trataram
de modo obscuro e não manifesto, porque não explicaram por que
puseram tais causas e a razão de reduzirem o gênero delas a essas80.

Depois, LEUCIPO e DEMÓCRITO (discípulo do primeiro) sustentaram que os


elementos materiais seriam o cheio e o vazio (diferentemente dos antecessores, que falavam
em terra, ar, água etc.) – doutrina dos átomos81. O cheio seria o ser; o vazio seria o não ser –
“literalmente o que é e o que não é”, como avisa o tradutor EDSON BINI82. Entre os “extremos”
(minha colocação), LEUCIPO e DEMÓCRITO “identificam o cheio ou sólido com o ser e o
vazio ou raro, com o não ser (daí sustentarem que o que não é não é menos real do que o que
é, porque o vazio é tão real quanto o corpo). Afirmam ser essas as causas materiais das coisas.
E tal como os que fazem da substância subjacente uma unidade geradora de todas as outras

outros elementos, unem umas com as outras. O ódio não só divide as partes do fogo em partes do ar, mas
também reúne as do fogo. Mas, se os elementos se unem pelo amor, que ocorre na dissolução do universo,
então é necessário que as partes do fogo se separem entre si e, do mesmo modo, reciprocamente se separem
as partes dos singulares” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad.
Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 90-91).
79
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 30-31.
80
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 88-89.
81
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 31.
82
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 52-53, nota de rodapé
n.º 36.
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coisas através de suas modificações, supondo o raro e o denso como primeiros princípios
dessas modificações, do mesmo modo esses pensadores sustentam que as diferenças [nos
elementos] são as causas de tudo o mais”83. Essas diferenças seriam: i) a figura; ii) o arranjo; e
iii) a posição, “porque afirmam que o que é difere somente em ritmo, intercontato e giro; desses,
ritmo significa figura, intercontato significa arranjo e giro, posição”84. Exemplo: “A difere
de N em figura, NA de AN pelo arranjo, de H pela posição”85. Sucede que, quanto ao
movimento, “de onde e como é gerado nas coisas”, tais pensadores “casualmente
ignoraram esse ponto, muito à maneira como os outros pensadores agiram”86. O atomismo,
portanto, “teria surgido da exigência de salvar a experiência (geração e corrupção,
movimento, multiplicidade) e, ao mesmo tempo, a instância de fundo do eleatismo. — O
ser ou o pleno de que fala o nosso texto são, obviamente, os átomos; enquanto o não-ser e o
vazio são os intervalos entre os átomos. As diferenças dos átomos com linguagem técnica eram
chamadas por Leucipo e por Demócrito proporção [...], contato [...] e direção [...]. Aristóteles
traduz essa terminologia na sua linguagem, respectivamente por forma ou figura [...], ordem
[...] e posição [...]; tais ‘diferenças’ são interpretadas por ele como o análogo das afecções do
elemento originário dos mais antigos pensadores e, antes, como ele diz, como análogo do raro
e denso (de Anaxímenes e Diógenes). Na verdade, estes são algo muito mais complexo, e a
comparação de Aristóteles é tanto menos adequada, na medida em que raro e denso são
qualidades que, menos do que as outras, são aplicáveis aos átomos (que são um compacto
ser-pleno). O pensamento de conjunto é, contudo, claro”87.
Observação: na passagem supra, “A difere de N em figura, NA de AN pelo
arranjo, de H pela posição”, há necessidade de algum aviso. Segundo GIOVANNI REALE,
“os códices têm Z e N”, mas autores como WILAMOWITZ e DIELS preferem as letras H e N,
pois “a antiga grafia de Z era feita com a letra H”, i. e., “estendida” 88. No comentário de SANTO
TOMÁS DE AQUINO, os tradutores PAULO FAITANIN e BERNARDO VEIGA preferiram “seguir
a proposta de tradução de Moerbeke que verteu H por ‘n’, para manter coerência com os
comentários do Aquinate nesta lição”89. Tal opção resultou no seguinte:

Prova-se, pelo exemplo das letras gregas, que diferem umas das outras
pela figura, e também, na nossa diferem umas das outras: ‘a’ difere de

83
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 53.
84
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 53.
85
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 53.
86
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 53.
87
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 33.
88
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 33.
89
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 93. Nota de rodapé n.º 119.
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‘n’, pela figura; ‘an’ de ‘na’ pela ordem, pois uma letra é ordenada antes
da outra. E uma difere da outra pela posição, como ‘z’ de ‘n’, como
vemos que as semivogais postas depois de consoantes líquidas não podem
ser postas antes das mudas na mesma sílaba. Portanto, assim como da
tríplice diversidade do uso das mesmas letras nas cartas se produzem
tragédias e comédias, assim, também, dos mesmos corpos indivisíveis se
produzem, de diversos modos, as diversas espécies de coisas90.

Livro I, ponto 5
ARISTÓTELES então diz que os filósofos pitagóricos somaram esforços pelas
matemáticas, sendo os primeiros a lograrem o desenvolvimento de tais ciências. Passaram a
estudá-las ao ponto de acreditarem que os princípios da matemática seriam os princípios de
tudo. Sendo os números – até naturalmente – os primeiros desses princípios, os pitagóricos
acabaram por imaginar que poderiam detectar nos números analogias “com o que é e vem a
ser – esta e aquela propriedade do número sendo justiça, e esta ou aquela alma e inteligência,
uma outra oportunidade e, analogamente, mais ou menos com todo o resto – e uma vez que
perceberam posteriormente que as propriedades e proporções das escalas musicais são
baseadas nos números, e visto que parecia claro que todas as outras coisas tinham toda sua
natureza moldada nos números, e os números são as primeiras coisas em toda a natureza,
supuseram ser os elementos dos números os elementos de todas as coisas e todo o céu uma
escala musical e um número”91. Como se percebe, ARISTÓTELES nota que o pensamento
filosófico dos pitagóricos “depende estritamente das suas investigações matemáticas: eles puseram os
números e as características dos números (pares e ímpares) como princípios das coisas e das qualidades
das coisas”92.
Nota relevante: aqui, EDSON BINI sugere que no trecho “...escala musical” pode
haver leitura para “harmonia” (já que, no texto grego, há o vocábulo αρμονία, sendo
traduzível para armonian). E explica, ainda, que “para os pitagóricos, Aristóteles e, numa
palavra, para os gregos antigos, a música ou harmonia era uma das matemáticas, ou seja,
uma ciência especulativa e não uma ciência produtiva (arte) na terminologia aristotélica” 93.
As relações musicais, para os pitagóricos, “eram reduzíveis a relações numéricas como se

90
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 96-97.
91
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 53-54.
92
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 34.
93
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 54. Nota de rodapé n.º
38.
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segue: ‘a oitava consiste na relação de 1 a 2, a quinta na relação de 2 a 3 e a quarta na relação


de 3 a 4’ (Alexandre, In Metaph., p. 39, 19 e ss. Hayduck)”94.
Os pitagóricos também tinham um recurso importante de preenchimento de
lacunas, por assim dizer. É que se houvesse qualquer “buraco” na sistemática de raciocínio
deles, então havia um tipo de preenchimento que acabava dando concatenação integral ao
sistema. Mas o propósito do filósofo, agora, nem é encarar como os pitagóricos lidavam
precisamente com isso. Na verdade, o que interessa, neste tanto em discussão, é saber como
eles supunham as causas, e como as causas pitagóricas podem se enquadrar, então, no sistema
aristotélico.
Na perfeita análise de GIOVANNI REALE, “todas as coisas sensíveis [segundo os
pitagóricos], particularmente as celestes (como logo em seguida ele especificará), são
redutíveis a número. Portanto, [...], se todas as realidades não físicas (primeiro grupo),
todas as realidades musicais (segundo grupo) e todas as realidades físicas e celestes (terceiro
grupo) são redutíveis a número, então tudo é redutível a número e os princípios dos
quais derivam os números são os princípios dos quais tudo deriva”95. E, “de fato”,
explica TOMÁS DE AQUINO, “os pitagóricos parecem afirmar que o número é o princípio dos
entes enquanto número e que as paixões do número são como as paixões dos entes, como
dos estados, se por paixões entendermos os acidentes transitórios e por estados os acidentes
permanentes. Assim, afirmam que a paixão pela qual um número é denominado par é a
justiça em razão da igualdade de divisão, porque tal número é dividido igualmente em dois
até a unidade, como o oito em dois e de quatro o quatro em dois de dois e o dois em duas
unidades. E, de modo semelhante, comparam os acidentes das coisas com os acidentes dos
números”96. Numa única frase: “são números que ordenam a constituição do universo. Essa
aitiologia do neopitagorismo, do platonismo pitagorizante, foi prosseguida por muitos
pitagóricos, conjuntamente com investigações matemáticas e cosmológicas”97. E “partindo
de princípios matemáticos, a cosmologia pitagórica explicaria a origem do todo, do maior
ao menor”, como sintetiza ANNA PADOA CASORETTI98. Por outro lado, há quem procure
questionar essa “redução total aos números” dos pitagóricos, como se depreende de

94
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 37.
95
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 37.
96
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 102.
97
SANTOS, Mário Ferreira dos. Versos Áureos de Pitágoras – comentados por Mário Ferreira dos Santos, p. 6.
98
CASORETTI, Anna Padoa. Pitágoras e os caminhos da Alma, p. 16. Disponível em:
https://www.academia.edu/12229617/Pit%C3%A1goras_e_os_caminhos_da_Alma. Acesso em 18 jul.
2010.
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interessante artigo de LEONID J. ZHMUD99, que manifesta o problema da falta de referências


diretas de obras originais, questionando: from what sources is it known that Pythagoras and after
him Pythagoreans had deduced all the world from number? Note-se, e. g., que os comentários de
ARISTÓTELES a respeito dos pitagóricos, desgraçadamente, sumiram neste mundo... Pouca
coisa dele chegou, efetivamente, às gerações posteriores (o próprio ARISTÓTELES não teve
elementos para diferenciar o homem de PITÁGORAS das ideias dos pitagóricos): “não é
possível, portanto, falar do pensamento de Pitágoras, considerado individualmente, e sim
do pensamento dos Pitagóricos, considerados globalmente” 100. Aliás, “segundo parece, era
oral o ensino de PITÁGORAS e, por isso, não se encontra traço de seus escritos: das suas
teorias chegaram até nós apenas fragmentos recolhidos em apontamentos de discípulos e as
referências de ARISTÓTELES, que as contestou”101.
Mas não é pecado algum confiar na tese majoritária, sustentada por grande parte
dos escritores, a exemplo do próprio MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, autor, aliás, de Pitágoras
e o tema do número102. Afirma-se, até, que “para os pitagóricos, a Justiça é a relação aritmética,
uma equação ou igualdade. À luz desta concepção, deduzem o conceito de retribuição, de
troca, de correspondência entre o facto e o tratamento adequado dele [...]. Encontra-se
nesta concepção – a qual se aplica igualmente à pena – o germe da futura doutrina aristotélica
da Justiça”103. De qualquer maneira, MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS entende que PITÁGORAS
“afirmava que todas as coisas finitas podem ser vistas triadicamente. O três preside-as como
começo, meio e fim (término)”104.
Uma primeira corrente de pitagóricos sustentava que o número seria um primeiro
princípio. O número compunha, assim, a matéria da coisas e suas propriedades e estados: par
e ímpar (o primeiro ilimitado; o segundo limitado – “o par é princípio do infinito e o ímpar
o princípio do finito, como dito no livro III da Física, porque o infinito nas coisas parece
principalmente se seguir da divisão do contínuo”105). Uma segunda corrente da escola

99
Cf. ZHMUD, Leonid J. All Is Number? Basic Doctrine of Pythagoreanism Reconsidered. Phronesis, 1989, n.º 34,
p. 270-292.
100
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo
Storniolo. São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 26.
101
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Tradução Antonio José Brandão. Revisão e prefácio
de L. Cabral de Moncada. Atualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Suc.,
1972, p. 38.
102
Cf. SANTOS, Mário Ferreira dos. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA, 2000.
103
DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito. Tradução Antonio José Brandão. Revisão e prefácio
de L. Cabral de Moncada. Atualizada por Anselmo de Castro. Coimbra: Armênio Amado, Editor, Suc.,
1972, p. 39.
104
SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 40.
105
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 103.
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pitagórica propunha dez princípios (chamados por MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS de
polaridades106):
• limitado x ilimitado;
• ímpar x par;
• unidade x pluralidade;
• direito x esquerdo;
• macho x fêmea107;
• repouso x movimento;
• reto x curvo;
• luz x escuridão;
• bem x mal; e
• quadro x oblongo108.

A lista supra encerra a tábua pitagórica dos dez contrários109.


ARISTÓTELES diz que quem teria especulado nestes termos seria ALCMEÃO DE
CROTONA, um contemporâneo de PITÁGORAS. Diz o nosso filósofo: “[ou] ele especulou nos
mesmos termos, e ou ele obteve essa teoria deles, ou eles a obtiveram dele, {uma vez que
Alcmeão viveu durante a velhice de Pitágoras} e suas doutrinas eram muitos similares às
deles. Ele diz que a maioria das coisas no mundo humano está em duplas (pares)”. Por outro
lado, diferentemente dos pitagóricos, ALCMEÃO “apenas indicou sugestões imprecisas
quanto aos outros exemplos de contrários”, enquanto aqueles “expuseram a quantidade dos
contrários e o que são”. Abstraídas essas pequenas sutilezas, ambos “parecem reconhecer
seus elementos como materiais, uma vez que declaram serem estes os constituintes originas
dos quais a substância está moldada e composta, tendo-os como suas partes inerentes”110. A
proposta de ARISTÓTELES, agora, é expor essa “terceira opinião dos pitagóricos, dizendo que
Alcméon de Crotona [...] parece manter a mesma doutrina que afirmaram os pitagóricos
[...]. De fato, ou recebeu essa doutrina dos pitagóricos, ou os pitagóricos receberam-na dele

106
SANTOS, Mário Ferreira dos. Versos Áureos de Pitágoras – comentados por Mário Ferreira dos Santos, p. 7.
107
“Por isso, [os pitagóricos] atribuíram ao par o infinito e ao ímpar o finito. E porque o finito é pela forma,
que possui potência ativa, dizem que os pares são fêmeas, e os ímpares machos” (SANTO TOMÁS DE
AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide
Editorial, 2016, p. 103).
108
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 54.
109
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 40.
110
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 54-55.
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[...]. Seja qual for o caso, muitos enunciados são semelhantes aos dos pitagóricos”111. Aqui
EDSON BINI (o tradutor) avisa que “substância” está aí com aquele sentido de “primeira das
Categorias aristotélicas, vinculada ao sujeito e ao ser” (= ουσία)112.
A passagem é importante, pois é com este levantamento, explica ARISTÓTELES,
que “podemos compreender suficientemente o que queriam dizer aqueles antigos que
ensinavam que os elementos da natureza constituem uma pluralidade. Outros, todavia,
teorizavam acerca do universo como se esse fosse só uma entidade. Mas suas doutrinas não
são todas semelhantes tanto no tocante à excelência que apresentam quanto ao que diz
respeito à conformidade com os fatos da natureza”113.
De qualquer maneira, dentro da investigação da Metafísica, ARISTÓTELES avisa que
não há relevância prática na discussão dos ensinamentos daqueles pensadores pitagóricos,
“uma vez que eles, ao suporem uma unidade, não demonstram, ao mesmo tempo, que o ser
é gerado tanto a partir da unidade como da matéria, como o fazem alguns filósofos da
natureza, mas apresentam uma explicação diferente, visto que os filósofos da natureza, de
qualquer forma, assumem também o movimento ao explicarem a geração do universo. Esses
pensadores, contudo, sustentam que o universo é imutável” 114. De qualquer maneira,
ARISTÓTELES identifica, em PARMÊNIDES, a visão da unidade una como uma fórmula
(limitada)115; e, em MELISSO, a visão da una enquanto matéria (ilimitada)116-117. A assim

111
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 105.
112
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 55. Nota de rodapé n.º
44
113
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 55.
114
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 55.
115
“O Um de Parmênides entendido como forma. — O um parmenidiano é aproximável da forma enquanto é limitado
e finito” (REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 41). “Parmênides
[...] parece tratar a unidade segundo a razão, isto é, pela forma. Com efeito, argumentou o seguinte: o que é
além de ente é não ente, e o não ente é nada. Logo, não há nada além do ente. Mas ente é uno. Logo, além
do uno, nada há. Fica claro que ele considerava a noção mesma de ente, que parece ser uno, porque não é
compreensível que algo adicionado à noção de ente o possa diversificar, pois o que se adiciona ao ente precisa
ser externo. Ora, qualquer coisa assim é nada” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de
Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 111).
116
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 55-56.
117
“O Um de Melisso entendido como matéria. — Melisso, ao invés, afirmava o seu ser como infinito [...] ou
ilimitado, características que correspondem ao indeterminado da matéria” (REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio
introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine.
5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 41). “Melisso considerava o ente pela matéria. Argumentava-se,
pois, sobre a unidade do ente, de que o ente não é gerado por algo anterior que propriamente convenha à
matéria que é ingênita. Com efeito, ele arguiu, assim: ‘o que é gerado tem princípio; o ente não é gerado,
logo, não tem princípio’. Ora, o que carece de princípio carece de fim; logo, é infinito. E se é infinito, é
imóvel, porque o infinito não tem algo fora de si, pelo qual é movido [...]. E porque o finito convém à forma
e o infinito à matéria, Melisso que considerava o ente por parte da matéria, disse haver um ente infinito”
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chamada escola eleática está fora da investigação metafísica, sendo que dois membros,
XENÓFANES e MELISSO, podem ser completamente ignorados, já que suas opiniões foram
rudimentares e ingênuas118. PARMÊNIDES, porém, pareceu discursar com melhor
entendimento119, “isto é, de modo mais inteligente. Usa-se, pois, tal raciocínio. O que é
para além do ente é não ente; o que é não ente é considerada nada, ou seja, reputa digno de
ser nada. Onde estabelece que se segue, por necessidade, que o ente seja uno e, qualquer
coisa, fora do ente, seja nada. Com efeito, tal raciocínio foi dito mais claramente no livro I
da Física”. No entanto, PARMÊNIDES “é coagido a seguir que os sentidos percebem e quis com
a sua posição satisfazer ambas, à evidência dos sentidos e à razão. Por isso, disse que tudo é
uno segundo a razão, mas múltiplo segundo os sentidos. E ao pôr a pluralidade por parte
dos sentidos, pôs nas coisas a causa e o efeito do múltiplo. [...] E por não considerar que a
posição de seu raciocínio fosse oposta, pela qual concluía que o que é além do uno é nada,
dizia que aqueles unos o quente era ente; o outro, pois, que é para além do ente uno, o frio,
dizia ser não ente, segundo a noção de verdade da coisa, mas o ente apenas existiria segundo
a evidência dos sentidos”. De qualquer modo, nisso ele “aproxima-se da verdade”120.
Na síntese do próprio ARISTÓTELES:
• dos primeiros filósofos, entendemos que o primeiro princípio é corpóreo
(água, fogo e similares são corpos) – com variações pequenas, tais pensadores
sempre vislumbraram, aí, a natureza material do princípio;
• outros filósofos adicionaram algo a essa causa material, que seria a fonte do
movimento: uns sustentaram ser uma; outros afirmaram serem duas;
• os pitagóricos se referiram a dois princípios, mas há algo deles que lhes
conferem um mérito de peculiaridade: eles “acreditavam não que o limitado e
o ilimitado fossem entidades separadas [...] mas que o próprio ilimitado e o
próprio uno fossem a essência de todas as coisas”;
• os pitagóricos souberam discutir e definir o quê da coisas (= essência), embora
com um procedimento ainda rudimentar;
• “isso é tudo, portanto, que pode ser aprendido com os primeiros filósofos e
seus sucessores”121.

(SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 112).
118
Para GIOVANNI REALE, o tratamento de ARISTÓTELES a XENÓFANES e MELISSO é indiscriminado e injusto
(REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III. Sumários
e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 42).
119
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 56.
120
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 113.
121
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 56-57.
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Na síntese de GIOVANNI REALE: “são claríssimas as razões pelas quais Aristóteles vê


nos números pitagóricos tanto a causa material como a formal; mas, ao mesmo tempo, é
igualmente claro que as categorias da aitiologia aristotélica, como outras vezes constatamos,
inefavelmente, isto é, estruturalmente, condicionam o pensamento a que se aplicam. A nosso
ver, os princípios dos Pitagóricos estão ainda além dessa distinção de matéria-forma, e, de
resto, o próprio Aristóteles o confessa”122. E TOMÁS DE AQUINO: “os pitagóricos
adicionaram o que lhes era próprio à opinião dos outros. Primeiro, diziam que o uno finito
e infinito não eram certos acidentes de outra natureza, como a do fogo e a da terra, ou outras
coisas semelhantes. Mas isso, que digo uno finito e infinito, era substância das mesmas coisas
das quais se predicavam. E com isso concluíam que o número, que é constituído por
unidades, era a substância de todas as coisas. Outros físicos, embora afirmassem que o uno
e o finito, ou o infinito, todavia atribuíram ser isso de alguma outra natureza, como acidentes
que se atribuem ao sujeito, como ao fogo ou à água ou a algo semelhante [...]. Mas a
conclusão deles não convinha, porque embora a díade seja dupla, não é o mesmo ser o da
díade e o do duplo, embora sejam o mesmo segundo a razão, como definição e definido. E,
porém, fosse verdade o que eles disseram, seguir-se-ia que o múltiplo seria uno. Ocorre
que o múltiplo primeiro existe no uno, como a díade no par e na dupla proporção. E, assim,
par e duplo são o mesmo e, igualmente, qualquer coisa que coexista no duplo é a mesma
que díade, pelo que duplo é a substância da díade. Isto ocorria com os pitagóricos. De fato,
afirmavam muitos e diversos, como se fossem uno. Diziam ser as propriedades numéricas o
mesmo com as propriedades das coisas naturais”123.

Livro I, ponto 6
ARISTÓTELES chega aos mestres SÓCRATES e PLATÃO. Explica que PLATÃO, na sua
juventude, teve contato com CRÁTILO e com as doutrinas de HERÁCLITO, pelas quais “o
mundo sensível encontra-se sempre num estudo de fluxo e que não há conhecimento
científico disso”, sendo tais pontos de vista ainda mantidos por PLATÃO alguns anos depois.
Afirma-se, até, que ele seguiu os naturalistas, embora tenha tido uma opinião própria124.
SÓCRATES, quando deixou de lado a natureza e passou a se preocupar com questões éticas,
buscou “nessa esfera o universal”, sendo o primeiro a concentrar-se nas definições125,

122
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 44-45.
123
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 115.
124
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 119.
125
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 57.
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sendo aliás quem “manifestamente primeiro introduziu a causa formal”126. PLATÃO aderiu à
proposta socrática, de modo que “concebeu que o problema da definição não diz respeito a
qualquer coisa sensível, mas a entidades de outro tipo, isto porque é impossível haver
definição geral de coisas sensíveis, que estão em contínua mudança”127. Sendo assim, “a
novidade que Platão introduziu no problema dos números foi apontar a diferença que existe
entre o ‘caráter ideal’, inteiramente firme e determinado, dos números e o caráter
inconstante — Platão, seguindo os heraclitenses, diz ‘fluído’ — das coisas sensíveis”128.
Comenta TOMÁS DE AQUINO:

Platão, habituado a essas doutrinas novas e, de acordo com elas, mais


tarde, adotou essa teoria, quando disse dever renunciar à ciência dos
conhecimentos particulares. Sócrates, que foi mestre de Platão,
discípulo de Arquelau e ouvinte de Anaxágoras, por causa dessa opinião
que suscitava em seu tempo, de que não pode haver ciência dos sensíveis,
não quis investigar algo da natureza das coisas, mas só se interessou pela
moral. E ele começou primeiro a investigar na moral o que era universal
e insistir em defini-lo129.

Tais “entidades platônicas” seriam chamadas Ideias, tanto é assim que


“toda a terminologia platônica das idéias-formas é pitagórica: eidos, idea, skhema, morphê”130.
Cabe um aviso importante aqui. A palavra “ideia” não expressa bem a tradução da proposta
de PLATÃO. SANTO TOMÁS DE AQUINO fala de “ideias” como “formas”: “toda noção [em
Platão] deve sempre convir a tudo e, assim, ela requer uma imutabilidade. E, por isso, tais
entes universais, que existem separados das coisas sensíveis, às quais atribuem definições,
denominou-os ideias e espécies dos entes sensíveis; ideias, isto é, formas”131. Conforme aviso
do tradutor EDSON BINI, o termo que melhor traduz Ideias, aqui, seria Formas, já que há
inconvenientes com a palavra ideia. Ele explica: “Platão utiliza tanto Ιδεα (ideia) quanto ειδος
(eidos), aparentemente de modo indiscriminado (na verdade, são palavras sinônimas). [...].
Tudo indica que Platão retirou as duas palavras acima do vocabulário corrente (no qual
significam forma, aspecto externo, aparência), introduzindo-as na terminologia filosófica
para exprimir seu próprio conceito, ou seja: realidade perfeita, singular, universal,
imutável, eterna, imperecível do mundo inteligível, da qual as coisas imperfeitas, múltiplas,

126
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 119.
127
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 57.
128
BECKER, Oskar. O pensamento matemático. Sua grandeza e seus limites. São Paulo: Herder, 1965, p. 18.
129
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 120.
130
SANTOS, Mário Ferreira dos. Versos Áureos de Pitágoras – comentados por Mário Ferreira dos Santos, p. 12.
131
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 120. Grifei.
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particulares, mutáveis, temporais, perecíveis do mundo sensível são apenas cópias e


simulacros”132. Aliás, o mesmo aviso é dado por RUSSEL KIRK: “no século XX, Platão foi
denunciado por alguns como comunista; por outros, como fascista. Ele não era nenhum;
ele sequer era um ‘idealista’, como os críticos do século XIX o
consideravam”133. Por sinal, já tive o desprazer determinada peça relacionar PLATÃO a
conceitos das redondezas imanentais da fraqueza universitária mainstream: ele seria
“machista” (?!). Decerto faltou muito tempo de enfronhar os quadris numa cadeira de estudo
para a pesquisadora, que certamente vasculhou alguma coisa tão pitoresca no Google. É fácil
citar PLATÃO com irresponsabilidade. Difícil mesmo é lê-lo e compreendê-lo... Um
verdadeiro estudioso, GIOVANNI REALE, nota bem essa sutileza linguística, pois arrola nas
“outras realidades” platônicas as Formas ou Ideias:

Sumário e comentário a A 6
¹ (987 a 29 – 988 a 17). Sumário. — Agora é a vez de Platão [...]. — A
célebre dotrina das Ideias de Platão é vista pelo Estagirita (e esta interpretação
terá muito sucesso mesmo entre os estudiosos modernos) como o resultado do
encontro de heraclitismo com o método socrático do conceito: estando Platão
convencido (com os Heraclitianos) que o sensível está sujeito ao fluxo contínuo, e
estando por outro lado convencido do valor do método socrático da definição, o
qual postula um objeto estável e imóvel [...], ele introduziu outras realidades
(justamente as Formas ou Ideias) como objetos aos quais se referem as definições.
— Entre Ideias e coisas sensíveis Platão estabeleceu uma relação de participação
[...]. — Ademais, Platão pôs como ‘intermediários’ entre as Ideias e as coisas os
‘Entes matemáticos’, os quais são múltiplos como os sensíveis, mas imóveis e
eternos como as Ideias. — Ulteriormente Platão tentou também [...] determinar
os elementos dos quais se originam as próprias Ideias; estes são a Díade de grande-
e-pequeno e o Um (em parte remetendo-se aos Pitagóricos, em parte divergindo
deles). — Depois de ter acenado para algumas incongruências dessa doutrina,
Aristóteles sublinha que as causas das quais Platão se serviu são fundamentalmente
duas: a formal (as Ideias são causas formais das coisas, o Um é a causa formal
das Ideias) e a material (a Díade de grande-e-pequeno serve de causa material
em todos os níveis). Ademais Platão entendeu a sua causa formal também como
causa do bem (isto é, como causa final) e a causa material como causa do
mal134.

Em PLATÃO, “todos os entes sensíveis têm o ser por causa das ideias e na medida
em que têm o ser por participarem delas. Tem o ser causa delas, na medida em que as ideias

132
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 58. Nota de rodapé n.º
54.
133
KIRK, Russel. A Caverna e a Tempestade de Areia. Trad. Vitor Matias e Jade A. Disponível em
https://contraosacademicos.com.br/a-caverna-e-a-tempestade-de-areia/#_ftn24. Acesso em 14 jul.
2020. Destaquei.
134
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 45-46.
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são causas do ser dos sensíveis. E são conforme a elas enquanto são exemplares delas”135. E
é com ele que “o pitagorismo encerra a sua grande fase”136.
Voltando ao texto. As “entidades platônicas”, melhor traduzíveis para Formas,
portanto. E PLATÃO, explica ARISTÓTELES, “sustentou que todas as coisas sensíveis são
nomeadas segundo elas e em função de sua relação com elas, uma vez que a pluralidade das
coisas que têm o mesmo nome que as Formas existe por participação nelas [...]. Ele
acrescenta que além das coisas sensíveis e das Formas, existe uma classe intermediária, os
objetos das matemáticas, que diferem das coisas sensíveis por serem eternos e imutáveis, e
das Formas, por haver múltiplos objetos semelhantes das matemáticas, ao passo que cada
Forma é, ela própria, única. Ora, uma vez que as Formas são as causas de tudo o
mais, ele supôs que seus elementos são os elementos de todas as coisas. Em
consonância com isso, o princípio material é o grande e o pequeno, e a essência
é o uno, visto que os números procedem do grande e do pequeno pela
participação no uno. Ao tratar o uno como substância, e não como um predicado de
alguma outra entidade, seu ensinamento assemelha-se ao dos pitagóricos, e inclusive é
concordante com este ao enunciar que os números são as causas do ser em tudo o mais. Mas
é característico de Platão formular uma dualidade em lugar do ilimitado singular, e fazer o
ilimitado consistir do grande e do pequeno. É-lhe, também, peculiar considerar os números
como distintos das coisas sensíveis, ao passo que eles sustentam que as próprias coisas são
números, e tampouco propõem uma classe intermediária de objetos matemáticos. A
distinção feita por ele entre o uno e os números e as coisas ordinárias (no que foi diferente dos
pitagóricos137) e a sua introdução das Formas deveram-se a sua investigação da lógica (os
primeiros pensadores eram estranhos à dialética); sua concepção do outro princípio como
uma dualidade deveu-se à crença de que os números, exceto os primos, podem ser
prontamente gerados a partir dela, como de uma matriz”138. Mas ARISTÓTELES faz sua crítica
ao raciocínio: o fato acaba sendo contrário, sendo a teoria “ilógica”, já que “se fazem
proceder a multiplicidade e partir da matéria, embora a Forma deles gere apenas uma vez,
é evidente que somente uma mesa pode ser feita de uma matéria, e ainda assim, aquele que

135
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo
Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 120.
136
SANTOS, Mário Ferreira dos. Versos Áureos de Pitágoras – comentados por Mário Ferreira dos Santos, p. 11.
137
“Os pitagóricos diziam que os números são as causas das coisas, mas Platão diz serem as ideias. Os
pitagóricos diziam que os seres sensíveis eram certas ‘imitações’ dos números. Os números, pois, enquanto
não têm posição, assumiam a posição e causavam os corpos. Ora, porque Platão afirmou que as ideias eram
imutáveis para que por elas pudessem haver ciências e definições, não lhe convinha usar o nome ‘imitação’
para as ideias. Usou, então, em seu lugar o nome ‘participação’. Ora, sabe-se que os pitagóricos, ainda que
usassem participação ou imitação, não investigaram como os indivíduos sensíveis participam da espécie
comum, ou que lhes imitassem, o que ensinaram os platônicos” (SANTO TOMÁS DE AQUINO. Comentário
à Metafísica de Aristóteles, v. I. Trad. Paulo Faitanin e Bernardo Veiga. Campinas: Vide Editorial, 2016, p.
121).
138
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 59. Destaquei.
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lhe imprime a forma, a despeito de ser apenas um, é capaz de fazer muitas mesas” 139. O
mesmo sucede com o sexo masculino e feminino: uma fêmea é fecundada numa cópula, mas
um macho pode fecundar várias fêmeas – “estas relações são análogas aos princípios
aludidos”140. De maneira que fica claro que PLATÃO só empregou duas causas: a da essência
e a causa material, “entendendo-se que as Formas são a causa da essência em tudo o mais,
e o uno é a causa dela nas Formas. Ele também nos diz o que é o substrato material, do qual
as Formas são predicadas no caso de coisas sensíveis, e o uno naquele das Formas, isto é, que
isso é uma dualidade, o grande e pequeno. Adicionalmente, ele atribuiu a esses dois elementos,
respectivamente, a causa do bem e do mal, questão que – como dissemos, fora também
abordada por alguns dos filósofos mais antigos, por exemplo Empédocles e Anaxágoras”141.
Para GIOVANNI REALE, há certo aí exagero de ARISTÓTELES: “eis um daqueles
momentos evidentes de animosidade por parte de Aristóteles: dizer que Platão,
relativamente aos Pitagóricos, inovou somente [..] o nome de ‘participação’ (linha 11) é
verdadeiramente excessivo. [...]. Para Platão o problema é muito mais complexo” 142. O
mesmo sucede na crítica feita ao princípio material de Platão, tendo aqui Aristóteles jogado
“com as imagens de modo enganador, mas sobretudo rude. A matéria é comparada à fêmea,
que é fecundada por um único coito, enquanto o macho pode fecundar muitas fêmeas. O
que multiplica não é, portanto, a fêmea-matéria, mas o macho, que, de acordo com o que
é dito, deveria corresponder à forma, da qual segundo Platão, deveria derivar uma única
coisa, enquanto o exemplo mostra que dele deveriam derivar muitas. Mas a comparação não
se sustenta, tanto é verdade que o próprio Aristóteles é forçado a corrigir o tiro, introduzindo o
‘artesão que aplica a forma’, ou seja, uma outra causa, que não é a que está em discussão. O Artesão,
mesmo sendo um só, pode produzir muitas mesas, mas justamente como causa eficiente;
mas a forma que ele aplica faz unidade, ou seja, garante que aquilo que o artesão produz seja
sempre uma mesma coisa, ou seja, uma mesa. E as muitas mesas, enquanto muitas, tornaram-
se possíveis justamente em virtude da matéria. Se não se presta adequada atenção, o exemplo
leva a engano, porque inverte os termos do problema”143.

Livro I, ponto 7
[Continua...].

139
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 59.
140
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 59.
141
ARISTÓTELES. Metafísica. 2.ª ed. Trad. Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2012, p. 59.
142
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 48.
143
REALE, Giovanni. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tradução e comentário, v. III.
Sumários e comentário. Trad. Marcelo Perine. 5.ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2016, p. 55-56.
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