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Manoel de Campos Almeida


Edson José Rodrigues Justino

Como o Cérebro Processa a Matemática ?


Ensinamentos da Neurociência para
uma Pedagogia Renovada

1ª Edição

Curitiba
Manoel de Campos Almeida
2020

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2020 – Copyright © Manoel de Campos Almeida & Edson José
Rodrigues Justino

ISBN 978-85-924793-4-3

Todos os direitos reservados aos autores. É permitida a utilização de


pequenos trechos da obra desde que unicamente destinados ao uso
acadêmico. É estritamente proibida a reprodução total ou parcial desta obra,
de qualquer forma ou de qualquer meio, quando destinada à comercialização,
salvo por autorização por escrito dos autores.

CAPA

Conexões neurais do cérebro humano. The Human Connectome Project.

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APRESENTAÇÃO

O fio condutor da presente obra, o fio de Ariadne, é investigar como o cérebro


processa a Matemática, especificamente sobre seus conceitos fundamentais, muitos dos
quais constituem significativa parcela estruturante da mente humana.
Duas disciplinas são fundamentais para a construção da humanidade, da
capacidade que nos torna o que somos: a Linguagem, que nos permite a comunicação,
sem a qual não estaríamos hoje aqui, e a Matemática, que nos ensina a pensar, a raciocinar
logicamente.
Tínhamos e mantemos a estrita convicção de que se quisermos entender o que é a
Matemática, suas origens, seu desenvolvimento, sua estupenda capacidade descritiva,
explanatória, heurística e criadora, somente um tratamento holístico, sistêmico, histórico,
que abrangesse não somente a disciplina em si, mas também seu artífice, os matemáticos,
nos proporcionaria os meios para tal.
A Matemática é produto da atividade humana, portanto social e histórica. A
Matemática é parcialmente estruturante dos processos mentais que qualificamos como
puramente humanos, o que nos distingue dos demais primatas. Ela se desenvolveu
acompanhando pari passu a evolução da nossa raça, portanto sua história se entretece
com a da humanidade. Os humanos, contando com importantes componentes inatos,
como mostra a Neurociência, adquiriram ao longo da história a capacidade de pensar
matematicamente.
Temos plena consciência que muitos dos temas aqui tratados podem
inopinadamente sofrer evoluções, avanços ou mesmo refutações, pois hodiernamente
muito pouco é conhecido sobre os processos cognitivos humanos. A Neurociência ainda
está em sua infância, procedemos nela tal como cegos apalpando aqui e acolá um elefante.
Contudo, alguns de seus hesitantes passos já nos permitem vislumbrar profícuos avanços,
mormente na área de ensino e aprendizado, bem como nas investigações científicas sobre
os processos cognitivos inerentes à disciplina.
Esta obra não pretende ser um tratado de anatomia, destinado apenas a estudantes
de cursos da área da saúde, mas sim visa subsidiar os eventualmente interessados sobre
os importantes temas que serão aqui tratados, sejam eles alunos, professores ou
meramente curiosos esclarecidos. Por isso as imagens, bem como as áreas cerebrais nelas

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porventura indicadas, são apenas ilustrativas, não destinadas a usos clínicos. Contudo,
ressalvamos, não é simplesmente uma obra de diluição, mas sim destinada a um público
culto interessado, porém não especializado.
Muitos dos ensinamentos aqui tratados podem orientar uma nova perspectiva para
a pedagogia, pois ela está em permanente renovação, graças aos ensinamentos da
Neurociência e aos avanços tecnológicos. Os ensinamentos aqui formulados não se
restringem apenas ao processo de ensino/aprendizado da Matemática, muitos deles são
aplicáveis a qualquer domínio do conhecimento. A Matemática ensina a estruturar o
raciocínio lógico – dedutivo, isto é, ensina a pensar, que é uma condição imprescindível
para qualquer área do saber.
Embora informações pertinentes estejam distribuídas em todo o texto, podemos
dividi-lo em três conjuntos: no Capitulo I abordamos questões relativas à Filosofia e
Epistemologia da Matemática; nos Capítulo II a VI analisam-se os processos cognitivos
da Matemática; nos Capítulos VII e VIII apresentam-se os ensinamentos da Neurociência
para um aggiornamento da Pedagogia.
O CIIM - Centro de Inovações em Imagens Médicas da Pontifícia Universidade
Católica do Paraná, do qual os autores foram fundadores, contribuiu significativamente
com imagens do projeto Visible Human Table para esta obra. Este Centro, coordenado
pelo Dr. Edson José Rodrigues Justino, vem desenvolvendo projetos para diversos
domínios do conhecimento na área de imagens, visando propiciar novas tecnologias que
permitam inovações nos processos de educação dos nossos jovens e, ao mesmo tempo,
familiarizando-os com o mundo digital hoje omnipresente.
Agradecemos a todos os proprietários de direitos autorais que deram permissão
para reprodução do material de sua posse. Embora todos os esforços fossem envidados
para contatá-los nem sempre foram bem sucedidos, pois esta obra foi escrita durante a
epidemia do Coronavírus Covid-19, seremos gratos em saber de quem porventura não foi
possível contatar para corrigir eventuais omissões nas próximas edições. Devido à vasta
abrangência do material coligido, das leituras realizadas, desculpamo-nos
antecipadamente por qualquer eventual omissão, certamente não intencional.
Uma das principais razões que nos motivaram a escrever o presente estudo é que,
devido à quarentena forçada, mas imprescindível nestas circunstâncias, é colocá-lo em
open access para que todos estudantes e eventuais interessados possam acessá-lo de suas
residências, sem prejuízo do distanciamento social. É nossa parca e modesta contribuição
para aliviar esta penosa situação.

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Registramos aqui nossos agradecimentos à equipe do CIIM, constituída por Lucas
Murbach Pierin, Andrei Rafael Brongel, William John Pereira Brobouski, Mozart
Gonçalves, Aramis Hornung Moraes, Diogo Olsen, Flávio de A. e Silva, Marina de Lara
Muller, Ivan Jorge Chueiri, por sua colaboração em diversas oportunidades. Igualmente
agradecemos à Professora Dr. Cinthia Bittencourt Spricigo, da Assessoria Educacional
da PUCPR, pelas contribuições e imagens fornecidas sobre os Ambientes Imersivos de
Aprendizagem.

Curitiba, inverno de 2020.


Os autores

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÂO

CAPITULO I –CONCEITOS FUNDAMENTAIS


Preâmbulo......................................................................................................................14
Ur-questões....................................................................................................................14
O que é a Matemática?...................................................................................................19
Noções de Filosofia e Epistemologia da Matemática.....................................................20
As correntes Matemáticas tradicionais...........................................................................22
Realismo ou Platonismo.................................................................................................23
Críticas ao Platonismo....................................................................................................26
Seguidores atuais............................................................................................................26
Interlúdio histórico I.......................................................................................................27
Nominalismo..................................................................................................................30
Conceitualismo...............................................................................................................31
Correntes modernas........................................................................................................33
Precursores do logicismo................................................................................................33
Logicismo.......................................................................................................................36
Críticas ao logicismo......................................................................................................36
Construtivismo................................................................................................................40
Precursores......................................................................................................................40
Intuicionistas...................................................................................................................41
Formalismo.....................................................................................................................42
Correntes recentes...........................................................................................................45
Linguisticismo.................................................................................................................45
Popper e Lakatos.............................................................................................................46
Definicionismo................................................................................................................48
Dualismo x Materialismo................................................................................................49
Behaviorismo..................................................................................................................49
Culturalismo....................................................................................................................50
Behaviorismo Lógico......................................................................................................50
Teoria da Identidade do Estado Central..........................................................................51
Funcionalismo.................................................................................................................51
Interlúdio Histórico III....................................................................................................53
Neuronalismo..................................................................................................................54
Quanticismo.....................................................................................................................55
Informacionismo..............................................................................................................57
Etnomatemática...............................................................................................................58
Pragmatismo....................................................................................................................60
O que é a Mente Humana?..............................................................................................62

CAPÍTULO II - A BLACK BOX DO CÉREBRO


Preâmbulo........................................................................................................................69
7
Realidade, Conhecimento e Percepções..........................................................................69
Estrutura do cérebro.........................................................................................................75
Redes neurais...................................................................................................................78
Tecnologias de Neuroimagens.........................................................................................79
Técnicas Invasivas...........................................................................................................80
Técnicas não invasivas....................................................................................................81
Eletroencefalogramas – EEG..........................................................................................81.
Tomografia Computadorizada – CT...............................................................................82
Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET).................................................................83
Ressonância Magnética (RM-MRI)................................................................................84
Ressonância Magnética Funcional (fMRI).....................................................................89
Tractografia.....................................................................................................................90
Ressonância magnética ponderada por difusão (DWI)...................................................91
Conectomas.....................................................................................................................92
Mapeamento dos Conectomas.........................................................................................95
Até Que Ponto a Matemática é Estruturante dos Nossos Processos Mentais?................98
Por Que Nós Todos Não Somos Gênios? O Cérebro de Einstein.................................100
A Autopercepção...........................................................................................................105
Consciência....................................................................................................................107
Neurogênese..................................................................................................................108
O papel da células gliais................................................................................................111
Potencialidades inexploradas do cérebro humano.........................................................112

CAPÍTULO III - NEUROFISIOLOGIA DO INCONSCIENTE E DA CRIATIVIDADE


Introdução......................................................................................................................115
O Papel dos Sonhos - Aspectos históricos.....................................................................115
Estágios dos sonhos.......................................................................................................116
Utilidade dos Sonhos.....................................................................................................118
Default Mode Network – DMN.....................................................................................121
A Descoberta nas Ciências...........................................................................................127
O Despertar da Consciência..........................................................................................134

CAPÍTULO IV - SENSO NUMÉRICO – NUMEROSIDADES

Introdução......................................................................................................................137
O Cérebro e a Matemática Animal................................................................................137
Senso numérico de animais domésticos e selvagens.....................................................143
Senso Numérico Humano..............................................................................................144
Tipos de memórias.........................................................................................................146
A Capacidade de Armazenamento Fonológico.............................................................147
Competência numérica dos bebês recém-nascidos........................................................149
Qual a Fronteira Entre a Matemática Animal e a Humana?..........................................153
Modelo da Arquitetura Funcional e Anatômica do Sistema de Processamento de
Números.........................................................................................................................154
Como o Cérebro Opera Numerosidades........................................................................155
Vias cerebrais separadas para matemática e leitura.......................................................158

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Aspecto ordinal do número............................................................................................161
Aritmética Animal.........................................................................................................163
O primeiro conceito matemático identificado a nível neuronal....................................166
A lei de Weber-Fechner.................................................................................................168
Palavras para números seguem a Lei de Weber-Fechner..............................................172
Neurônios que codificam números................................................................................172
Neurônios e regras das operações aritméticas................................................................175
Multiplicação.................................................................................................................176

CAPÍTULO V - NÚMEROS RACIONAIS


Introdução......................................................................................................................178
Fundamentação Matemática Moderna do Conceito de Número...................................178
A Geração dos Números Inteiros...................................................................................181
Piaget e Damerow: Desenvolvimento versus Evolução Histórica................................185
Interlúdio Histórico: O Conceito de “Número” entre os Gregos...................................188
Como o Cérebro Processa as Frações............................................................................193
Frações comuns.............................................................................................................194
Como o cérebro humano interpreta o zero matemático?...............................................200
Animais têm noção do zero?.........................................................................................211
A Representação Numérica nos Lobos Parietais: é Abstrata ou Não Abstrata?...........213
Representações Ordinais e Cardinais de Números – Efeito SNARC..........................215
A Linha dos Números, o Eixo dos Reais, é uma Característica Estrutural do Cérebro
Humano?........................................................................................................................217
Outros eixos espaciais também apresentam o efeito SNARC?.....................................219
Existe um “Senso Geométrico” inato?..........................................................................221

CAPÍTULO VI - HOMO SIMBOLICUS


Introdução......................................................................................................................225
Correspondências...........................................................................................................226
Linguagem Simbólica....................................................................................................220
Símbolos, Mitos e Rituais..............................................................................................230
Tallies e Notações..........................................................................................................231
Simbologia de Peirce.....................................................................................................232
Breve História do Simbolismo......................................................................................233
Poder Criador da Palavra...............................................................................................237
Doutrina do Nome.........................................................................................................239
Bíblia.............................................................................................................................239
Outras Culturas Primitivas.............................................................................................241
Mesopotâmia.................................................................................................................241
Simbolismo e Cultura em Animais................................................................................243
Como o cérebro processa os símbolos...........................................................................248

CAPÍTULO VII - ENSINAMENTOS DA NEUROCIÊNCIA


Introdução......................................................................................................................255
Revoluções perceptuais.................................................................................................255

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Homo digitalis...............................................................................................................263
Treine seu cérebro.........................................................................................................265
Criar novos hábitos........................................................................................................267
Videogames...................................................................................................................268
Vantagens......................................................................................................................270
Desvantagens.................................................................................................................271
Videogames e o terror....................................................................................................274
Como o cérebro entra em colapso.................................................................................277
O cérebro prefere a leitura em papel.............................................................................279
Anotar à mão ou no computador?..................................................................................282
O cérebro pode ser turbinado?.......................................................................................283
Dimensões Intersensoriais.............................................................................................285
Discalculia e Dislexia....................................................................................................288
A evolução da contagem à luz da ótica das revoluções perceptuais..............................292
A evolução da álgebra à luz da ótica das revoluções perceptuais.................................294
Cômputo digital versus calculadoras.............................................................................295
Mecanismos neurais das diferenças de aprendizado em crianças.................................297
Mapeamento neural em crianças com déficits cognitivos.............................................302

CAPÍTULO VIII – TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS INOVADORAS

Introdução......................................................................................................................306
Revoluções Midiáticas...................................................................................................306
Ambientes Imersivos.....................................................................................................307
Ambientes Interativos....................................................................................................309
Ambientes Colaborativos...............................................................................................311
Estereoscopia.................................................................................................................312
Realidade Virtual...........................................................................................................315
Realidade Aumentada....................................................................................................317
Holografia......................................................................................................................319
Mesas Interativas...........................................................................................................321
Ambientes Imersivos de Aprendizagem........................................................................327

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................328

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS1

AIA – Ambientes Interativos de Aprendizagem


AF – Fascículo Arqueado
AG – Giro Angular
aTC – Córtex Temporal Anterior
ATOM - A Theory Of Magnitude
ANS – Sistema de Números Aproximados
AVI - Área Ventral Intraparietal
BA – Área de Broadman
BOLD - Blood Oxygenation Level Dependent.
CAVE – Cave Automatic Virtual Environment
CIIM – Centro de Inovações em Imagens Médicas
CLO - Complexo Lateral Occipital
CPL - Córtex Pré-frontal Lateral
CT / TC– Tomografia Computadorizada.
DAN/DAT - Dorsal Attention Network - Rede de Atenção Dorsal
DIY – Do It Yourself
DMN - Default Mode Network – Rede de Modo Padrão
DLD – Desordem do Desemvolvimento da Linguagem
DP – Densidade Protônica
DWI / DW-MRI - Ressonância magnética ponderada por difusão
EEG – Eletroencefalograma
EF – Função Executiva
EGF - Fast Grow Factor
ERP - Event-Related Potential; Potencial Relacionado a um Evento
fMRI – Ressonância Magnética Funcional
FCP - Functional Connectomes Project

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Muitas siglas e abreviaturas podem apresentar diferentes expressões, tanto em português técnico como na
literatura estrangeira especializada, geralmente em inglês. Como não há uma padronização, na presente
obra procuramos manter, sempre que possível, essas siglas e abreviaturas como surgem nos textos
referenciados, para facilidade do leitor. Agrupamos aqui as diversas variações.

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HCP – Human Conectome Project
HIP – Hipocampo
IA – Inteligência Artificial
iFC/IFC – Córtex Frontal Inferior
IFG – Giro Frontal Inferior
IFOF- Fascículo Fronto-Ocipital Inferior
ILF -Fascículo Longitudinal Inferior
iPC/IPC – Córtex Parietal Inferior
IPS – Sulco Intraparietal; F-IPS: Fundo do Sulco Intraparietal
L1 – Gene Saltador L1 (retrotranspóson)
LD – Lucid Dream
LSA - Faculdade da linguagem em um sentido amplo
LSE - Faculdade da linguagem em um sentido estrito
MMPA - Medial Mystery Parietal Área – Área Parietal Medial Misteriosa.
MMO - Massively Multiplayer Online)
MOG – Giro Occipital Médio
MP – Mind Pop
mPFC – Córtex Pré-Frontal Medial
MR/RM – Ressonância Magnética; RMI/MRI: Magnetic Resonance Imaging
MTG – Giro Temporal Médio
MTL – Lobo Temporal Mediano (ou Medial)
m/iTC - Córtex Temporal Inferior e Médio
NLM - National Library of Medicine
NTF - Neurotrophic factors
OLED – Organic Light Emitting Diode
OFM - Object-File Model
PCC – Córtex Cingulado Posterior
PFC – Córtex Pré-Frontal
PHG – Giro Parahipocampal
PPC - Córtex Parietal Posterior

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QR – Quick Response (Code)
RA – Realidade Aumentada
R-fMRI - Resting State fMRI – Ressonância Magnética em Repouso
RM T1/T2 - Ressonância Magnética com tempo de relaxamento T1/T2
RM DP – Ressonância Magnética por Densidade de Prótons
RPG - Role-Playing Game
RV – Realidade Virtual
SMS – Short Message Service
PET – Tomografia por Emissão de Prótons - Pósitron-Emission-Tomography
PHG – Giro Parahipocampal
REM – Rapid Eye Movement
SD – Demência Semântica
SHH - Sonic Hedgehog
SLF - Fascículo Longitudinal Superior
SMA – Área Motora Suplementar
SMG – Giro Supramarginal
SNARC - Spatial-Numerical Association of Response Codes; Associação Numérica
Espacial de Códigos de Resposta
SNC – Sistema Nervoso Central
sTC/STC – Córtex Temporal Superior
TCM - Triple-Code Model
TDAH - Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
TE – Tempo de Eco
TEA – Transtorno do Espectro Autista
TP – Pólo Temporal
TR – Tempo de Repetição
URL – Uniform Resource Locator
VAN/VAT - Ventral Attention Network - Rede de Atenção Ventral
VHP - Visible Human Project
VHT – Visible Human Table
ZSV - Zona Subventricular

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CAPÍTULO I

CONCEITOS FUNDAMENTAIS

I wish I knew as much as I


tought I knew 10 years ago.
O. Neugebauer.

Preâmbulo
O objetivo central da presente obra é investigar como o cérebro do Homo sapiens
sapiens processa a Matemática, ou seja, procurar entender a Neurofisiologia própria da
Matemática, bem como estudar de que forma a Matemática é significativa parcela
estruturante na arquitetura da mente do Homo sapiens
A Fisiologia é o estudo das funções e do funcionamento normal dos seres vivos,
especialmente dos processos físico-químicos que ocorrem nas células, tecidos, órgãos e
sistemas dos seres vivos. A Neurofisiologia é o ramo da Fisiologia que estuda o sistema
nervoso.
Este Capítulo inicial será destinado ao estabelecimento de conceitos que serão
empregados ao longo da obra, principalmente na conceituação do que é Matemática, seus
objetos, suas correntes de pensamento, assuntos da Filosofia e da Epistemologia da
Matemática, entre outros temas. Aspectos anatômicos serão focados em Capítulos
posteriores. Um apanhado histórico das teorias sobre a consciência será apresentado.
Ninguém pode ter a pretensão de vir a conhecer profundamente uma ciência sem
conhecer sua história e sua filosofia.

Ur-questões

Nossas mais antigas concepções sobre formas e números remontam à pré-história,


provavelmente ao período conhecido como Paleolítico, ou mesmo antes. Nessas
longínquas eras, as primeiras manifestações do que hoje conhecemos como Matemática
se dividiam basicamente em duas correntes: uma dedicada à contemplação das formas,
que originaria o que hoje conhecemos como geometria, outra consagrada à manipulação
dos números, que engendraria o que no presente denominamos de aritmética ou álgebra.

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Nessas priscas épocas o conhecimento não era compartimentalizado,
individualizado, mas sim uma mescla indistinguível de sabedoria e senso comum.
D’Ambrosio, apontando que o conhecimento, que é gerado pela necessidade de uma
resposta a problemas e situações distintas, está subordinado a um contexto natural, social
e cultural, resume magistralmente:

…em todas as culturas encontramos manifestações relacionadas, e mesmo identificadas,


com o que hoje se chama Matemática (isto é, processos de organização, de classificação,
de contagem, de medição, de inferência), geralmente mescladas ou dificilmente
distinguíveis de outras formas [de conhecimento], que hoje são identificadas como Arte,
Religião, Música, Técnica, Ciências. Em todos os tempos e em todas as culturas,
Matemática, Artes, Religião, Música, Técnicas, Ciências foram desenvolvidas com a
finalidade de explicar, de conhecer, de aprender, de saber/fazer e de predizer (artes
divinatórias) o futuro. Todas aparecem mescladas e indistinguíveis como formas de
conhecimento, num primeiro estágio da história da humanidade e na vida pessoal de cada
um de nós. (D’Ambrosio, 2002, p. 60 e s.).

Todas essas formas de conhecimento são produtos do pensamento racional do ser


humano e são consideradas como expressão do comportamento do homem moderno.
Contudo, algumas ur-questões nos afligem. O homem se distingue de seus
companheiros do reino animal por se preocupar com questões relativas às origens das
coisas. Denominaremos essas questões de ur-questões, emprestando o prefixo ur- do
alemão, onde significa primeiras, remotas, antiquíssimas. Essas questões visam analisar
a realidade de uma perspectiva notadamente antropocêntrica. Sua curiosidade acerca de
questões arquetípicas, cosmogônicas, parece caracterizar seu grau de “humanidade” entre
o demais componentes desse reino.
Entre essas ur-questões selecionamos inicialmente algumas, que irão nortear este
trabalho. Existem conceitos (objetos) matemáticos transmitidos hereditariamente? Que
parcela da Matemática pode eventualmente ser inata? Como o cérebro processa os
números? Como o cérebro processa os números inteiros? E as frações? E o zero? Como
o cérebro processa os símbolos? E os objetos matemáticos? Essa representação é
abstrata? Como surgem as intuições?
Muitas outras nos assomam, intrigantemente. Respondê-las é hercúlea tarefa,
quiçá impossível com o presente cabedal de conhecimentos. Contudo, nessa última
década, progressos importantes vêm sendo feitos, produtos de esforços desenvolvidos
para sua elucidação. Pesquisas valiosas foram elaboradas, as quais produziram resultados

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inéditos, alguns completamente inesperados, que vêm lançando luz sobre essas
interrogações.
Contudo, unicamente a Matemática, desamparada, como tradicionalmente tratada,
é impotente para desemaranhar esses questionamentos. Em outras obras já nos
debruçamos sobre outras ur-questões pertinentes, como tais como: Quando o homem
começou a pensar simbolicamente? E a se interessar pelas formas? E pelos números? Ou,
em outras palavras, quando surgiu a geometria? E a aritmética? Quem surgiu primeiro?
Quando? Por quê? Quais os fatores condicionantes que influíram em sua concepção?
Foram unicamente biológicos, produto da evolução da espécie? Fatores culturais também
contribuíram? Quais?
Não voltaremos, exceto tangencialmente, a esmiuçar esses temas. Se quisermos
entender o que é essa ciência, suas origens, seu desenvolvimento, sua estupenda
capacidade descritiva, explanatória, heurística e criadora, somente um tratamento
holístico, sistêmico, histórico, que abrangesse não somente a disciplina em si, mas
também seus artífices, os matemáticos, nos proporcionaria os meios para tal.
Isso exige apoio de outras disciplinas, como a filosofia, a epistemologia, a
genética, a arqueologia, a antropologia, a história, a linguística, a paleoantropologia, a
psicologia do desenvolvimento, a neurofisiologia, a anatomia, a demografia, a
odontologia e inúmeras mais. Esse conhecimento pandisciplinar é estranho ao cotidiano
do matemático, não estando ele habituado a tal.
Na presente obra debruçar-nos-emos particularmente sobre as questões retro-
mencionadas. Não pretendemos fornecer a elas respostas cabais, insofismáveis e
irretorquíveis, pois isso se me afigura um trabalho de Sífiso. Modestamente propomos
apenas ofertar um cenário provável, que agregue e concatene o que hoje se sabe sobre o
assunto. Isso aparenta importante, porque, na nossa humilde opinião, há na literatura uma
carência de hipóteses transdisciplinares integradoras, holísticas, que reúnam e coadunem
as parcas pistas disponíveis, propiciando explicações plausíveis.
Também temos consciência que novas descobertas, tanto neurofisiológicas como
das demais ciências, podem, inopinadamente, mudar completamente o que se sabe sobre
essas questões. Todavia, o conhecimento científico é construído paulatinamente, erigido
sobre hipóteses sucessivas, complementares ou excludentes, apoiadas ou refutadas pelas
descobertas que se acumulam.
Atendendo a uma oportuna sugestão de D’Ambrosio, estender-nos-emos um pouco
mais sobre o que entendemos como ur-questão (Urfrage, neologismo em alemão). O

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alemão é uma língua indo-europeia, que faz rico uso de vários prefixos, com os quais
modifica, cria ou reconstrói vários termos. Como já mencionamos, o prefixo ur- designa
coisas primeiras, originais, antiquíssimas.
Com ele são construídas palavras como Urgeschichte (pré-história), Uralt
(velhíssimo), Urmensch (primeiro homem, homem primitivo); Urzeit (tempo remoto),
Urbeginn (o desenvolvimento do Homo sapiens), etc. Estudiosos do indo-europeu
empregam termos como Urvolk (povo primitivo, original), Urheimat (terra, pátria natal),
Ursprache (língua original), Urknall (estampido original, o Big Bang), etc. Ur-questões
são, portanto, questionamentos sobre as origens, as coisas fundamentais, as mais
primitivas.
Alguns estudiosos arguem que esse prefixo pode, inclusive, ser anterior ao
surgimento das línguas indo-europeias. Como evidência mencionam que o radical *ur
aparece em línguas extremamente antigas, significando “cidade”, como no sumeriano Ur,
Uruk, ou no basco uri, iri. Tanto o sumeriano como o basco são línguas muito antigas,
não aparentadas de qualquer língua moderna. O basco é considerado por muitos como a
única língua que conserva vestígios do que era falado na pré-história. Esse pode ser o
substrato em que se baseia a palavra latina urbs, cidade.
Em 2009, no primeiro volume da nossa obra Origens da Matemática,
questionamos: “O que é Matemática?”. Embora seja a ciência das definições exatas, não
há uma definição cabal, precisa, satisfatória do que seja. Esse é um exemplo do que
denominaria de uma meta-questão. Para respondê-la teria de me colocar externamente à
essa ciência e empregar termos extra-(ou meta)-matemáticos, além de seus próprios
termos. Toda a ciência tem suas metas-questões. “O que é Realidade?”, é a meta-questão
primordial da física. “O que é Vida?”, a da biologia.
Para compreender melhor esses meandros faremos uso da “metáfora da gaiola”,
elaborada por D’Ambrosio. Toda a ciência pode ser comparada individualmente a uma
gaiola, onde seus cientistas habitam, convivem e fazem suas descobertas empregando
linguagem e conceitos próprios. Essas gaiolas têm suas paredes espelhadas, com espelhos
que permitem quem está fora ver para dentro, mas não a quem está dentro olhar para fora.
Para responder a meta-questões como, por exemplo, “O que é Matemática”, o seus
cientistas procuram argumentos na linguagem convencionada da gaiola. Mas isso por si
só não é suficiente para compreendermos a essência dessa ciência. Os matemáticos, por
exemplo, quando não sabem algo, costumam encobri-lo sob o guarda-chuva de “conceito

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primitivo”, ou “axioma” aceito sem demonstração. Não só eles, mas os físicos empregam
o mesmo ardil para conceitos como “tempo, massa, força, gravidade, etc.”2
Como muito bem observa D’Ambrosio 3 (comunicação pessoal), as ciências
individuais ficaram tão “engaioladas”, compartimentalizadas em suas epistemologias e
métodos, que nem se permitem saber de que cores essas gaiolas são pintadas por fora.
Além dessas meta-questões há também toda a classe de ur-questões, para as quais
o pesquisador em busca de conhecimento atenta: Que parcela da Matemática pode
eventualmente ser inata? Como o cérebro processa os números? Como o cérebro processa
os números inteiros? E as frações? E o zero? Como o cérebro processa os símbolos?
Essas representações são abstratas? Como surgem as intuições? E inúmeras outras.
Esses questionamentos ultrapassam as meta-questões, na verdade, como
D’Ambrosio bem observou4, além de complementá-las chegam a questioná-las.
Bastante conhecido é o conceito de Weltanschauung, que significa visão do
mundo, cosmovisão. É o olhar com que um determinado grupo social encara sua
realidade. Anschauung, em alemão, tem o sentido de contemplação, visão, concepção,
experiência própria, Welt significa mundo. Permitir-nos-emos propor outro neologismo:
o de Uranschauung, ou seja, visão das origens, dos primórdios, do nascimento das coisas.
A Weltanschauung de um matemático seria a contemplação de sua ciência de
dentro de sua gaiola, já a Uranschauung seria a compreensão de como a gaiola e seu
conteúdo foi erigida, o que exige uma postura externa à mesma. Como Saramago apontou
“é necessário sair da ilha para ver a ilha” (Conto da ilha desconhecida). As duas visões
se complementam, questionando-se mutuamente. Essa conjunção propicia uma visão
holística e sistêmica, que permitiria, em nossa opinião, uma melhor compreensão das
origens e da natureza das ciências.
Essas perspectivas geram implicações para o entendimento dos limites primários
do conhecimento, da ciência. Otto Rossler (cf. Horgan,1998, pg.289) sugeriu que se
pudéssemos nos posicionar fora do universo (Uranschauung) saberíamos os limites do
nosso conhecimento, da nossa ciência, mas estamos presos dentro do universo
(Weltanschauung) e assim o conhecimento que temos dos nossos próprios limites deve
continuar incompleto.

2
Consultar, por exemplo, as obras de Max Jammer, incluídas nas referências bibliográficas.
3
Comunicação pessoal.
4
Comunicação pessoal.

18
Intuição semelhante Max Planck já demonstrava em sua obra “A Filosofia da
Física”, de 1936: “A ciência não pode resolver o mistério final da Natureza. E isso porque,
em última análise, nós mesmos somos parte da Natureza e, portanto, parte do mistério
que estamos tentando resolver”.
O termo para o gênero Homo é uma derivação do século XVIII do latim homo
("homem"), "ser terrestre" (do latim antigo hemō). Já termo duplo Homo sapiens foi
cunhado por Carl Linnaeus em seu trabalho do século XVIII Systema Naturae.
Outra avenida a ser percorrida na presente obra diz respeito a estudar de que forma
a Matemática é significativa parcela estruturante na arquitetura da mente do Homo
sapiens. É estudo ambicioso, em domínio ainda nebuloso, parcamente trilhado,
desafiador, contudo, altamente recompensador, tendo em vista as dádivas que
eventualmente propiciará.

O que é a Matemática?

Inicialmente, debruçar-nos-emos sobre a etimologia do substantivo “Matemática”


(singular). Surgiu nos fins do século XIV, sendo substituído nos princípios do XVII por
“Matemáticas” (plural). Proveio, por meio do latim mathematica (plural), originalmente
do grego mathema, que significava algo como: ciência, conhecimento, uma lição, algo
que é aprendido; literalmente era entendido como: “aquilo que é aprendido” (cf. Onlyne
Etymology Dictionary).
“Mathematike tekhne ", significava ciência/técnica Matemática, e era empregada
como a forma feminina de mathematikos (adjetivo) que, por sua vez, significava: algo
relativo à Matemática, à astronomia, disposto a aprender.
Essas formas estavam relacionadas com o grego manthanein, “aprender”, que tem
suas raízes primitivas no proto-indoeuropeu *mendh, “aprender”, o qual foi fonte do
grego menthere, “cuidar”; do lituano mandras, “estar inteiramente acordado”; do Eslavo
Antigo da Igreja madru, “sábio”; do Gótico mundonensis, “olhar para”; do Alemão
munter, “acordado”.
Portanto, mesmo em suas raízes mais remotas, o vocábulo Matemática estava
correlacionado com: aprender, estar acordado para algo. É interessante notar que a
Matemática, em suas mais remotas origens do vocábulo, merecia uma conotação muito
mais abrangente do que hoje é entendida, um mero jogo simbólico formalizado,

19
disciplinado por regras lógicas. Ela estava aberta a aprender, a estar acordado a aprender
qualquer tipo de coisa, arte, matéria ou mesmo religião.
Retornemos à meta-questão “O que é a Matemática?”. Como adrede frisamos,
embora seja a ciência das definições exatas, não há uma definição cabal, precisa,
satisfatória do que seja. Resistiremos tenazmente à tentação de apresentar uma definição
formal do que é Matemática. Inúmeras já foram propostas, nenhuma cabalmente
satisfatória. Vejamos algumas.
As mais antigas diziam algo como: a Matemática é: a) a linguagem da natureza,
das grandezas; b) a ciência dos números e das grandezas; c) a ciência das quantidades e
das formas.
Outras, algo mais recentes e elaboradas, propõem que a Matemática é: a) a
expressão da mente humana (Courant & Robins, p.3); b) uma série de grandes intuições
cuidadosamente joeiradas, refinadas e organizadas pela lógica (Kline, p.312); c) uma
atividade do pensamento, não um corpo de conhecimento exato (Weyl, apud Kline, 1980,
p.320); d) ciência que investiga relações entre entidades definidas abstrata e logicamente
(dicionário Aurélio).
Categoria especial é a das definições sofisticadas, embora similarmente
insatisfatórias: a Matemática é: a) a classe de todas as proposições da forma “p implica
q” (Russel); b) a ciência das deduções formais, dos axiomas e dos teoremas (Formalismo);
c) uma grande tautologia (Logicismo: Matemática = Lógica).
Outras há, ainda, ingênuas, tais como: é aquilo que os matemáticos fazem, ou: não
sei o que é, mas quando a vejo, reconheço-a imediatamente e, também: Matemática é
simplesmente o que a comunidade de matemáticos decide chamar de “Matemática”.
A Matemática é uma ciência histórica e social, como tal progrediu e progredirá ao
longo dos tempos.

Noções de Filosofia e Epistemologia da Matemática

Denominam-se de objetos matemáticos a todos os entes que são assuntos de estudo


da Matemática, tais como números (naturais, racionais, transcendentais, imaginários,
etc.), grandezas (comprimento, distância, área, volume, etc.), formas geométricas (retas,
polígonos, retângulos, círculos, etc.), entre elas as superfícies (planas, esféricas,
hiperbólicas, etc.), as formas estereométricas (pirâmides, cilindros, etc.), bem como
vetores, integrais, séries, etc. Os gregos denominavam esses objetos de os mathematiká
(μαθηματικά).

20
No âmbito da Filosofia da Matemática, questionamentos sobre sua natureza se
distribuem naturalmente em três categorias. A primeira diz respeito às questões
ontológicas, populares desde os princípios do século XX, tais como: o que são os objetos
matemáticos, onde residem, e se são independentes do cérebro humano. A segunda trata
dos fundamentos da Matemática, em moda nos fins do século XIX e princípios do XX.
Preocupa-se com os axiomas que necessitamos como base de um sistema matemático, e
se é possível construir tal sistema que seja ao mesmo tempo completo e consistente. A
terceira trata da epistemologia da Matemática, que analisa de que forma o conhecimento
matemático é possível e como podemos estendê-lo para as outras ciências.
O problema da natureza dos objetos matemáticos, se existem de modo independente
do cérebro do homem, que então os descobre, ou se são apenas o produto da atividade
cerebral que os constrói, é o fio condutor que perpassará nossa narrativa e é objeto ao
longo da história de várias escolas e filosofias acerca da mente.
As filosofias acerca da mente podem ser divididas em duas categorias
abrangentes: as teorias dualistas e as teorias materialistas. Dualismo é uma filosofia
acerca da mente que considera a mente como uma substância não-física. Divide tudo o
que há no mundo em duas categorias diferentes: a mental e a física. O principal problema
com o dualismo é que não consegue explicar a interação causal entre o mental e o físico.
A interação física é fácil de aceitar, mas uma interação não-física é algo obscuro
e pouco palatável. Não é evidente como uma mente não-física poderia originar quaisquer
efeitos físicos (ou comportamentais) sem violar as leis de conservação de massa, energia
ou momento, isto é, as leis físicas. A objeção mais comum a essa corrente é que ela viola
a lei da conservação da energia: se não tem existência física, como é que a mente pode
originar mudanças físicas no cérebro?
Nas teorias materialistas o mental não é distinto do físico, ou seja, todos os estados
mentais (incluindo aqui os objetos matemáticos), propriedades, processos e operações
são, em princípio, idênticas com estados físicos, propriedades processos e operações.
Reduzem o nível mental ao físico, daí serem muitas vezes denominadas de teorias
reducionistas.
Dividiremos, apenas para encadeá-las, as principais correntes sobre os fundamentos
da Matemática em tradicionais (antigas), modernas e recentes.

21
As correntes Matemáticas tradicionais

Para a Matemática, no que tange aos objetos matemáticos, principalmente aos


números, reapresentam-se na atualidade questões análogas às que se propunham na Idade
Média no tocante às ideias, formas ou universais. Os universais são vocábulos genéricos
que servem para designar os entes empíricos existentes fora do pensamento, como
retângulos, esferas, etc.; quando muito são uma síntese mental desses objetos, mas só
estes são reais. A Idade Média responde à pergunta de qual era a natureza dos universais
de quatro maneiras:
1. - O nominalismo defende que os universais são palavras às quais não
corresponde qualquer realidade.
2.- O conceitualismo defende os universais como “conceitos” formulados pela
mente por abstração das diferenças individuais, designando as qualidades mais ou menos
semelhantes dos indivíduos de uma dada classe.
O realismo divide-se em duas correntes, uma radical e outra moderada:
3. - O realismo radical sustenta que os universais existem in se per se, isto é, que
os universais têm existência real e autônoma.
4. - O realismo moderado sustenta que os universais existem formaliter na mente,
fundamentaliter in res. Com isto quer dizer que os conceitos, enquanto universais,
existem na mente; na realidade existem os indivíduos, os quais, embora constituindo
ordens ou espécies, são unidos por qualidades comuns. A realidade autoriza a recolher a
essência comum ou a natureza num só conceito, que diz respeito à multiplicidade dos
indivíduos da mesma espécie ou ordem.
Nas teorias Matemáticas atuais retornam os velhos nomes, porém o
desenvolvimento e a agudeza dos conceitos matemáticos as distanciam das teorias
medievais. Por isso, essa terminologia tradicional constitui apenas um esquema
aproximativo.
Chamaremos de nominalistas àqueles que sustentam que os objetos matemáticos
(números, por exemplo) não são entidades abstratas e que, se existe possibilidade de
interpretar a teoria destes de modo a fazê-la resultar verdadeira, deve-se fazê-lo com
referência a objetos concretos (Manno, 1985, p.232).
Conceitualistas são os que defendem que os objetos matemáticos existem e são
entidades abstratas, porém produzidas pela mente.

22
Finalmente, chamaremos de realistas ou platônicos àqueles que sustentam que os
objetos matemáticos existem como entidades abstratas, mas independentemente do nosso
pensamento.
Apresentaremos essas correntes seguindo, aproximadamente, sua evolução
cronológica, a saber: realismo, nominalismo e conceitualismo.

Realismo ou Platonismo

A filosofia atual conservou a importante distinção estabelecida por Platão entre


opinião ou crença (doxa) e conhecimento certo ou ciência (episteme). Para Platão,
opinião, sobre qualquer tema, é característica do vulgo, do povo, e é o único que se pode
obter com respeito às “coisas fugazes” (objetos físicos), que não “são” em sentido
completo, pois nascem, mudam e morrem. Apenas os objetos eternos (as ideias) podem
ser temas do conhecimento certo.
Para ele um importante empreendimento intelectual humano consistia em
distinguir aparência de realidade. O mundo das aparências, dos objetos fugazes, está em
constante mutação. As entidades pertencentes a este mundo seriam “relativamente reais”.
As entidades “absolutamente reais”, pertencentes à “realidade” (que nunca muda) - as
ideias ou formas, no dizer de Platão, são concebidas como independentes da percepção,
como capazes de definição absolutamente precisa e como absolutamente permanentes, ou
seja, atemporais e eternas. Correspondem, pelo menos em parte, àquilo que os filósofos
posteriores chamam de “universais”.
Por exemplo, consideremos o objeto “retângulo”. Existem fisicamente vários tipos
de retângulos: folhas de papel, tampos de mesa, azulejos, livros, etc., porém, todos têm
em comum quatro lados, iguais dois a dois, e quatro ângulos retos. Se pudéssemos,
contudo, dispor de instrumentos ideais de medida de comprimento (régua) e de ângulo
(goniômetro), capazes de medir com precisão absoluta, verificaríamos que inexistem na
realidade dois “retângulos” físicos exatamente iguais.
Se tomarmos esse objeto “retângulo” mais ou menos transitório e indefinido, e
eliminarmos essas “imperfeições”, trocando seu caráter indefinido por um definido, sua
transitoriedade pela permanência, essas “imperfeições” pelas “perfeições”
correspondentes, o resultado seria então a forma do retângulo, da qual todos os retângulos
são apenas cópias imperfeitas. Forma, para Platão, é, portanto, uma característica ou
conjunto de características comuns a certo número de coisas.

23
Perfeitas e imutáveis, as ideias ou formas seriam os modelos ou paradigmas dos
quais as coisas reais seriam meras cópias imperfeitas e transitórias. Constituiriam, pois,
tipos ideais, que transcenderiam o plano mutável dos objetos físicos. É essa Ideia -
atemporal - que representa a verdadeira e permanente realidade, o mundo real nada mais
é que sua sombra.
De fato Platão, usou a comparação de uma raça de homens, acorrentados em uma
caverna subterrânea de tal modo que só pudessem ver a parede: eles viam o mundo passar
como sombras nessa parede. É o que nos acontece quando observamos a natureza: a
verdadeira realidade escapa-nos aos sentidos, é algo que jamais observamos, só pode ser
contemplada pelo pensamento. É a famosa alegoria da caverna de Platão.
Portanto, existe um mundo das ideias / formas, objetos atemporais, logo eternos,
independentes do pensamento e definidos, diferente do mundo da percepção temporal.
Porém, a afirmativa de que o mundo material se torna compreensível através da hipótese
das ideias/formas deixa em suspenso um problema fundamental: como podemos conhecer
essas realidades, invisíveis e incorpóreas? Os sentidos só podem conhecer o que é
corpóreo, e a simples admissão de que existe um mundo das ideias não é suficiente. É
preciso que se admita um conhecimento das ideias incorpóreas que antecede o
conhecimento fornecido pelos sentidos.
No Mênon Platão expõe a doutrina de que o intelecto pode aprender as ideias
porque ele também é, como as ideias, incorpóreo. A alma humana antes do nascimento,
antes de se ligar ao corpo, teria contemplado as ideias, enquanto seguia o cortejo dos
deuses. Uma vez encarnada, perde a possibilidade do contato direto com os arquétipos
incorpóreos, mas diante de suas cópias, os objetos sensíveis, pode ir progressivamente
recuperando o conhecimento das ideias. Conhecer, para Platão, seria recordar, lembrar,
reconhecer. A anamnese (anamnesis) seria a recordação das ideias eternas conhecida na
existência pré-terrena. Platão apresentou exemplos de ideias em dois campos: na esfera
das relações estéticas e morais e nas relações matemáticas.
A missão da filosofia, para Platão, consistia em “descobrir o conhecimento
verdadeiro por trás do véu da opinião e da aparência, das mudanças e ilusões do mundo
temporal. Nesta missão a Matemática tinha um papel central, pois o conhecimento
matemático era um exemplo notável de conhecimentos independentes da experiência dos
sentidos, conhecimentos de verdades eternas e necessárias” (Davis & Hersch, D&H,
1985, p.366/7).

24
Em seu dialogo Mênon, Platão faz Sócrates interrogar um menino escravo,
conduzindo-o a descobrir que a área do quadrado grande é duas vezes a do quadrado
ABCD, cuja diagonal é o lado do quadrado maior.

Fig.1.1

De que forma o menino escravo tem conhecimento disso? Sócrates argumenta que
o menino não aprendeu tal coisa durante sua vida mortal, de modo que o seu
conhecimento deve ser uma recordação da vida antes de seu nascimento.
Isso mostra que existe um conhecimento verdadeiro, eterno, independente da nossa
vida mortal. Platão argumenta que:

1. Conhecemos verdades da geometria que ainda não aprendemos pela educação ou


experiência.
2. Este conhecimento é um exemplo das verdades universais, imutáveis que, com efeito,
podemos perceber ou reconhecer (recordação-anamnese).
3. Deste modo, deve existir um reino de verdade absoluta, imutável, a fonte e base do nosso
conhecimento do bem (no caso o mundo das ideias matemáticas).

Segundo o platonismo, os objetos matemáticos são reais. Por isso, essa corrente
também é conhecida como realismo. Sua existência é um fato concreto, independente do
nosso conhecimento sobre eles. Conjuntos infinitos, curvas que preenchem o espaço,
hiperesferas, variedades de dimensão infinita, fractais - todos os membros do zoológico
matemático, para empregar uma expressão de David & Hersch, são objetos definidos,
com propriedades definidas, que existem fora do espaço e do tempo da experiência física.

São imutáveis - não foram criados, nem mudarão ou desaparecerão. Qualquer resposta
significativa sobre um objeto matemático tem resposta definida, quer sejamos capaz ou não
de determiná-la. Segundo o platonismo, um matemático é um cientista empírico, como um
geólogo; não pode inventar nada, pois tudo já existe, o que pode fazer é descobrir coisas
(David & Hersch, 1985, p. 359).

25
Platão não considerava a Matemática como uma idealização, feita pelos matemáticos, de
certos aspectos do mundo empírico, mas a descrição de uma parte da realidade (Körner,
1985, p. 20).

Para o platonismo, a proposição matemática 1 + 1 = 2 e todas as demais proposições


verdadeiras da aritmética e da geometria são necessariamente verdadeiras porque
descrevem relações imutáveis entre objetos imutáveis.
Platão frisou que o raciocínio usado na geometria não se refere às figuras, esboços
ou desenhos visíveis, mas às ideias absolutas que elas representam.

Críticas ao Platonismo

As principais críticas ao platonismo residem em sua extrapolação do campo lógico


para o ôntico, do ideal para o real, na absolutização das leis matemáticas e na redução a
estas do variado comportamento da realidade natural e das várias formas do
conhecimento. Considerando a Matemática como descoberta e não criação do
matemático, um ser humano, acredita-a imune às influências do contexto cultural e
cronológico em que vive.

Seguidores atuais

Cerca de 65 % dos matemáticos da atualidade são platonistas (D & H, 1985, p.363),


entre eles expoentes como Russel, Hardy, Göedel, Thom, Connes e muitos outros. Isso
mostra que dois entre cada três matemáticos da atualidade pendem para esta corrente.
O pendor platônico de Bertrand Russel o impele para um realismo radical:

Todo o conhecimento deve ser reconhecimento, se não pretende correr o perigo de redundar
em mero engano - a aritmética é descoberta exatamente no mesmo sentido em que Colombo
descobriu as as Índias Ocidentais e nós não criamos mais números mais do que ele tinha
criado as Índias (ap. Manno, p.242).
G. H.Hardy afirma: “Eu acredito que a realidade Matemática reside fora de nós...”;
“Em algum sentido, a realidade Matemática é parte da realidade objetiva” (ap. White, p.
2363).

Também o é Göedel:

Malgrado o seu distanciamento da experiência dos sentidos, temos algo como que uma
percepção também dos objetos da teoria dos conjuntos, como se depreende do fato que os
axiomas se impõem a nós como verdadeiros. Não vejo nenhuma razão por que deveríamos

26
ter menos confiança neste tipo de percepção, isto é, na intuição matemática, do que na
percepção dos sentidos... Esses objetos podem também representar um aspecto da realidade
objetiva. (Göedel, ap. D & H, 1985, p. 360).
Outro entusiasta do platonismo é René Thom:

Levando tudo em conta, os matemáticos deveriam ter a coragem de suas convicções mais
profundas e afirmar assim que as formas matemáticas têm, com efeito, uma existência que
é independente da mente que as contempla... No entanto, a qualquer tempo, os matemáticos
têm somente uma visão incompleta e fragmentária deste mundo das ideias (D & H, 1985,
p.360).
Alain Connes, medalha Fields, Professor do Collège de France, professa:

Por um lado, existe independentemente do homem uma realidade matemática bruta e


imutável; por outro lado,..., só a percebemos graças ao nosso cérebro, ao preço de uma rara
mistura de concentração e desejo. Dissocio, portanto, a realidade matemática do
instrumento de que dispomos para explorá-la, e admito que o cérebro é um instrumento de
investigação material que nada tem de divino, que nada deve a qualquer tipo de
transcendência. (Changeux & Connes, 1996, p. 38).

Interlúdio histórico I

A filosofia da Matemática de Aristóteles é, em parte, oposta à de Platão e,


parcialmente, independente dela. Aristóteles rejeita a distinção platônica entre o mundo
das formas, considerado a verdadeira realidade, e o da experiência sensorial, que somente
deve ser entendido como uma aproximação do mundo das formas. De acordo com
Aristóteles, a forma ou essência de qualquer objeto empírico, como uma caneta ou um
computador, constitui parte dele, do mesmo modo que sua matéria.
Aristóteles distingue nitidamente entre a possibilidade de se abstrair (ou seja,
etimologicamente, extrair) características matemáticas (como “unidade”, ou
“retilinearidade”) de objetos e a existência independente dessas características, isto é,
unidades ou retas, enfatizando que a possibilidade de abstração de modo algum acarreta
a existência independente do que é, ou pode ser, abstraído. É o cérebro humano que, para
Aristóteles, tem essa capacidade de abstração. Portanto, para o estagirita, só existem
objetos matemáticos, ou seja, Matemática, se existirem matemáticos.
Podemos atribuir a Aristóteles dois resultados incontroversos sobre eles: a) cada
um desses objetos, em certo sentido, está nas coisas das quais é abstraído, e b) há uma
multiplicidade deles, por exemplo, existem tantas unidades aritméticas, casos de dois,
três, etc. bem como tantos círculos, linhas retas, etc., quantos são necessários no cálculo
ou nos argumentos geométricos (Körner, 1985, p.20).

27
Com Santo Agostinho, as formas / ideias platônicas são interpretadas como o
pensamento divino exemplar, presentes no mundo pela criação, e, todavia,
transcendentes; análoga interpretação sofre também a Matemática, que passa à categoria
de verdade eterna.
Santo Agostinho rejeitou as ideias gregas defendidas por Aristóteles de que o
universo era cíclico, eterno, sem início e fim. Foi ele quem propôs um início para o
universo, um ponto de partida, dado por sua criação por Deus. Dessa forma refugou a
noção de um templo cíclico, propondo que o tempo começou quando o universo começou,
por ocasião da sua criação.
Platão considerava a geometria um componente essencial em sua concepção de
mundo, no que era acompanhado pelos filósofos racionalistas, Descartes, Spinoza e
Leibniz, que consideravam a Razão traço inato da mente humana, mediante a qual as
verdades poderiam ser percebidas independentemente da observação. A razão era a
faculdade que permitia ao homem o acesso ao Divino, e seu melhor instrumento era a
Matemática que, partindo de verdades auto-evidentes, prosseguia por meio de raciocínios
lógicos para descobrir verdades obscuras. Dessa forma, a Matemática e a Religião eram
exemplos notórios do conhecimento obtido por meio da Razão.
O conhecimento do bem de Platão, filão da tradicional filosofia grega, foi
transmutado pelos Pais da Igreja, notadamente por Tomás de Aquino, no conhecimento
de Deus no pensamento dos racionalistas da Renascença. Esse movimento exigia, tanto
para a Razão como para a Ciência, negar a supremacia da autoridade, em particular da
religiosa, enquanto mantinha a verdade da religião.
Eram tempos difíceis, pois a Inquisição imperava, e queimar na fogueira estava
sempre presente no horizonte desses filósofos. “Batalhas sombrias”, é como se referia
Bertrand Russel aos embates entre a ciência e a religião. Sabiamente contornavam essa
sombria perspectiva declarando que “a Ciência nada mais era que o Estudo de Deus”.
Essa estratégia liberou a ciência, até então garroteada pela religião.
Cabe lembrar o argumento de Galileu em sua defesa no processo que sofreu na
Inquisição por defender o heliocentrismo: “as escrituras sagradas estão corretas, o que
está errado é a interpretação que os homens fazem delas”. Esse argumento ainda na
atualidade permanece extremamente válido, tendo em vista os movimentos
fundamentalistas hoje onipresentes. Galileu recorreu a Santo Agostinho (354-430) que,
em sua obra De Genesi ad litteram (Sobre a interpretação literal do Gênesis), já afirmava:

28
Se acontece que a autoridade das Sagradas Escrituras é posta em oposição com uma razão
manifesta e certa, isto quer dizer que aquele que interpreta a Escritura não a compreende
de maneira conveniente; não é o sentido da Escritura que ele não pode compreender, que
se opõe à verdade, mas o sentido que ele quis lhe dar; o que se opõe à verdade não é o que
se encontra na Escritura, mas o que se encontra nele mesmo [no intérprete] e que ele quis
atribuir a esta [a Escritura].

Tomás de Aquino (1225-1274), que praticamente estruturou a teologia moderna da


Igreja, testemunhava: “Timeo hominen unius libri”5. Mesmo o texto da Bíblia ensina: "A
letra mata, mas o espírito vivifica" (Paulo, 2 Coríntios 3:6).
Os livros sagrados das mais diversas religiões podem ser inspirados, merecedores
de profunda reverência, contudo, devem ser interpretados levando-se em conta o contexto
histórico, social e cultural em que foram produzidos.
A existência de objetos matemáticos habitantes de um reino de ideias alheio à mente
humana não era problema para Leibniz ou Newton que, como cristãos, aceitavam a
existência de uma mente divina. A existência de objetos ideais, como formas ou números,
não constituía problema, o contrário, justificar a existência de objetos não ideais,
materiais, é que era a questão.
Quando o escolasticismo medieval foi abandonado, substituído pelo racionalismo
e este, por sua vez, desafiado por Locke e Hobbes na Inglaterra e pelos Enciclopedistas
na França, ocorreu então o surgimento do empirismo. Foi o progresso da ciência natural
baseada no método experimental que concedeu ao empirismo sua vitória decisiva, sendo
a experimentação e a observação os únicos meios considerados legítimos de se obter o
conhecimento.

Para os empiristas todo o conhecimento, exceto o matemático, provinha da


observação. Enquanto que para os racionalistas o conhecimento matemático era o seu
melhor instrumento, prova ideal da supremacia da razão, para os empiristas a sua origem
era uma questão deveras embaraçosa. Geralmente não tentavam explicar como era obtido.
Uma exceção entre eles foi John Stuart Mill, o qual propôs uma teoria empírica do
conhecimento matemático - que a Matemática é uma ciência natural em nada diferente
das outras.

5
Temo o homem de um único livro.

29
Nominalismo

O nominalismo rejeita as concepções abstratas, ideais, e admite apenas as realidades


empíricas. Para John Stuart Mill, seu defensor no campo matemático, os números são
fruto da abstração operada sobre as realidades empíricas. Portanto, os números não
passam de meras representações mentais de realidades empíricas.
Outra tentativa do nominalismo para fazer corresponder ao número algo de
concreto, consiste na identificação do número com o numeral. Por numeral entende-se o
sinal, gráfico usualmente, associado ao conceito de um determinado número. Por
exemplo, 3 é o numeral associado ao número três. Com a identificação do número com o
numeral existiria uma correspondência entre os dois planos e o número encontraria sua
justificação.
O nominalismo sucumbe sob o peso de numerosas críticas. Frege dirigiu-lhe
acerbas críticas em seu “Fundamentos da Aritmética”.
Vamos analisar algumas das críticas. Identificar números com numerais é uma ideia
ingênua, pois existem números infinitamente grandes, infinitamente maiores que o
número total de todas as partículas do universo. Mesmo associando a menor partícula
elementar a um número, mesmo assim existem infinitamente mais números que
partículas. É impossível encontrar objetos que correspondam a toda a série de números
possíveis.
A teoria nominalista torna inadmissíveis importantes conceitos matemáticos, tais
como “conjunto”, “par ordenado”, “número complexo”, "hiperesfera”, etc. Um
“conjunto” não é a mesma coisa que um “agregado” de objetos, ou que uma “soma” de
dois entes reais. Tampouco se podem fazer corresponder sempre a realidades concretas
os diversos modos de combinar, operar e ordenar os números. Isto sem falarmos de
importantes áreas da Matemática que tratam de objetos sem correspondentes no espaço
comum (tri-dimensional euclidiano real), como as geometrias não-euclidianas, números
complexos, etc.
Por conseguinte, o nominalismo, entendido como teoria que nega o valor ideal e
autônomo da Matemática, reduzindo-a a interpretação ou tradução mental de realidades
e relações concretamente existentes, é incapaz de justificar a natureza e a extensão desta
disciplina.

30
Conceitualismo

Seguindo a referência histórica indicada, classificamos como “conceitualismo” as


teorias que não consideram os números entidades concretas, nem entidades ideais
existentes in se e per se, mas, à semelhança dos antigos conceitualistas, os consideram
“construções mentais”, “invenções da mente”, existentes só em pensamento, dotados, no
entanto de um valor, de uma estrutura, de um conteúdo inteligível ”(Manno, p.234)
Para os adeptos desta corrente, a Matemática está em condições de “descobrir” ou
“construir” mundos ideais objetivamente, isto é, ao menos significativamente válidos,
com um conteúdo coerente, não meras fantasias. Portanto, a Matemática, embora lidando
com um mundo ideal, não pode renunciar ao critério da coerência.
O melhor exemplo desta corrente, entre as escolas modernas da Matemática, é a
conhecida como intuicionista ou construtivista, que estudaremos adiante.

Interlúdio Histórico II

A concepção de Leibniz a respeito do objeto da Matemática pura é inteiramente


diferente da de Platão ou de Aristóteles. Para ele, as proposições matemáticas
assemelham-se às proposições lógicas na medida em que não são verdadeiras com relação
a objetos eternos particulares ou objetos idealizados, resultantes de abstração ou, na
verdade, de qualquer outro tipo de objeto. São verdadeiras porque sua negação seria
logicamente impossível. Nesse contexto, Leibniz pode ser considerado como precursor
da corrente denominada logicismo, que veremos adiante.
Nessas controvérsias filosóficas a posição privilegiada da geometria nunca era
questionada. Discutia-se se partíamos da Razão, que os seres humanos possuem como
uma dádiva do Divino, para descobrir as propriedades do mundo real, ou se temos
somente nossos sentidos com os quais nos empenhamos em descobrir as propriedades dos
objetos físicos e de seu Criador.
Ambos os contendores aceitavam que o conhecimento geométrico não era
problemático, mesmo se todo o resto do conhecimento o fosse. A Matemática era o
melhor exemplo para confirmar a visão de mundo dos racionalistas, enquanto que para os
empiristas era um contra-exemplo embaraçoso, o qual tinha que ser ignorado ou explicado
de alguma maneira.

31
Se a Matemática contém conhecimento independente da percepção dos sentidos,
então o empirismo é inadequado como explicação de todo o conhecimento humano.
Porém, a ciência moderna, que endossa o “método científico”, de caráter
fundamentalmente experimental, aplaude o empirismo.
Este embaraço ainda nos acompanha, pois temos a tendência de esquecer que o
ponto de vista científico moderno ganhou supremacia somente no século XIX, para o que
o positivismo de Augusto Comte contribuiu de maneira significativa.
No fim do século dezoito, Immanuel Kant tentou unificar as tradições conflitantes
do racionalismo e do empirismo. A metafísica de Kant é uma herança platônica, da
procura da certeza e da imutabilidade do conhecimento humano.
Distinguiu nitidamente entre os noumenos, as coisas nelas próprias, que não
podemos jamais conhecer, e os fenômenos, que são tudo sobre o que nossos sentidos nos
podem dizer alguma coisa.
Sua principal preocupação era com o conhecimento “a priori”, o qual independia
do tempo e da experiência. Diferenciou dois tipos desse conhecimento. O “a priori
analítico” é o que sabemos ser verdadeiro pela análise lógica, pelo exato significado dos
termos usados. Acompanhando os racionalistas, acreditava que possuímos também um
outro tipo de conhecimento a priori, que não é simplesmente truísmo lógico: o “a priori
sintético”, representado pelas nossas intuições do tempo e do espaço. Explica sua natureza
a priori afirmando que estas intuições são propriedades inerentes ao espírito humano. A
aritmética, que se baseia na intuição de sucessão, sistematiza nosso conhecimento do
tempo. Já o nosso conhecimento do espaço é sistematizado na geometria.
Para Kant, como para Platão, existe somente uma geometria, a que hoje
conhecemos como euclidiana, para distingui-la de muitos outros modelos conceituais que
também denominamos de geometrias, como as de Bolyai, Lobachevski e Riemann. As
verdades da aritmética e da geometria se impõem pelo modo como a nossa mente
funciona. Isso esclareceria por que são supostamente válidas para todos,
independentemente da experiência. As intuições de tempo e do espaço, sobre as quais
estão baseadas a aritmética e a geometria, são objetivas no sentido de que são
universalmente válidas para todas as mentes humanas.
O dogma kantiano do a priori influenciou profundamente a filosofia da Matemática,
adentrando o século vinte, de tal modo que as três escolas modernas de fundamentos: o
logicismo, o intuicionismo e o formalismo, se esforçaram manter a Matemática na
posição especial em que Kant a alçara.

32
O ponto importante é a tese kantiana de que “sem a intuição sensível não nos seria
dado nenhum conceito”, isto é, a intuição dos sentidos pressupõe a intuição pura: nossos
sentidos não podem fazer o seu trabalho sem ordenar as suas percepções na estrutura de
espaço e tempo. Desse modo o espaço e o tempo são anteriores a todas as intuições dos
sentidos, e as teorias do espaço e tempo, ou seja, a geometria e a aritmética, são válidas a
priori. A fonte de sua validade a priori é a faculdade humana de intuição pura, que se
limita estritamente a este campo e que é estritamente distinta do modo intelectual ou
discursivo de pensar.
Kant pregava a doutrina que os axiomas da Matemática eram baseados na intuição
pura: podiam ser “vistos” ou “percebidos”, num modo não sensitivo de “ver” ou
“perceber”. Além disso, a intuição pura estava envolvida em cada passo de cada prova
em geometria, e na Matemática em geral. A aritmética, para Kant, é baseada na contagem,
processo que por sua vez é baseado essencialmente na intuição pura do tempo.
Kant excluía da Matemática os argumentos discursivos, colocados apenas em
palavras, o que, porém, não é inteiramente verdadeiro. Mas a grande crítica à tese kantiana
sobre a Matemática, como Frege observou, reside no fato que existem objetos
matemáticos que de modo algum são intuitivos, por exemplo, números extremamente
grandes ou pequenos, como 101000 ou 10-1000, os números complexos, o hipercubo, a curva
de Möebius, etc. Estes objetos não têm uma intuição sensível correspondente e, no
entanto, são válidos. A pretensão kantiana de não admitir conceitos aos quais não
corresponda a percepção sensível tornaria impossível grande parte da Matemática.

Correntes modernas

Precursores do logicismo

Com Cauchy e Weierstrass iniciou-se um movimento de retorno aos fundamentos,


para clarificar certos pontos dúbios e assentar diversas disciplinas Matemáticas sobre
bases sólidas. Este movimento culminou com a denominada aritmetização da análise
Matemática (ciência que engloba a álgebra, a aritmética, o cálculo integral e o diferencial,
etc.), onde se procurava substituir a geometria pela aritmética como fundamento para a
Matemática. Aos poucos foram eliminadas certas questões confusas, como a de
infinitésimo, concebidas em moldes antiquados, que estavam nos fundamentos da análise,

33
evidenciando-se que este corpo de doutrina se fundamentava unicamente no conceito de
número natural (0,1,2,3,4,...).
Paulatinamente foi-se definindo rigorosamente os conceitos de número real,
número complexo, etc., baseando-se tais definições apenas nas propriedades do conjunto
dos números naturais. Dedekind, Cantor e Weierstrass mostraram como construir o
sistema dos números reais (o contínuo linear) a partir apenas dos números naturais. Nos
métodos dos três apareciam conjuntos infinitos de números racionais, para definir ou
construir um número real. Desse modo, no esforço de reduzir a geometria e a análise à
aritmética, introduziram-se conjuntos infinitos nos fundamentos da Matemática.
Além disso, com o advento das geometrias não euclidianas, passou-se a considerar
a geometria não como o estudo do espaço euclidiano real, mas como uma estrutura lógica
abstrata. Como existiam várias estruturas deste tipo, isto implicava na existência de várias
“geometrias” cabíveis matematicamente. Cabia ao físico decidir qual dessas geometrias
se harmonizava com a realidade do espaço, o matemático puro podia estudar
indiferentemente qualquer uma delas.
Influenciadas pelo movimento que descrevemos sucintamente, as disciplinas
dedutivas alcançaram um alto grau de perfeição lógica. A lógica formal também
experimentou um grande progresso, simultaneamente à esta reestruturação nos
fundamentos da Matemática. Boole, em meados do século passado, dotou a lógica de um
simbolismo matemático que permitiu análise profunda das operações lógicas, lançando
as bases para desenvolvimentos ainda maiores. Suas obras principais foram “The
Matematical Analysis of Logic” (1847) e “Investigations of the Laws of Thougt” (1854).
Anteriormente, outros pensadores, como Plouquet, Lambert e Leibniz, já haviam tentado
“algebrizar” a lógica.
Leibniz apresentou contribuições importantes neste sentido, porém não foram
publicadas na época, pouco influenciando desta maneira desenvolvimentos posteriores.
Boole pode ser considerado como fundador da lógica simbólica (ou de importante parte
dela). De Morgan e Stanley Jevons também contribuíram para o seu desenvolvimento.
Porém, como estava estruturada, apresentava pequena importância para os fundamentos
da Matemática. Foi com Peano e sua escola (Padoa, Burali Forti, Pieri, Vaca, ...) que, a
partir de 1880, a lógica avançou de tal forma que se mostrou capaz de contribuir
significativamente para a elucidação dos problemas relativos aos fundamentos da
Matemática.

34
A teoria dos conjuntos foi desenvolvida por Cantor, que a partir de 1872 começou
a publicar trabalhos revolucionários, que influenciaram profundamente não apenas a
Matemática, mas também as concepções relativas aos seus fundamentos. A noção de
conjunto, uma coleção de objetos distintos, era tão simples e fundamental que poderia ser
o tijolo com o qual poderia ser construída toda a Matemática, como afirma D & H (1985,
p.372).
Até a aritmética, até então considerada a estrutura fundamental da Matemática,
passaria a ser secundária, pois Frege mostrou como os números naturais poderiam ser
construídos a partir do nada - isto é, a partir do conjunto vazio - usando-se apenas as
operações da teoria dos conjuntos. A teoria dos conjuntos parecia ser quase o mesmo que
a lógica. A relação de inclusão em teoria dos conjuntos, A é um sub-conjunto de B (A⊂B),
pode ser sempre restrita como a relação de implicação, “se A, então B” (A→B).
A relação de implicação é fundamental para a Matemática, base do raciocínio
dedutivo, de tal forma primordial para o logicismo, que Russel chegou a definir a
Matemática pura como “a classe de todas as proposições da forma “ p implica q”, onde p
e q são proposições contendo uma ou mais variáveis, as mesmas nas duas proposições e
nem p nem q contêm constantes exceto constantes lógicas.”(Principle of Mathematics,
apud Boyer, 1974, p. 440).
Frege, antes de Russel, já havia apresentado as teses centrais do logicismo,
principalmente em sua obra “Os Fundamentos da Aritmética”. Porém, devido ao seu
simbolismo extremamente complicado, a sua obra quase não foi lida, permanecendo
praticamente ignorada, até que grande parte de suas ideias foram redescobertas,
independentemente, por Bertrand Russel. Frege afirmava que a aritmética se reduzia à
lógica, enquanto que Russel e Whitehead afirmavam que toda a Matemática reduzia-se à
lógica, como podemos constatar pela seguinte afirmação de Russel:

A Matemática e a lógica, historicamente falando, têm sido consideradas disciplinas


distintas. A Matemática achava-se relacionada com as ciências e, a lógica, com o
pensamento. Todavia, ambas se desenvolveram na época atual. A lógica tornou-se mais
Matemática, e a Matemática, mais lógica. Em consequência, é impossível, agora, traçar
linha divisória entre ambas: são, de fato, uma só disciplina. Diferem como jovem do adulto:
a lógica é a juventude da Matemática e a Matemática, a idade adulta da lógica. Esta maneira
de ver ofende os lógicos que, tendo perdido seu tempo com textos clássicos, são incapazes
de seguir um raciocínio simbólico e os matemáticos que aprenderam sua técnica sem se
preocupar com o significado da mesma ou com a sua justificação. Estes dois tipos,
afortunadamente, vão se tornando cada vez mais raros. (Russel, apud Costa, 1977, p.7).

35
Logicismo
A tese central do logicismo pode ser sintetizada assim: a Matemática reduz-se à
lógica. Isto pode ser percebido na definição do que é Matemática, dada por Russel, citada
anteriormente.
A tese logicista, resumidamente, compõe-se de duas partes:
1. - toda a ideia Matemática pode ser definida por intermédio de conceitos lógicos (por
exemplo, conjunto, relação, implicação, etc.);
2. - todo o enunciado matemático verdadeiro pode ser demonstrado a partir de princípios
lógicos, mediante raciocínios puramente lógicos.

Citemos, como exemplo, dois princípios lógicos:

a) o princípio da contradição: dada duas proposições contraditórias, isto é, tais que uma é
a negação da outra, uma delas é falsa;
b) o princípio do terceiro excluído: de duas proposições contraditórias, uma é verdadeira.

Críticas ao logicismo

O programa logicista foi apresentado na célebre obra “Principia Mathematica”, de


autoria de Russel e Whitehead, em três alentados volumes, publicados em 1910, 1912 e
1913. Russel já havia exposto suas teses em 1901, em um livro “The Principles of
Mathematics”, porém somente com os Principia o logicismo adquiriu sua maturidade
completa.
Desde a antiguidade era conhecida a existência de paradoxos. O mais célebre é o
paradoxo de Epimênides, o cretense, o qual afirma que “os cretenses mentem sempre”.
Aceitando a tese de que os cretenses mentem sempre, neste caso também ele mentiria, e
seria falsa a proposição “os cretenses mentem sempre”, já que ele estaria dizendo a
verdade. Se diz a verdade, seria igualmente falsa a proposição de que “os cretenses
mentem sempre”. Não há forma de sairmos desta enrascada, temos duas teses
contraditórias, ambas aparentemente defensáveis.
Por volta de 1900 o céu logicista começou a apresentar nuvens negras, com a
descoberta de numerosos paradoxos (ou antinomias) na teoria dos conjuntos.
Há conjuntos que podem pertencer a si mesmo; por exemplo, o conjunto de todos
os conjuntos, que, por ser um conjunto, pertence a si mesmo. Mas existem conjuntos que

36
não pertencem a si mesmos; é o caso do conjunto de todos os homens, que, por não ser
um homem, não pertence a si mesmo. Consideremos, agora, o conjunto A formado por
todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos. Pelo princípio do terceiro excluído,
A pertence ou não pertence a A. Suponhamos que A pertence a A; então, como A é o
conjunto de todos os conjuntos que não pertencem a si mesmos, A não pode pertencer a
A. Admitamos, então, que A não pertença a A; logo, de acordo com a definição de A, este
conjunto deve pertencer a si mesmo. Há, por conseguinte, uma contradição.
Este paradoxo é conhecido como paradoxo de Russel, embora Zermelo também o
tenha descoberto independentemente. Russel, logo após a descoberta deste paradoxo,
enviou-o a Gottlob Frege, que estava prestes a publicar um monumental trabalho, o seu
Die Grundlagen der Arithmetik, em que a aritmética era reconstruída baseada nos
fundamentos da teoria dos conjuntos em sua forma intuitiva. Frege, sem outro recurso,
adicionou um pós-escrito à sua obra: “Um cientista dificilmente pode deparar-se com algo
tão indesejável do que ver os fundamentos ruírem justamente quando o seu trabalho está
terminado. Fui colocado nesta posição por uma carta do Sr. Bertrand Russel, quando o
trabalho já estava quase todo impresso” (apud D&H, op. cit., p.374).
Este paradoxo e outros mostraram que a lógica intuitiva estava longe de ser mais
segura que a Matemática clássica, pois podia conduzir a contradições que não ocorriam
na aritmética ou geometria.
Isto detonou a célebre “crise dos fundamentos da Matemática”, problema central
das controvérsias famosas nas primeiras décadas do século XX. Três remédios para isto
foram propostos na ocasião, um pelos logicistas, que exporemos em sequência, outro pela
escola construtivista, a próxima a ser apresentada, e o último pelos denominados
formalistas, que também será analisado.
Os paradoxos, afirma Russel, têm origem em uma espécie de círculo vicioso, que
surge quando se supõe que uma coleção de objetos pode conter membros definíveis
somente por meio da coleção como um todo. As totalidades ilegítimas seriam eliminadas,
segundo Russel, pela aplicação do princípio do círculo vicioso: “tudo o que envolve uma
coleção não pode ser membro dessa coleção”. Quando se define um ente matemático
qualquer violando o princípio do círculo vicioso, diz-se que a definição correspondente é
impredicativa.
Para aplicar efetivamente este princípio, Russel edificou a teoria dos tipos lógicos,
introduzindo uma hierarquia na teoria dos conjuntos. As diversas entidades de que trata a
lógica, a saber: elementos, conjuntos, proposições, propriedades, etc., são dispostas numa

37
hierarquia de tipos distintos. Para os conjuntos, por exemplo, têm-se, primeiro, os
elementos: (tipo zero); depois, conjuntos de (elementos = conjunto do tipo zero): (tipo 1);
em seguida conjuntos de (conjuntos de elementos = conjunto do tipo 1): (tipo 2); e assim
por diante. Por essa hierarquia verifica-se que nenhum conjunto pode conter a si próprio
como elemento, mas apenas conjuntos do tipo inferior, eliminando assim os paradoxos.
Porém, a teoria dos tipos, ao eliminar os paradoxos criou outros tipos de
dificuldades. Como só tem sentido falar de conjuntos de tipo “n”, é claro que para este
tipo teremos que associar um conjunto vazio e um conjunto unitário deste mesmo tipo.
Para um tipo “n+1” teríamos que associar outro conjunto vazio e outro unitário do tipo
“n+1”, e assim por diante. Estaríamos diante de uma espiral de conjuntos vazios e
unitários.
A cada conjunto corresponde, como afirma a teoria dos conjuntos, um conjunto
complementar, contendo tudo o que não faz parte do conjunto dado. A alteração
introduzida por Russel na teoria dos conjuntos, pela qual nenhum conjunto pode conter a
si próprio como membro, mas apenas conjuntos de tipo inferior, torna insustentável a
noção de conjunto complementar.
Além disso, a teoria dos tipos não permite as definições impredicativas em geral, o
que sacrifica capítulos importantes da Matemática clássica (como a teoria dos números
reais de Dedekind). Para evitar esse sacrifício, Russel foi forçado a formular o axioma da
redutibilidade, para contornar os obstáculos surgidos.
Esse axioma afirma que, dada qualquer propriedade (ou conjunto) de ordem maior
do que zero, existe uma propriedade (ou conjunto) da ordem zero que lhe é equivalente.
Além do axioma da redutibilidade, Russel teve que assumir mais dois axiomas6, o do
infinito e o da escolha, também conhecido como axioma de Zermelo, sem os quais teria
que renunciar a importantes segmentos da Matemática.
Estes axiomas são apresentados como hipóteses plausíveis sobre o mundo real, não
têm, portanto, caráter lógico estrito, dado que as leis da lógica deveriam ser independentes
deste ou daquele fato relativo ao mundo real. Do ponto de vista da lógica, nada impede
que se possa dar justamente o oposto ao enunciado nestes axiomas. A lógica, por si só,
mostra-se impotente para fundamentar esses axiomas.

6
Como são muito técnicos, não vamos apresentá-los aqui, sugerimos a leitura de, por exemplo, Costa (1980,
p.14-17).

38
Como vemos, o logicismo está sujeito a críticas fortes. A redução da Matemática à
lógica só teria sentido se fosse completa e apresentasse vantagens. Isto, porém, não
ocorreu, porque os logicistas tiveram necessidade de apelar para princípios extra-lógicos
em sua tentativa de redução. Tornou-se insustentável afirmar que a Matemática nada mais
é do que lógica - que a Matemática é uma grande tautologia.
É interessante, do ponto de vista humano, a declaração de impotência de Russel:

Eu queria certeza da mesma maneira que as pessoas querem fé religiosa. Eu pensava que
a certeza é mais provável de ser encontrada na Matemática do que em qualquer outra coisa.
Mas descobri que muitas demonstrações matemáticas, que os meus professores esperavam
que eu aceitasse, estavam cheias de falácias, e que, se a certeza pudesse ser realmente
descoberta na Matemática, seria em um novo campo da Matemática, com fundamentos
mais sólidos do que os que tinham até então sido considerados seguros. Mas enquanto o
trabalho prosseguia, eu me lembrava constantemente da fábula sobre o elefante e a
tartaruga. Tendo construído um elefante sobre o qual poderia repousar o mundo
matemático, vi que o elefante cambaleava, e passei a construir uma tartaruga [sobre a qual
se apoiava], para evitar que ele caísse. Mas a tartaruga não estava mais segura que o
elefante, e após uns vinte anos de trabalho muito árduo, cheguei à conclusão de que não
havia mais nada que eu pudesse fazer a fim de tornar o conhecimento matemático
indubitável (Russel, Portraits From Memory).

Hoje em dia sabe-se que não existe uma única lógica, mas sim várias. Pode-se
afirmar que para cada categoria de pensamento racional existe uma lógica subjacente.
Reconhece-se que as categorias racionais de pensamento e as suas lógicas subjacentes
evoluem, se modificam no transcorrer da história, o que nos autoriza a falar em
historicidade da razão 7 ; isso, porém, não invalida que alguns princípios lógicos
manifestam-se como invariantes do decurso do tempo. Há, portanto, um núcleo de
racionalidade invariável, que vai se formando ao longo da história.
Costa (1980) distingue três princípios, que denomina de princípios pragmáticos da
razão: a) o princípio da sistematização: a razão sempre se expressa por meio de uma
lógica; b) o princípio da unicidade: em um dado contexto, a lógica subjacente é única; c)
princípio da adequação: a lógica subjacente a um dado contexto deve ser a que melhor se
adapte a ele.
Esses ensinamentos são cruciais para entendermos a mente primitiva, sua lógica
subjacente não é necessariamente a mesma do homem moderno. Costa, em comunicação
pessoal, sugeriu ao autor destas linhas o estudo do que se poderia denominar de

7
Costa, 1980, p.41.

39
Etnológica, a lógica de um determinado grupo social 8 . Essa Etnológica é função do
contexto em que esse grupo habita, de sua Weltanschauung, de seu Zeitgeist9, evolui com
o transcorrer do tempo e é, portanto, inevitavelmente histórica.
A lógica tradicional passou a ser denominada de lógica clássica ou ortodoxa,
enquanto que as outras lógicas passaram a ser conhecidas como lógicas heterodoxas.
Como exemplos das lógicas heterodoxas, podemos citar as lógicas paraconsistentes, as
lógicas polivalentes, a lógica intuicionista, a lógica da mecânica quântica, a lógica
indutiva ou mesmo a lógica do direito (deôntica).
Ainda hoje as implicações dessas constatações não foram integralmente absorvidas,
nem suas consequências compreendidas. Após o logicismo, a grande escola seguinte foi
a intuicionista (construtivista).

Construtivismo
Precursores

Kronecker admitia que, em tese, a aritmetização da análise, reduzindo-se tudo a


números reais, era correta. Não aceitava, porém, as teorias de Dedekind e de Weierstrass
a respeito dos números reais, frisando que estas teorias implicavam a existência de
conjunto infinitos como entidades realizadas, ou seja, do infinito atual, dado. Kronecker
raciocinava que o conjunto dos números naturais 1,2,3,..., que é infinito, não deve ser
considerado como algo realizado, completamente dado.
Ao contrário, existe um primeiro elemento e uma lei de formação, que consiste em
se somar uma unidade a cada número para se obter o seguinte, de modo que podem ser
obtidos tantos elementos quanto se quiser deste conjunto, embora jamais possam ser
construídos todos esses números. Uma coleção infinita, como algo acabado, parecia uma
concepção ilícita aos olhos de Kronecker. Por isso os números reais não existiam para
Kronecker, que tentou edificar uma teoria própria dos diversos tipos de número. “Deus
nos deu os números naturais, e o resto é obra do homem”, afirmava Kronecker. A tese de
Kronecker denomina-se finitismo.
No início do século vinte, alguns matemáticos, como Poincaré, defendiam teses
similares às de Kronecker, embora menos radicais.

8
A Lógica do Sobrenatural - As Etnológicas das Sociedades Primitivas: Magia, Religiões, Deuses e
Mitos. Curitiba: Manoel de Campos Almeida, 2018.
9
Conjunto de ideias típicas de determinada era.

40
Intuicionistas

Quem levou as teses de Kronecker ao extremo, elaborando uma nova filosofia da


Matemática, foi o topólogo holandês L.E.J. Brouwer, em torno de 1908. Para ele os
números naturais nos são dados por uma intuição fundamental, que é o ponto de partida
de toda a Matemática. Os intuicionistas remetem-se à Kant para a “intuição pura” espaço-
temporal, mas desenvolvem suas teses no efetivo labor matemático.
Para Brouwer os juízos matemáticos são sintéticos a priori: a intuição Matemática
estrutura o material empírico, elabora-o, de modo a não precisarmos recorrer à
experiência externa para fundamentar as verdades matemáticas, o que lembra a Kant, ao
procurar justificar as concepções matemáticas apelando para o espaço e o tempo como
forma de intuição pura.
Brouwer insiste que a Matemática não se compõe de verdades eternas, atemporais,
semelhantes às ideias platônicas. Para ele o matemático não descobre as entidades
matemáticas, é ele quem cria as entidades que estuda. A expressão “A existe” só pode
significar, em Matemática, “A foi construído pela inteligência humana”. A atividade do
matemático cria e dá forma aos entes matemáticos. Para ele a Matemática enquadra-se na
categoria das atividades sócio-biológicas, destinando-se a satisfazer certas exigências
vitais do homem.
A corrente construtivista é fundamental para compreendermos a Matemática da
Idade da Pedra, a Urmathematik. Nessa era todos objetos matemáticos eram
necessariamente construídos pelos Urmathematikers, os matemáticos primevos, não
interessavam suas implicações lógicas ou seus fundamentos, mas sim em como poderiam
contribuir para a sobrevivência do Urvolk. O interesse nas conotações lógicas, nas
demonstrações, no método axiomático somente surgiu muito posteriormente à Idade da
Pedra, com a Matemática Grega.
Na base da Matemática está o poder intuitivo fundamental da mente humana. Os
termos primitivos e os conceitos fundamentais fazem parte destas intuições primordiais.
Partindo destas evidências elementares, a Matemática deve seguir um processo
construtivo, assim consideram os intuicionistas, isto é, apoiar-se em afirmações das quais
possa fazer demonstração.
Como os números são construções do intelecto, e o intelecto deve poder justificar
tudo o que construa, não se deve fazer afirmações sem demonstrações. Se se afirma a

41
existência de uma dada espécie de números, é preciso saber como construí-los, e, se
afirmações gerais sobre os números são feitas é necessário saber como demonstrá-las,
com apenas um número finito de passos. Os intuicionistas não aceitam o infinito atual.
Onde não chega o processo construtivo, não se pode fazer afirmações, e portanto é preciso
deixar o problema indeciso.
Sabemos que existe na Matemática uma classe de afirmações, denominadas de
conjecturas, que se sabe serem verdadeiras, no sentido de que são válidas para todos os
números que se experimentaram, mas que não puderam ser nem demonstradas nem
refutadas. Um exemplo é a chamada conjectura de Goldbach: “todo o número par pode
ser expresso como a soma de dois números primos”.
Para os intuicionistas, que só admitem a verdade de uma proposição se puderem
demonstrá-la, a problemas deste gênero não se pode dar uma resposta definitiva; tais
proposições continuam indecisas. Consequentemente existem para os mesmos
proposições que têm um significado, mas que não são nem verdadeiras nem falsas. Por
este motivo refutam o “princípio do terceiro excluído”, no sentido de que além da verdade
ou falsidade de uma proposição existe a indecidibilidade. Recusam, portanto, o célebre
método usual da redução ao absurdo, de enorme aplicação no campo da Matemática
clássica. Igualmente abominam o uso do princípio da indução completa, pois envolve
sub-repticiamente um número infinito de passos.
A principal crítica ao programa intuicionista é que, se levado ao extremo, de forma
radical, tornaria a Matemática impossível. Amplos ramos desta ciência teriam que ser
abandonados. Uma filosofia correta e autêntica da Matemática precisa estar de acordo
com o desenvolvimento real desta ciência, o que não ocorre com o intuicionismo.

Formalismo

O formalismo originou-se das conquistas alcançadas pelo chamado método


axiomático. O método axiomático consiste em se escolher certo número de conceitos
básicos não definidos, conhecidos como conceitos primitivos, suficientes para se edificar
sobre eles uma teoria axiomática, e algumas afirmações sobre estes conceitos, os axiomas
ou proposições primitivas, que também são aceitos sem demonstração. Em seguida,
passa-se a procurar as consequências do sistema assim obtido, sem se preocupar com a
natureza ou o significado inicial desses termos ou das relações entre eles existentes.

42
Resultados deduzidos deste sistema de conceitos primitivos e axiomas são denominados
de teoremas.
Para o formalista a Matemática é a ciência das deduções formais, dos axiomas e dos
teoremas. Seus conceitos primitivos não são definidos. Suas sentenças (teoremas) não
têm conteúdo, até que lhes seja fornecida uma interpretação. Para ele a Matemática é um
jogo de deduções lógicas, jogado com símbolos vazios de conteúdo. Os formalistas
afirmam que o matemático investiga as propriedades estruturais dos símbolos (e,
portanto, de todos os objetos) independentemente de suas significações.
Este método é uma invenção grega, sendo primeiro aplicado por Euclides em sua
obra “Os Elementos”. Porém, o método axiomático de Euclides não é inteiramente
satisfatório, porque o geômetra grego lança mão, em diversas oportunidades, de
suposições que não enunciou de modo explícito.
O método alcançou seu estado quase definitivo com a obra do analista alemão
David Hilbert, “Grundlagen der Geometrie” (Fundamentos da Geometria), publicada em
1899.
Para Hilbert qualquer sentença matemática (teorema), ou a sua negativa, poderia
ser demostrada, isto é, era decidível. O matemático poderia estudar qualquer sistema
simbólico, desde que o sistema não encerrasse contradições. Teria então inteira liberdade:
bastaria provar a consistência (isto é, a ausência de contradições) de uma teoria
matemática para torná-la inteiramente lícita. Criou, então, uma nova ciência: a
metamatemática, ou teoria da demonstração, cujo objetivo seria mostrar a consistência
das diversas teorias matemáticas.
Costa (1980, p. 35) explica o procedimento indicado por Hilbert para se demonstrar
a consistência de uma teoria matemática:

1. Axiomatização: axiomatiza-se a teoria em pauta.


2. Formalização: formaliza-se a axiomática obtida, isto significa que seus conceitos
primitivos, os axiomas, relações e princípios lógicos são substituídos por símbolos e
arranjos simbólicos sujeitos a regras bem definidas, como as de um jogo, o xadrez, por
exemplo. Uma axiomática formalizada converte-se, em resumo, numa espécie de jogo
grafo-mecânico, efetuado com símbolos destituídos de significação e regulado por meio
de regras determinadas.
3. Demonstração da consistência desta axiomática: para esta axiomática procura-se
mostrar, mediante investigação de sua estrutura grafo-mecânica, a sua consistência,

43
evidenciando-se que não se poderá chegar jamais a arranjos simbólicos contraditórios,
se se operar de acordo com as regras estabelecidas.

Hilbert admitiu, para evitar as críticas dos intuicionistas, que na metamatemática só


se pudessem empregar métodos evidentes e construtivos, tendo por base a intuição dos
símbolos. Denominou a tais métodos de finitistas, os quais, no seu entender, deveriam ser
tão ou mais restritos que os empregados na aritmética intuicionista.
Diversos matemáticos importantes, como Curry, Ackermann, Bernays, Herbrand,
etc. seguem esta escola. Na França, há um grupo de matemáticos que escreve sob o nome
de Nicholas Bourbaki, cujas concepções se aproximam muito das de Hilbert.
Em 1931, um jovem lógico-matemático, Kurt Göedel (1906-1978), publicou
resultados revolucionários, que abalaram profundamente o formalismo. Mostrou que
qualquer sistema formal consistente, suficientemente forte para conter a aritmética
elementar, seria incapaz de demonstrar a própria consistência. Além disso, mostrou que
existem proposições aritméticas, denominadas indecidíveis, tais que nem elas nem a sua
negação podem ser demonstradas na axiomatização da aritmética que se adotar.
Portanto, em qualquer axiomática consistente da aritmética existem sentenças
indecidíveis, o que dinamita a crença de Hilbert de que todas as sentenças matemáticas
ou as suas negativas podem ser demonstradas, ou seja, a Matemática não é completa. O
problema de decidir se uma sentença matemática pode ser demonstrada ou não é
conhecido como problema da decisão de Hilbert, ou, em alemão Entscheidungsproblem.
Os trabalhos de Goëdel provaram que as demonstrações metamatemáticas de
consistência, como queria Hilbert, são geralmente impossíveis. Embora isto quase
destruiu o corpo de doutrina hilbertiano, a estratégia formalista inegavelmente contribuiu
para o desenvolvimento da Matemática.
O matemático inglês Alan Turing (1912-1954), inspirado nas ideias de Göedel,
traduziu os resultados de Göedel em termos informáticos. Turing é conhecido por ter
nesse processo concebido a estrutura dos computadores modernos. Transladou o
problema de decidir se uma sentença matemática pode ser demonstrada ou não no
problema equivalente de estabelecer um programa, que rodaria em uma máquina
universal, hoje conhecida como máquina de Turing, arquétipo dos computadores
modernos que, se parasse, forneceria uma resposta para o Entscheidungsproblem.
Estaria então comprovado que a sentença em questão poderia ser demonstrada ou
não. Esse problema passou a ser conhecido como o problema da parada ou, em inglês,

44
The Halting Problem. Contudo, foi capaz de mostrar que esse problema é insolúvel, ou
seja, não existe maneira de decidir se uma determinada proposição é demonstrável ou
não, corroborando assim os resultados de Göedel. Pode-se dizer que estabeleceu um modo
mecânico de comprovar as asserções de Göedel de que existem proposições indecidíveis.
Hoje se reconhece que não existe um único sistema racional denominado de
Matemática, as sim vários deles, que surgem conforme o conjunto de axiomas que se
adote para seus fundamentos. Do mesmo modo que não existe uma única Lógica, não
existe uma única Matemática, mas sim várias delas. Por conseguinte, não é correto
falarmos da Matemática, mas sim das Matemáticas.
Poderíamos adaptar os três princípios propostos por Costa para a razão à
Matemática: a) o princípio da sistematização: cada sistema racional se expressa por meio
de uma Matemática própria; b) o princípio da unicidade: em um dado contexto, a
Matemática subjacente é única; c) princípio da adequação: a Matemática subjacente a um
dado contexto deve ser a que melhor se adapte a ele.
A existência de uma Matemática da Idade da Pedra se coaduna com esses três
princípios, senão vejamos: 1) seu sistema racional se expressa por meio de uma
Matemática própria, a Urmathematik; 2) no contexto do Urvolk ela é única; 3) é a melhor
que se adapta a ele.

Correntes recentes

Sob esta designação irei apresentar desenvolvimentos posteriores à escola


formalista. Algumas das correntes mencionadas a seguir não são específicas da
Matemática, porém a sua importância para a filosofia da ciência justifica sua inclusão.
Tentarei, sempre que possível, mostrar sua faceta que reflita a Matemática. Lembro,
também, que algumas delas ou não se mostraram profícuas ou não ultrapassaram a
condição de meras hipóteses, mas são, de algum modo, a nosso ver, importantes para a
compreensão histórica da Matemática, da sua natureza, de seus objetos e fundamentos.

Linguisticismo

Sob este título apresentarei as ideias de Carnap sobre a Matemática, expostas em


sua obra “Logische Sintax der Sprache” (Sintaxe Lógica da Linguagem), publicada em
1932.

45
Carnap recorre às ideias do positivismo lógico, do Círculo de Viena. Influenciado
pelas ideias de Wittgenstein, que considerava a Matemática um jogo verbal, regido por
regras, o Círculo rejeitou tanto a tese da realidade de mundo externo como a da sua
irrealidade como pseudo-problemas. Por isso, o problema de saber se as fórmulas
linguísticas correspondem a entidades reais estava fora de questão.
A formalização, para os positivistas lógicos, era defendida como o objetivo de todas
as ciências. A própria Matemática era encarada não como uma ciência, mas como uma
linguagem para as demais ciências.
As ideias racionais são expressas por meio de palavras, logo, sem uma linguagem
processos racionais não podem ser transmitidos. O estudo da origem das línguas está,
portanto, intimamente ligado ao estudo da origem do pensamento racional,
consequentemente da Matemática, por isso retornarei a este tema oportunamente.
Inicialmente processos racionais eram comunicados discursivamente. Somente em
um estágio posterior, com a descoberta do pensamento simbólico, é que essa comunicação
passou a se efetuar de uma forma não verbal. Isso implica igualmente em que a análise
das origens do pensamento simbólico é fundamental para quem deseja compreender as
origens da Matemática.
Carnap afirma que as “entidades Matemáticas” têm um valor linguístico, falar de
uma sua existência autônoma para ele não faz sentido. Insiste no valor puramente
linguístico das fórmulas Matemáticas. Além disso, se se aceitam na linguagem formal as
“entidades Matemáticas” também é preciso aceitar as proposições que as designam.
Em sua teoria linguística da verdade lógica, Carnap apresentou a linguagem como
um análogo do sistema dedutivo formal: a linguagem tem regras de formação e de
transformação. As regras de formação englobam a gramática e o léxico: são os análogos
das regras do sistema dedutivo formal que especificam as notações do sistema (as
fórmulas bem-formadas, de Church). As regras de transformação englobam as verdades
lógicas e as Matemáticas: são os análogos dos axiomas e das regras de inferência de um
sistema dedutivo formal. Portanto, para Carnap, a gramática e a lógica se encontram no
mesmo plano: cada linguagem tem sua gramática e sua lógica.

Popper e Lakatos

Embora as principais contribuições de Popper e Lakatos sejam no âmbito da


filosofia da ciência, iremos tentar apresentar a suas contribuições no que dizem respeito

46
à Matemática. Popper procurou desenvolver uma filosofia de ciência alternativa ao
positivismo lógico.
Karl R. Popper distinguia três mundos ou universos: o primeiro, o mundo dos
estados físicos ou de estados materiais; o segundo, o mundo dos estados de consciência
ou de estados mentais; e, o terceiro, o mundo dos conteúdos objetivos do pensamento,
especialmente de pensamentos científicos, matemáticos, poéticos e de obras de arte. O
mundo das ideias, o terceiro mundo de Platão era divino, atemporal e imutável. O terceiro
mundo de Popper é feito pelo homem e mutável.
Contém não só teorias verdadeiras, mas também falsas e, especialmente, problemas
abertos, conjecturas e refutações. Pode-se encontrar neste terceiro mundo problemas
novos que lá figuravam antes de serem descobertos e antes mesmo de se tornarem
conscientes, isto é, antes que qualquer coisa correspondente a eles aparecesse no mundo
dois.

Popper afirmou que as teorias científicas não são deduzidas indutivamente dos fatos; ao
contrário, são inventadas como hipóteses, até mesmo adivinhações, e são então submetidas
a testes experimentais com os quais os críticos tentam refutá-las. Uma teoria tem o direito
de ser considerada científica, disse Popper, somente se é, em princípio, capaz de ser
observada e arriscar-se a ser refutada. Uma vez que uma teoria tenha sobrevivido a tais
testes, adquire certo grau de credibilidade, e pode ser considerada experimentalmente
estabelecida; mas nunca é demonstrada. Uma teoria científica pode ser objetivamente
verdadeira, mas nunca poderemos saber isto com certeza. (D&H, op.cit., p.387).

Imre Lakatos tenta mostrar que um programa semelhante ao estabelecido por


Popper, de quem é discípulo, é possível para a Matemática. Em sua obra “Proofs and
Refutations”, publicada em 1976, apresenta a Matemática informal como uma ciência no
sentido de Popper, que cresce por um processo de críticas sucessivas, de refinamento de
teorias e do progresso de teorias novas e conflitantes. Procura mostrar que ela evolui, mas
não pelo modelo dedutivo da Matemática formalizada. Não se preocupa com “os objetos
matemáticos” ou sua natureza.
Lakatos observa que o formalismo desconecta a filosofia da Matemática da história
da Matemática, pois para os formalistas a Matemática não tem propriamente um história,
seria para estes apenas um conjunto crescente de verdades eternas e imutáveis, no qual
não podem entrar os contra-exemplos, as refutações ou as críticas. Lakatos, portanto,
insiste na historicidade da Matemática.
O objetivo da obra “Proofs and Refutations”, afirma Lakatos, seria: “Seu modesto
objetivo consiste em elaborar a ideia de que as Matemáticas informais e quase-empíricas

47
não se desenvolvem mediante um monótono aumento do número de teoremas
indubitavelmente estabelecidos, senão que o fazem mediante a incessante melhora das
conjecturas, graças à especulação e às críticas, seguindo a lógica das provas e refutações”
(Lakatos, 1978, p.21).

Definicionismo

Carl G. Hempel em seu artigo “On the Nature of Mathematical Truth” (in
Newman, 1956, p.1619 ss.), discorda da corrente que afirma que as verdades matemáticas
são “auto-evidentes”. “Eu argumentei que a validade da Matemática repousa não em seu
alegado caráter auto-evidente, nem em qualquer base empírica, mas sim deriva de
estipulações as quais determinam o significado dos conceitos matemáticos, e que as
proposições da Matemática são assim essencialmente “verdadeiras por definição”
(Hempel, in Newman, 1956, p.1622). Estipulações, para Hempel, são os axiomas e as
definições de uma teoria axiomática.
Hempel afirma que o desenvolvimento de uma teoria matemática principia com um
conjunto de axiomas, formulados em termos de certos conceitos básicos ou primitivos,
para os quais nenhuma definição é incluída na teoria. Uma vez que esses conceitos estão
estabelecidos, a teoria está completamente determinada, é deduzível de sua base
axiomática no seguinte sentido: todo o termo da teoria é definível em função dos
conceitos primitivos, e toda a proposição da teoria é logicamente dedutível dos axiomas.
Além disso, especifica os princípios de lógica que podem ser empregados nas
demonstrações de proposições, isto é, nas suas deduções a partir dos axiomas.
Assevera Hempel: “... o inteiro sistema da Matemática pode ser dito ser verdadeiro
em virtude de meras definições (dos termos matemáticos não primitivos) desde que os
cinco postulados de Peano sejam verdadeiros” (op.cit., p. 1626).
Portanto, segundo Hempel, a Matemática não se funda nem sobre a auto-evidência
nem sobre a experiência empírica, mas deriva das definições de seus conceitos: ela é de
caráter definitório (“true by definition”).
Não pode passar despercebida a sua ambiguidade acerca da natureza da
Matemática. Se claramente exclui uma fundamentação empirista, oscila entre a
fundamentação intuitiva (os axiomas) e a convencional (que denomina de “definicional”).

48
Dualismo x Materialismo

Relembrando, as filosofias acerca da mente podem ser divididas em duas


categorias abrangentes: as teorias dualistas e as teorias materialistas. Dualismo é uma
filosofia acerca da mente que considera a mente como uma substância não-física. Divide
tudo o que há no mundo em duas categorias diferentes: a mental e a física. O principal
problema com o dualismo é que não consegue explicar a interação causal entre o mental
e o físico. A interação física é fácil de aceitar, mas uma interação não-física é algo obscuro
e pouco palatável. Não é evidente como uma mente não-física poderia originar quaisquer
efeitos físicos (ou comportamentais) sem violar as leis de conservação de massa, energia
ou momento, isto é, as leis físicas.
Nas teorias materialistas o mental não é distinto do físico, ou seja, todos os estados
mentais (incluindo aqui os objetos matemáticos), propriedades, processos e operações
são, em princípio, idênticas com estados físicos, propriedades processos e operações.
Reduzem o nível mental ao físico, daí serem muitas vezes denominadas de teorias
reducionistas.

Behaviorismo

Os psicólogos procuraram dar uma resposta ao problema mente-corpo,


procurando fornecer uma alternativa ao dualismo, tendo em vista principalmente
problemas comportamentais. Na década de vinte, John B. Watson, da John Hopkins
University, fez a sugestão radical de que o comportamento não tem causas mentais.
Surgiu daí o behaviorismo radical, uma corrente que nega a existência da mente
e estados mentais, bem como propriedades, processos e operações. O behaviorista radical
acredita que o comportamento não tem causas mentais. Considera que o comportamento
de um organismo é determinado por estímulos. O papel da psicologia seria catalogar as
relações entre estímulos e respostas. Então, para o behaviorista radical, os objetos
matemáticos seriam respostas a estímulos, caberia então indagar de onde proviriam estes
estímulos. O principal argumento contra o behaviorismo radical é que não se mostrou
frutífero, nem mesmo para a psicologia, e sua metodologia provou ser estéril.

49
Culturalismo

Leslie A. White, em seu notável artigo “The Locus of Mathematical Reality: An


Antropological Footnote”, publicado em 1947, defende a ideia de que Matemática é uma
espécie de comportamento, é a resposta que o homem faz a estímulos provenientes das
ideias Matemáticas presentes em sua cultura. Expõe claramente suas concepções:

Assim nós vemos que não há mistério acerca da realidade matemática. Nós não
necessitamos pesquisar por “verdades” matemáticas na mente divina ou na estrutura do
universo. Matemática é uma espécie de comportamento primata tal como línguas, sistemas
musicais ou códigos penais são. Conceitos matemáticos são feitos pelo homem, tal como
os valores éticos, regras de tráfego, e gaiolas são feitos pelo homem. Mas isto não invalida
o credo que proposições matemáticas nos são exteriores e têm uma realidade objetiva. Elas
existem fora de nós. Elas existem antes do nosso nascimento. Quando nós crescemos nós
encontramo-las no mundo que nos cerca. O locus da realidade matemática é a tradição
cultural, isto é, o contínuo do comportamento simbólico. Esta teoria ilumina também o
fenômeno da novidade e progresso em Matemática. Ideias interagem umas com as outras
nos sistemas nervosos dos homens e assim formam novas hipóteses. Se os proprietários
destes sistemas nervosos estão conscientes do que ocorreu, eles chamam isto de invenção,
ou como Hadamard faz, de “criação”, para empregar o termo de Poincaré. Se eles não
compreendem o que ocorreu, eles chamam isto uma “descoberta” e acreditam que eles
encontraram algo no mundo externo. Conceitos matemáticos são independentes da mente
do indivíduo, mas jazem inteiramente dentro da mente das espécies, visto é, da cultura. A
invenção e a descoberta matemática são meramente dois aspectos de um evento que toma
lugar simultaneamente na tradição cultural e em um ou mais sistemas nervosos. Destes dois
fatores, a cultura é o mais significante; os determinantes da evolução matemática residem
aí. O sistema nervoso é meramente o catalisador que torna o processo cultural possível
(White, 1947, in Newman,1956, p.2363-4).

Behaviorismo Lógico

No início da década de 60, os filósofos começaram a duvidar que o behaviorismo


radical e o dualismo fossem as únicas alternativas possíveis para a filosofia da mente.
Como estas duas teorias pareciam desprovidas de atrativos, a estratégia correta parecia
ser desenvolver uma teoria materialista da mente, que admitisse espaço para causas
mentais. Duas teorias emergiram então, uma denominada behaviorismo lógico e outra
chamada de teoria da identidade do estado central.
Behaviorismo lógico é uma teoria semântica acerca do que estados mentais
significam. A sua ideia básica é que atribuir um estado mental (p.ex. sede) a um
organismo, é o mesmo que dizer que o organismo está disposto a se comportar de um
modo particular (p.ex., beber, se há água disponível). A força do behaviorismo lógico
consiste em que, traduzindo a linguagem mental para a linguagem de estímulos e
50
respostas, ele fornece uma interpretação das explicações psicológicas nas quais efeitos
comportamentais são atribuídos a causas mentais. O behaviorismo lógico, ao contrário do
behaviorismo radical, reconhece a existência de estados mentais.
A principal crítica a esta corrente é que trata a manifestação de uma disposição
como a única forma de causação mental, apesar de as ciências físicas reconhecerem outras
formas de causação.

Teoria da Identidade do Estado Central

Uma teoria materialista alternativa ao behaviorismo lógico é a teoria da identidade


do estado central. De acordo com esta teoria, eventos mentais e processos são idênticos
com eventos neurofisiológicos do cérebro, e a propriedade de estar em um certo estado
mental é idêntica à propriedade de estar em um certo estado neurofisiológico.
Desde que processos neurofisiológicos são presumivelmente processos físicos, a
teoria da identidade do estado central assegura que o conceito de causação mental é tão
rico quanto o conceito de causação física.
A teoria da identidade trata tanto de estados mentais particulares (como o medo que
João tem de cães) como de universais mentais (objetos matemáticos, por exemplo). Esta
teoria, segundo Fodor (Fodor, 1981, p. 127), subdividiu-se em dois ramos: o primeiro
(“token physicalism”) não descarta a possibilidade lógica de máquinas terem estados ou
propriedades mentais; o segundo (“type physicalism”) descarta esta possibilidade, porque
máquinas não têm neurônios.

Funcionalismo

Nos fins da década de 60, uma filosofia da mente denominada de funcionalismo, que
não é nem dualista nem materialista, começou a emergir de reflexões filosóficas sobre
desenvolvimentos em inteligência artificial, teoria da computação, linguística,
cibernética, teoria dos sistemas e psicologia. Empresta da teoria dos sistemas a noção de
sistema, formado por partes individuais que interagem mutuamente, comportando-se, em
certas situações, como um todo.
O funcionalismo baseia-se na distinção que a ciência da computação faz entre o
hardware de um sistema, ou a sua composição física, e o seu software, ou programa. A
psicologia de um sistema, tal como um ser humano, uma máquina, ou um espírito

51
desencarnado, não depende de que material ele é feito (neurônios, circuitos integrados ou
energia espiritual), mas de como este material está organizado. O funcionalismo não
descarta a possibilidade, não importa quão remota seja, de que sistemas mecânicos
(computadores, por exemplo) ou etéreos tenham estados e processos mentais.
Constrói o conceito de papel causal de tal modo que um estado mental pode ser
definido por suas relações causais com outros estados mentais. Desde que o
funcionalismo reconhece que eventos mentais particulares podem ser físicos, é
compatível com a ideia que causação mental é uma espécie de causação física. Em outras
palavras, o funcionalismo tolera a solução materialista fornecida pela teoria da identidade
do estado central. Desde que o papel funcional de um estado depende da relação deste
estado com outros, tão bem como dos seus inputs e outputs, o caráter funcional do mental
é capturado pela versão funcionalista da máquina de Turing. Desde que a definição de um
estado-programa nunca se refere à estrutura física do sistema em que o programa roda, a
versão do funcionalismo da máquina de Turing também captura a ideia de que um estado
mental é independente de sua realização física.
Uma máquina de Turing é uma máquina ideal, conjecturada pelo matemático inglês
A.M. Turing na década de 30. Ele postulou que qualquer algoritmo podia ser executado
por uma máquina consistindo de uma fita de papel infinitamente longa, dividida em
quadrados, dispondo de um mecanismo de impressão que escreve e apaga na fita, e de um
scanner (dispositivo de leitura) que acusa se um determinado quadrado está marcado ou
não (lê os quadrados).
Os processos mentais seriam equivalentes a programas (softwares), que nada mais
são que algoritmos codificados em uma linguagem adequada. Neste enfoque, uma função
cerebral se identificaria a um algoritmo matemático, ou mesmo a vários.
Neste ponto residem as principais críticas ao funcionalismo, como bem o
observam Changeux & Connes (1996, p.183-4). Não é claro de que maneira um algoritmo
matemático pode ser identificado a uma propriedade física do cérebro.
Além disso, a analogia funcionalista do cérebro com uma máquina de Turing
ideal, alimentada por um programa necessariamente algorítmico, não leva em conta o
problema da complexidade dos algoritmos.
Existem problemas matemáticos que, embora seus algoritmos resolventes sejam
conhecidos, não existe nenhum computador (e não existirá nunca!) capaz de executá-los
em tempo finito. São os problemas conhecidos atualmente como “intrinsecamente
difíceis”.

52
Além desses, existem outros, para os quais não se conhece os algoritmos
resolventes e, pior que isso, devido ao Teorema de Göedel, é possível que nunca se
encontrem os algoritmos correspondentes, por se tratarem de problemas indecidíveis.

Interlúdio Histórico III

O problema da consciência, o nosso imediato, subjetivo conhecimento do mundo


e de nós mesmos, se enovela intimamente com o problema mente-corpo, a questão dos
objetos matemáticos.
Recentemente este problema recebeu um grande impulso, graças principalmente
à autoridade de Francis Crick, que dividiu um Prêmio Nobel pela descoberta da estrutura
do DNA em 1953, o qual declarou esta questão madura para receber a atenção da ciência.
Em 1990, Crick e Cristoff Koch, neurocientista do Instituto de Tecnologia da
Califórnia, arguíram que consciência, envolvendo objetos no mundo externo ou conceitos
internos altamente abstratos (tais como os objetos matemáticos), parece envolver o
mesmo mecanismo subjacente, um que combina a atenção com memória a curto prazo.
Eles sugeriram que consciência pode se originar de certas oscilações no córtex cerebral,
que se tornam sincronizadas quando os neurônios disparam cerca de 40 vezes por
segundo. Isso, contudo, não está comprovado experimentalmente.
Crick e Koch afirmam que não se pode adquirir compreensão verdadeira da
consciência ou de qualquer outro processo mental considerando o cérebro como uma
caixa preta, isto é, um objeto cuja estrutura interna á desconhecida ou mesmo irrelevante.
Somente examinando neurônios e suas interações os cientistas podem acumular
conhecimento inambiguo, que é necessário para criar modelos verdadeiramente
científicos da consciência, análogos àqueles que explicam a transmissão da informação
genética através do DNA.
Gerald M. Edelman, do Scripps Research Institute, que dividiu um Prêmio Nobel
em 1972 por sua pesquisa sobre anticorpos, afirma que a consciência se origina de um
processo que ele chama de Darwinismo Neural, no qual grupos de neurônios competem
um com o outro para criar uma representação efetiva do mundo. Essa teoria afirma que
assim como as pressões ambientais selecionam os membros mais aptos de uma espécie,
as informações que entram no cérebros selecionam grupos de neurônios reforçando as
conexões entre eles. Edelman apresentou sua teoria em uma série de livros, o mais recente
“Bright Air, Brilliant Fire” foi publicado em 1992.

53
Jean Pierre Changeux é o representante europeu desse caudal, tendo, já em 1983
com o seu livro “Homem Neuronal”, apresentado teses semelhantes, como iremos ver
com mais detalhes a seguir.
Como esta é uma teoria em desenvolvimento, em ebulição, no processo de
aglutinamento e seleção de hipóteses, é óbvio que não se pode ainda falar de testes
definitivos.
É objeto, porém, de severas críticas, desde as generalistas como: “Eu não penso
que o campo está maduro bastante para responder àquela questão [da consciência]”
(Gerald D. Fischbach, Harvard University; in Horgan, 1994, p.74); a outras mais
específicas, como sobre o mecanismo de disparo dos neurônios ou como se agrupam.
Flanagan, da Duke University, constrói em seu livro “Consciouness Reconsidered”
(1992) uma filosofia, que denominou de naturalismo construtivo, afirmando que a
consciência é um fenômeno biológico comum, ocorrendo não só em todos os seres
humanos mas também em muitos outros animais, e certamente me todos os primatas
superiores.
Existem, também, opiniões radicais, como a de Steen Rasmussen, do Santa Fe
Institute, que sugere que a mente pode ser uma “emergente” - isto é, impredizível e
irreduzível - propriedade do complexo comportamento do cérebro e, portanto, não
poderia ser explicada.
Outras opiniões e tendências recentes, como as de Penrose e Chalmers, serão
examinadas com mais detalhes a seguir.

Neuronalismo

Nas teorias materialistas o mental não é distinto do físico, ou seja, todos os estados
mentais (incluindo aqui os objetos matemáticos), propriedades, processos e operações
são, em princípio, idênticas com estados físicos, propriedades processos e operações.
Reduzem o nível mental ao físico, daí serem muitas vezes denominadas de teorias
reducionistas.
Entre essas se destaca a neuronalista, impulsionada a partir de 1.980
principalmente por Jean Pierre Changeux e Stanilas Dehaene. Changeux pode ser
considerado um precursor neste ramo de pesquisas. Publicou as suas ideias em 1983, no
seu livro “O Homem Neuronal”. Ninguém melhor que o próprio Changeux para explicar
a sua concepção:

54
O objeto mental é identificado com o estado físico criado pela entrada em ação (elétrica e
química), correlacionada e transitória, de uma grande população ou “reunião” de neurônios
distribuídos por diversas áreas corticais bem definidas. Este conjunto, que
matematicamente se descreve por um grafo (mapa), é “descontínuo”, fechado e autônomo
mas não homogêneo. É constituído por neurônios que apresentam diferentes peculiaridades
adquiridas durante o desenvolvimento embrionário e pós-natal. O bilhete de identidade da
representação é inicialmente determinado pelo “mosaico” (grafo) de peculiaridades e pelo
estado de atividade (número, freqüência dos impulsos que o atravessam)” (Changeux,
1985, p; 144).

Nessa teoria pela primeira vez na História da Matemática o cérebro do matemático


não é considerado como uma caixa preta, mas se propõe levar em consideração o seu
modo de funcionamento, sua fisiologia, na busca da explicação para a origem dos objetos
matemáticos. É nessa direção em que as pesquisas mais recentes sobre a natureza desses
objetos parecem se orientar e é essa corrente que orientará apresente obra.
Opiniões mais recentes10, com as quais compartilhamos, afirmam que mesmo se a
Matemática tivesse uma existência fora dos nossos cérebros, como preconizada pelos
realistas, a única Matemática que nos será permitido conhecer integralmente é a criada
por seres humanos, equipados com cérebros humanos.
Como os objetos matemáticos corresponderiam assim a estados físicos do cérebro,
seria possível visualizá-los externamente mediante técnicas de neuroimagem, como
tomografia computadorizada (CT), ressonância magnética (MR), tomografia por emissão
de pósitrons (PET) ou ressonância magnética funcional (fMRI). Com o crescente
incremento na resolução dessas técnicas, elas hodiernamente vêm se tornando os
principais instrumentos na pesquisa de como os objetos matemáticos são produzidos no
cérebro.

Quanticismo

Desde 1930 alguns físicos especulam que a consciência e a mecânica quântica


podem estar relacionadas. Baseavam suas especulações no princípio de que o ato de
medida - que envolve um observador consciente - influi no resultado de eventos
quânticos.
Estas ideias foram retomadas por Roger Penrose, reconhecida autoridade em
relatividade geral e o inventor das formas geométricas conhecidas como “ladrilhos de
Penrose”, as quais se unem para formar desenhos quase-periódicos, preenchendo o plano.

10
Cf. De Cruz, Lakoff, Nunez.

55
Em 1989, no seu livro “The Emperor´s New Mind”, atacou os funcionalistas que
defendem que computadores podem replicar todos os atributos dos humanos, incluindo a
consciência.
O ponto chave do argumento de Penrose é o teorema de Göedel, uma demonstração
de que qualquer sistema moderadamente complexo contém proposições que são
evidentemente verdadeiras, mas que não podem ser provadas apenas com aqueles
axiomas. O teorema de Göedel implica em que, de acordo com Penrose, nenhum sistema
determinístico, baseado em regras - isto é, nem física clássica nem neurociência - pode
ser responsável pelos poderes criativos da mente (inclusive pelos objetos matemáticos) e
pela sua habilidade de visualizar a verdade. Pensa que a mente explora efeitos não
determinísticos, que somente podem ser descritos pela mecânica quântica, ou por
“alguma nova teoria que ligue a mecânica quântica e a clássica e ultrapasse a
computação” (Horgan, 1994, p. 77).
Chega mesmo a sugerir que a não-localidade, isto é, a habilidade de uma parte de
sistema quântico afetar outras partes instantaneamente, sem interação física visível, pode
ser a solução para o problema de ligação corpo-mente.
Aventa a possibilidade destes eventos quânticos ocorrerem dentro dos
microtúbulos, microscópicos túneis de proteína que servem como uma espécie de
esqueleto para células, incluindo os neurônios.
Stuard R. Hameroff, anestesiologista da Universidade de Arizona, relatou ter
encontrado evidências de que a anestesia elimina a consciência pela inibição de elétrons
nos microtúbulos. Penrose propõe que nos microtúbulos são efetuadas computações não-
deterministas, a nível quântico, que de algum modo dão origem à consciência.
Contudo, os críticos lembram que esses microtúbulos estão presentes em quase
todas as células, não apenas nos neurônios. Isso quer dizer que qualquer órgão, o fígado,
por exemplo, é consciente? Ou o polegar é consciente?
Contra estas posições John G.Taylor, do King´s College de Londres, argumenta que
a não-localidade e outros efeitos quânticos são observadas somente a temperaturas
próximas do zero absoluto - de qualquer modo temperaturas bem abaixo das temperaturas
ambientes do cérebro.
O mecanismo de ligação entre o nível quântico e o macroscópico também está longe
de ser claro. Existe o que Joseph Levine denomina de “lapso explanatório” (explanatory
gap). Este mesmo lapso existe em todas as teorias de consciência baseadas em

56
explicações físicas. Este salto dos mecanismos físicos para a consciência não está
explicado.
Thomas Nagel, em seu ensaio de 1974 “What is like to be a bat?“11, pressupôs que
a experiência subjetiva é um atributo fundamental dos seres humanos e de muitos animais
superiores, tais como os morcegos. Essa experiência ocorre, sem dúvida afirma ele, em
qualquer tipo de forma, seja ela para nós a mais inimaginável possível, mesmo em outros
planetas extraterrestres ou universos. Todavia, por mais que essa forma possa variar, o
fato dela ter alguma experiência consciente significa basicamente que existe algo
equivalente a como é ser esse organismo.
Nagel afirmava que, por mais que estudemos a fisiologia dos morcegos, nunca
poderemos saber realmente como é ser um morcego, porque a ciência não consegue
penetrar o reino da experiência subjetiva, ou seja, há um lapso explanatório. Esse lapso
remete à dicotomia kantiana entre noumeno (as coisas em si) e fenômeno (o que podemos
perceber/estudar acerca das coisas, a ciência em si).
Um outro enigma filosófico antigo, imbricado com o do lapso explanatório, é o do
solipsismo. Nenhuma pessoa pode realmente saber se outro ente, seja ele humano,
extraterrestre ou fantasmagórico, tem uma experiência subjetiva do mundo.
Ainda outro argumento, que tem sido levantado no mesmo rumo, é que haja a
possibilidade de existir um equivalente neural ao princípio da incerteza de Heisenberg, o
qual poderia limitar a nossa capacidade de rastrear as atividades do cérebro em seus
mínimos detalhes. Isso implicaria em que os processos subjacentes à consciência talvez
fossem tão difíceis, senão impossíveis, de se compreender como os similares da mecânica
quântica.
Chalmers tenta explicar este lapso como veremos a seguir.

Informacionismo

David J. Chalmers, da Universidade de Washington, afirma que nenhuma lei


baseada unicamente em processos físicos - tanto em mecanismo quânticos como
neuronais - pode explicar integralmente a consciência. Um resumo de suas ideias pode
ser apreciado no artigo “The Puzzle of Conscious Experience”, (in Scientific American,
Dec.1995).

11
Como é ser um morcego?

57
Propõe que somente uma teoria de alto nível poderia explicar esse “lapso
explanatório”, e que essa teoria envolveria novas leis fundamentais, leis psico-físicas,
onde o conceito de informação desempenharia um papel fundamental. Propõe considerar
a experiência consciente como um fato fundamental, irredutível a qualquer coisa mais
básica.
Outro candidato a lei psico-física seria o princípio da invariância organizacional.
Ele afirma que sistemas físicos com a mesma organização abstrata darão origem à mesma
espécie de experiência consciente, não importa do que sejam feitos. Chalmers propõe
“experiência” como uma nova lei fundamental, ligada à capacidade de um organismo de
processar informação. Acompanha a sugestão do físico John A. Wheeler de que
informação é fundamental para a física do universo.
Uma crítica potencial a esta corrente é quanto à ubiquidade da informação. Mesmo
um simples termômetro, por exemplo, embute alguma informação, mas isto significa que
ele é consciente?

Etnomatemática

Surgem então ideias inovadoras, que procuram acentuar o aspecto social da


Matemática, bem como suas características antropocêntricas. Durante as décadas de 1970
e 1980 principiou-se a mencionar “outras Matemáticas”, em oposição à Matemática
Acadêmica tradicional. Surgem as “Matemáticas” de determinadas culturas ou grupos
sociais.
Citaremos algumas12, sem entrar em detalhes: a Matemática Indígena, de Gay e
Cole; a Sociomatemática da África, de Zalavsky; as Matemáticas Informais, de Posner;
as Matemáticas no Ambiente Sócio-Cultural [da África], de Touré e Doumbia; as
Matemáticas Espontâneas, de D´Ambrosio; as Matemáticas Orais, de Carraher, seguido
por Kane; as Matemáticas Oprimidas, de Guerdes; as Matemáticas Não-Convencionais
(non-standards), de Carraher, Guerdes, Harris; as Matemáticas Ocultas ou Congeladas,
de Guerdes; as Matemáticas Folclóricas, de Mellin-Olsen;
Essas ideias receberam um denominador comum através do programa
Etnomatemática, criado por Ubiratan D´Ambrosio, em 1985.

12
Cf. Guerdes, in POWELL & FRANKENSTEIN, 1997, p. 337.

58
D’Ambrosio, denomina de “Etnomatemática” à Matemática a qual é praticada por
grupos culturais identificáveis” (1997, o artigo original é de 1985, p.16). Propõe um
amplo entendimento do conceito de ethnos, de modo a incluir os jargões, códigos,
símbolos, mitos e mesmo modos específicos de raciocínios e inferências desses grupos
no estudo de sua Etnomatemática.
Abrange, portanto, um conceito ampliado da Matemática, de modo a incluir
processos como contagem, localização geográfica (mapas), medições, jogos, explicações
etno-racionais, ou mesmo processos divinatórios. Aponta que o conhecimento, que é
gerado pela necessidade de uma resposta a problemas e situações distintas, está
subordinado a um contexto natural, social e cultural.
Etnomatemáticos chamam a atenção para que a Matemática, com suas técnicas e
verdades, é um produto cultural, desse modo todo povo, toda cultura ou sub-cultura,
desenvolve sua própria Matemática. Acreditamos que o programa Etnomatemática é o
melhor equipado para entendermos a Matemática da Idade da Pedra, a Urmathematik,
dentro do seu Zeitgeist.
Weyl, já em 1944, notava que matematizar pode bem ser uma atividade criativa do
homem, como linguagem ou música; uma atividade do seu pensamento, melhor apreciada
historicamente (Kline, 1980, p. 318).
Feyerabend, em seus últimos escritos (1996), afirma:

... a ciência é uma história, não um problema lógico (p.111). (...) “Não há um [único]
senso comum, mas vários (...). Tampouco há somente uma [única] forma de
conhecimento – ciência -, mas muitas e (antes de serem destruídas pela Civilização
Ocidental) elas eram eficazes no sentido de que mantinham as pessoas vivas e tornavam
compreensíveis suas existências. (p.151).

Høyrup, por exemplo, denomina de “Matemáticas sub-científicas” àquelas


praticadas por especialistas “profissionais” e o seu principal motivo para sua prática e
transmissão era sua aplicabilidade como ferramenta para a profissão em questão (Høyrup,
1.994, p.27).
Não podemos concordar com esse apodo de “sub-cientificas” às Matemáticas
praticadas por diversos povos, tanto antigos como modernos. Antes de mais nada, o
conceito de ciência é relativo, tanto no tempo como no espaço. A mentalidade moderna
de se admitir somente concepções consideradas “científicas” é recente na história da
humanidade, somente tomou força após o positivismo de Augusto Comte no século XIX.

59
Na realidade existe uma “ciência” adequada a um determinado contexto, a um
determinado momento, a um determinado povo. A magia pode ser considerada “ciência”
sob a ótica de povos primitivos. A nossa “ciência moderna” talvez seja considerada risível
dentro de algumas décadas. Melhor seria adotarmos o conceito de Etnociência, ou
Etnomatemática.
Robson (2007) enfatiza a distinção entre Matemática como um empreendimento
intelectual, supra-utilitário e um fim em si mesmo, e a numeracia profissional, como a
aplicação rotineira de habilidades matemáticas por escribas profissionais.

Pragmatismo

Deixamos propositalmente esta corrente para o final. Porém, isto não significa que
a atitude pragmática, como iremos ver, só recentemente começou a se desenvolver. Pelo
contrário, está presente há muito tempo no comportamento dos matemáticos.
Se tomarmos qualquer disciplina da Matemática como, por exemplo, a aritmética
axiomatizada pelos postulados de Peano, para apreciarmos seus fundamentos devemos
distinguir três planos:

1) a estrutura simbólica da aritmética : plano sintático;


2) as categorias de objetos aos quais as leis aritméticas se aplicam ou podem se
aplicar: plano semântico;
3) determinados princípios e noções que implicam a consideração do
matemático como o “criador”, o manipulador em última análise da aritmética:
plano pragmático.

Sendo a Matemática uma criação humana, é sujeita a todas as limitações inerentes


às realizações essencialmente humanas.
O matemático, como ser humano, está interessado em sua obra, na aceitação da
mesma pelos seus colegas e pela sua comunidade acadêmica. Tem noção de que existiu
uma “crise nos fundamentos” da Matemática, de que os “objetos matemáticos” devem ter
alguma origem, mas como isso não interfere na sua labuta matemática cotidiana,
prossegue em frente, deixando essas preocupações “para os especialistas”. Na sua visão,
“Matemática” é o que faz diariamente.

60
Para ele, dado um problema o que importa é sua solução. Qual a escola que deve
adotar? O logicismo, o intuicionismo, o formalismo ou o neuronalismo? “Qualquer coisa
serve”, nas palavras da conhecida sentença de Feyerabend, às quais acrescentaríamos:
desde que funcione.

Não existe regra única, por mais plausível que seja e por mais alicerçada que esteja na
epistemologia, que não possa ser violada de um momento para outro. Tais violações não
são eventos acidentais ... Pelo contrário, são necessárias ao progresso... Só existe um
princípio que pode ser defendido em todas as circunstâncias, e em todos os estágios do
desenvolvimento humano. É o princípio: Qualquer coisa serve (Feyerabend, apud Kneller,
1980, p.79).

Para ele pouco importa que existam problemas com os fundamentos, com a natureza
dos objetos matemáticos ou da própria Matemática, desde que não interfiram com a sua
prática. Estes problemas seriam como o “esqueleto no armário” da Matemática. Todos
conhecem sua existência, demonstram certo temor pelos mesmos, porém continuam em
frente, fingindo que não existem.
Para o matemático pragmático, o problema das ciências matemáticas puras resume-
se assim: dado um conjunto de axiomas e convenções metalinguísticas (sintáticas,
semânticas e pragmáticas), que definam uma linguagem objeto ideal, procurar as
consequências de tais suposições.
O matemático típico, assegura a maioria dos autores sobre o assunto, é ao mesmo
tempo um platonista e um formalista, qual Jano, o deus romano de rostos opostos. É a sua
atividade cotidiana que lhe sugere qual face adotar. É, portanto, antes de tudo, um
pragmático.
Sugestivamente, Janus Pater era o criador do mundo, o princípio de todas as coisas.
É interessante denominar essa faceta dos matemáticos de “efeito Jano”. Citaremos, para
ilustrar esse ponto de vista, dois matemáticos bastante conhecidos:

Quanto aos fundamentos, acreditamos na realidade da Matemática, mas naturalmente


quando os filósofos nos atacam com seus paradoxos, corremos e nos escondemos atrás do
formalismo e dizemos: “A Matemática é somente uma combinação de símbolos sem
sentido”, e mostramos os capítulos 1 e 2 da teoria dos conjuntos. Finalmente, deixamos em
paz para que regressemos a nossa Matemática e para fazê-la como sempre fizemos, com o
sentimento que cada matemático tem, de que está trabalhando com algo real. Esta sensação
é provavelmente uma ilusão, mas é muito conveniente. (J.A. Diedonné, in D&H, op. cit.,
p.362).

Para o matemático médio, que deseja simplesmente saber que o seu trabalho tem bases
exatas, a escolha mais convidativa é evitar as dificuldades, através do programa de Hilbert.

61
Nele encara-se a Matemática como um jogo formal e só se está preocupado com o problema
da consistência.... A posição Realista [isto é, platonista] é provavelmente a que a maior
parte dos matemáticos gostaria de adotar. Somente quando se tornar consciente de algumas
das dificuldades da teoria dos conjuntos é que o matemático começará a questioná-las. Se
estas dificuldades o inquietam particularmente, ele correrá para o abrigo do formalismo,
enquanto que sua posição normal será em algum ponto entre as duas, tentando desfrutar o
melhor de dois mundos (P.J.Cohen, in D&H, loc.cit.).

O que é a Mente Humana?

O problema da relação entre a mente e o corpo tem suas origens na antiguidade


grega. Para Aristóteles as formas são a natureza e as propriedades das coisas e existem
incorporadas nelas. Isso lhe capacitava explicar a união do corpo e da alma [mente]
dizendo que a alma é a forma do corpo. Isso significa que a alma [mente] de uma
determinada pessoa nada mais é que sua natureza como ser humano, nada mais é que uma
propriedade do corpo.
As versões mais modernas do dualismo provêm da obra “Meditationes de prima
philosophia, in qua Dei existentia et animæ immortalitas demonstratur”(1647), de René
Descartes. Ele acreditava que havia duas espécies de substâncias: matéria, concreta, que
tem extensão espacial; e mente, não material, incorpórea, cuja principal propriedade é que
pensa, o pensamento é sua ação.
Nesta secção não retomaremos a questão do dualismo entre mente/corpo,
concentrar-nos-emos apenas nas correntes acerca de como a mente humana é, como se
organiza, como opera e seus aspectos psicológicos. Não é à toa que informalmente o
problema mente/corpo (Mind/Body) é conhecido como “The Hard Problem”.
Ernest Haeckel (1912-1974) formulou a denominada “lei da recapitulação”,
segundo a qual a ontogênese (ou seja, o desenvolvimento de uma ideia) recapitula a
filogênese (isto é, o desenvolvimento histórico dessa ideia). Segundo esse ponto de vista,
as correntes modernas construtivistas sobre os fenômenos da aprendizagem defendem
que o conhecimento matemático é erigido (ontogênese) por meio de uma recapitulação
(reconstrução) de seu desenvolvimento histórico (filogênese), sem se levar em conta o
contexto social em que ocorre, ou mesmo fatores genéticos evolucionários envolvidos.
Todavia, reflexões mais recentes sobre as relações sócio-históricas da Matemática,
afirmam que: “o desenvolvimento do conhecimento [matemático] não ocorre no quadro
evolução natural, mas dentro dos quadros do desenvolvimento sociocultural” e “o
conhecimento é necessariamente sociocultural” (Otte, M. 1994, p 309). Essas reflexões

62
enfatizam o contexto em que o conhecimento matemático é edificado, daí a importância
de um enfoque Etnomatemático auxiliar em seu estudo. Contudo, deve-se acrescentar a
isso o componente genético inato, evolucionário, bem como os mecanismos neurais
pertinentes.
H. Werner, já em 1948, notou que existem algumas diferenças irredutíveis na
ontogênese e na filogênese que as tornam incomparáveis. Ressaltou que o
desenvolvimento das crianças á alcançado por sua interação com o mundo dos adultos,
lembra que nas culturas primitivas a organização social é marcantemente diferente da
moderna e, consequentemente, a evolução das crianças, bem como das suas percepções,
também o é.
Por exemplo, até atingirem a adolescência seu mundo é um tanto fluido, quando
então, por meio de cerimônias rituais de passagem, são arremessadas ao Weltraum 13
adulto, imutável, rígido. Já as crianças das culturas modernas são gradualmente
conduzidas através da “transformação plástica de uma fase da vida para outra por causada
interdependência e interação íntima dos padrões de vida” (Werner, 1948). Desse modo
argumenta que a atividade mental de uma criança moderna não recapitula a criança
primitiva e nem a atividade mental adulta.
Essas ponderações são importantes porque muitas correntes modernas de
pensamento admitem que as fases do desenvolvimento mental da criança refletem as fases
da evolução cognitiva de nossos ancestrais, ou seja, que a ontogenia recapitula a filogenia.
Jean Piaget (1895-1980) acreditava que a mente é como um programa de
computador que roda um pequeno conjunto de sub-rotinas de utilidade geral, que
controlam a entrada de novas informações e também reestruturam a mente de modo que
ela passe por uma série de fases de desenvolvimento. Denominou à última dessas fases
de operatório formal, atingida quando criança tem cerca de doze anos, quando então ela
seria capaz de pensar em objetos e eventos hipotéticos.
Esse tipo de pensamento é fundamental para, por exemplo, produzir um machado
de mão de pedra bifacial. É necessário primeiramente formar uma imagem mental
hipotética do machado acabado, para então começar a tirar as lascas do pedaço de pedra
original. Cada remoção é subsequente a uma hipótese de seu efeito sobre o formato
desejado.

13
Espaço, esfera, mundo dos adultos.

63
Isso nos recorda as palavras de Michaelangelo Buonarroti quando indagado de
como podia produzir uma obra prima, como a “Pietá”, a partir de um rústico bloco de
mármore. “Ela já está lá” [dentro do bloco], afirmou, “apenas retiro o excesso”. Isto quer
dizer que primeiro formou uma imagem mental da obra, depois foi gradualmente
esculpindo-a, comparando cada golpe com o efeito desejado.
Piaget acreditava que entre os povos primitivos o desenvolvimento ontogenético se
processava apenas no nível do pensamento pré-operatório, baseado apenas na inteligência
prática, incapaz de pensar em objetos e eventos hipotéticos,
Lev Vygotsky (1896-1934) foi pioneiro no conceito de que o desenvolvimento
intelectual das crianças ocorre em função das interações sociais e condições de vida. Seu
interesse simultâneo pelas funções mentais superiores, cultura, linguagem e processos
fisiológicos cerebrais pesquisados por neurofisiologistas russos com quem conviveu,
especialmente Alexander Luria e Alexei Nikolaievich Leontiev, geraram trabalhos que
foram reunidos em sua obra "A Formação Social da Mente", onde aborda os problemas
da gênese dos processos psicológicos tipicamente humanos, analisando-os desde a
infância à luz do seu contexto histórico-cultural, que constitui o kern de sua doutrina.
Infelizmente, na época não existiam tecnologias capazes de mostrar o cérebro em
operação.
Ele considerava que a aprendizagem é o elemento fundamental e antecessor ao
desenvolvimento e destacava a importância das relações sociais, valorizando sempre a
realização de tarefas coletivamente. Já Piaget considerava o contrário, que o
desenvolvimento é premissa para a aprendizagem, e esta vem para incentivar o
desenvolvimento. Modernamente essas perspectivas são consideradas complementares.
Atualmente se considera que a mente não opera com programas de utilidade geral,
nem tampouco é uma esponja que absorve indiscriminadamente qualquer informação
disponível. Novos tipos de analogias para explicar seu funcionamento estão sendo
propostas.
Uma delas é: a mente é como um canivete suiço, o qual dispõe de inúmeros
elementos, lâminas, tesouras, serrinhas, pinças, etc., cada um projetado para resolver um
problema específico. Para descrever cada um desses elementos especializados os
psicólogos adotaram termos como “módulos”, “domínios cognitivos”, “inteligências”,
“campos conceituais”, “modelos mentais”, etc. Descreveremos, sinteticamente, algumas
dessas correntes acerca da operacionalização da mente.

64
Jerry Alan Fodor (1935-2017), em sua obra “The Modularity of Mind”, propõe que
a mente pode ser dividida em duas grandes partes, denominadas de percepção (ou
sistemas de entrada, input) e cognição (ou sistemas centrais). Os sistemas de entrada, tais
como visão, audição, tato, linguagem, etc., seriam uma série de módulos discretos e
independentes. Já os sistema centrais (a cognição) não possuem uma arquitetura, ou talvez
ela permaneça sempre fora do nosso alcance. Para ele, questões como “pensamento”,
“resolução de problemas”, “consciência”, “inteligência” são irresolúveis, pois há um
lapso explanatório intransponível.
Howard Gardner (1943-), em sua obra “Frame of Mind: The Theory of Multiple
Intelligences”, lançada no mesmo ano que o livro de Fodor, propôs que a mente opera
com pelo menos sete tipos de inteligências distintas, cada uma contendo processos
neurológicos dedicados e diferentes. Essas inteligências seriam: a linguística, a musical,
a lógico-matemática, a corporal-cinestésica e duas formas de inteligência pessoal, uma
voltada para dentro, para perscrutar nossa própria história, e outra voltada para fora, para
compreender as pessoas. A lógico-matemática seria a que mais se aproximaria do que
normalmente entendemos como “inteligência’, ou seja, ao pensamento lógico e científico.
Os psicólogos evolucionistas Leda Cosmides (1957-) e John Tooby (1952-)
argumentam, em sua obra “The Psicological Fondations of Cultur”, que a mente humana
evoluiu sob as forças das pressões seletivas enfrentadas pelos nossos ancestrais enquanto
viviam como caçadores-coletores na pré-história.
Sugerem que a mente é composta de um grande número de módulos mentais
(lãminas), cada um projetado pela seleção natural para lidar com um problema adaptativo
enfrentado pelos caçadores-coletores durante nosso passado. Haveria, entre eles, um para
o reconhecimento de rostos, um para a mecânica dos corpos rígidos, um para o uso de
ferramentas, um para o medo, um para as trocas sociais, um para a emoção-percepção,
um para a motivação motivada pelo parentesco, um para a distribuição de esforços e
recalibração, um para o cuidado de crianças, um para as inferências sociais, um para a
amizade, um para a aquisição da gramática, um para a comunicação social, etc. Um
módulo importante seria o do pensamento estratégico, que englobaria memórias acerca
de eventos passados e a imaginação acerca de eventos futuros (previsão).
Em suma, haveria um módulo para cada exigência que surgisse. Contudo, como
esses módulos funcionam? Como se estruturam? Não basta listá-los, é preciso explicá-
los. As inteligências de Gardner são moldadas pelo contexto cultural do desenvolvimento,
enquanto os módulos dos evolucionistas são imunes a fatores externos.

65
Um argumento defendido por esses psicólogos para fundamentar a noção de
módulos especializados em conteúdos é que as crianças aprendem tantas coisas a respeito
de assuntos complexos que é impossível aceitar que isso aconteça, a menos que sua mente
tenham sido pré-programadas para que isso ocorra.
Esse argumento foi utilizado inicialmente por Noam Chomsky (1928-), e é
conhecido como o argumento da “pobreza de estímulo”. Chomsky se perguntou: como as
crianças adquiriam as muitas e complexas regras da gramática a partir apenas de uma
série de elocuções pronunciadas por seus pais? Como a crianças podem aprender as mais
variadas línguas paternas faladas ao redor do mundo, com as suas mais diversas e
complexas regras gramaticais?
Chomsky propôs que as crianças nascem com o que denominou de uma “gramática
generativa”, inata, intuitiva, transmitida evolucionariamente, ou seja, de um módulo
linguístico estrutural, semelhante ao que denominamos de Matemática Animal
(Chomsky, 2002).
As crianças, os psicólogos evolucionistas admitem, parecem ter conhecimento
intuitivo de pelo menos quatro domínios do comportamento: a linguagem, a psicologia, a
física e a biologia. No tocante à psicologia intuitiva, pois já mencionamos a linguagem
intuitiva, as crianças quando chegam aos três anos de idade passam a atribuir estados
mentais a outras pessoas, com o intuito de explicar suas próprias ações. Entendem que
outras pessoas possuem crenças e desejos e que estes têm um papel causal no
comportamento.
Igualmente, há evidências de que as crianças tem uma noção intuitiva na área da
biologia, sobre o mundo natural, compreendem a diferença entre seres vivos e objetos
inanimados. Entre todos os modos de vida, o dos caçadores-coletores é o que exige uma
melhor compreensão do mundo natural, são naturalistas exímios e compulsivos, capazes
de interpretar a menor das pistas em seus ambientes e suas implicações para localização
e comportamento tanto de animais como de plantas.
Do mesmo modo, há evidências de uma física intuitiva, desde cedo as crianças
entendem que os objetos físicos estão sujeitos a um conjunto de regras diferentes das
regras aplicadas aos objetos mentais e aos seres vivos. Entendem noções como: força,
movimento: ao empurrar um brinquedo ele se move; espaço: como se movimentar, se
localizar em um ambiente, seja ele amplo, largo ou estreito, aberto ou fechado; tempo:
hora de comer, de levantar, de dormir, etc..

66
Muitas outras variantes psicológicas que compartilham o conceito de modularidade
surgiram para tentar explicar como a mente das crianças e das pessoas se organiza.
Veremos algumas mais.
Gerard Vergnaud (1933-), discípulo de Piaget, amplia e redireciona em sua teoria
o foco piagetiano das operações lógicas gerais, das estruturas gerais do pensamento, para
o estudo do funcionamento cognitivo do “sujeito-situação”.
Sua teoria tem como premissa que o conhecimento está organizado em campos
conceituais, cujo domínio, por parte do sujeito, ocorre no decorrer de longo período de
tempo, através de experiência, maturidade e aprendizagem. O campo conceitual seria um
conjunto informal e heterogêneo de problemas, situações, relações, estruturas, conteúdos
e operações de pensamento, conectados uns aos outros e, provavelmente, entrelaçados
durante o processo de aquisição. É uma teoria complexa, que pretende abarcar vários
conceitos, porém não se debruça especificamente sobre como o cérebro processa o
conhecimento.
Já Philip Johnson-Laird (1936-) sugere que as pessoas raciocinam com modelos
mentais, que seriam como blocos de construção cognitivos, que podem ser combinados
ou recombinados conforme for necessário. Modelos mentais são representações
analógicas, um tanto quanto abstraídas, de conceitos, objetos ou eventos, que são espacial
e temporalmente análogos a impressões sensoriais, mas que podem ser vistos de qualquer
ângulo. Seriam representações internas de informações, as quais corresponderiam
analogamente ao que está sendo representado. Modelos mentais seriam análogos
estruturais do mundo.
De certa forma, é útil empregar uma analogia com as linguagens empregadas em
computação. Os dispositivos físicos dos computadores só podem executar diretamente
algoritmos expressos em linguagem de máquina, binária ou hexadecimal, capazes de
ativar diretamente seus componentes eletrônicos. Contudo, essa linguagem tem vários
inconvenientes para os humanos.
Por isso surgiu a ideia de se empregar uma linguagem simbólica, onde a
linguagem de máquina é expressa não apenas por dígitos, mas também por letras e
símbolos, sendo a pioneira dessas linguagens de alto nível o Assembler. Caberia então ao
computador traduzir as instruções dessa linguagem de alto nível para a linguagem de
máquina, empregando um programa denominado de compilador.
No sentido de Johnson-Laird, as linguagens de alto nível corresponderiam aos
modelos mentais e a mente teria um código próprio, que não seria consciente e ao qual

67
não teríamos acesso e nem precisaríamos, afirma este autor, pois operaríamos muito bem
com imagens e modelos mentais. Diversos outros autores também exploram outras
facetas, porém todas fundamentadas na ideia básica de modelos mentais.
Essa corrente também padece do problema de pretender ignorar como realmente
o cérebro processa o conhecimento, por exemplo, não esclarece o mecanismo equivalente
ao compilador por meio do qual os modelos mentais seriam traduzidos na linguagem do
cérebro.
Todas as correntes que advogam que a mente se estrutura modularmente partilham
do mesmo problema: explicar como esses módulos se articulam, como interagem, como
combinam suas especificidades.
Steve Mithen (1960-), entre outros, defende que tanto o desenvolvimento como a
evolução da mente humana passam (ou passaram) pela mudança que transforma uma série
de domínios independentes numa outra série, onde as ideias, as formas de pensamento e
o do conhecimento fluem livremente entre os domínios. Denomina essa mudança de
fluidez cognitiva, a criança, ou as pessoas, passam de uma mentalidade domínio-
específica para uma mentalidade com fluidez cognitiva.
Entretanto, cabe observar que essas correntes não esclarecem os mecanismos
neurofisiológicos mediante os quais o cérebro humano processa essa mudança, os quais
assim são por elas ignorados. No entanto, presentemente a evolução da compreensão
desses mecanismos, eventualmente mediante o conceito de rede neural, por meio do
estudo dos conectomas, das fibras que interconectam as diversas regiões do cérebro está
melhorando nosso entendimento de como a mente processa essas talvez pseudo-
compartimentalizações, podendo assim contribuir para o entendimento desse vago
conceito de “fluidez”.
De um modo geral, praticamente todas as teorias psicológicas ou educacionais
atuais sobre o processo do conhecimento igualmente enfrentam o mesmo problema. Essa
situação, a nosso ver, somente poderá progredir se avançarmos em nosso entendimento
sobre como o cérebro processa o conhecimento, especificamente o matemático, que é o
que interessa nesta obra. Evidentemente, isso poderá invalidar, aperfeiçoar ou corroborar
as teorias vigentes, contribuindo assim para o progresso da ciência.

68
CAPÍTULO II

A BLACK BOX DO CÉREBRO

É preciso não esquecer que todos os nossos


provisórios conhecimentos psicológicos deverão
um dia basear-se em substratos orgânicos.

Sigmund Freud

Preâmbulo

No presente Capítulo investigaremos as raízes históricas da concepção do cérebro


como uma tabula rasa, como se a realidade existe independentemente da consciência,
como os humanos podem auferir conhecimentos e o papel de suas percepções. Essas
discussões estão imbricadas no problema mente/corpo, como o cérebro (mente) adquire
conhecimento e como percebe a realidade.
Iremos igualmente estudar a estrutura do cérebro, como as informações são
transmitidas no sistema nervoso, os conectomas, que permitem o mapeamento das
conexões cerebrais, as redes neurais, as técnicas de neuroimagem e como a Matemática
é parte estruturante de nossos processos mentais.

Realidade, Conhecimento e Percepções

A novelista e filósofa americana Ayn Rand (1905-1982) desenvolveu uma


corrente filosófica, denominada de Objetivismo, que sustenta que a realidade existe
independentemente da consciência, as pessoas estão em contato direto com essa realidade
através da percepção sensorial. Os humanos seriam capazes de auferir conhecimento
objetivo por meio da percepção, que seria complementada pelo processo de formação
conceitual, bem como pelas lógicas indutiva e dedutiva.
À parte de suas conclusões éticas, políticas e artísticas, que muitos intelectuais
discutem, a filosofia de Rand é ainda esquemática, não constitui ainda uma filosofia da
ciência consistente; as relações entre a epistemologia do objetivismo e as ciências
cognitivas são obscuras. Porém, para nós, o importante é que retoma o tema do
conhecimento da realidade por meio dos sentidos.

69
Argumentos, pró e contra essas concepções, floresceram desde a antiguidade, o
que não é de se admirar, pois radicalmente nelas embrenhado está o problema mente-
corpo. Mesmo hoje, dividem as opiniões dos pensadores.
Sócrates, por exemplo, acreditava que a ocupação do filósofo não devia ser com
o corpo, mas sim com a alma. O corpo somente se ocupa de afazeres materiais, como
comida, bebida, sexo, roupas e riqueza. O corpo, para esse filósofo, era um obstáculo para
o conhecimento; duas pessoas não veriam ou ouviriam a mesma coisa de modo idêntico,
consequentemente não irão perceber a mesma informação sensorial. Para ele, o
conhecimento nunca mudaria, era eterno e concreto. Platão incorpora esses conceitos na
sua formulação das ideias, formas ou universais.
O vocábulo empírico foi originalmente empregado por gregos antigos praticantes
de medicina, pertencentes à denominada escola empírica, em contraposição às doutrinas
dogmáticas da época, adotadas pela escola dogmática, que preferia admitir qualquer
certeza para além das sensações, ao invés se apoiarem na observação dos fenômenos
como percebidos pela experiência. Para os empiristas14, para que qualquer conhecimento
possa ser propriamente inferido ou deduzido, ele deve ser auferido por meio de uma
experiência baseada nos sentidos; enfatizam, portanto, o papel da experiência e da
evidência, especialmente da percepção sensorial.
Aristóteles, em seu tratado “Sobre a Alma” (De Anima), institui a noção de tabula
rasa, isto é, que os indivíduos nascem sem nenhum conteúdo mental, o conhecimento
provém da experiência e da percepção.
Depois da morte de Aristóteles em 322 a.C, os seus escritos sobre o raciocínio
foram agrupados por seus alunos em uma coleção denominada Organon, ou instrumento
da ciência. O âmbito dessas investigações de Aristóteles é o que se conhece hoje como
lógica, contudo esta palavra em seu sentido moderno, só foi empregada 500 anos mais
tarde, por Alexandre de Afrodisias (fl. 198–209 d.C.).
Avicena (Ibn Sina; ca. 980 – 1037), médico e filósofo persa, aperfeiçoou a teoria
da tabula rasa no século XI. Arguiu que o intelecto humano, no nascimento, é como uma
tabula rasa, uma potencialidade pura que é atualizada por meio da educação, e que o
conhecimento é adquirido através de uma familiaridade empírica com objetos neste

14
Para noções sobre o empirismo, pode-se consultar, por exemplo,
http://plato.stanford.edu/search/searcher.py?query=empiricism ou, em português,
http://pt.wikipedia.org/wiki/Empirismo

70
mundo, dos quais conceitos universais são abstraídos. Esses então são desenvolvidos por
meio de um raciocínio silogístico; observações conduzem a afirmações proposicionais,
as quais se compõem para produzirem mais conceitos abstratos.
No século XIII, São Tomás de Aquino (1225 – 1274) incorporou as noções de
Aristóteles e de Avicena ao pensamento cristão. A partir dele, considera-se que os cristãos
nascem sem nenhum conteúdo mental, tabula rasa, e obtém seu conhecimento por meio
da educação. Isso contrastava espetacularmente com as noções platônicas anteriormente
mantidas, que a mente pré-existia em algum lugar nos céus.
John Locke (1632-1.04), em seu ensaio An Essay Concerning Human
Understanding (1689), propôs a influente tese de que todo o conhecimento que os
humanos podem ter é a posteriori, isto é baseado na experiência. Para ele a mente humana
é uma tabula rasa, um papel branco, nas palavras de Locke, no qual as experiências
deduzidas das observações dos sentidos são escritas à medida que a vida do indivíduo
progride. Para ele há duas fontes de nossas ideias: sensações e reflexões.
Uma geração mais tarde, o Bispo Anglicano George Berkeley (1685-1753),
considerou as ideias de Locke subversivas, pois eventualmente abririam uma porta ao
ateísmo. Propôs, então, uma forma diferente de empirismo, onde as coisas somente
existem ou como um resultado de serem percebidas, ou em virtude do fato de que há uma
entidade (Deus) mediando a percepção. Dessa maneira, incluiu a divindade no esquema
empirista.
O filósofo escocês David Hume (1711-1776) adicionou ao empirismo um
ceticismo extremo, para ele todo o conhecimento deriva unicamente de experiências
sensoriais. Dividia o conhecimento em duas categorias: relações de ideias e questões de
fato, antecipando a distinção kantiana entre o analítico e o sintético. A matemática e a
lógica eram exemplos da primeira, enquanto proposições envolvendo questões
contingentes como, por exemplo, o sol nasce a leste, eram exemplos da segunda.
Nossos conhecimentos são resultados de nossos hábitos, são desenvolvidos em
resposta às experiências sensoriais acumuladas. Isso contraria o raciocínio indutivo;
segundo Hume, não há certeza que no futuro o sol continue nascendo a leste, esperamos
isto apenas porque o sol nasceu a leste repetidamente no passado. Essas crenças somente
são aceitas por causa de seu enraizamento profundo no instinto e no costume. Em relação
ao problema da indução, Hume argumentava que não há certeza em que o futuro repetiria
o passado.

71
Neste ponto, optamos por recapitular parte do já exposto anteriormente, a fim de
que a sequência cronológica da evolução das polêmicas sobre esses problemas seja
respeitada. As discussões sobre o conhecimento e a percepção da realidade estão
profundamente entrelaçadas com a Filosofia e a Epistemologia da Matemática que é
praticamente impossível desembaraçá-las.
Duas correntes filosóficas conflitantes embatiam-se então ferozmente: os
racionalistas, para os quais todo o conhecimento advinha da razão, a experiência era
desnecessária; e os empiristas, para os quais o todo o conhecimento se fundamentava na
experiência.
No fim do século dezoito, Immanuel Kant (1724-1804) tentou unificar as tradições
conflitantes do racionalismo e do empirismo. A metafísica de Kant é uma herança
platônica, da procura da certeza e da imutabilidade do conhecimento humano. A mente
humana, para Kant, não é uma tabula rasa, dispõe de conhecimentos intrínsecos aos quais
denominou de conhecimentos a priori.
Distinguiu nitidamente entre os noumenos, as coisas nelas próprias, que não
podemos jamais conhecer, e os fenômenos, que são tudo sobre o que nossos sentidos nos
podem dizer alguma coisa.
Sua principal preocupação era com o conhecimento “a priori”, o qual independia
do tempo e da experiência. Diferenciou dois tipos desse conhecimento. O “a priori
analítico” é o que sabemos ser verdadeiro pela análise lógica, pelo exato significado dos
termos usados. Acompanhando os racionalistas, acreditava que possuímos também um
outro tipo de conhecimento a priori, que não é simplesmente truísmo lógico: o “a priori
sintético”, representado pelas nossas intuições do tempo e do espaço. Explica sua natureza
a priori afirmando que estas intuições são propriedades inerentes ao espírito humano. A
aritmética, que se baseia na intuição de sucessão, sistematiza nosso conhecimento do
tempo. Já o nosso conhecimento do espaço é sistematizado na geometria.
Para Kant, como para Platão, existe somente uma geometria, a que hoje
conhecemos como euclidiana, para distingui-la de muitos outros modelos conceituais que
também denominamos de geometrias, como as de Bolyai, Lobachevski e Riemann. As
verdades da aritmética e da geometria, e consequentemente da lógica, se impõem pelo
modo como a nossa mente funciona. Isso esclareceria por que são supostamente válidas
para todos, independentemente da experiência. As intuições de tempo e do espaço, sobre
as quais estão baseadas a aritmética e a geometria, são objetivas no sentido de que são
universalmente válidas para todas as mentes humanas.

72
Para Kant o conhecimento a posteriori é o conhecimento ou justificação
dependente de experiência ou evidência empírica, ou seja, depende de que o objeto do
qual será retirado o conhecimento esteja disposto aos sentidos, o individuo precisa ver,
ou sentir, ou tocar, para, a partir desta premissa, começar o raciocínio.
Outra corrente do empirismo, o fenomenalismo, defende que objetos,
propriedades e eventos físicos são reduzíveis a objetos, propriedades e eventos mentais.
Somente objetos, propriedades e eventos mentais existem para essa corrente.
John Stuart Mill (1806-1873), economista e filósofo inglês, mantinha que o
conhecimento de qualquer espécie provém não da experiência direta, mas de uma
inferência indutiva da experiência direta. As verdades matemáticas, para ele, eram
meramente generalizações da experiência altamente confirmadas. A inferência
matemática, geralmente considerada dedutiva por natureza, era por Mill concebida como
unicamente fundada na indução. Para ele, não havia conhecimento real somente baseado
apenas na relação entre ideias. Obviamente, as concepções de Mill falham em
compreender a verdadeira estrutura da matemática, que emprega tanto a dedução como a
indução, complementarmente.
A fase fenomenalista do empirismo pós-Hume terminou por volta de 1940; nessa
época se tornou óbvio que proposições acerca de coisas físicas não podiam ser
transladadas em proposições acerca de dados, atuais e possíveis, dos sentidos. Se
constatações acerca de um objeto físico são traduzíveis em constatações sensoriais, atuais
e possíveis, o objeto físico deveria ao menos poder ser deduzido desse conjunto de
constatações sensoriais; porém, tornou-se evidente que não há nenhum conjunto finito de
dados sensoriais, atuais e possíveis, que permitam reproduzir um único evento físico.
Nos fins do século XIX e princípios do XX, diversas correntes pragmáticas de
filosofia começaram a surgir. Seus principais campeões foram Charles Sanders Peirce
(1839-1014) e William James (1842-1910), que popularizou o termo pragmatismo,
devido a Peirce.
Peirce considerava os raciocínios indutivos e dedutivos como complementares e
não competitivos. Argumentava que: os objetos do conhecimento são coisas reais; as
características das coisas reais não dependem de nossas percepções acerca delas; qualquer
um que tenha experiência suficiente de coisas reais não depende de nossas percepções
delas. Para ele, o que nós podemos encontrar no intelecto está também, de modo
incipiente, nos sentidos.

73
James, que cunhou o termo empirismo radical para descrever uma forma de
pragmatismo, argumentou que o universo que podemos apreender não necessita de
“suportes conectivos trans-empíricos estranhos”, em suas palavras, queria dizer com isso
que não agregamos valor ao conhecimento procurando explicações sobrenaturais para
fenômenos naturais.
O empirismo lógico (positivismo lógico ou neopositivismo) surgiu, nos princípios
do século XX, como uma tentativa de reconceitualizar o empirismo, principalmente o
britânico, com sua importante ênfase em experiências sensoriais como base do
conhecimento, com os avanços das ciências físicas e formais, mormente com algumas
ideias da lógica matemática desenvolvidas por Gottlob Frege e Ludwig Wittgenstein.
Algumas de suas figuras proeminentes foram Hans Reichenbach, Rudolf Carnap,
Otto Neurath, Moritz Schlick, bem como outros elementos do denominado Círculo de
Viena. Seus seguidores procuravam uma clarificação conceitual dos métodos, insights, e
descobertas da ciência.
Viam no simbolismo lógico, desenvolvido por Frege e Russel, um poderoso
instrumento mediante o qual poderiam reconstruir a linguagem da ciência de um modo
ideal, perfeito, eliminando as ambiguidades e imperfeições da linguagem usual. Contudo,
o papel do cérebro no processamento dos símbolos nunca foi questionado.
Mediante uma combinação da tese de Frege, que de todas as verdades matemáticas
são lógicas, com as ideias iniciais de Wittgenstein de que todas as verdades lógicas são
meras tautologias linguísticas, chegaram a uma classificação bivalente de todas as
proposições possíveis: as analíticas (a priori) e as sintéticas (a posteriori). Com base
nisso, formularam o denominado princípio de verificação, que permitiria distinguir entre
sentenças que têm sentido e que as que não têm.
Para eles, toda a sentença que não é puramente lógica ou é inverificável ou vazia
de significado. Contudo, como vimos anteriormente, somente a lógica pura é impotente
para fundamentar completamente a Matemática, pois existem proposições indecidíveis.
Com isso, muitos problemas metafísicos, éticos, estéticos ou filosóficos
tradicionais foram simplesmente abandonados por serem classificados como pseudo-
problemas. No seu empirismo mais radical, ao menos antes de 1930, essa corrente
considerava que uma afirmação sintética para ser genuína deveria ser reduzida a uma
afirmação que expressava observações ou percepções diretas.
As concepções dessa corrente estavam mudando constantemente, conforme a
opinião de seus membros ia evoluindo. Posteriormente, Carnap e Neurath propugnaram

74
por uma reconstrução racional do conhecimento empregando a linguagem da física
espaço-temporal objetiva.
Ao invés de traduzir afirmações acerca de objetos físicos em termos de dados
sensoriais, estas afirmações, segundo eles, deveriam ser traduzidas pelas denominadas
sentenças-protocolo, por exemplo, “X no local Y no tempo T observa o fenômeno tal”.
Novamente, não se questionava como o cérebro “observa”, processa, o fenômeno tal.
As teses centrais do neopositivismo foram, depois da segunda guerra mundial,
objeto de críticas por parte de pensadores como Goodman, Quine, Putnam, Popper e
Rorty.
Como é possível constatar do exposto, historicamente a discussão sobre o
problema mente/corpo, sobre a percepção da realidade, nunca se preocupou com o
funcionamento do cérebro, a mídia, a interface entre a mente e a realidade.
A posição da percepção na compreensão da realidade, similarmente à solução do
problema mente-corpo, talvez nunca venha ser esclarecida.

Estrutura do cérebro

Santiago Ramón y Cajal (1852-1934) foi um médico e histologista espanhol, é


considerado o "pai da neurociência moderna" e recebeu o Nobel de Fisiologia ou
Medicina de 1906. Seus estudos mais famosos incidiram sobre a estrutura fina do sistema
nervoso central.
Cajal usou uma técnica de coloração histológica desenvolvida pelo seu
contemporâneo Camillo Golgi (1843-1926), que descobriu como escurecer células
cerebrais tratando o tecido do cérebro com uma solução de nitrato de prata. Isso lhe
permitiu resolver em detalhe a estrutura dos neurônios individuais, o que o conduziu a
concluir que o tecido nervoso era um retículo contínuo (ou teia) de células interligadas.
Foi o anatomista alemão Heinrich Wilhelm Gottfried Waldeyer-Hartz (1836-1921) que
denominou as células de Cajal de Neuron em 1891.
Empregando o método de Golgi, Ramón y Cajal concluiu que os neurônios eram
células funcionalmente polarizadas, contendo uma região especializada na recepção de
informação, os dendritos, e um componente dedicado à sua transmissão: os axônios.
Sugeriu que ao invés de formarem uma teia contínua os neurônios se comunicam entre si
através de ligações especializadas denominadas de sinapses. A microscopia eletrônica

75
mostrou mais tarde que uma membrana plasmática envolve completamente o neurônio.
Ramón y Cajal e Golgi compartilharam o Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1906.

Fig. 2.1 Esq. Santiago Ramón y Cajal. Dir. Camillo Golgi. Wikipedia.

O espaço entre o dendrito de um neurônio e o terminal axonal de outro é


denominado de fenda sináptica. Os sinais elétricos são transportados através das sinapses
por uma variedade de substâncias químicas chamadas neurotransmissores. O córtex
cerebral é um tecido fino composto essencialmente por uma rede de neurônios
densamente interligados tal que nenhum neurônio está a mais do que algumas sinapses de
distância de qualquer outro neurônio. O mecanismo de atuação das sinapses é descrito a
seguir15.
Os impulsos nervosos gerados pelos neurônios são fenômenos eletroquímicos que
utilizam certas propriedades e substâncias da membrana plasmática, que permitem que
seja criado e transmitido um impulso elétrico.
Um neurônio em repouso é uma célula que possui uma diferença de voltagem
entre o seu citoplasma e o líquido extracelular. Um neurônio, como toda célula em nosso
corpo, é polarizado, o que significa dizer que sua membrana plasmática é carregada
positivamente em sua face extracelular e negativamente na face citoplasmática. Esta
diferença de voltagem é criada graças ao acúmulo seletivo de íons potássio (K+)
e sódio (Na+), que ocorre pela ação de bombas que criam uma diferença de concentração.
Esta diferença de concentração é controlada por canais de K+ e de Na+, gerando uma

15
Cf. Wikipedia. Consulta em 02/11/2019.

76
tensão negativa (de -58 mV no interior de neurônios humanos), que pode variar entre
espécies.

Fig. 2. 2 Esq. Neurônios corados em negro com nitrato de prata. Técnica de Golgi. Dir. Esquema das
sinapses. Wikipedia.

Esse estado de equilíbrio (ou estado de polarização do neurônio) dura até o


momento em que um potencial de ação abre os canais de K+ e de Na+, alterando a
concentração destes íons. Esta modificação gera um potencial positivo dentro do
neurônio, chegando aos +40 mV ou mais (dependendo do organismo estudado). Este
desequilíbrio gera um efeito cascata, que transmite a informação entre os neurônios.
Fora das células existe uma alta concentração de sódio e uma baixa concentração
de potássio, pois existe difusão destes componentes através de canais iônicos existentes
na membrana celular. Para manter as concentrações ideais dos dois íons, a bomba de sódio
bombeia sódio para fora da célula e potássio para dentro dela.
Usualmente o potencial de ação inicia no axônio (zona de disparo) e se propaga
até as vesículas sinápticas, gerando a descarga de neurotransmissores. Exemplos desses
neurotransmissores são: aminas (serotonina, dopamina), aminoácidos (glicina,
glutamato), acetilcolina, gasotransmissores (óxido nítrico, sulfeto de hidrogênio,
monóxido de carbono) e outros. Os neurotransmissores são produzidos na célula
transmissora e são acumulados nas vesículas, as vesículas sinápticas. Cerca de 60
neurotransmissores foram identificados.
Após ter ocorrido o potencial de ação, imediatamente os canais de K+ e de
Na+ começam a restabelecer o equilíbrio anterior, com uma tensão negativa no interior
do neurônio e positiva fora dele. O neurônio precisa, então, de um brevíssimo tempo para

77
reconstituir seu estado pré-descarga, e durante este tempo ele não consegue efetuar outro
potencial de ação. Este período de latência chama-se período refratário. Logo em seguida,
o neurônio adquire sua capacidade para efetuar outro potencial de ação, estabelecendo
um ciclo.

Fig. 2. 3 Estrutura dos neurônios. Wikipedia.

Redes neurais

O cérebro conta com bilhões de neurônios, que se ligam por trilhões de conexões,
mas pode competir com um computador? Em pelo menos um aspecto: sim. Sua eficiência
energética é excelente, quando um neurônio se comunica com outro, o cérebro usa apenas
um milhonésimo da energia de um computador executando tarefa equivalente
(Sejnowoski, 2012).
Quando um neurônio atinge seu potencial de ação, ele emite um impulso, ou um
“pico”, em milésimos de segundo, nesse caso perdendo para o computador, que pode
levar apenas bilhonésimos de segundo. A confiabilidade da rede neuronal também é
baixa: um sinal transmitido de um neurônio individual a outro tem apenas 20 % de
possibilidade de chegar ao seu destino final e muito menos chance de alcançar um

78
neurônio distante ao qual não esteja conectado distantemente. O que aumenta a
confiabilidade das redes neurais é que são constituídas por fibras de neurônios, os
conectomas, cada qual contendo um número estrondoso de neurônios, multiplicando
assim exponencialmente a chance de um sinal chegar ao seu destino.
Estudos recentes mostram que o timing dos picos, é importante, pois grupos de
neurônios que disparam ao mesmo tempo picos podem transportar muito mais
informações que um grupo similar, mas que se ativa de forma não sincronizada. É o
timing, a sincronização dos picos, que importa, que dá eficiência às redes neurais (id.).
A atenção, faceta essencial da cognição, também pode ter suas bases físicas em
sequências de impulsos sincronizados, pois parece que essa sincronia age para enfatizar
uma percepção ou uma memória particular ativando assim a consciência.
O cérebro atua em frequências específicas, medidas as pelo eletroencefalograma,
as ondas beta, alpha, teta, delta e gama. As ondas beta (14-40 Hz) estão associadas à
consciência normal de vigília e a um estado elevado de alerta, à lógica e ao raciocínio
crítico. As ondas alfa (7,5 – 14 Hz) estão presentes quando estamos em relaxamento
profundo e geralmente quando os olhos estão fechados. As ondas teta (4 – 7,5 Hz) estão
presentes durante a meditação profunda e no sono leve REM. As ondas delta (0,5 – 4 HZ)
estão presentes no sono profundo (não REM), sem sonhos, em meditação transcendental
e é a mais lenta das frequências. As ondas gama, as mais recentemente descobertas, têm
uma frequência acima de 40 Hz.
A atenção, mostram estudos recentes (id.), parece estar vinculada quando o
número de neurônios corticais que disparam sincronizados na banda gama de frequências
(40-80 Hz). Outra evidência que impulsos síncronos podem ser importantes para a
memória, vem de pesquisas sobre o hipocampo, área do cérebro importante para lembrar
objetos e acontecimentos. Os impulsos dos neurônios do hipocampo e as áreas corticais
que interagem com eles são muito influenciados por oscilações síncronas de ondas
cerebrais em uma faixa de frequência de 4 – 7,5 Hz, a banda teta. Logo, existem
evidências de que a sincronização dos impulsos neuronais tem efeitos importantes sobre
a mente. Maiores pesquisas são necessárias para esclarecer esses mecanismos.

Tecnologias de Neuroimagens

Como podemos perceber da evolução histórica exposta, todas as discussões sobre


o problema mente/corpo, sobre a realidade dos objetos matemáticas, sobre como podemos

79
auferir o conhecimento, entre outras, polêmicas delongadas, exacerbadas, intermináveis,
nunca se debruçaram sobre o papel desempenhado pelo cérebro. Isso devido a que ele era
considerado com uma caixa preta impenetrável e inescrutável. Mesmo no presente,
algumas doutrinas tanto pedagógicas como psicológicas não lhe concedem a atenção
devida.
Isso é compreensível, pois somente recentemente na história da humanidade
dispomos de tecnologias capazes de visualizar pormenorizadamente tanto sua estrutura
como seu funcionamento, constituindo assim em um fértil campo para a compreensão de
como os mecanismos envolvidos nos processos cognitivos matemáticos operam.
Como os objetos matemáticos, segundo as teorias materialistas, onde o mental não
é distinto do físico, correspondem a estados físicos do cérebro, seria possível visualizá-
los externamente mediante técnicas de neuroimagens. As técnicas de neuroimagens se
dividem em dois ramos: as invasivas e as não invasivas.

Técnicas Invasivas

As técnicas invasivas podem empregar microelétrodos únicos ou uma rede de


microeletrodos. Os microeletrodos únicos consistem em cilindros metálicos de tungstênio
ou de aço cirúrgico inoxidável, rígidos e finos, com alguns centímetros de comprimento
e ponta com apenas alguns micrômetros.
Uma rede de microelétrodos consiste em vários microeletrodos dispostos
matricialmente. Uma vez que a superfície do cérebro esteja exposta cirurgicamente, os
microeletrodos são inseridos no tecido cerebral, podendo-se assim registrar a atividade
elétrica de neurônios próximos às pontas. Um fio terra, geralmente conectado à dura-
mater, a mais externa das meninges, provê um ponto de referência para os sinais neurais
captados.
As técnicas invasivas são normalmente empregadas em estudos em animais, pois
não se pode abrir o cérebro de um paciente e nele implantar microelétrodos, exceto em
casos excepcionais.

80
Fig. 2.4 Rede de Microeletrodos

Técnicas não invasivas

Descreveremos resumidamente a seguir as principais técnicas não invasivas de


neuroimagens empregadas na atualidade.

Eletroencefalogramas – EEG

Eletroencefalogramas (EEG) é a gravação da atividade elétrica através do couro


cabeludo. Mede flutuações de voltagem resultantes de fluxos de corrente iônicas pelos
neurônios do cérebros. Os EEG permitem a gravação da atividade elétrica espontânea em
um período de tempo curto, usualmente 20-40 min, capturada por múltiplos eletrodos
colocados no escalpo. Colocam-se eletrodos em posições predefinidas sobre o couro
cabeludo do paciente, um amplificador aumenta a intensidade dos potenciais eléctricos
que posteriormente serão plotados num gráfico analógico ou digital, dependendo do
equipamento.
Em 1875, Richard Caton (1842-1926) apresentou suas conclusões sobre os
fenômenos elétricos dos hemisférios cerebrais expostos de coelhos e macacos no British
Medical Journal. Em 1890, o fisiologista polonês Adolf Beck (1863-1942) publicou uma
pesquisa sobre a atividade elétrica espontânea do cérebro; em suas experiências sobre a
atividade elétrica cerebral dos animais colocou eletrodos diretamente na superfície do
cérebro de coelhos e cães para testar a estimulação sensorial.
A suas observações da flutuação da atividade do cérebro levaram-lhe à elaborar o
modelo das ondas cerebrais. Em 1912, Vladimir Vladimirovich Pravdich-Neminsky

81
(1879-1952) publicou o primeiro exame de EEG de um cão. Em 1924 Hans
Berger (1873-1941), registrou o primeiro exame de EEG em um ser humano.

Fig. 2. 5 Colocação dos eletrodos. Eletroencefalograma. Wiki. Dir.: Gráfico


de um eletroencefalograma. Researchgate: Fabio Appolinario.

Tomografia Computadorizada - CT

Tomografia refere-se a construir imagens a partir de secções obtidas pelo uso de


qualquer espécie de ondas penetrantes. Já Tomografia Computadorizada (CT/TC): é um
método de processamento de imagens empregando tomografia, criado por processamento
computadorizado.
Técnicas de processamento de geometria digital são então usadas para gerar
imagens tridimensionais do interior de um objeto a partir de um grande número de
imagens de Raios X bidimensionais tomadas ao redor de um único eixo de rotação.
A Tomografia Computadorizada produz um volume de dados que pode ser
manipulado através de um processo conhecido como "windowing", para mostrar várias
estruturas corporais baseadas na sua habilidade de bloquear o feixe de rios X.
A TC foi desenvolvida pelo físico sul africano Allan Cormack e o britânico
Godfrey Newbold Hounsfield, os quais foram agraciados com o Prêmio Nobel de
Medicina ou Fisiologia em 1979. Sua primeira máquina de tomografia foi construída em
1972 no "THORN EMI Central Research Laboratories", na Inglaterra.
Sua principal vantagem é que permite o estudo de "cortes" ou secções transversais
do corpo humano vivo, ao contrário do que é dado pela radiologia convencional, que
representa todas as estruturas do corpo sobrepostas. Igualmente permite maior distinção

82
entre dois tecidos. Ela consegue distinguir diferenças de densidade da ordem 0,5% entre
tecidos, enquanto que na radiologia convencional consegue-se distinguir apenas 5%. Sua
principal desvantagem é a utilização de radiações de Raios X, que cumulativamente
podem ocasionar efeitos deletérios.

Fig. 2.6 Equipamento CT. Wikipedia.

Tomografia por Emissão de Pósitrons

Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET) é uma técnica de produção de imagens


da medicina nuclear, que produz uma imagem tridimensional de processos funcionais no
corpo. O sistema detecta pares de raios gama emitidos indiretamente por um traçador
(radionuclídio), que é injetado no corpo em uma molécula biologicamente ativa,
geralmente glicose, adicionada ao traçador.
O traçador (Flúor 18; Nitrogênio 13; Carbono 11; Oxigênio 15; Rubídio 82) emite
pósitrons, que no momento de sua desintegração são detectados para formar as imagens
do exame. O pósitron é a partícula de antimatéria do elétron, quando ele encontra um
elétron situado nas moléculas do paciente adjacentes ao ponto de emissão, ele se aniquila,
desintegrando-se sem percorrer uma distância significativa. Essa desintegração é
registrada por detectores de raios gama colocados ao redor do paciente.
As regiões que estão metabolizando a glicose em excesso, tais como tumores ou
regiões do cérebro em intensa atividade, aparecerão em vermelho na imagem criada pelo
computador. Um grande utilizador de glicose é o músculo cardíaco, o miocárdio.
Imagens tridimensionais da concentração do traçador dentro do corpo são então
construídas pela análise computadorizada.
O PET foi desenvolvido por Edward Hoffman e Michael E. Phelps em 1973 na
Universidade de Washington, contudo sua utilização ficou limitada apenas à investigação

83
médica até cerca de 1990, somente a partir de então seu uso generalizou-se. Hoje em dia
é frequente a combinação dos exames PET e TC do mesmo órgão. Existem equipamentos
que permitem efetuar ambos os exames simultaneamente, na mesma sessão, inventados
por David Townsend e Ron Nutt.

Fig. 2.7 Equipamento PET. Imagem PET. Wikipedia.

Ressonância Magnética (RM-MRI)

A Ressonância Magnética (RM ou MRI-Magnetic Resonance Imaging) é uma


técnica de produção de imagens médicas para visualizar detalhes de estruturas internas.
Máquinas de MRI empregam poderosos campos magnéticos para alinhar a magnetização
de alguns átomos dentro do corpo, e rádio frequência para sistematicamente alterar o
alinhamento desta magnetização. Isso produz nos seus núcleos um campo magnético
rotativo detectável pelo scanner .
O corpo humano compõe-se por cerca de 70 à 75% de água. Os elementos
químicos que compõem a água são o oxigênio e o hidrogênio e a molécula de água é
formada por dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio, H2O. Logo, o hidrogênio
é o elemento mais abundante no corpo humano.
O átomo de hidrogênio é formado por um núcleo com um próton e orbitado por
um elétron. Como o núcleo do átomo de hidrogênio possui um próton e nenhum elétron,
ele tem carga positiva, o que torna o átomo com propriedades magnéticas. O próton fica
então em constante movimento desordenado.
Esse movimento é denominado de spin (giro, em inglês). Pode-se fazer uma
analogia com ema esfera girando sobre seu eixo. Contudo, essa analogia é imperfeita,
pois na realidade, esse é um fenômeno quântico muito mais complexo. Os átomos de

84
hidrogênio presentes nos tecidos do corpo humano estão em constante com movimento,
mas em movimentos aleatórios.
Os equipamentos de ressonância magnética possuem possantes imãs, cuja força é
medida em Tesla. Quando o corpo humano é posicionado próximo a este possante campo
magnético, os átomos de hidrogênio são alinhados em um movimento ordenado. Portanto,
na ausência de um campo magnético, os átomos de hidrogênio se movimentam ao acaso,
na sua presença os átomos de hidrogênio se alinham em direção ao campo magnético.
A ressonância é um conceito da física e um fenômeno natural muito comum.
Retornando à nossa analogia, a quantidade de voltas em torno do eixo é denominada de
ressonância. A frequência com que o próton gira na direção do campo magnético é
denominada de frequência de Larmor e é proporcional ao tipo de átomo e a força do
campo magnético.
Todavia, para conseguirmos uma imagem na RM é necessário introduzir um sinal,
que será produzido após um pulso de radiofrequência emitido pelo equipamento de RM.
Para que a imagem seja produzida, os átomos de hidrogênio precisam emitir uma corrente
elétrica. O campo magnético do equipamento de RM alinha, ordena, os prótons. Quando
eles recebem uma pressão causada por um pulso de radiofrequência eles mudam de
movimento. Essa mudança na direção do movimento dos prótons emite uma energia, uma
pequena corrente elétrica, que é captada pelos sensores do equipamento de RM,
produzindo um sinal, por meio do qual através de um software é produzida a imagem do
exame de ressonância magnética.
O tempo e a intensidade dos pulsos de radiofrequências são controlados para
produzir diferentes angulações. As mais comuns variam entre 90 e 180 graus. Cada pulso
de radiofrequência inicia um novo ciclo, onde o átomo de hidrogênio retorna ao estado
inicial de alinhamento no campo magnético. O tempo para retornar ao estado de equilíbrio
é denominado de tempo de relaxamento, o qual depende de vários fatores, como a
intensidade do campo magnético e do pulso de radiofrequência, tipo de tecido do corpo
humano, entre outros.
Quando recebem o pulso de radiofrequência, os prótons ficam mais energizados,
sendo que o processo de dissipação dessa energia extra e o tempo para o próton voltar a
sua energia normal é denominado de tempo 1, ou tempo de relaxamento tempo 1 ou T1.
Desse modo, obtém-se as imagens de RM T1.
Cada próton possui a sua própria energia magnética (spin). Quando são aplicados
os pulsos de radiofrequência, os prótons mudam de direção de alinhamento e interagem

85
entre si, se chocando uns com outros, transferindo energia. Essa relação entre as trocas de
energias de prótons chocando-se uns com outros (spin-spin) é chamada de tempo 2, tempo
de relaxamento tempo 2 ou T2.
Assim são obtidas as imagens de RM T2. Basicamente as sequências T1 são
utilizadas para avaliação anatômica e as sequências T2 para avaliação patológica.
Todos os tecidos do corpo humano possuem o seu tempo T1 e T2, sendo que as
diferenças nestes valores levam à existência do contraste entre as estruturas e tornam
possível que estas se distingam nas imagens de RM.

Como exemplo, a gordura, que possui um tempo T1 muito reduzido e um tempo


T2 muito longo, será observada com elevada intensidade de sinal em imagens ponderadas
em T1 e com reduzida intensidade de sinal em imagens ponderadas em T2.

Nessa modalidade, as estruturas com maior intensidade de sinal designam-se


como hiperintensas ou com hipersinal e as com menor intensidade de sinal como
hipointensas ou com hipossinal.

Entre os parâmetros de uma sequência destacamos o Tempo de Repetição (TR),


que é o tempo que decorre entre a repetição de sucessivas sequências de pulsos aplicadas
ao mesmo corte, e o Tempo de Eco (TE), que é o tempo que decorre entre a aplicação do
primeiro pulso de 90º e o pico de sinal.

As ponderações podem ser obtidas através do controlo de determinados


parâmetros, dependendo do tipo de sequência com que se trabalha. Existem três
ponderações diferentes, sendo elas:

• T1 – Nesta ponderação o contraste entre tecidos é otimizado quando se utilizam TE e TR


curtos. A gordura é hiperintensa e a água e os líquidos tornam-se hipointensos.
• T2 – Aqui, ao contrário do que acontece em T1, existe um maior contraste entre tecidos
para TR e TE longos. A água e os líquidos adquirem hipersinal e a gordura hipossinal.
• DP (Densidade Protônica) – O sinal varia consoante a quantidade de prótons dos tecidos.
Utiliza-se um TE curto para diminuir a ponderação T2 e um TR longo para diminuir a
ponderação T1.

A seguir ilustraremos as diferenças entre imagens obtidas por diferentes técnicas


de neuroimagens, comparando-as com a imagem anatômica real da mesma secção do
corpo humano, obtida por meio da Visible Human Table (VHT), para mostrarmos como
86
essas técnicas produzem imagens distintas sendo, portanto, opções para que o
investigador escolher a mais adequada para o objetivo de seu estudo ou diagnóstico. Já as
imagens de TC realçam melhor os tecidos duros, ou seja, as estruturas ósseas.
Como todas as imagens da Fig. 2.8 são da mesma secção anatômica, obtida por
meio da VHT, pode-se visualizar como diferentes técnicas produzem imagens diferentes,
cabendo ao investigador/diagnosticador escolher qual a mais adequada.
Cabe observar que a secção anatômica aqui incluída nunca é disponível para ele,
pois lhe é impossível ter acesso ao interior do corpo humano real, objeto de seu estudo.
Isso somente foi possível graças ao Visible Human Project que foi um projeto
idealizado em 1986, de longo prazo, elaborado pela National Library of Medicine (NLM),
nos Estados Unidos da América.
Na década de 1970 os físicos Peter Mansfield e Paul Lauterbur, desenvolveram
as técnicas de RMI, pelas quais foram contemplados com o prêmio Nobel da Fisiologia
ou Medicina de 2003.
A principal vantagem da RM é que não emprega radiações ionizantes, que podem
eventualmente causarem efeitos danosos. Além disso, é a primeira opção quando se
desejam imagens de tecidos moles, pois as imagens de TC são preferidas para o estudo
de tecidos duros, como os ossos.

Fig. 2.9 Equipamento de RM Wikipedia.

87
Fig. 2.8 Secção anatômica VHT; RM T1; RM T2; RM DP; TC.

88
Ressonância Magnética Funcional (fMRI)

Desde 1890 é sabido que mudanças no fluxo de sangue e na oxigenação do sangue


no cérebro (conhecido como hemodinâmica) são ligadas à atividade neural. A
Ressonância Magnética Funcional (fMRI) é um tipo de scanner de MRI especializado na
medição da resposta hemodinâmica (mudanças no fluxo de sangue) relacionadas à
atividade neural no cérebro ou na medula espinhal. Vem dominando a neuroimagem, pois
é relativamente não invasiva, não emprega exposição à radiação ionizante, e acessível.
A partir da década de 1990 sabe-se que mudanças cardiovasculares cerebrais estão
intimamente relacionadas à atividade elétrica de neurônios, devido ao aumento do
consumo de oxigênio. O oxigênio é carregado na corrente sanguínea pela hemoglobina.
A hemoglobina desoxigenada (deoxi-Hb) é paramagnética ao passo que a hemoglobina
oxigenada (Hb) é diamagnética.
Paramagnéticos são materiais que possuem elétrons desemparelhados e que, na
presença de um campo magnético, alinham-se, fazendo surgir um ímã que tem a
capacidade de provocar um leve aumento na intensidade do valor do campo magnético
em um ponto qualquer. Esses materiais são fracamente atraídos pelos ímãs. São materiais
paramagnéticos: o alumínio, o magnésio, o sulfato de cobre, etc.
Diamagnéticos são materiais que, se colocados na presença de um campo
magnético, têm seus ímãs elementares orientados no sentido contrário ao sentido do
campo magnético aplicado. Assim, estabelece-se um campo magnético na substância que
possui sentido contrário ao campo aplicado. São substâncias diamagnéticas: o bismuto,
o cobre, a prata, o chumbo, etc.

Fig. 2.10 Equipamento de fMRI. Imagem de fMRI. Wikipedia. 89


Desse modo, a mudança na proporção de Hb/deoxi-Hb durante o aumento de fluxo
sanguíneo oxigenado leva a um pequeno aumento do sinal de ressonância subjacente ao local
onde ouve aumento da atividade de neurônios. Esse mecanismo é a base do contraste
utilizado na maioria dos experimentos de fMRI, e é conhecido como contraste BOLD (do
inglês, Blood Oxygenation Level Dependent).
Charles Roy e Charles Sherrigton foram pioneiros ao demonstrarem
experimentalmente o vínculo entre o fluxo sanguíneo e a atividade elétrica de neurônios. Já
em 1936, os químicos Linus Pauling e Charles Coryell mostraram que a hemoglobina possui
diferentes momentos magnéticos. Em 1990, Seiji Ogawa reconheceu que essa diferença
poderia ser usada em MRI para servir de contraste.
A R-fMRI (Resting state fMRI) é um método de imagens de ressonância magnética
funcional (fMRI) que é usada no mapeamento cerebral para avaliar interações que ocorrem
em repouso, entre as quais a rede padrão neural (DMN), ou quando nenhuma tarefa explícita
está sendo realizada.

Tractografia

Um tracto é feixe de fibras nervosas com aproximadamente a mesma origem, mesma


função e mesmo destino. As fibras podem ser mielínicas ou amielínicas16. Feixes de axônios,
ou tractos, formam os nervos do sistema nervoso.
Na neurociência, a tractografia é uma técnica de modelagem 3D usada para
representar visualmente os tractos nervosos usando dados coletados por ressonância
magnética de difusão. Ela usa técnicas especiais de ressonância magnética (RM) e
ressonância magnética baseada em computador. Os resultados são apresentados em imagens
bidimensionais e tridimensionais chamadas tractogramas.
Portanto, a tractografia é uma técnica de ressonância magnética que permite o
mapeamento e a avaliação de diferentes tratos da substância branca do sistema nervoso
central. Para sua obtenção, adquire-se uma sequência denominada imagem por tensores de
difusão (do inglês, diffusion tensor imaging) em um equipamento comum de ressonância
magnética, geralmente de 1,5 ou 3 Tesla, de forma independente ou associada às imagens

16
A mielina é uma substância lipídica, de cor verde reluzente, proveniente de algumas células do
hipotálamo. A mielina está presente na chamada bainha de mielina, que rodeia algumas fibras nervosas,
fazendo com que tenham uma condução de impulsos nervosos mais rápida. As fibras envoltas por mielina
são chamadas precisamente mielínicas. As fibras que não possuem um revestimento de mielina chamam-
se fibras amielínicas e possuem uma condução de impulso mais lenta.

90
convencionais do estudo. Tensor de difusão é uma matriz 3x3 que reflete as taxas de difusão
em diferentes direções.

Fig. 2.11 Tensor de difusão. Taxas de difusão nas possíveis direções.


Fonte: http://mriquestions.com/diffusion-tensor.html

As fibras de matéria branca17 no cérebro têm diâmetro na ordem de 1 μm 18, contudo


cada medida que a tecnologia atual permite tomar (conhecida como um voxel está na
escala de aproximadamente 1-2 mm. Portanto, pode haver dezenas de milhares de axônios
em cada voxel e eles podem não estarem todos seguindo na mesma direção. Esse é,
naturalmente, um grande problema para a tractografia de difusão, mas felizmente
conexões inter-areais são muitas vezes organizadas em grandes pacotes contendo
centenas de milhares de axônios, que são ampla e coerentemente organizados. Esta é a
principal razão pela qual podemos examinar a conectividade macroscópica, mas não as
rotas de axônios individuais.

Ressonância magnética ponderada por difusão

A ressonância magnética ponderada por difusão (DWI ou DW-MRI) é o uso de


sequências específicas de ressonância magnética, bem como de software que gera
imagens a partir dos dados resultantes e que usa a difusão de moléculas de água para gerar

17
A massa/matéria cinzenta é a região do sistema nervoso que comporta apenas os pericárdios e as células
da neuróglia, não possuindo mielina e apresentando-se, por isso, de cor cinzenta. A massa branca é uma
região do sistema nervoso em que se encontram apenas axônios e células da neuróglia. Apresenta esta cor
por possuir um grande número de fibras mielínicas. É encontrada na porção interna do encéfalo e externa
da medula espinhal, disposição explicada pelo predominante caráter transmissor dessa substância.
18
Micrômetro (antigamente micron): μm, definido como 1 milionésimo do metro (1 × 10-6 m) e equivalente
à milésima parte do milímetro.

91
contraste em imagens de RM. Ela permite o mapeamento do processo de difusão de
moléculas, principalmente água, em tecidos biológicos, in vivo e não invasivamente.
A difusão é a propagação de moléculas em um fluido devido ao movimento
térmico constante. A extensão dessa disseminação depende da difusividade do meio. Na
matéria branca do cérebro, o tecido consiste em feixes de axônios mielienados. Nesse tipo
de tecido essa propagação progride mais lentamente do que na água. Essa propagação é
menor transversalmente do que ao longitudinalmente. Assim, medindo a difusão ao longo
de muitas direções e observando que essa propagação é mais rápida em uma direção do
que em outras, podemos deduzir a direção dos feixes de fibra em cada ponto do cérebro.
Uma vez que sabemos a orientação das fibras em cada ponto do cérebro, podemos
juntar essas direções até reconstruir vias inteiras e, portanto, conexões cerebrais. Usam-
se falsas cores para codificar as direções das fibras, por exemplo: o vermelho denota
esquerda-direita, verde denota frente para trás e azul para cima para baixo.

Conectomas

Um conectoma (kəˈnɛktoʊm) é um mapa das conexões neurais do cérebro, pode ser


comparado com um diagrama das conexões de um circuito elétrico. É empregado no
esforço de capturar, mapear e compreender a organização das interações neurais dentro
do cérebro. Pode-se afirmar que a base da cognição humana reside no padrão de
interações dinâmicas moldadas pelo conectoma.
As redes cerebrais podem ser divididas em diferentes níveis de escala,
correspondente à resolução espacial das imagens do cérebro. Se o conectoma é mapeado
à microescala, ou seja, com uma resolução de micrômetros, se obteria um mapa completo
dos sistemas neurais, neurônio a neurônio. Isso não é possível dado o número de
neurônios existentes no cérebro. O córtex cerebral humano contém 85 bilhões de
neurônios (cerca de 10 neurônios), que são ligados por cerca de 10 conexões
sinápticas. Para se aquilatar o que estes números significam, o número de pares de bases
no genoma humano é de 3x10 .
O córtex cerebral, incluindo a matéria branca subcortical, ocupa c. 80% do volume
do cérebro, mas contem somente c. de 20% dos 85 bilhões de neurônios do cérebro. A
folha do córtex é altamente convolucionada, com c. de 3 mm de espessura e c. 1.000 cm
por hemisfério, contendo c. 150-200 áreas corticais, que diferem umas das outras em
conectividade, função e arquitetura. Essas áreas abrangem uma faixa de
92
aproximadamente 0,2 - 20 cm em tamanho médio. Como cada cérebro de uma pessoa é
diferente do de outra, existindo uma variabilidade muito grande, cada área cortical de um
indivíduo pode diferir cerca de duas vezes em tamanho da de outro, em uma população
adulta normal, o que torna extremamente difícil a comparação entre indivíduos.
Já o córtex do cerebelo ocupa c. de 10% do volume cerebral e contém 80% dos
neurônios totais do cérebro, e é uma folha de 1/3 da espessura e de metade da área da
superfície do córtex cerebral. Seus lobos e lóbulos diferem em sua função e conectividade
e também são variáveis entre indivíduos.
Estruturas subcorticais ocupam o restante, c. de 10% do volume cerebral, mas
contêm apenas c. de 1% de seus neurônios. Elas incluem centenas de núcleos corticais e
subnúcleos, a maioria dos quais são muito pequenos para serem resolvidos por técnicas
de neuroimagens in vivo convencionais.
Um conectoma com uma mesoescala, ou seja, com uma resolução de centenas de
micrômetros poderia tentar capturar anatomicamente ou funcionalmente distintas
populações neuronais constituídas por circuitos locais que interligariam centenas ou
milhares de neurônios. No presente essa escala é muito difícil de ser atingida, exceto em
pequenos ensaios. Um conectoma em macroescala, ou seja, com uma resolução de
milímetros, pode tentar capturar sistemas cerebrais maiores, que podem ser parcelados
em módulos, áreas ou nodos anatomicamente distintos, cada um com um padrão próprio
de atividade.
Métodos estabelecidos de pesquisa cerebral, como rastreamento axonal, forneceram
caminhos iniciais para a construção de conjuntos de dados do conectoma. No entanto,
avanços mais recentes em seres vivos têm sido feitos pelo uso de tecnologias de imagem
não invasivas, como ressonância magnética ponderada por difusão (DW-MRI) e
ressonância magnética funcional (fMRI).
O primeiro, (DW-MRI), quando combinado com a tractografia, permite a
reconstrução dos pacotes principais das fibras no cérebro. O segundo, (fMRI), permite
que o pesquisador capture a atividade de rede do cérebro (em repouso ou durante a
execução de tarefas direcionadas), permitindo a identificação de áreas estrutural e
anatomicamente distintas do cérebro que estão funcionalmente conectadas.

93
Fig. 2.12 Para comparação, à esquerda temos um tractograma axial das conexões cerebrais
(conectomas-Fonte: Thomas Schultz.) à direita temos uma imagem da VHT mostrando a
anatomia real do cérebro humano.

Na fig. 2.12 constatamos a complexidade das redes neurais do cérebro humano e


como não podemos identificá-las a partir unicamente da pura observação anatômica. Isso
dá uma ideia de quanto ainda ignoramos acerca do funcionamento do nosso cérebro.
Na Fig 2.13 incluímos um tractograma de topo das conexões neurais,
comparando-o com uma imagem anatômica real de um cérebro humano (VHT), que nos
permite vislumbrar a complexidade das conexões neurais sob outro ângulo.
É denominado de conectoma estrutural uma matriz de conectividade que codifica
as conexões neuronais (o número de fibras, tractos) entre as regiões cerebrais.

Fig. 2. 13 Tractos dentro da matéria branca de um cérebro humano. Wikipedia.


Para comparação, imagem anatômica real do cérebro (VHT).

94
Mapeamento dos Conectomas

O primeiro conectoma de um animal foi feito em 1986, e mapeou os circuito do


nematóide C. elegans, que tem apenas 302 neurônios e 7000 conexões. Em 2020 foi
finalizado o conectoma da mosca das frutas, a Drosophila melanogaster, cujo cérebro
tem 25000 neurônios e 20 milhões de conexões, trabalho este que exigiu 12 anos de
esforço.
O Human Conectome Project (HCP), lançado em julho de 2009 e completado em
novembro de 2018, visava construir um conectoma, um mapa das redes neurais dentro do
cérebro saudável, que possibilitaria esclarecer suas conectividades tanto anatômicas como
funcionais. Tencionava, igualmente, coletar dados que facilitassem as pesquisas sobre
desordens cerebrais, tais como dislexia, autismo, Alzheimer e esquizofrenia. Por meio de
várias tecnologias de neuroimagem coletou dados de cerca de 1200 adultos saudáveis,
para mapear conectomas em macroescala.
Contudo, como a arquitetura das conexões cerebrais se desenvolve ao longo do
tempo, cada cérebro é diferente de outro, logo suas conexões neurais são diferentes.
Portanto, os conectomas individuais são todos diferentes, é necessário então o
estabelecimento de um conectoma médio padrão, uma rede padrão consensual (consensus
network), para se estabelecer um conectoma consensual comum que sirva como base para
pesquisas.
Para isso, torna-se necessário identificar os sub-circuitos que estão presentes em
quase todos cérebros humanos, bem como aqueles que são muito menos frequentes, os
quais são provavelmente relacionados com a variabilidade individual de das estruturas e
funções do cérebro.
Pesquisas recentes mostraram diferenças entre os conectomas masculino e
feminino, que parecem apontar em muitos estudos que o conectoma consensual feminino
tem uma maior conectividade que o conectoma consensual masculino (Tadic, 2019).
Essas conclusões vêm despertando controvérsias acirradas, demandando novas pesquisas
adicionais.

95
O estudo das redes neurais é feito mediante a teoria dos grafos, um ramo da
Matemática que estuda as relações entre os objetos de um determinado conjunto. Para tal
são empregadas estruturas denominadas de grafos. Um grafo é uma que representação
abstrata de um conjunto de objetos e das relações existentes entre eles. É definido por um
conjunto de nós ou vértices e pelas ligações ou arestas (edges), que ligam pares de nós.


Arestas

Fig. 2.14 Grafo esquemático de um neurônio.

A tecnologia atual não permite a obtenção de conectomas em microescala, ao


nível de neurônios individuais. Somente conseguimos, no presente, conectomas
consensuais, tanto masculino como feminino, em macroescala, em pequenas porções em
mesoescala, de feixes de fibras (tractos); mesmo assim são extraordinariamente
complicados.

O grupo de pesquisa de Tadic (2019) identificou complexos hierarquicamente


organizados, que codificam relações entre regiões do cérebro, selecionando dados que
fornecem os conectomas consensuais para o conectoma masculino e para o feminino,
baseados em 100 indivíduos de cada sexo, empregando informações do Human
Connectome Project.

Empregaram teorias matemáticas avançadas para analisar grafos dotados da


trajetória métrica mais curta, baseadas em uma generalização da noção de hiperbolicidade
de Gromov.

96
Fig.2.15 O conectoma consensual feminino. Fonte Tadic 2019.

A figura (Fig.2.15) mostra o conectoma consensual feminino na mais alta


resolução obtida por Tadic e seu grupo, consistindo de 1115 nós (regiões cerebrais) e
11339 arestas entre elas, com dados de 100 mulheres provenientes do Human
Connectome Project. Ilustra a complexidade das conexões cerebrais e como pouco se
conhece sobre elas. A imensa maioria de suas funções é desconhecida.
Essa rede de conexões é que cria a mente humana, suas percepções, sua
consciência, sua realidade.
A Fig.2.16 ilustra o conectoma comum aos conectomas consensuais tanto do
masculino como do feminino,o qual constituiria o conectoma padrão dos seres humanos,
obtido por Tadic. Já a Fig. b mostra o excesso de conexões entre as regiões cerebrais do
conectoma consensual feminino, as quais não podem ser encontradas no conectoma
consensual masculino.

97
Fig. 2.16 a) Conectoma padrão dos humanos, englobando os conectomas consensuais masculino
e feminino. B) Conexões do conectoma feminino que excedem as do masculino. Fonte: Tadic,
2019

Aparentemente, os grafos do conectoma consensual feminino apresentam um


maior número de arestas, indicando que o cérebro feminino apresenta melhor
conectividade do que o masculino, indica o trabalho desse grupo de pesquisa. Contudo,
conclui Tadic, esses resultados necessitam ser melhor compreendidos e avaliados.
É importante notar, que o número de conexões cerebrais pode variar, por exemplo,
podendo ser muito mais abundantes do que o das do conectoma consensual. Além disso,
a rede de conexões pode variar com a idade, com as experiências individuais e com o
desenvolvimento de doenças..

Até Que Ponto a Matemática é Estruturante dos Nossos Processos Mentais?

Para estudarmos essa ur-questão devemos inicialmente analisar que categorias de


processos racionais envolvidos na matemática são inerentes aos nossos processos
mentais. A Matemática, por sua natureza, é a ciência dos processos racionais.
O homem, em seu périplo em busca do conhecimento, emprega em seu cotidiano
diversas categorias de processos racionais, ou seja, de grupos de processos regidos pela
razão. Pode-se listar, entre outras, as seguintes categorias desses processos:
correspondência/relação; organização: comparação, classificação, ordenação;
quantificação: contagem, medição, pesagem; descrição (padrões, desenhos, pinturas,

98
esculturas); formalização (simbolismo); combinação (operações); causação (causa e
efeito); lógicos: indução, dedução.

Essa lista não é exaustiva, nem esses processos são exclusivos da Matemática, esta
os compartilha com variados ramos do conhecimento humano, como as Ciências,
Técnicas, Artes, e mesmo a Música ou a Religião.

A esses processos adicionaríamos o de como o cérebro adquire a noção de espaço


físico pois, embora a matemática moderna prescinda de atributos físicos, essa percepção
é indispensável à mente primitiva na construção de seus processos mentais, tais como:
orientação, mapas, geometria, etc.
Alguns desses processos, total ou parcialmente, são indispensáveis para a
sobrevivência das espécies, por isso constituem importante parcela estruturante da mente
das mesmas. Daremos alguns poucos exemplos: comparação: claro/escuro; forte/fraco;
grande/pequeno; muitos/poucos; classificação: amigo/neutro/inimigo; bom/mau; animal/
vegetal/ mineral; ordenação: menor/ igual / maior.
O registro de, por exemplo, períodos de tempo, como dias de viagem, ou lunações,
ou caças capturadas, são exemplos de quantificação, contagem. A descrição de padrões,
desenhos de peles, como por exemplo, das serpentes, permite distinguir entre as
venenosas e as não. A combinação de operações permite a confecção de machados de
pedra, buris, lanças, ferramentas indispensáveis para a sobrevivência.
Correspondências são fundamentais para estabelecer a relação entre um signo e
seu sentido simbólico (símbolo / formalização).. Pegadas no chão, galhos quebrados, são
pistas que permitem ao caçador deduzir para onde a caça foi. A indução permite admitir
que o sol nascerá amanhã e que as estações se sucederão. A causação é fundamental: se
não comer, morrerei; a ferida da lança causa a morte da presa. Acreditamos que nem
precisaremos enfatizar a importância da noção de espaço, pois sem o Lebensraum19 nem
existiríamos.
A imensa maioria dos estudantes modernos da Matemática não percebe a
importância desses processos racionais para ela, bem como eles foram fundamentais na
sua construção. Consideram-nos por demais insignificantes, óbvios, desmerecedores de
maior atenção. Contudo, foram os pilares estruturais sobre os quais se erigiu a
Urmathematik, a Matemática da Idade da Pedra, a Matemática original.

19
Espaço vital.

99
A Matemática, como magistralmente frisou D’Ambrosio, é uma das muitas
estratégias que a humanidade empregou em sua luta pela sobrevivência e foi resposta a
pulsões de sobrevivência / transcendência.
Como o cérebro opera a grande maioria desses processos mentais é ainda profundo
mistério. Parafraseando Newton, estamos defronte ao imenso oceano desconhecido da
mente e encontramos na sua orla, aqui e acolá, pequenos seixos, minúsculas conchas, e
nos maravilhamos com eles.

Por Que Nós Todos Não Somos Gênios? O Cérebro de Einstein.

Existem diferenças anatômicas individuais, de modo que nem todos possam ser
gênios? Por que existem tão poucos cientistas, matemáticos ou físicos geniais quando
todos nós possuímos cérebros anatomicamente aparentemente iguais?
Não pretendemos, neste ponto, abordar a questão da influência do contexto em
que vivem, da questão nature x nurture, mas nos restringir aos aspectos anatômicos dos
seus cérebros. Para isso, o exemplo do cérebro de Einstein é instrutivo. Einstein era
reconhecidamente genial, dotado de excepcional conhecimento tanto da Física como da
Matemática, além de capaz de extraordinária criatividade. Todavia, a saga de seu cérebro
é, no mínimo, deveras curiosa.
Às 01:45 da manhã do dia 18 de abril de 1955 Einstein faleceu no Princeton
Hospital, sendo seu corpo cremado no mesmo dia. No dia seguinte seu filho Hans Albert
Einstein tomou conhecimento, por meio de manchete do New York Times, que seu
cérebro tinha sido removido pelo legista que efetuou a autópsia, Dr. Thomas Harvey, para
“estudo científico”, ficando então furioso.
Passada a fúria inicial, Harvey convenceu Hans a dar permissão para o estudo do
cérebro, mediante o argumento de que futuramente a ciência pudesse “iluminar um dos
maiores segredos da natureza – o segredo do gênio”. Harvey, que não era um neurologista,
mediu-o e fotografou-o, ficando de posse do cérebro por mais de duas décadas, sem
publicar nenhum estudo, até que, em 1978, um jovem repórter, Steven Levy, foi
despachado por seus editores para encontrar onde estava o famoso órgão. Em um velho
refrigerador, Harvey tinha estocado o célebre cérebro. Somente então principiaram os
verdadeiros estudos científicos do mesmo.
Em 1985, o neuro-anatomista Marian Diamond publicou um estudo onde
identificou que em uma das quatro amostras do cérebro havia mais células gliais para

100
cada neurônio do que o normal. Essas células fixam os neurônios no lugar e suprem-nos
com oxigênio e nutrientes. Diamond mostrou que ambientes estimulantes podem
eventualmente conduzir a um aumento na contagem dessas células.
Em 1996, Britt Anderson publicou um estudo do córtex pré-frontal do cientista,
mostrando que nele o número de neurônios era normal, contudo, eles estavam mais
densamente compactados permitindo talvez um processamento mais rápido de
informações.
Em 1999, Sandra Witelsen estudou as fotografias originais de Harvey do cérebro
de Einstein, e apontou que seu lóbulo parietal inferior, parte do cérebro responsável pela
cognição espacial e pelo pensamento matemático, era mais espessa que o normal e parecia
melhor integrada. Talvez, especulou Witelsen, isso explicasse as próprias descrições de
Einstein acerca de seu modo de pensar, no qual, em seu dizer: “palavras não parecem
desempenhar nenhum papel”, mas há um “jogo associativo” de “imagens mais ou menos
claras”.
Posteriormente, em 2012, a eminente antropologista Dean Falk, estudando
fotografias de Harvey até então desconhecidas, efetuou um levantamento completo da
topografia daquele órgão. Mostrou que Einstein tinha um giro extra no seu lóbulo frontal
mediano, a parte do cérebro envolvida na confecção de planos e na memória de trabalho.
A maioria das pessoas tem três, mas Einstein tinha quatro. Ela também encontrou que
seus lóbulos parietais eram bastante assimétricos, e que ele tinha uma protuberância na
sua faixa motora direita, a qual é denominada de sinal de ômega, e é correlacionada com
músicos que empregam sua mão esquerda. Einstein tocava violino amadoristicamente.

101
Fig. 2.17 Fotografias do cérebro de Einstein (Harvey). Singularidades
determinadas por Falk. Adaptado. BBC.

Em 2013, Falk estudou o corpo caloso de seu cérebro, mostrando que era mais
espesso que o normal. O corpo caloso contém o feixe de fibras nervosas que conectam os
seus hemisférios direito e esquerdo. No presente, o estudo dos conectomas, isto é, do
mapeamento das conexões neurais dentro do cérebro, graças às novas técnicas de
neuroimagens hoje disponíveis, vem propiciando alentados avanços na compreensão do
funcionamento da mente humana.
O entendimento de como as diversas regiões do cérebro interagem, de como se
conectam, se complementam, formando assim o pensamento consciente, está dando seus
primeiros passos. O corpo caloso é responsável por significativa parte das fibras
componentes dos conectomas. Um corpo caloso mais espesso contém mais fibras, o que
pode eventualmente acelerar e aumentar o intercâmbio de informações entre as diversas
regiões do cérebro.
Contudo, lembram diversos especialistas, apenas essas particularidades na
topografia e na constituição do cérebro de Einstein não são suficientes para explicar sua
genialidade. Se a genialidade fosse transmitida apenas geneticamente, por que os pais de
Einstein ou seus filhos não foram também gênios?

102
Na realidade, não existem duas pessoas com cérebros exatamente iguais. Dois
gêmeos idênticos, com o mesmo genoma transmitido por seus pais, não tem cérebros
iguais. O mecanismo responsável por isso só recentemente começa a ser compreendido.
A cientista Barbara McClintock descobriu que, sob estresse, certas regiões do
genoma (o conjunto completo de DNA no núcleo da célula) podem migrar e ativar ou
desativar genes em seus novos locais. Por essa descoberta recebeu o Prêmio Nobel em
1983.
Sequências de DNA, conhecidas como genes saltadores, que estão ativas no
cérebro, principalmente durante a época de seu desenvolvimento, podem fazer cópias de
si mesmas (se replicarem), e depois as inserirem em outras localizações no genoma de
uma célula. Em seus novos locais, esses genes móveis, denominados de retrotranspósons,
podem, às vezes, não terem nenhum efeito sobre genes circunvizinhos que atuam como
modelos para as proteínas. Contudo, em determinados casos, podem ativar esses genes
próximos e desse modo influenciar o funcionamento das células individuais. Essas
alterações celulares podem implicar em diferenças nas funções cerebrais entre pessoas,
mesmo entre gêmeos idênticos.
Um tipo especial desses retrotranspósons, conhecido como elementos longos
dispersos (L1), é capaz de saltar com frequência e parece ser essencial no genoma
humano. A maneira presumivelmente aleatória de como os L1’s se transferem de um
lugar a outro no genoma humano parece sugerir que a seleção natural, a lei de Darwin,
pode contribuir para que os benefícios das inserções úteis superem os malefícios das
deletérias.
A descoberta de que a única linhagem de genes saltadores L1 atualmente ativos
no genoma do Homo sapiens evoluiu há cerca de 2,7 milhões de anos atrás, após a
separação dos chimpanzés dos humanos, aproximadamente quando estes começaram a
fabricar ferramentas, sustenta essa ideia. Essa descoberta mostra que os retrotranspósons
L1 podem ter contribuído para a estruturação de cérebros que conseguem processar
informações sobre o ambiente mais rapidamente e assim contornar os desafios de
mudanças climáticas e ambientais extremas.
É por isso que, embora todos nós tenhamos uma anatomia cerebral
aproximadamente semelhante, não somos todos gênios, ou matemáticos, mesmo quando
eventualmente nosso gêmeo idêntico o seja.
O pensamento criativo em ciência bem como em outros domínios, tais como: artes
visuais, artes plásticas, música, matemática, dança, etc., requer a capacidade de manipular

103
representações mentais com flexibilidade. Lembramos as palavras de Einstein, que
descreveu os elementos de seu pensamento científico como “certos sinais e imagens mais
ou menos claras, as quais podem ser “voluntariamente” reproduzidas ou combinadas”.
Modernamente, os cientistas cognitivos referem-se a essa capacidade como um
“espaço de trabalho mental” (mental workspace), e considera-se que ele é um elemento
chave da consciência, que envolve a distribuição de informações entre diversos
subdomínios especializados do cérebro.
Trabalhos recentes mostraram que muitas das operações mentais desse espaço são
bastante semelhantes às suas correspondentes operações físicas, o que apoia a visão de
que o espaço de trabalho mental pode simular o mundo físico. Por isso, muitos dos
axiomas que fundamentam nossa Matemática, que são baseados em assunções do mundo
físico, são facilmente incorporados ao espaço de trabalho mental do matemático, e vice-
versa, o que ajuda a compreender o poder heurístico desta ciência, bem como de que
modo o matemático absorve as intuições a prori kantianas de espaço e tempo.
A neurociência presentemente tem-se focado em representações mentais ao invés
de operações mentais, e tem mostrado que os conteúdos das percepções visuais, das
imaginações e mesmo de sonhos pode ser decodificado de atividades no córtex visual.
Esses resultados sugerem que as mesmas regiões que intermediam representações em
percepções sensoriais estão também envolvidas em imaginações e representações
mentais. Todavia, como a mente manipula essas representações permanece largamente
desconhecido, bem como quais são as regiões do cérebro envolvidas nessas tarefas.
Alexander Schlegel e seu grupo proporam que operações sobre representações
visuais no espaço de trabalho mental são realizadas através da atividade coordenada de
uma rede distribuída de regiões, que se estendem ao menos aos córtices frontal, parietal
e occipital. Seus estudos mostraram que uma extensa rede neural está envolvida, sendo
que o córtex pré-frontal dorsolateral, o córtex parietal posterior, o pré-cúneo posterior e
o córtex occipital são centrais para o espaço de trabalho mental. Contudo, muitas outras
regiões parecem estar envolvidas, tais como: o cerebelo, o tálamo, o opérculo frontal e
outras. O quadro geral dessa extensa rede neural está longe de ser esclarecido (Schlegel,
2013).

104
A Autopercepção

Embora as pessoas mudem ao longo da vida, a maioria conserva uma visão estável
de si mesma, de como são; várias áreas cerebrais desempenha papel fundamental na
autopercepção. Uma autoimagem realista é sinal de uma mente saudável, o que já era
conhecido dos filósofos gregos “Conhece-te a si mesmo”.
Ao nascer, o bebê encontra dificuldade em perceber a si mesmo, pois ainda está
associado ao seu ambiente no útero materno, Somente entre 3 e 5 meses começa a fazer
as primeiras tentativas de controlar seus movimentos corporais. Ao redor de um ano e
meio principia a reconhecer a própria imagem no espelho, todavia apenas aos 24 meses
começa a compreender conceitos como “eu” e “meu”.
Na idade pré-escolar inicia a fazer amigos, quando começa a fazer comparações
que o auxiliam a formar a sua autoimagem. Adolescentes e jovens adultos expandem e
consolidam sua identidade, à medida que ampliam seu círculo de conhecidos,
aumentando suas habilidades sociais.
O cérebro do recém-nascido ainda apresenta relativamente poucas da trilhões de
conexões sinápticas que terá como adulto, somente por volta dos 6 anos a criança
experimenta o estágio mais significativo de seu desenvolvimento neural. Ao logo do
tempo suas experiências se consolidam, permitindo que as conexões mais utilizadas se
reforcem e as inúteis desapareçam, tornando-as conscientes do seu próprio “eu”, de
reconhecer seu próprio rosto e saber onde e como cada sua parte está a cada momento
(Herwig, 2014).
Em meados de 1990, Antônio Damasio estruturou uma hierarquia das camadas do
“eu” em três estágios.
O protoself, o nível inferior, supervisiona as funções orgânicas básicas, como
metabolismo, temperatura corporal e ritmos circadianos. Está associado ao tronco
cerebral e ao hipotálamo.
O self central gera o conhecimento imediato do aqui e agora, nesse nível de
consciência os sinais do corpo originam impulsos não verbais, como sensações de fome,
frio, ou tristeza. Ele coordena áreas internas do cérebro, o diencéfalo e a amigdala.,
ativando o córtex cingulado e a insula, realacionados com as emoções, e o córtex pré-
frontal medial e o dorsolateral, que funcionam como um comando interno, formulando
planos de ação e enviando comandos. (Herwig, 2014 ).

105
Fig. 2.18 Estruturas do self. Imagem da VHT, Imagem da VHT, corpo
humano real.

O self autobiográfico, o nível superior, nos permite avaliar nossos impulsos


racionalmente, tendo como referência experiências anteriores e metas atuais comandando
nosso comportamento. Está ligado com as áreas linguísticas, o centro da fala e da
memória e parte do córtex pré-frontal.
Contudo, outros cientistas preferem uma divisão dual, mais simples: distinguem
apenas o self físico do self cognitivo. O físico é o que nos permite reconhecer informações
s do próprio corpo: temperatura, coceira, etc. O cognitivo nos permite o auto
reconhecimento e o referenciamento no mundo. O self cognitivo parece residir no córtex
medial pré-frontal, localizado atrás dos olhos, na superfície interna de cada hemisfério
(id.).
O córtex pré-frontal atua como um centro de comando do cérebro, planejando
ações e envia instruções para quaisquer partes do corpo onde são requisitadas.
Concomitantemente, envia uma “cópia” dessas instruções para áreas do lobo parietal, que
monitora os movimentos e antecipa as sensações correspondentes (id.).

106
Self Cognitivo

Córtex medial

pré-frontal.

Fig. 2.19 Posição do self cognitivo. Córtices pré-frontais mediais. Imagem de corpo humano
real, VHT.

Consciência

"Consciência" vem do termo latino conscientia, de consciens, particípio presente


de conscire = estar ciente (cum = com, partícula de intensidade e scire = sei). Outra
etimologia possível, vem da junção de: conscius+sciens: conscius (que sabe bem o que
deve fazer) e sciens (conhecimento que se obtém através de leituras; de estudos; instrução
e erudição).
“Estar consciente” é o que nos permite qualquer ação, reflexão, projetos,
autopercepção, etc., em suma, é o que nos permite viver lucidamente. O problema da
consciência está imbricado no problema mente/corpo, o hard problem, cuja solução
busca-se até agora em vão.
Avanços da Neurociência nesse sentido têm sido lentos, porém algumas pistas
vêm se acumulando. Um indício interessante foi descoberto recentemente (2020) por
Redinbaugh (et. al.). Os pesquisadores reportaram que uma área específica do cérebro, o
tálamo central lateral, parece desempenhar um papel importante.

Ao estudarem macacos acordados, dormindo e anestesiados, foram capazes de


reduzir a região do cérebro envolvida na consciência para uma área muito mais específica
do que outros estudos fizeram. Igualmente descartaram algumas áreas que haviam sido
propostas em estudos anteriores. Eles finalmente se concentraram no tálamo lateral

107
central, que é encontrado no fundo do cérebro. Empregaram técnicas invasivas, com redes
de multieletrodos, o que significa que seus resultados serão difíceis de serem replicados
em seres humanos.

Identificada essa área, testaram o que aconteceu quando o tálamo lateral central
foi ativado enquanto os animais estavam anestesiados, estimulando a região com uma
frequência de 50 Hz. Descobriram que quando estimulavam essa área, era possível
acordar os animais e restabelecer toda a atividade neural que normalmente se veria no
córtex durante a vigília. Agiam exatamente como acordados. Ao se desligar a
estimulação, os animais ficavam novamente inconscientes.

Um teste para comprovar a vigília desses animais foi a estimulação auditiva de


uma série de bipes intercalados com outros sons aleatórios, a qual mostrou que os animais
respondiam da mesma forma que os animais acordados responderiam.

Novos estudos serão necessários para se avançar na elucidação desse problema,


mas o acúmulo de pistas fornecidas pela neurociência nos permite prever que resultados
interessantes estão próximos de serem obtidos.

Neurogênese

Neurogênese é o processo de formação de novos neurônios no cérebro.


Os neuroanatomistas mais antigos, incluindo Santiago Ramon y Cajal,
consideravam o sistema nervoso fixo e incapaz de regeneração. O cérebro tinha um
número fixo de neurônios e os que morriam não eram repostos. Durante muitos anos,
apenas poucos biólogos (incluindo Joseph Altman, Shirley Bayer, e Michael Kaplan)
consideravam a possibilidade da existência da neurogênese adulta, isto é, que novos
neurônios pudessem ser criados na fase adulta.
Apenas recentemente, com a caracterização da neurogênese em pássaros, e o uso
da microscopia confocal, se tornou razoavelmente bem aceite que a neurogênese
hipocampal ocorre nos mamíferos, incluindo os humanos.
Alguns autores (especialmente Elizabeth Gould) sugeriram que a neurogênese
adulta pode ocorrer também noutras áreas, incluindo o córtex motor), embora outros, se
questionem sobre a evidência científica destas conclusões; num sentido geral, sugerem
que as novas células podem ser gliais.

108
As células gliais compõem o tecido nervoso junto com os neurônios. As células
da glia, também chamadas gliócitos ou neuróglias, podem ser de dois tipos: microglias
ou macroglias. Além de fornecer nutrientes, proteção e ajudar na sustentação do tecido
nervoso, possuem outras importantes funções, como a modulação dos impulsos elétricos.

A produção de novas células no cérebro é um processo complexo, rigorosamente


controlado e que não ocorre em uma única etapa. O cérebro possui células-tronco
multipotentes que se dividem periodicamente, renovando-se e dando origem a uma
linhagem de células que podem originar neurônios e células da glia após um período de
amadurecimento, demarcado pela migração dessas células para longe da influência das
células tronco multipotente, mudanças na replicação celular e expressão de genes.

Grande parte das células morre durante a viagem, aproximadamente 70%.


Dependendo da região do cérebro onde as células sobreviventes terminaram seu percurso,
ou do tipo de atividade que está ocorrendo no local serão originados neurônios ou células
da glia. Este processo, que corresponde desde a formação de um novo neurônio até que
ele se torne funcional, se integrando no sistema nervoso, leva mais de um mês.

Uma grande variedade de moléculas presentes no cérebro é responsável por


modular e regular esse processo, muitas das quais são desconhecidas e outras precisam
ter seu papel melhor elucidados.

Dentre as moléculas conhecidas que influenciam nesse processo estão o SHH


responsável por regular a proliferação dos neurônios imaturos, o notch que auxilia na
determinação celular das células cerebrais recém-formadas para neurônios ou células da
glia, e os EGF (Fast Grow Factor)20 e FGF-2,

A via de sinalização denominada de notch é importante para a comunicação


célula-célula, que envolve mecanismos de regulação gênica que controlam vários
processos de diferenciação celular durante a vida embrionária e adulta.

Sonic hedgehog21 (SHH) é uma proteína secretada que em humanos é codificada


pelo gene SHH. É o ligante mais estudado da via de sinalização do ouriço, outros sendo

20
Fator de Crescimento Rápido
21
Melhor manter em inglês, pois tradução seria algo como ”porco espinho Sonic”, um personagem dos
quadrinhos.

109
o ouriço do deserto (DHH) e o ouriço indiano (IHH). Receberam esses nomes devido a
que as primeiras investigações sobre ela ocorreram em porcos espinhos.

Ela desempenha um papel fundamental no desenvolvimento de animais, de insetos


a mamíferos. Nos vertebrados, está envolvido na organogênese, incluindo o crescimento
de dígitos nos membros e a organização do cérebro.

Sonic hedgehog é um exemplo arquetípico de um morfogênio, uma molécula que


se difunde para formar um gradiente de concentração e tem efeitos diferentes nas células
do embrião em desenvolvimento, dependendo de sua concentração. Sonic hedgehog
(SHH) também é ativo em adultos; por exemplo, controla a proliferação de células-tronco
adultas e tem sido implicada no desenvolvimento de alguns tipos de câncer.

Durante o amadurecimento das células pré-determinadas outros fatores são


importantes para torná-las funcionando, como o fator neurotrófico, as neurotrofinas e o
fator de crescimento semelhante à insulina. Fatores neurotróficos (NTFs, do inglês
neurotrophic factors) são uma família que apoiam o crescimento, sobrevivência e
diferenciação dos neurônios tanto em desenvolvimento como maduros.

Os neurônios nascem continuamente durante a idade adulta em duas regiões do


cérebro: no hipotálamo e zona subventricular (ZSV) situada nas paredes dos ventrículos
laterais, onde as novas células migram para o bulbo olfatório. Porque os novos neurônios
se dirigem para o olfato é algo intrigante. Poderíamos supor que isso é devido que o
paradigma olfatório, ou seja, o emprego substancial do olfato, o qual foi talvez o mais
importante sentido empregado para a sobrevivência no alvorecer da nossa espécie,
ocasionou que a reminiscência dessa circunstância permaneceu congelada na nossa
herança genética, daí a preferência por esse sentido.

O estilo de vida levado pelas pessoas influencia na formação de novos neurônios


durante a vida adulta. Por um lado, estudos apontam que experiências estressantes, bem
como a morfina e heroína estão relacionadas com a redução da taxa de neurogênese. A
realização de exercícios físicos propicia a neurogênese, bem como ambientes com
combinações variadas de estímulos. Estudos com roedores adultos demonstraram que
aqueles que eram mantidos em gaiolas com diferentes brinquedos e atividades
exploratórias apresentavam aumento significativo de número de células no giro denteado.

110
Ainda não se sabe com certeza a função e os efeitos da neurogênese adulta, embora
haja algumas indicações de que ela seja importante para o aprendizado e para a memória,
pois o hipocampo representa importante papel nessas áreas.

O papel das células gliais

O grande número de células gliais no cérebro de Einstein chamou a atenção na


época, contudo, o seu papel era pouco conhecido. Essas células, por muito tempo, eram
consideradas apenas “preenchimento” do tecido cerebral. Os neurônios constituem
apenas 15 % das nossas células cerebrais, os outros 85 % eram consideradas apenas
preenchimento, o quantum satis restante.
No século XIX o patologista alemão Rudolf Virchow associou-as ao tecido
conectivo, denominando-o de nervenkitt (cimento neural). Essas células posteriormente
receberam a denominação de células da glia, geralmente chamadas neuróglia, nevróglia,
gliócitos ou simplesmente glia (do grego, γλία : "cola").
Hoje é conhecido que algumas células gliais aceleram a transmissão da
informação entre regiões distantes do cérebro, ajudando-nos a comandar processos
cognitivos complexos. Outras funções das células da glia são cercar os neurônios e
mantê-los no seu lugar, fornecer nutrientes e oxigênio para os neurônios, isolar um
neurônio do outro, destruir patógenos e remover neurônios mortos. Classificam-se em
duas divisões:

• Micróglia, que consistem em macrófagos especializados, capazes de fagocitar, que


protegem os neurônios; são as menores de todas as células gliais e correspondem a 15%
de todas células do tecido nervoso.
• Macróglia, as células maiores, dividem-se em astrócitos, oligodendrócitos e células de
Schwann.

Os astrócitos são as células mais abundantes do sistema nervoso central e são as


que possuem as maiores dimensões. Levam esse nome pelo seu formato (astro= estrela,
cito= célula); desempenham funções muito importantes, como a sustentação e a nutrição
dos neurônios. Os oligodendrócitos são as células da neuróglia, responsáveis pela
formação, e manutenção das bainhas de mielina dos axônios, no SNC (sistema nervoso

111
central), que aumenta a velocidade do sinal, função em que no sistema nervoso periférico
é executada pelas células de Schwann.
Somente nos últimos anos os cientistas perceberam que os astrócitos conseguem
controlar a comunicação sináptica. Os neurotransmissores liberados pelos astrócitos
aumentam a intensidade do impulso elétrico dos neurônios. Criam um trajeto não elétrico
(químico) que permite a comunicação entre sinapses numa área que comanda a memória:
o hipocampo (Fields, 2015).
Depois de responderem ao neurotransmissor glutamato liberado por uma sinapse,
os astrócitos liberam outro neurotransmissor, a adenosina, que afeta a atividade não só
de sua vizinhança como de sinapses distantes. Enquanto que a transmissão elétrica dos
neurônios é muito rápida, propagando-se pelas redes neurais em milissegundos, a
comunicação química das glias é bem mais lenta, espalhando-se em segundos ou dezenas
de segundos (id.)
A doença de Alzheimer pode ser uma consequência da perda da capacidade das
glias em limpar os detritos. Normalmente as micróglias digerem as proteínas tóxicas que
envolvem as placas de amiloides que são a característica dessa doença, portanto sua perda
de capacidade de limpeza pode eventualmente induzi-la.
Além disso, sabe-se que o mau funcionamento das células gliais pode ser a causa
de dores persistentes ou da redução da eficácia de alguns analgésicos. A micróglia e os
astrócitos respondem à hiperatividade dos circuitos da dor após ferimentos, liberando
compostos que promovem a cicatrização. O astrócitos também são os responsáveis pelo
controle entre a lucidez e a loucuras (id.).
Isso mostra como o desenvolvimento da neurociência nos últimos anos permitiu
que as células gliais, de simples cimento cerebral, material de enchimento, fossem
elevadas de desinteressantes à condição de importantes fatores responsáveis pela saúde
humana.

Potencialidades inexploradas do cérebro humano

Existem dimensões intersensoriais ainda pouco exploradas. Hoje fenômenos


como os sinestésicos são admitidos, porém pouco compreendidos. Sinestesia (do grego
συναισθησία, συν- (syn-) "união" ou "junção" e -αισθησία (-esthesia) "sensação"), é a
relação entre planos sensoriais diferentes. Em uma forma de sinestesia, letras ou números
são percebidos como coloridos. Em outra, sons se afiguram coloridos.

112
Há cerca de 60 tipos de sinestesias hoje identificados, porém seu mecanismo não
é conhecido. Há, portanto, um amplo território intersensorial inexplorado, virgem, carente
de entendimento, campo fértil para novas pesquisas. Discute-se se são fenômenos inatos
ou aprendidos, ou uma conjugação de ambos.
Uma forma numérica é um mapa mental de números, a qual automática e
involuntariamente surge quando alguém experimenta pensar números como formas.
Foram primeiramente identificadas por Sir Francis Galton, no seu trabalho “As Visões de
Pessoas Sãs”, de 1881, que assim as denominou. As formas numéricas foram
recentemente incluídas entre as sinestesias. Estudos atuais sugerem que são o resultado
de uma ativação cruzada entre regiões do lobo parietal, que se sabe envolvido na cognição
numérica e na cognição espacial.
Pesquisas recentes sobre tempos de reação mostraram que sinestesistas que
percebem formas numéricas são mais velozes em reconhecer qual de dois números é o
maior, quando os números são arranjados em uma maneira consistente com sua forma, o
que sugere que formas numéricas são evocadas automaticamente.
As formas numéricas são conscientes, idiossincráticas e estáveis por toda a vida
do sinestesista. Isso mostra que não são fenômenos transitórios, mas novos estados de
percepção, o que mostra que o potencial do cérebro humano, mesmo em questões
matemáticas, ainda não é inteiramente compreendido. Outra capacidade ainda pouco
entendida é a denominada de “Visão Cega”.
Embora houvessem testemunhos relatados desde a Primeira Guerra Mundial de
soldados que haviam perdido a visão, mas que detectavam objetos sem recorrerem a
outros sentidos, esses casos não eram correlacionados ao que hoje se denomina de visão
cega, sendo tratados como casos de visão residual.
Hoje se reconhece que algumas pessoas que deixam de ver por causa de danos no
cérebro apresentam esse fenômeno, ou seja, respondem a objetos e imagens que não
podem enxergar conscientemente. A visão cega, constatou-se modernamente, pode ser
capaz de detectar muitas características visuais, incluindo cores, movimento, formas
simples, objetos aparecendo e desaparecendo, orientação de linhas, matrizes de linhas,
formas de sorriso e a emoção expressa pelo rosto ou postura de uma pessoa.
Pessoas dotadas de visão cega podem se deslocar em ambientes entulhados de
móveis e objetos, sem neles esbarrar. Isso durante muito tempo foi encarado com
descrédito, o que não é surpreendente, pois o fenômeno parece contra-intuitivo, ou mesmo
contraditório.

113
Em 1967 Lawrence Weiskrantz e Nicholas K. Humphrey, então da Universidade
de Cambridge, estudaram macacos cirurgicamente alterados. Posteriormente, em 1973,
Ernest Pöpel, Richard Held e Douglas Frost, do Massachusetts Institut of Technology,
mediram os movimentos oculares de um paciente e descobriram que ele tinha uma leve
tendência a olhar estímulos que não podia conscientemente enxergar. Essas descobertas
suscitaram novas pesquisas animais sem o córtex visual primário, em grande parte
conduzida por Weiskrants e sua equipe.
Não se conhecem as estruturas neurais responsáveis pela visão cega nos cegos
corticais, mas uma forte candidata é uma região denominada colículo superior, que fica
em uma parte do subcórtex chamada mesentério.
Esse fenômeno vem chamando a atenção, pois até então se considerava “ver”
como “ver conscientemente”. Essa forma de pensar obstaculizava a aceitação do
fenômeno da visão cega pelos cientistas, atrasando o progresso da compreensão da visão
inconsciente na cognição humana.
Somente estudos posteriores poderão aquilatar em que medida a visão cega pode
desempenhar um papel importante na matemática desenvolvida pelos cegos, porém
mostra que existem potenciais em nosso cérebro ainda desconhecidos ou inexplorados.
Também, conjecturamos, ajudaria a explicar a capacidade espacial dos geômetras cegos.
De alguma forma, pode-se supor que esses fenômenos estejam correlacionados ao
processamento crossmodal multissensorial do cérebro, uma área de estudo que somente
na atualidade vem despertando muito interesse na academia.

114
CAPÍTULO III

NEUROFISIOLOGIA DO INCONSCIENTE
E DA CRIATIVIDADE

Nada há de oculto que não seja revelado,


Nada há de secreto que não seja conhecido.
Lc, 12,2.

Introdução

Neste Capítulo estudaremos o papel dos sonhos, a rede de modo padrão (Default
Mode Network – DMN), responsável pela atividade do cérebro em repouso, e sua
influência especialmente sobre a criatividade matemática. Veremos como os conectomas
mapeiam as miríades de conexões entre as diversas áreas do cérebro e nos debruçaremos
sobre a constatação de como o inconsciente desempenha importante papel na atividade
criativa da ciência .

O Papel dos Sonhos


Aspectos históricos

A importância dos sonhos e de sua interpretação sempre foi um tema recorrente


na história da humanidade, podemos supor que desde a pré-história, embora obviamente
não sobrevivam registros disso. Para os povos coletor-agricultores são de fundamental
importância e sua interpretação é fonte de poder social, exercida por membros
proeminentes de suas sociedades, mesmo na atualidade. Acreditam nos seus aspectos
premonitórios e que podem servir como um modo de visitar e de se comunicar com seus
antepassados.
Os sumerianos, primeiro povo histórico, pois inventou a escrita, deixaram
evidências da interpretação dos sonhos datando ao menos de 3100 a.C. No Egito, os
egípcios registravam seus sonhos em papiro antes de 2100 a.C. Na Índia, os Upanishads,
escritos entre 900 e 500 a.C. enfatizam os significados dos sonhos. Os chineses
acreditavam que a alma deixava o corpo para viajar no domínio dos sonhos. Os budistas

115
acreditavam em sonhos premonitórios e que podiam transcender no tempo. Os gregos
criam que os deuses visitavam os sonhadores durante o sono.
Hipócrates (469-399 a.C.) afirmava que a alma recebia imagens durante o dia e
durante a noite ela as produzia. Aristóteles acreditava que os sonhos produziam atividades
fisiológicas, podendo assim predizer e analisar doenças. Cícero pensava que todos os
sonhos eram elaborados a partir de pensamentos e conversas que o sonhador tivera em
dias precedentes.
Os sonhos desempenham um papel crucial para diversas religiões. Os hebreus
acreditavam que os sonhos eram a voz de seu único Deus, fonte de inspiração divina.
Diferenciavam entre sonhos bons, que proviam de Deus, e em sonhos maus, oriundos de
espíritos malignos. Os cristãos compartilhavam com os hebreus essas crenças sobre o
caráter sobrenatural dos sonhos. Os islamitas creem que os sonhos são a maneira em que
podem receber revelações de Deus desde a morte de Maomé.

Estágios dos sonhos

Identifica-se no sono dois estados distintos: o sono mais lento, ou sono não REM,
e o sono com atividade cerebral mais rápida, ou sono REM (do inglês: Rapid Eye
Movement, movimentos rápidos dos olhos). O sono não REM é dividido em três fases ou
estágios, segundo a progressão da sua profundidade. Já o sono REM caracteriza-se pela
atividade cerebral de baixa amplitude e mais rápida, por episódios de movimentos
oculares rápidos e de relaxamento muscular máximo. Esse estágio é a fase onde ocorrem
os sonhos.
Em um indivíduo normal, o sono não REM e o sono REM alternam-se
ciclicamente ao longo da noite. O sono não REM e o sono REM repetem-se a cada 70 a
110 minutos, com 4 a 6 ciclos por noite. A distribuição dos estágios de sono durante a
noite pode ser alterada por vários fatores, como: idade, ritmo circadiano, temperatura
ambiente, ingestão de drogas ou por determinadas doenças. Mas normalmente o sono não
REM concentra-se na primeira parte da noite, enquanto o sono REM predomina na
segunda parte.
Tipos diferentes de sonhos foram identificados para os estágios REM e não REM.
Os sonhos mais claros, vívidos, que são mais facilmente relembrados ao acordar, estão
associados com a fase REM. Sonhos não REM, de ondas lentas, estágio 3 em diante, são
mais estáticos, profundos. Estão dirigidos pelo hipocampo em processos de consolidação

116
de memórias de longo prazo, incluem predominantemente memórias de eventos tais como
aconteceram. Não envolvem a combinação randômica de eventos e objetos que
caracterizam os sonhos REM.
Durante o sono REM os neurotransmissores serotonina, neuroepinefrina e
histamina não são liberados. Episódios desse sonho e os sonhos que o acompanham
aumentam progressivamente de duração, sendo o mais curto de aproximadamente 10-12
minutos, já o segundo e o terceiro de 15-20 minutos de duração. Sonhos no fim da noite
podem durar algo como 15 minutos, embora possam ser divididos em distintos episódios,
devido a despertares momentâneos que podem ser experimentados.
Metade das pessoas normais podem efetuar descrições dos sonhos que
experimentam quando acordadas antes do fim do primeiro período de sono REM, já esta
taxa sobe para 99 % quando despertam no último período deste sono. O aumento na
capacidade de relembrar sonhos parece estar correlacionado com a vividez, cor e emoções
das suas imagens.
Um dos principais problemas nas pesquisas sobre os sonhos está em determinar
qual parte do cérebro está controlando sonhos que experimentam sensações visuais e
auditivas. Em vigília a maioria das imagens mentais é controlada pelo córtex pré-frontal
lateral do cérebro. O raciocínio, o planejamento e as estratégias são resultados de uma
imaginação construtiva elaborada pelo córtex pré-frontal lateral, que atua como
coordenador reunindo objetos arquivados na memória em novas construções.
Porém, durante o sono REM o córtex pré-frontal lateral está inativo. Em pessoas
com danos no córtex pré-frontal lateral os sonhos não mudam, confirmando que o córtex
pré-frontal lateral não controla os sonhos.
Durante o sono REM a comunicação entre o neocórtex e o hipocampo é
interrompida por um alto nível do neurotransmissor acetilcolina. Estudos mostraram que
o fluxo dos sonhos, locações e caracteres ilógicos podem auxiliar o cérebro nas ligações
e consolidações de memórias semânticas, colaborando assim com a interpretação dos
significados. Essas condições ocorrem porque durante o sono REM o fluxo de
informações entre o neocórtex e o hipocampo é reduzido.
Neocórtex, ou córtex mais recente, é a denominação que recebem todas as áreas
mais desenvolvidas do córtex. Recebe este nome pois no processo evolutivo é a região do
cérebro mais recentemente derivada. Essas áreas constituem a "capa" neural que recobre
os lóbulos pré-frontais e, em especial, os lobos frontais dos mamíferos.

117
O hipocampo é uma estrutura localizada nos lobos temporais do cérebro humano,
considerada a principal sede da memória e importante componente do sistema límbico.
Além disso é relacionado com a navegação espacial. Seu nome deriva de seu formato
curvado apresentado em secções coronais do cérebro, se assemelhando a um cavalo-
marinho (Grego: hippos = cavalo, kampi = curva).
É geralmente aceito que a intensidade dos sonhos durante o sono REM pode ser
aumentada ou diminuída por células dopaminérgicas; por exemplo, drogas que bloqueiam
a atividade dopaminérgica (p.ex., haloperidol) inibem poucos frequentes e usualmente
vividos sonhos, enquanto acréscimo de dopamina (p.ex., l-dopa) estimulam sonhos
excessivos e pesadelos.

Utilidade dos Sonhos

Sigmund Freud nos fins do século XIX propôs que os sonhos servem para
exprimir o inconsciente das pessoas, principalmente para realçar aqueles desejos
reprimidos durante o dia, conscientes ou não. Propôs igualmente que os terrores noturnos
traduzem um traumatismo esquecido. Suas teorias foram e ainda são importantes para a
psicanálise.
Os sonhos têm intensidades variadas, desde impressões confusas e débeis até
epopeias intrincadas, com imagens vívidas e reviravoltas inesperadas. Podem ser
agradáveis ou desagradáveis, geralmente imbuídos de uma cornucópia de emoções.
Podem, eventualmente, antecipar acontecimentos de um futuro imediato, cogitando
possíveis reações, em especial quando o sonhador experimenta extrema ansiedade e
expectativa, como acontece com os sonhos de estudantes às vésperas de exames difíceis,
às vezes repletos de detalhes de contexto e conteúdo.
Ribeiro (2019) constata que diante da fabulosa quantidade de variáveis não
controladas, inerentes à realidade, a simulação onírica frequentemente erra suas
“previsões”. Contudo, algumas vezes essa simulação coincide com a realidade, o que
conduz o sonhador a acreditar que “o oráculo noturno” pode fazer predições corretas, de
uma forma semelhante ao que se acreditava na antiguidade, e que persiste hodiernamente.
Outras teorias foram propostas: que os sonhos servem para simular situações
perigosas, para melhor enfrentar a realidade; que permitem antever estratégias de defesa,
de contra-ataque, de se adaptar.

118
Ribeiro (2019) observa que os sonhos dos mamíferos são simulações
probabilísticas de eventos passados e expectativas futuras. Outras vertentes admitem
componentes sociais: a exclusão de um grupo, relembrada em sonho, remete às eras
ancestrais, onde esta exclusão significava morte certa.
Bancos, arquivos de sonhos foram coletados. Seu estudo revelou alguns pontos
em comum: os sonhos contém, em média, duas vezes mais emoções negativas (medo,
cólera, vergonha) do que positivas (prazer, alegria, felicidade); que sonhos sexuais são
raros, estão presentes em 2 % dos sonhos dos homens adultos e em 0,5 % dos sonhos das
mulheres.
Os sonhos são particularmente ricos em emoções negativas durante o sono não
REM, fase em que a amigdala (um centro de emoções dentro do cérebro) é muito ativa.
Todavia, a consolidação das lembranças é mais intensa durante essa fase do sono.

Hipocampo

Fig. 3.1 Esq. Secção anatômica axial do corpo real. Dir. MRI. Hipocampo.
Imagens da VHT.

Sonhos lúcidos (LD - Lucid Dreams), que ocorrem durante o sono REM, são
aqueles em que o sonhador sabe que está sonhando, embora não tenha completo controle
sobre a narrativa onírica. Sua neurobiologia ainda é desconhecida, mesmo no presente,
embora se suspeite que as regiões pré-frontal e parietal estão envolvidas no sono lúcido
(Baird, 2019).
Contudo, dado a atualidade do tema convém nos determos sobre o mesmo. Com
o surgimento de um estilo de vida digital em países ricos e jogos de vídeo hiper-realistas,
tornou-se óbvio para uma quantidade cada vez maior de pessoas que o LD é a forma final
de experiência imersiva.

119
Na verdade, oferece um mundo (gratuito) único e fantástico em que tudo pode
tornar-se possível ou controlável e se sente real sem colocar o sonhador em risco. Estas
características (fantástica experiência sensorial e emocional) tornam o LD
indubitavelmente altamente desejável (Vallat, 2019). Cogita-se mesmo serem uma forma
moderna, tecnológica de aprendizado,
Há, no entanto, um problema que impede a maioria da população de desfrutar de
LD: o LD espontâneo não é frequente. Cerca de 50% dos indivíduos experimentaram pelo
menos um sonho lúcido em vida e apenas 11% relatam ter dois ou mais sonhos lúcidos
por mês. Não é de estranhar, nesse contexto, que numerosos métodos e dispositivos de
formação que visam aumento da frequência dos LD e o nível de controle dentro do sonho
foram desenvolvidos e comercializados nos últimos anos (id.)
Os vários métodos de indução de LD podem ser classificados em três categorias:
(1) técnicas cognitivas, (2) estimulação externa durante o sono e (3) ingestão de
substâncias. Pesquisadores destacam que nenhuma dessas técnicas de indução foi
verificada para induzir LD de forma confiável e consistentemente.
Alerta Vallat (2019) sobre os efeitos nocivos sobre a saúde e sobre o sono do uso
regular de métodos de indução de LD, uma vez que estes métodos alteram a integridade
do sono e que o estado cerebral durante este sono nem é o de vigília nem o do sono REM,
mas sim um híbrido, que é naturalmente raro.
Contudo, os sonhos também apresentam aspectos altamente positivos. Numerosos
estudos apontam que dormir após um aprendizado, seja ele de uma nova peça de piano,
de uma nova audição teatral, ou qualquer que ele seja, melhora as performances que se
seguem.
O ganho de performance é da ordem de 20 %, que se segue após uma sesta um
pouco longa (cerca de uma hora e meia) ou de uma noite completa. As regiões cerebrais,
e mesmo os exatos neurônios, que trabalharam durante o aprendizado, se reativam durante
o sono e, no dia seguinte, essa performance é tanto melhor quanto esta reativação for mais
intensa. O aprendizado é mais eficaz quando dormirmos e sonhamos em seguida (Arnulf,
2016).
Em 2004 Ullrich Wagner, da Universidade de Lübeck, propôs um teste de
inteligência para seus estudantes. O número dos que dormiram após apresentação do teste
e resolveram então a questão foi duas vezes maior do que o dos que não dormiram.
Essas observações são de particular importância para os pedagogos, bem como
para os professores e seus alunos, pois enfatizam, após um aprendizado, o ganho gerado

120
por uma sesta prolongada, ou por uma noite bem dormida, na retenção dos conteúdos ou
na melhora das performances.
O fato de que as lembranças vividas nos sonhos não são recordadas de forma
idêntica, inalteráveis, mas passam como se fossem trituradas por um moinho cerebral,
que as misturam, combinando-as aleatoriamente, favorece as ideias e as associações
criativas. ψυχοπομπóς
Segundo Jung (1976), um psicopompo é um intermediário entre a consciência e o
inconsciente. A palavra que tem origem no grego psychopompós (ψυχοπομπóς), junção
de psyche (ψυχή , alma) e pompós (πομπός, guia). Nas religiões antigas era um ente
encarregado de transportar as almas para o outro mundo, evitando assim que se perdessem
no mundo dos vivos.
Essa atividade noturna singular parece ter sido aperfeiçoada ao longo da evolução
humana para cumprir várias funções: simular as ameaças, antecipar ações, memorizar,
gerar emoções negativas, consolidar as memórias, produzir novas ideias e facilitar a vida
em sociedade (Arnulf, 2016).

Default Mode Network – DMN

Durante muito tempo os neurocientistas acreditaram que os circuitos de nosso


cérebro são desligados quando nós estamos em repouso. Essa visão, porém, vem
mudando radicalmente, pois experimentos recentes demonstraram que há um nível
persistente de atividade de fundo (background activity), que permanece constante.
O psiquiatra alemão, Hans Berger, criador do eletroencefalograma, a partir das
oscilações elétricas então detectadas afirmava, já em 1929, que o sistema nervoso central
está sempre – e não só em vigília – num estado de considerável atividade.
Com o desenvolvimento de novas tecnologias, com os novos métodos de captação
de imagens cerebrais não invasivos, principiando em 1970 com a tomografia por emissão
de pósitrons - PET 22 , seguida em 1992 pela captação de imagens por ressonância
magnética funcional - fMRI 23 , somos agora capazes de melhor avaliar a extensão da
atividade cerebral, focada ou não.

22
PET – Pósitron-Emission-Tomography, técnica que mede o metabolismo da glicose, fluxo sanguíneo e
absorção de oxigênio para avaliar a extensão da atividade neuronal.
23
fMRI- functional Magnetic Resonance Imaging, técnica que mede a oxigenação do cérebro para,
igualmente, avaliar a extensão da atividade neuronal.

121
Avaliações sobre a quantidade de energia consumida pelo cérebro produziram
resultados surpreendentes: cerca de 60 a 80 % de toda a energia consumida pelo cérebro
ocorre em circuitos não relacionados a qualquer atividade externa, isto é, é gasta enquanto
ele não executa nenhuma tarefa específica. Ao desempenhar determinada tarefa, o seu
consumo de energia aumenta apenas à razão de 5 % da atividade base subjacente, ou seja,
há um incremento mínimo da energia despendida quando ele estiver ocupado em relação
à energia gasta quando estiver em repouso.
Raichle denomina a essa atividade intrínseca do cérebro de energia escura do
cérebro, em alusão à energia escura do universo, a energia não visível, mas que os
astrônomos creem responsável pela maior parte da massa do universo. O modelo
cosmológico mais aceito hoje prevê que a matéria escura, uma forma de matéria que só
interage gravitacionalmente, interagindo muito pouco de outra forma, compõe cerca de
23% da densidade de energia do universo, o restante seria constituído de energia escura
(73 %) e de matéria bariônica24 (4%).
Para a execução de uma determinada atividade, o cérebro precisa ser acionado de
modo a sair de seu modo padrão, default. Somente agora se reconhece a existência desse
sistema cerebral, que recebeu o nome de “rede de modo padrão” (Default Mode Network
– DMN em inglês), cujo exato papel ainda é envolto em mistério.
Contudo, acredita-se que desempenhe funções fundamentais na orquestração da
maneira pela qual o cérebro organiza as memórias e os vários sistemas que precisam de
preparação para eventos futuros. Provavelmente atua na sincronização de todas as partes
do cérebro.
Várias regiões do cérebro fazem parte dessa rede padrão, entre elas: parte do
córtex medial frontal; cíngulo posterior (BA 23 e 31); córtex parietal posterolateral;
córtex retrosplenial (BA 29 e 30) e formação do hipocampo, todas mostram conectividade
funcional em repouso (Smith, 2018).

24
Matéria usual, constituída por barions e leptons, que forma tudo o que conhecemos como matéria.

122
Fig. 3.2 Estruturas da DMN. Secção do cérebro da VHT. Fotos dos autores.
As regiões principais da DMN incluem córtex pré-frontal medial, o córtex do
cíngulo, o lobo medial temporal e o parietal inferior. Tanto imagens como experimentos
com animais sugerem que partes da DMN, particularmente o cíngulo posterior, o córtex
retrosplenial e o hipocampo, estão ligados a representação espacial e a navegação.
As regiões frontais mediais e parietal posterior mostram forte atividade ligada a
cognição social, incluindo considerações de outros estados mentais. Muito da atividade
da DMN está conectada com o tempo, seja com lembranças ou planejamento futuro
(Smith, 2018).
Na década de 90, Raichle e seu grupo de pesquisa notaram que,
surpreendentemente, algumas áreas do cérebro tinham queda no seu nível de atividade
quando as pessoas desempenhavam alguma atividade consciente. Essas áreas,
particularmente uma secção do córtex parietal médio, que se situa perto do meio do
cérebro e está envolvida com a recordação de eventos pessoais, registraram queda nas
atividades enquanto outras regiões se dedicavam a executar determinadas tarefas.
Associou à área que demonstrava o maior nível de depressão a sigla MMPA (do inglês
Medial Mystery Parietal Área – área parietal medial misteriosa).

Fig. 3.3 Estruturas do cérebro. Imagem da VHT.

Experiências posteriores mostraram que o cérebro não está inativo quando não
está empenhado em uma tarefa consciente, a MMPA e outras áreas permanecem em
atividade constante até que o cérebro se dedique a uma nova tarefa, quando então algumas
das áreas de atividade constante diminuem seu ritmo.
Outros grupos de pesquisa mostraram que tanto o córtex parietal medial como o
córtex pré-frontal medial são áreas da DMN. Ambas as áreas estão relacionadas com o

123
nosso estado emocional e com “imaginar o que outras pessoas estão pensando”. Estudos
recentes mostraram que no início dos sintomas de Alzheimer a Default Mode Network –
DMN para a memória enfraquece, enquanto que ela se reforça para as emoções e empatia,
talvez explicando assim a observação comum que pessoas vivendo com perda de memória
muitas vezes retêm habilidades sociais e sentimentos emocionais.
Estudos mostram que quando as pessoas leem, por exemplo, um livro, ou um
artigo, ou quando vêm um filme ou mesmo escutam uma história, ou uma apresentação,
as suas áreas de DMNs estão altamente correlacionadas. Essas áreas não se correlacionam
se os enredos, as histórias estão misturados, ou estão em uma língua desconhecida pela
pessoa, o que sugere que essa rede está altamente envolvida na compreensão e
subsequente estabelecimento da memória desta história.

Córtex cingulado
posterior Córtex frontal
Córtex parietal
medial Cingulo

Corpo Córtex Pré-frontal


caloso dorsomedial
o
Giro para-
hipocampal Hipotalamo

Amigdala Córtex Pré-frontal


ventromedial
Cerebelo
Talamo
Hipocampo

Fig. 3.4 Posição anatômica das estruturas cerebrais do corpo masculino. VHT.

A rede neural padrão (DMN) participa mesmo se a mesma história é apresentada


em para pessoas diferentes em línguas diferentes, o que mostra que esta rede está
fundamentalmente envolvida no aspecto de compreensão da história, e não em seus
aspectos de apresentação, sejam eles de audição ou leitura, que envolvem línguas.
Foi mostrado que a rede neural padrão se desativa durante atividades tais como
atenção visual ou tarefas que exigem memória ativa cognitiva, o que levou a alguns
pesquisadores denominarem essa rede de rede tarefa-negativa (task-negative network).

124
Estudos mostraram que a DMN está envolvida na cognição gerada internamente,
incluindo devaneios e pensamentos relacionados; na lembrança de memórias
autobiográficas; na imaginação de eventos futuros; na imaginação de rotas e na
elaboração de julgamentos auto-referenciais. Admite-se que a DMN cria cenários
internos, episódios ou contextos, permitindo assim que a cognição escape das restrições
do ambiente em que está imersa (Smith, 2018).
Ela cria desse modo um laboratório onde a imaginação divaga, abrindo caminhos
para a criatividade, a inventividade. Esse palco interno pode incluir elementos espaciais,
temporais, sociais ou de outros gêneros, envolvidos em lembranças e planejamentos
futuros. Isso mostra a importância do repouso, das pausas, do sono, tanto para o
aprendizado como para a criatividade.
A importância do papel da DMN pode ser aquilatada se refletirmos sobre a
quantidade de informações perceptivas que adquirimos através da visão. De toda a
informação disponível no mundo que nos cerca, apenas o equivalente a 10 bilhões de bits
por segundo chega à nossa retina. Como o nervo ótico conectado à retina tem apenas um
milhão de conexões de saída, só seis milhões de bits por segundo saem da retina e apenas
10 mil bits por segundo chegam ao córtex visual.
Após o processamento posterior, a informação visual é repassada às regiões do
cérebro responsáveis pela formação da nossa percepção consciente. Todavia,
surpreendentemente, a quantidade de informação que forma essa percepção consciente é
menos de 100 bits por segundo. Um fluxo tão tênue de informação provavelmente não
produziria, por si só, essa percepção consciente, se essa corrente fosse tudo o que o
cérebro levasse em conta, portanto a DMN, a sua atividade intrínseca, deve desempenhar
importante papel nisso (cf. Raichle, 2014).
Pesquisas futuras sobre DMN provavelmente irão nos ajudar a compreender como
a atividade criativa surge em matemática. É a visão de Raichle, embora de caráter geral:

E, no futuro, a energia escura do cérebro deverá fornecer pistas sobre a natureza do estado
de consciência. Como reconhece a maioria dos neurocientistas, nossas interações
conscientes são apenas uma pequena parte da atividade do cérebro. O que acontece abaixo
do nível de consciência – a energia escura do cérebro, por exemplo – desempenha papel
crítico para criar o contexto no qual experimentamos a percepção consciente (Raichle,
2010, p.27).

125
Conectomas - Functional Connectomes Project

O sucesso do projeto que decodificou o genoma humano inspirou a comunidade


de neurocientistas a desenvolver um projeto similar, visando o mapeamento das funções
cerebrais. O desafio principal hoje por ela enfrentado reside no desenvolvimento de um
modelo de pesquisa das miríades de sistemas funcionais do cérebro que seja independente
das hipóteses a priori de cada investigação.
Um candidato para tal modelo baseia-se nas imagens por ressonância magnética
em repouso (R-fMRI). Durante o repouso, as R-fMRI revelam flutuações espontâneas no
seu sinal, de larga amplitude e baixa frequência (<0,1 Hz), que são correlacionadas
temporalmente com áreas do cérebro envolvidas funcionalmente.
Essas correlações, conhecidas como conectividade funcional, permitem a
elaboração de mapas detalhados de sistemas neurais complexos, que coletivamente
constituem um “conectoma funcional” individual. Esse “conectoma funcional”
descreveria o conjunto de conexões funcionais no cérebro humano. Uma única R-fMRI,
de duração tão breve como cinco minutos, pode ser empregada para verificar um grande
número de circuitos funcionais simultaneamente, sem a necessidade de hipóteses a priori.
A comunidade de neurocientistas propôs então, analogamente ao projeto genoma,
a criação de um banco de dados mundial de R-fMRI, compartilhado por meio da Internet
entre os diversos centros de pesquisa participantes, de livre acesso, o 1000 Functional
Connectomes Project.25
Em 2016 começam a surgir resultados importantes. Durante muito tempo os
melhores mapas do córtex cerebral dividiam-no em 52 regiões, denominadas de áreas de
Broadman (BA) em homenagem ao anatomista alemão Korbinian Brodmann (1868-
1918), neurologista e psiquiatra alemão, que as estabeleceu em 1906, e eram baseadas
no arranjo das células no tecido.
Agora, neurocientistas do projeto elaboraram um novo mapa do córtex,
subdividindo-o em 180 regiões, das quais 97 desconhecidas, que nunca tinham antes sido
descritas, apesar de mostrarem diferenças em estrutura, função e conectividade com suas
vizinhas. As outras 83 foram confirmadas.
Para construir esse mapa, uma equipe conduzida por Mathew Glasser, da
Washington University Medical School, coletou dados de imagens processadas de 210

25
Acessível em http://www.nitrc.org/projects/fcon_1000/ ; http://www.nitrc.org/

126
jovens adultos saudáveis, participantes do Human Connectome Project. A informação
incluía medições da espessura cortical, função cerebral, conectividade entre regiões,
organização topográfica das células no tecido cerebral, e níveis de mielina, uma
substância que acelera a sinalização neural.

Fig. 3. 5 Áreas de Brodmann (BA) . Researchgate: Trevor

Projetos como esse são importantes para conhecermos melhor o funcionamento


de nosso cérebro, talvez o maior enigma com que a ciência hoje se depara. Permitirão,
por exemplo, compreender as similaridades e diferenças entre as arquiteturas funcionais
dos primatas e dos humanos, esclarecendo, por exemplo, o grau de compatibilidade entre
suas habilidades matemáticas.
No cérebro humano geralmente não se pode empregar técnicas investigativas
intrusivas, como a implantação de eletrodos em neurônios específicos, o que limita nossa
capacidade de análise. Por isso, técnicas como fMRI e R-fMRI são particularmente
valiosas no estudo de nossas capacidades cognitivas.

A Descoberta nas Ciências

A percepção de que o inconsciente desempenha importante papel na atividade


criativa na sua ciência não é novidade para os matemáticos. Jacques Hadamard, em sua

127
original obra “A Psicologia da Invenção no Campo da Matemática” (1945), já sublinhava
isso. Antes de Hadamard, outros matemáticos, principalmente Poincaré, tinham certeza
desse papel. Abordaremos, resumidamente, essa questão.
As concepções clássicas podem ser exemplificadas, por exemplo, por Souriau
(1881), que, ao que parece, foi o primeiro a afirmar que a invenção matemática ocorre
por puro acaso; enquanto que Paulhan (1901) mantém a posição de que ela ocorre por
meio do raciocínio sistemático associado à lógica.
No inicio do século XX, Maillet elaborou um questionário sobre os métodos de
trabalho dos matemáticos, abordando inclusive interessantes questões como sobre o papel
dos sonhos nas descobertas matemáticas, publicado em 1902-4 e respondido por 69
matemáticos atuantes. Em 1937, no Centre de Synthèse em Paris, sob os auspícios de
Claparède e do psicólogo Flournouy, outro extenso questionário, com cerca de pouco
mais de 30 perguntas, foi produzido. Particularidades bastante interessantes foram
levantadas, como, por exemplo, o hábito de abandonar um problema por um tempo e
depois retomá-lo.
Hadamard (op.cit., p.10) afirma que, por experiência pessoal, acredita que
emoções poderosas possam favorecer espécies inteiramente diferentes de criações
mentais. Isso é particularmente interessante, pois as pesquisas recentes mostram que áreas
da DMN, ligadas ao inconsciente, estão relacionadas com o nosso estado emocional, o
que explicaria o porquê de emoções poderosas poderem influir, como Hadamard
acreditava, em, por exemplo, criações matemáticas. Pela primeira vez pode-se admitir
uma explicação experimental neurofisiológica, portanto a nível funcional, material, de tal
fenômeno. Hadamard, dessa forma, intuiu pioneiramente tal mecanismo.
De notável presciência são as observações de Poincaré sobre o papel do
inconsciente na descoberta matemática. Em um célebre artigo, ele relata os
acontecimentos que o conduziram a uma das suas mais importantes descobertas
matemáticas, correlacionada ao estudo das funções fuchsianas.
Embatucado com um problema em sua investigação, deixou-a de lado
momentaneamente. Resolveu deixar Caen, onde morava, para participar de uma excursão
geológica, esquecendo-se praticamente do problema. Relata que, ao colocar o pé no
degrau do ônibus que o conduzia, sem ao menos estar pensando na dificuldade que o
afligia, lhe ocorreu a solução. Sentou em seu assento e continuou a conversar com seu
vizinho, com inteira convicção de que estava certo. Somente no seu retorno a Caen
verificou a exatidão de seu insight. Em suas próprias palavras:

128
O mais admirável à primeira vista é o surgimento dessa iluminação repentina, um sinal
manifesto de um longo, inconsciente trabalho prévio. O papel desse trabalho inconsciente
na invenção matemática me parece incontestável (apud Hadamard, 1954 p. 14).

Paul Valery ressaltou a importância dos trabalhos preliminares em uma


descoberta. Caberia ao então ao descobridor escolher entre as diversas asserções
preliminares o que lhe interessa, isto é, joeirar, fazer então combinações e decidir quais
lhe são produtivas. Foi Poincaré, ao que parece, o primeiro a sublinhar o papel do
inconsciente tanto nas combinações das assertivas preparatórias como na escolha das que
são férteis.
Isso enfatiza a importância do conhecimento da história de um determinado
problema, a qual propicia ao investigador inteirar-se de seus avanços e percalços,
conhecer todas as hipóteses já aventadas, combiná-las, então joeirar o campo, até que uma
inspiração, consciente ou inconsciente, se produza.
Os estudiosos alemães denominam essas inspirações de Geisteblitz, iluminações
súbitas. Cabe ao conhecimento da história do problema, de seu estado da arte, o trabalho
preparatório, uma fase consciente que, como Poincaré aponta, conduz à incubação, a qual
geralmente precede a iluminação da questão. Hadamard pressentiu a importância da
DMN nessas iluminações:

Que essas súbitas iluminações, as quais podem ser chamadas de inspirações, não podem
ser produzidas unicamente por acaso é evidente pelo o que dissemos: que não pode haver
dúvida de que há a necessária intervenção de algum processo mental prévio desconhecido
do inventor, ou em outros termos, de um inconsciente. Realmente, depois de ter visto,
bem como veremos na sequência em muitos outros lugares, dificilmente alguma dúvida
sobre a existência do trabalho inconsciente pode ser levantada (op. cit., p 21).

Mais adiante, conecta essas iluminações aos processos vigentes nas células
cerebrais:

A questão é se há algum mistério, ou mais exatamente, algum mistério especial [nessas


iluminações]. O verdadeiro mistério reside na existência de alguns pensamentos, de
alguns processos mentais, quaisquer que sejam, que estejam sendo conectados – de uma
forma acerca da qual não sabemos mais do que a humanidade sabia há milhares de anos
atrás – com o funcionamento de algumas de nossas células cerebrais. A existência de
vários desses processos dificilmente é mais misteriosa do que a existência de uma [única]
espécie deles (op. cit, p.42).

129
Contudo, essa associação do inconsciente com a atividade cerebral não foi nem
comum nem unânime na história da humanidade. O inconsciente já foi associado a
existências anteriores, ou com a ação de espíritos sobrenaturais. Aristóteles parecia
admitir que o inconsciente fosse algo não apenas originário em nós mesmos, mas
partilhado pela Divindade.
Na opinião de Leibniz, ele colocaria o homem em conexão com todo o universo,
algo similar às concepções xamanísticas. Algumas concepções beiraram o absurdo como,
por exemplo, as de German Von Hartmann, que considerava o inconsciente uma força
universal demoníaca, perniciosa, a qual influenciava seres e coisas, constantemente
prejudicando-os.
A História da Ciência registra desde a antiguidade vários episódios de descobertas
do tipo iluminações súbitas (Geistblitz), por exemplo, quando Arquimedes ao descobrir
as leis do deslocamento hidrostático saiu correndo nu do banho gritando “eureka” (em
grego, ηὕρηκα/εὕρηκα – "Encontrei!").
Alfred Russel Wallace, convalescendo de uma forte febre contraída nas florestas
malaias, contou que foi atingido pela ideia da formação das espécies em estado de delirio
e passou-a para o papel de uma só vez.
Einstein contou a Michel Polanyi que a ideia da relatividade se tornou evidente
para ele por causa de um sonho da juventude em que ele tentava seguir um raio de luz.
Isso mostra a importância dos sonhos na criatividade científica. Einstein ficou obcecado
com essa ideia, até que a concretizou na teoria da relatividade restrita.
Kekulé conta que a estrutura hexagonal das moléculas de benzeno, que procurava
desvendar arduamente, se tornou clara para ele quando, semi-adormecido, olhava
fixamente para dentro da lareira imaginando que as chamas eram cobras, até que ele viu
uma delas morder o próprio rabo, formando o anel hexagonal que ardentemente buscava.
Isso sem mencionar a por demais conhecida história de Newton e a maçã.
Graças às recentes pesquisas podemos reconhecer a importância do trabalho do
inconsciente, lembrando que somente ele responde por 60 a 80 % da energia que nosso
cérebro consome. Essas são pistas importantes para a metodologia tanto do trabalho
matemático como do cientista em geral, pois, por exemplo, embasa o hábito de abandonar
um problema por um tempo depois retomá-lo.
Além disso, também propiciam novos insights de como proceder na educação
matemática. Elas apontam para a importância do “amadurecimento” de um problema, do
seu estágio incumbatório, além do conhecimento prévio de hipóteses anteriormente

130
aventadas. Geralmente então a inspiração surge de um trabalho cooperativo entre o
consciente e o inconsciente.
Kurt Göedel, embora com seus resultados tenha decretado o fim da matemática
como uma ciência exata, dentro da concepção hilbertiana, por ter provado existirem
proposições indecidíveis, acreditava piamente até o fim de seus dias na intuição
matemática como fonte de seu poder criativo. A intuição matemática está correlacionada
com o que o pode acontecer no futuro, em sua simulação, o que, ao que parece, é função
da rede neural padrão, explicando assim a importância de seu estudo para a Matemática.
Não há uma definição precisa, um conhecimento exato do que seja essa “intuição”.
Não sabemos se corresponde a uma entidade mental ou a um processo, porém parece
atender a três requisitos: é rápida, automática e inacessível à introspecção.
Stanislas Deahaene (2009) propôs que a intuição matemática numérica está
correlacionada com o que chama de “conhecimento nuclear” (core knowledge)
matemático e que está associada com subsistemas cerebrais especializados de evolução
extraordinariamente antiga. Tal conhecimento está associado com o que denominamos de
matemática animal humana. Esses subsistemas, sugere, estariam ligados a um sistema
cerebral localizado nos sulcos intraparietais de ambos os hemisférios, o qual extrairia
numerosidades de conjuntos e estabeleceria correspondências entre os símbolos
numéricos e as suas quantidades correspondentes, e estaria presente em espécies de
animais e em bebês pré-verbais.
Acredita que sua organização neuronal está atualmente começando a ser
compreendida, o que pode conduzir a uma teoria de como nós processamos comparações
numéricas e usamos números simbolicamente. Crê que o próximo desafio que se
apresenta para a ciência é entender como a educação muda essas intuições nucleares de
número (Deahene, 2009).
A resolução de problemas envolve toda uma multiplicidade de processos
cognitivos até que se chegue a um “insight”, uma percepção súbita que conduz à solução.
Marc Jung-Beeman e Edward Bowden, da Universidade de Chicago, investigaram a
contribuição dos hemisférios cerebrais nesse processo.
Sugeriram que o hemisfério esquerdo, o mais lógico e analítico, seria responsável
pelo processo consciente da linguagem, enquanto que o direito, o mais intuitivo,
integrativo, responderia pela atenção inconsciente e espacial. A solução dos problemas
passo a passo ocorreria no hemisfério esquerdo, mediante a aplicação consciente de regras
lógicas. Ao direito atribuíram o papel decisivo na solução de problemas que demandem

131
insights. Os insights surpreendem aqueles que os têm porque a restruturação, a
integração, ocorre no hemisfério direito cerebral.
Apenas quando o resultado é transmitido para o esquerdo acende-se
subjetivamente uma luz, uma iluminação, um Geistblitz, na nossa mente. Conceito similar
ao de “insight” é o de “mind pops”, que estudaremos a seguir.
Recentemente (Jahr, 2012) psicólogos vêm dedicando especial atenção ao que
denominam de “estalos mentais”, mind pops (MP), em inglês. São fragmentos de
conhecimentos, imagens, sons, melodias, sabores, que surgem inesperadamente na
consciência.
Parecem completamente irrelevantes para os momentos e pensamentos que
invadem, geralmente ocorrem em meio a uma atividade habitual que não exige muita
concentração. Ocorrem sem razão aparente e estão ligados a nossas experiências e
conhecimentos anteriores.
Obviamente são correlatos, se não os mesmos, que as Geisteblitz, as inspirações
súbitas. Esses mind pops podem acelerar a criatividade e a solução dos problemas.
Parecem fenômenos aleatórios, mas são fragmentos genuínos de conhecimento sobre o
mundo.
Se muitos conceitos permanecem adormecidos em nossa mente, os mind pops
podem ativar conexões neurais que conduzam à solução de problemas.
A frequência de minds pops parece estar ligada a áreas importantes da DMN, pois
há uma certa similaridade entre o surgimento destes e devaneios mentais.
Os MP são gerados espontaneamente pelos indivíduos e são pensamentos
inconscientes, enquanto os devaneios estão correlacionados com a DMN, a rede padrão
cerebral que está relativamente em repouso e é suprimida quando em tarefas que
envolvam estímulos externos.
Os MP diferem dos devaneios, os quais estão relacionados com o sistema de
memória semântica (tal como o giro pré-central), enquanto que os MP envolvem regiões
como o hipocampo e o giro para-hipocampal.

132
Córtex cingulado
posterior Córtex frontal
Córtex parietal
medial Cingulo

Corpo Córtex Pré-frontal


caloso dorsomedial
o
Giro para-
hipocampal Hipotalamo

Amigdala Córtex Pré-frontal


ventromedial
Cerebelo
Talamo
Hipocampo

Fig. 3.6 Posição anatômica das estruturas cerebrais do corpo masculino. VHT.

Liu (2019) e associados mostraram que uma alta frequência de MP está fortemente
associada com estados de repouso das conexões funcionais entre o córtex para-
hipocampal e a área motora suplementar. A área motora suplementar (BA 6), como um
importante nó da rede somatomotora, desempenha um papel importante no processo de
produção semântica. Essa rede situa-se na região primária do sistema motor (BA 4) e
trabalha em associação com outras áreas motoras, incluindo o córtex pré-motor, a área
motora suplementar, o córtex parietal posterior e várias regiões do cérebro subcortical,
para planejar e executar movimentos.
Contudo, na mente de algumas pessoas com transtornos mentais, como os
esquizofrênicos, esses estalos podem progredir de fenômenos benignos para alucinações
perturbadoras. Resultados de pesquisas parecem apontar que os mind pops são mais
comuns em pessoas com perturbações como depressão, estresse pós-traumático,
transtornos obsessivos-compulsivos que entre os sãos, todavia é muito cedo para conectar
definitivamente memórias súbitas a alucinações. Parecem estar ligados às inspirações,
pois nosso subconsciente frequentemente conhece o significado de uma experiência,
mesmo se conscientemente não sabermos disso.
De certa forma, o que é conhecido como intuição matemática pode ser
considerado parcialmente como obra da energia escura do cérebro, associada a um
trabalho consciente, cujas raízes podem estar no inconsciente onírico. A intuição

133
matemática pode ser comparada ao vento: é intangível, nos é transparente, mas o
percebemos e ele nos impulsiona.
O que ocorre abaixo do nível de consciência, devido, por exemplo, à energia
escura do cérebro de Raichle, desempenha papel crítico para criar o contexto no qual
experimentamos a percepção consciente.
A intuição matemática está correlacionada com a criação, a inventividade, que são
características desta disciplina. Pouco, ou nada, como se viu, se sabe sobre a
neurofisiologia desses aspectos. Contudo, pode ser-nos proveitoso haurir conhecimentos
de outras fontes de criatividade, como, por exemplo, da arte do improviso, uma das
máximas expressões de criatividade artística.
Suzana Herculano-Houzel (2015) lembra que, quando pianistas de jazz tocam
dentro de um aparelho de ressonância magnética funcional, seu cérebro abre mão de
controlar a si mesmo, com uma expressiva redução da atividade do córtex pré-frontal
lateral, enquanto que as porções sensório-motoras do córtex continuam em plena
atividade, acompanhando a música e gerando as melodias seguintes.
Improvisar, criar musicalmente, é associar informações livres do controle pré-
frontal, deixando o cérebro criar melodias de acordo com suas memórias, valores e
emoções. Aprender a criar seria então deixar o cérebro fluir, libertar-se dos controles do
córtex pré-frontal, enquanto o restante do cérebro vagueia com associações livres,
baseadas em experiências prévias, fruto de aprendizados anteriores.
Analogamente, a redução da atividade do córtex pré-frontal lateral, enquanto suas
demais regiões atuam livremente, vagueando, colhendo fortuitamente experiências
prévias, fazendo associações inopinadas, arando na DMN, pode ser uma das fontes da
criatividade em Matemática. Isso, eventualmente, pode auxiliar a desvendar as ur-
questões: Por que a Matemática é criativa? Qual a fonte de sua inventividade / intuição?

O Despertar da Consciência

Além da DMN diversas outras redes neurais corticais foram identificadas. Entre
essas, citaremos a Rede de Atenção Dorsal (DAN/DAT - Dorsal Attention Network); a
Rede de Atenção Ventral (VAN - Ventral Attention Network) e a Rede de Controle
Executivo (ECN - Executive Control Network). Examinaremos rapidamente o papel de
cada uma dessas redes.

134
Funções Executivas (EF) constituem conjunto de capacidades cognitivas que são
essenciais para a vida diária e são afetadas pelo envelhecimento e por condições
neurodegenerativas.
Essas funções possibilitam a articulação de ideias; pensar antes de agir; enfrentar
desafios imprevistos; resistir às tentações e manter o foco. As EFs principais são: a
inibição [inibição de resposta (autocontrole: resistir às tentações e resistir à ação
impulsiva) e controle de interferência (atenção seletiva e inibição cognitiva)], memória
de trabalho e flexibilidade cognitiva (incluindo pensar criativamente "fora da caixa",
vendo qualquer coisa de diferentes perspectivas e adaptando-se rapidamente e de forma
flexível às circunstâncias alteradas).
A base do desempenho das EF são nós funcionais na Rede de Controle Executivo
(ECN), entretanto a conectividade estrutural subjacente a esta rede não é ainda bem
compreendida.
Estudos revelaram a presença de um "núcleo estrutural (kern)” fortemente
conectado da ECN composto por três componentes: conexões frontais interhemisféricas,
uma sub-rede fronto‐parietal e conexões fronto‐estriatais entre o córtex pré-frontal
dorsolateral direito e o núcleo caudado direito. Esses caminhos estão fortemente
correlacionados com o desempenho das EF. Estudos posteriores provavelmente
contribuirão para o esclarecimento de como essas interconexões contribuem para a
cognição humana e para o estabelecimento do comportamento.
A Rede de Atenção Dorsal (DAN/DAT) é um dos dois sistemas de orientação
sensorial no cérebro humano, sendo o outro a Rede de Atenção Ventral (VAN/VAT). Ela
está envolvida na orientação voluntária e sua atividade aumenta após a apresentação de
pistas indicando onde, quando ou para quais sujeitos deve a atenção ser direcionada. O
sistema de atenção dorsal é bilateral e inclui o sulco intraparietal e a junção do sulco
frontal pré-central e superior (campos oculares frontais) em cada hemisfério.
A principal função da Rede de Atenção Ventral (VAN) é reorientar a atenção para
estímulos salientes. A VAN é considerada envolvida principalmente, se não inteiramente,
em ações involuntárias. A rede neural é lateralizada pelo hemisfério direito e inclui a
junção temporal-parietal direita e o córtex frontal ventral direito. A atividade desse
sistema aumenta após a detecção de alvos salientes, especialmente quando eles aparecem
em locais inesperados. Aumentos de atividade também são observados no sistema ventral
após mudanças abruptas nos estímulos sensoriais, no início e deslocamento dos blocos de
tarefas, e no final de um ensaio concluído.

135
Estudos do grupo de pesquisa de Huang (2020) mostraram que o fluxo contínuo
da consciência humana depende de dois sistemas corticais distintos, a Rede de Modo
Padrão (DMN) e a Rede de Atenção Dorsal (DAN/DAT).
A DMN se envolve em uma variedade de processos dirigidos internamente, como
memória autobiográfica, imaginação e auto-referenciamento. A DAT, por outro lado,
media processos cognitivos direcionados externamente, como a atenção orientada a
objetivos, inibição e controle voluntário hierarquicamente organizado, de cima para
baixo.
Além disso, a DMN e a DAT parecem estar em uma relação recíproca uma com
a outra, de tal forma que elas não estão simultaneamente ativas, ou seja, elas são
"anticorrelacionadas". Esta anticorrelação é presumidamente vital para manter uma
interação contínua entre si e o ambiente, que contribui para a o despertar da consciência.
Essa anticorrelação diminuída entre a atividade da MN e da DAT foi relatada em
humanos quando a consciência foi suprimida pela anestesia geral e em pacientes
neuropatológicos com distúrbios de consciência. Isso apoia a hipótese de que um
equilíbrio dos sistemas internos e externos dirigidos é importante para o despertar da
consciência (Huang, 2020).
Desse modo, a atividade cerebral consciente é caracterizada por um conjunto
estruturado de trajetórias transicionais, nas quais a acessibilidade a diferentes estados da
mente (DMN/DAT) é relativamente balanceada. Isso é suportado pela evidência que a
DMN e a DAT estão no alto de uma hierarquia representacional, relativamente distantes
dos sistemas sensório e motor, tanto em termos de conectividade funcional como
anatômicos. Essa disposição permitiria às duas redes processar informações transmodais,
sem serem condicionadas por inputs sensoriais imediatos.
Huang conclui que sua pesquisa fornece evidências da existência de um "circuito
temporal", caracterizado por um conjunto de trajetórias ao longo do qual a atividade
dinâmica do cérebro ocorre. Acredita que as transições entre o modo padrão e a rede de
atenção dorsal estão embutidas neste circuito temporal, no qual uma acessibilidade
recíproca equilibrada dos estados cerebrais caracteriza a consciência. Esse circuito
temporal seria responsável pelo balanceamente entre as atividades da DMN e da DAT
(Huang, 2020).
Esse equilíbrio dinâmico entre suas atividades seria responsável por ativar a
consciência, despertando-a.

136
CAPÍTULO IV
SENSO NUMÉRICO - NUMEROSIDADES

Nenhuma grande descoberta foi


feita sem um palpite ousado.
Newton.

Introdução

Destinamos este Capítulo para introduzirmos algumas das noções fundamentais


da matemática, analisadas sob um ponto de vista anatômico-neuronal, bem como
apresentaremos alguns conceitos necessários para esse estudo.
Neste Capítulo iremos ver como o cérebro processa as numerosidades, a
matemática animal, estudando o senso numérico, seja dos humanos como dos animais.
Veremos o que caracteriza a fronteira entre a matemática animal e a humana. Operações
com números requerem habilidades mentais como abstração, memorização, obedecer
regras e tomar decisões, por isso o estudo do processamento numérico fornece meios para
decifrar os mecanismos neuronais das funções de controle cognitivo.
Analisaremos os tipos de memória, as vias cerebrais para a matemática e a leitura,
e o modelo da arquitetura funcional e anatômica do sistema de processamento de
números.
Também serão vistos o aspecto ordinal do número, a aritmética animal e o
primeiro conceito matemático identificado a nível neuronal.
A Lei de Weber-Fechner, de suma importância para os estudos neurológicos dos
conceitos matemáticos fundamentais, será apresentada.

O Cérebro e a Matemática Animal

Algumas pesquisas recentes vêm lançando novas luzes sobre como o cérebro
processa a matemática, as quais, na nossa opinião, são extremamente importantes para a
compreensão de que maneira ela influi na estruturação de nosso modo de pensar, bem
como para esclarecer em que grau ela contribui no que se pode denominar de pensamento
caracteristicamente humano.
Luitzen Egbertus Jan Brouwer (1881-1966), fundador do intuicionismo, asseverava
que a matemática é uma atividade humana, que se origina e se desenvolve na mente

137
humana, inexistindo fora dela, sendo independente do mundo real. A mente reconheceria
certas intuições básicas, claras, distintas de intuições sensíveis ou empíricas, mas certezas
imediatas acerca de alguns conceitos de matemática. Concebia o pensamento matemático
como um processo de construção mental que edifica seu próprio universo. De certa forma,
pode-se considerar o intuicionismo como precursor de teorias materialistas como o
neuronalismo, desde que associemos a atividade mental humana com a atividade
neuronal.

Caberia, então, indagar sobre as características dessas intuições matemáticas


básicas: quais seriam inatas, logo transmitidas filogeneticamente, através do processo
evolucionário, quais seriam adquiridas e quais seriam desenvolvidas ou construídas pela
mente. Entre essas intuições inatas, o senso numérico ou numerosidade, vem
presentemente recebendo especial atenção por parte dos pesquisadores.

Tobias Dantzig (1884-1956), em seu livro “Número, a linguagem da ciência”,


credita aos homens algo como uma intuição direta do que número significa.

O Homem, mesmo nas mais baixas etapas do desenvolvimento, possui uma faculdade que, por falta
de um nome melhor, chamarei de Senso Numérico. Essa faculdade permite-lhe reconhecer que
alguma coisa mudou em uma pequena coleção quando, sem seu conhecimento direto, um objeto foi
retirado ou adicionado à coleção. O Senso numérico não deve ser confundido com contagem, que
provavelmente é muito posterior, e que envolve um processo mental bastante intrincado (1970,
p.15).

É, portanto, uma propriedade de um estímulo que é definida pelo número de


elementos discrimináveis que a coleção contém. O senso numérico, portanto, envolve o
conceito de número cardinal de um conjunto 26 . Faz parte do que denominamos de
matemática animal, ou seja, de conceitos matemáticos comuns a algumas espécies do
reino animal. Entre essas, que compartilham o senso numérico com o homem, citamos os
insetos (vespas); aves (pombos, corvos, papagaios, periquitos, gralhas); primatas, como
os prossímios (lêmures) e antropóides (rhesus, chipanzé); ratos; raccons, pintinhos,
golfinhos e mesmo salamandras. O senso numérico é, consequentemente, independente
da linguagem e possui uma longa história evolucionária.

Dantzig narra no seu livro uma história interessante, que ilustra um senso de
número mais consciente. Certo castelão desejava apanhar um corvo (não é o corvo

26
Em matemática números cardinais são uma generalização dos números naturais empregados para medir
a cardinalidade de um conjunto. A cardinalidade de um conjunto finito é um número natural que é o número
de elementos do conjunto. Os cardinais transfinitos descrevem os tamanhos de conjuntos infinitos.

138
brasileiro, mas a espécie do hemisfério norte), o qual tinha feito um ninho em uma torre
da sua propriedade. Como o corvo abandonava o ninho sempre que alguém se aproximava
da torre e não retornava até que ele a deixasse, o castelão tentou um ardil: dois homens
entraram na torre, um permaneceu enquanto o outro se afastou.
O pássaro não caiu na armadilha: manteve-se afastado até que o outro homem
saísse da torre. Repetiu a experiência nos dias seguintes, com dois, três e quatro homens,
sem sucesso. Somente quando cinco homens entraram na torre, quatro saíram e um
permaneceu, foi que o corvo caiu na armadilha. Incapaz de distinguir entre quatro e cinco,
retornou ao ninho e foi apanhado.
O corvo, além de não dispor de palavras para números e não ter ideia do processo
de contagem, não podia, por exemplo, fazer incisões em um pedaço de madeira nem
separar um seixo para cada homem, ou utilizar qualquer outro recurso material de
contagem. Por algum meio, dependendo apenas da sua visão direta, era capaz de
distinguir entre dois e três homens, e entre três e quatro homens. Qualquer senso numérico
possuído por animais e pássaros deve depender apenas da visão direta e ser independente
de palavras e símbolos. Os membros do conjunto devem ser semelhantes, não
necessitando serem exatamente iguais, porém um membro não deve ter características tão
marcantes que permitam distingui-lo imediatamente dos outros, por exemplo, um lobo
em conjunto de carneiros.
Outro ponto importante é que, para determinação do senso numérico, não se
podem agrupar os elementos do conjunto dado em subconjuntos, por exemplo, dois a
dois, ou três a três, como fazemos, às vezes inconscientemente, pois isso envolve o
processo de contagem, o que não é permitido em face do conceito estabelecido para ele.
O professor Otto Koehler (1889 – 1974), durante a Segunda Guerra Mundial,
realizou uma série de experiências, procurando determinar o senso numérico em uma
variedade de pássaros; as experiências eram cientificamente controladas, filmadas, sem a
presença de espectadores humanos. Foram feitos mais de três quilômetros de filmes, na
sua maioria destruídos durante a guerra. A pesquisa mostrou que os pássaros aprendem
os números aos quais são apresentados de duas maneiras: por apresentação simultânea ou
por apresentação sucessiva. Como aos pássaros faltam palavras para os números, o
professor Koehler resumiu as suas conclusões afirmando que eles "aprendem a pensar
números sem nome", expressando dessa maneira a sua ideia de senso de número visual
direto.

139
Os pássaros de uma dada espécie mostram a mesma habilidade de compreensão
de números sem nome, sejam eles apresentados simultânea ou sucessivamente, mas a
habilidade difere com as espécies. Assim com os pombos pode ser cinco ou seis,
dependendo das condições experimentais, com as gralhas é seis e com os papagaios, sete.
A ideia da apresentação sucessiva corresponde aproximadamente ao processo de
contagem. Os pássaros não contam, pois não têm palavras. Não são capazes de nomear
os números que podem perceber e atuar sobre eles, mas o fato é que pensam números sem
nome.
A capacidade da linguagem parece ser inata ao homem. A criança aprende palavras
como papagaio, mas após as suas primeiras poucas palavras ela pode formar sentenças
que expressam relações verdadeiras, desejos, e que formulam questões. Esta capacidade
distingue o homem dos demais animais
Alguns pássaros possuem os mesmo níveis de cognição dos primatas, embora seus
cérebros sejam muito menores. Olkowicz (et alii., 2015) mostraram que os cérebros de
papagaios e de alguns pássaros canoros contém em média o dobro do número de
neurônios que os dos cérebros de mesma massa dos primatas, o que indica que os
cérebros das aves têm uma densidade neuronal superior à dos primatas. Desse modo, o
cérebro as aves tem potencial para prover um “poder cognitivo” por unidade de massa
muito superior ao do cérebro dos mamíferos.
Poucas outras espécies de animais possuem senso numérico, além dos pássaros.
Alguns insetos também possuem senso numérico. A vespa solitária é um exemplo. A
vespa fêmea põe seus ovos em células individuais, fornecendo a cada ovo um número
constante de larvas, das quais as crias se alimentam, quando saem dos ovos. O número de
vítimas é notavelmente constante para cada espécie de vespa. Algumas espécies colocam
cinco, outras 12 ou 24. Ainda mais notável é o caso do Genus Eumenus, uma variedade
em que a fêmea é muito maior que o macho. De algum modo, a mãe sabe se o ovo
produzirá uma larva macho ou fêmea, fornecendo a quantidade de comida
proporcionalmente: não muda a espécie ou o tamanho da presa, mas se o ovo é macho
dedica-lhe cinco vítimas, se é fêmea dez.
Em 2009 Gross (et.al.) mostraram que abelhas (apis mellífera) podem diferenciar
entre dois e três elementos, mas que também podem usar esse conhecimento para
diferenciar o três do quatro, sem treino adicional, baseadas unicamente em pistas visuais.
Um ponto importante é que aparentemente nenhum animal doméstico, como
cachorro, gato, cavalo, vaca, etc., parecem possuir senso numérico como o estabelecido

140
por Dantzig. Um cachorro que late certo número de vezes para indicar o número de
elementos de determinado conjunto, na realidade foi adestrado para latir continuamente,
parando quando o seu dono der certo sinal. Na maioria dos casos, esses animais não
acertam os resultados longe dos donos pelos quais foram condicionados.
No começo do século XX, na Alemanha, tornou-se célebre o caso de um cavalo
apelidado de o “sábio” Hans. Além de contar, conseguia resolver problemas aritméticos.
Batia com a pata no chão o número de vezes que correspondia à resposta certa do
problema. Seu dono, Wilhelm von Osten não era um simples treinador, mas sim um
homem que, sob a influência de Darwin, procurava demonstrar a extensão da inteligência
animal. Até um comitê de sábios alemães, liderados pelo psicólogo Carl Stumpf, em
setembro de 1904, concluiu que os feitos de Hans eram reais, não resultado de batota.

Fig. 4.1 O Sábio Hans e Wilhem von Osten. Wikimidia.

Porém, um aluno de Stumpf, Oskar Pfungst, não ficou convencido e, modificando


os experimentos, concluiu que Hans tinha a notável habilidade de detectar minúsculos
movimentos da cabeça ou sobrancelhas de Osten que indicavam quando a resposta certa
era atingida, parando assim de bater com a pata no chão. Mais surpreendentemente, Hans
também indicava a resposta correta mesmo quando seu mestre não estava presente.
Aparentemente, era capaz de detectar a tensão do público quando a resposta correta era
atingida.
Em raríssimos casos, alguns animais parecem acertar o resultado, mesmo sem a
presença do dono. Acontece que esses animais conseguem perceber sinais mínimos das
pessoas presentes, que conhecem o resultado da questão e, mesmo inconscientemente, os
emitem; por isso as experiências com senso numérico devem ser realizadas sem qualquer

141
presença humana, de preferência filmados ou gravados em vídeo sem a presença de
operadores.
Como o senso numérico dos homens também dificilmente vai além de quatro, cabe
inquirir se o processamento, a nível neurológico, desse fenômeno nos humanos difere do
dos animais. Uma cognição numérica básica não parece requerer um cérebro grande, com
uma área pré-frontal bem evoluída. Os cérebros dos insetos, por exemplo, embora
minúsculos comparados ao dos vertebrados, parecem ofertar complexidade mais do que
suficiente.
È interessante observar que um sistema de pequenos números (numerosidade) é
baseado na individualização, ou seja, na representação de objetos distintos, que pode ser
um atributo da cognição e da percepção, está sujeito ao limite da capacidade da memória
de trabalho, classicamente assumida ser entre 4 e 7, mas hoje considerada centrada ao
redor de quatro itens. Também cabe observar que o limite da memória de trabalho, tanto
em animais como nos humanos, é surpreendentemente o mesmo, talvez devido a
similaridades nas respectivas escalas evolutivas.
Uma cognição numérica básica nos animais não parece requerer um módulo
cortical dedicado, como o dos humanos, mas pode ser um aspecto inerente da organização
de seus inputs sensoriais em objetos de percepção, mantendo as representações dos
objetos na memória de trabalho. Como o processamento complexo no lobo visual dos
animais, particularmente nos insetos, está integrado com estruturas do cérebro central
para permitir discriminações visuais baseadas em número ainda permanece bastante
desconhecido, embora pareça fornecer suficiente complexidade para implementar
simples algoritmos de enumeração (Skorupski, 2017).
Os inputs visuais, fornecidos pelos complexos olhos dos insetos, desempenham
um papel muito mais importante que o dos olhos dos humanos tanto na discriminação de
numerosidades como em outras tarefas fundamentais para sua sobrevivência.
No presente estudam-se as formas de processamento cross-modal27 (modalidades
cruzadas) nos cérebros animais. O processamento cross–modal é a habilidade do cérebro
de integrar as informações fornecidas por múltiplos sentidos.

27
Muitas vezes traduzido como transmodal.

142
Senso numérico de animais domésticos e selvagens

A lei de Weber, que será estudada na sequência, estatui que a diferença perceptível
entre o tamanho de dois estímulos depende mais da razão entre as suas duas magnitudes
do que das suas diferenças absolutas.
Presentemente teoriza-se que os animais podem possuir dois diferentes sistemas
não verbais para representa valores numéricos. O primeiro sistema (object-file model)
representa precisamente números pequenos (até 3 ou 4), sendo cada objeto a ser
enumerado em um conjunto representado por um único símbolo. Como a representação
da quantidade é exata, animais empregando esse modelo não seguem a lei de Weber ou
mostram efeitos de razão. Esse sistema está baseado na cardinalidade do número.
No segundo sistema, denominado de sistema de números aproximados (ANS),
animais representam aproximadamente números maiores e também possivelmente
números menores. Nesse sistema quantidades são representadas como magnitudes
mentais, ou seja, não simbólicas, estando sujeitas a efeitos de razão, estabelecidos por
proporcionalidades, portanto, quantidades usando este sistema seguem a lei de Weber
(Benson-Amram, 2017).
Os cães são capazes de selecionar entre a maior e a menor quantidade de alimento,
desse modo a performance de cachorros domésticos segue a lei de Weber, logo, não
possuem senso numérico como estabelecido por Dantzig. Cães, como também alguns
primatas não humanos, podem formar representações internas de quantidades e fazer
comparações mentais de quantidades, seguindo o sistema de números aproximados (id.).
Todavia, somente no presente estão sendo conduzidos estudos iniciais para a
compreensão das habilidades de como animais carnívoros discriminam quantidades.
Predadores beneficiam-se da habilidade de discriminar quantidades quando selecionando
alternativas de caça, escolhendo os tamanhos e os números das presas, que podem mudar
dependendo do número de companheiros tanto dos caçadores como das caças. Espécies
sociais empregam o senso numérico como vantagem competitiva quando em conflitos
com grupos rivais, como tática de sobrevivência (id.). D‘Ambrosio enfatiza que essas
habilidades matemáticas são cruciais para a sobrevivência das espécies.
Lobos parecem ser capazes de estimar rapidamente a vantagem numérica quando
de encontro com grupos rivais, avaliando não apenas o seu tamanho relativo, mas também
a idade e o sexo dos seus componentes, comparando-os com os do próprio grupo, para
decidir se vão ou não ao seu embate. Muitas espécies carnívoras parecem ter habilidades

143
de discriminarem entre quantidades para obterem vantagens numéricas. Contudo, não
sabemos ainda como leões, hienas, outros predadores e mesmo lobos representam
mentalmente quantidades (id.).
Benson-Amram observa que diferenças cognitivas entre animais selvagens e
cativos podem ser devidas a um “efeito de aculturação”, pois animais cativos conseguem
desenvolver habilidades cognitivas similares às humanas devido às suas interações com
humanos e com experiências com objetos por eles manufaturados.

Senso Numérico Humano

O senso numérico visual do homem raramente vai além de quatro, isto


independente da raça a que pertença. Os selvagens, que não alcançaram a etapa de
contagem pelos dedos, são quase que completamente desprovidos de percepção numérica.
Curr, no seu estudo sobre a Austrália primitiva, afirma que poucos nativos são capazes
de discernir quatro, e que nenhum australiano em seu estado selvagem consegue perceber
sete.
Estudos em diversas culturas apontam que essa intuição de número é comum a
todos os humanos, independentemente de língua, educação, cultura, distância geográfica
ou grau de instrução matemática. Ainda hoje há culturas com um reduzido léxico de
palavras para número, tão limitado que incluem apenas palavras para “um”, “dois” e
“muitos”, mas mesmo assim possuem uma notável competência não verbal para
aritmética elementar, sublinhando, contudo, que esse conhecimento é mais aproximado
que exato.

Os Pirahãs, índios de uma tribo do Amazonas, que falam uma língua que não tem
relação com nenhuma outra existente e cujo léxico de palavras para número acaba em
“dois”, podem comparar aproximadamente duas numerosidades. Os Mundurucus,
habitantes do Pará, do Amazonas e do Mato Grosso, tanto adultos como crianças,
possuem uma excelente capacidade para discriminar dois conjuntos baseados em seu
número de elementos, ou para somar ou subtrair essas numerosidades, mesmo com
numerosidades até 50, apesar de terem palavras para números somente até cinco.
É interessante observar que Piaget faz uma distinção entre números e números
perceptuais. Números perceptuais, para Piaget, são números pequenos, até quatro ou
cinco, que podem ser distinguidos pela percepção, sem requererem estruturação lógico-

144
matemática. Esses números podem ser compreendidos intuitivamente pelas crianças em
termos da sua relação parte-todo, embora ainda sem disporem de uma compreensão
operacional de número. Aos números maiores que quatro ou cinco denomina de números
elementares.
Os primeiros estudos acerca de como o cérebro processa nossas habilidades
numéricas provieram dos estudos de Salomon Eberhard Henschen (1847-1930) sobre
pacientes com distúrbios neurológicos na década de 1920, seguidos pelas observações de
Joseph Gerstmann (1887-1969) acerca dos efeitos dos danos na parte do lobo parietal
conhecido como giro angular esquerdo. Henschen introduziu o termo “acalculia” para
designar pacientes com problemas nas habilidades matemáticas.

Fig.4.2 Anatomia dos lobos frontal e parietal. Fonte:


https://aminoapps.com/c/greysanatomybrasil/page/blog/divisao-do-
encefalo/QJxl_Z3UXu3jVjWNgvel2JLoJREnQoQb7D

Ficou claro que danos no lobo parietal esquerdo causavam déficits em cálculos,
enquanto que danos no giro angular esquerdo também provocavam distúrbios nas
representações neurais dos dedos, ocasionando adicionalmente agrafia e confusão entre
direito e esquerdo. Esses sintomas denominaram o que hoje é conhecido como a
“Síndrome de Gerstmann”, porém a relação funcional entre eles ainda não é clara.
Convém esclarecer que o senso numérico parece independer da origem do estímulo
sensorial, seja ele visual ou auditivo, ou outro. Kanjlia (2019) mostrou que sequências
auditivas de 4, 8, 16 e 32 tons despertavam em imagens de fMRI padrões de atividade

145
no IPS tanto em pessoas com visão normal como em cegos congênitos, de tal maneira
que era possível prever a quantidade de tons que um paciente ouvia apenas se baseando
no padrão de atividade do seu IPS. Isso mostra que o sistema de números do IPS é
resiliente a mudanças em experiências sensoriais.

Tipos de memórias

O senso numérico está relacionado com a capacidade de armazenamento de dados


na memória. Os modelos de memória construídos pelos psicólogos nos ensinam que os
níveis hipotéticos da memória compreendem a codificação, o armazenamento e
recuperação de informações. A codificação é o tratamento da informação com vista ao
seu armazenamento, conhecendo-se que, por um lado, essa aquisição se faz por processos
sensoriais e, por outro lado, existe a consolidação que permite a construção de uma
representação. Isso implica em que podemos aprender e saber sem termos consciência
disso.
Dois fatores fundamentais caracterizam as teorias cognitivas da memória: 1) a
duração da retenção (daí a distinção entre memória sensorial, memória de curto prazo e
memória de longo prazo); 2) o tipo de informação armazenada na memória de longo
prazo.
A memória sensorial é uma forma de memória automática que não depende do
campo de consciência e cuja forma de representação é sensorial. Muito breve, esse tipo
de recordação subsiste apenas por algumas centenas de milissegundos após a estimulação
sensorial (para o sistema visual) e de dois a três segundos para o sistema auditivo.
A memória de curto prazo permite a retenção das informações durante o seu
tratamento. Sua capacidade é limitada em média a sete itens, podendo variar entre cinco
e nove itens. Por exemplo, consideremos a simples adição “2+3”, para a efetuarmos
necessitamos manter mentalmente “2”, na memória curto prazo, antes dele ser
incrementado por “3”, para obtermos o resultado final “5”. Sem a memória de trabalho,
de curto prazo, isso seria impossível.
Sua capacidade é muito similar ao senso numérico animal, que também varia
aproximadamente entre esses limites, o que induziu a correlacioná-lo com esse tipo de
memória. A memória de trabalho possibilita a realização de um trabalho, isto é, um
tratamento cognitivo dessas informações temporariamente armazenadas.

146
A de longo prazo, como seu nome indica, permite o armazenamento por períodos
delongados das informações. Classifica-se a memória de longo prazo em: memória
explícita, que se subdivide em episódica e semântica, e a implícita que, entre suas
múltiplas subdivisões, encontra-se a memória processual. Na memória explícita o acesso
às informações armazenadas é consciente, ao contrário da memória implícita, onde o
acesso às informações é inconsciente. A memória semântica diz respeito a conhecimentos
de caráter geral, comum a todos, enquanto a memória episódica remete para a história
pessoal. Já a memória processual, inconsciente, é a memória dos gestos, das aptidões.

A Capacidade de Armazenamento Fonológico

Iremos agora nos deter em analisar a evolução da capacidade de armazenamento


fonológico, isto é, da faculdade de retermos na memória fonemas ou palavras, de
fundamental importância para o estabelecimento de uma regra recursiva inata, capaz de
associar um número ao seu sucessor.
Hauser, Wynn e Coolidge (Wynn, 2004) enfatizam a relevância da capacidade de
armazenamento fonológico na evolução da linguagem, argumentando inclusive que pode
ter determinado consideráveis diferenças cognitivas entre linhagens hominídeas, como os
Neandertais e os Homo sapiens.
Hauser propôs uma distinção entre a faculdade da linguagem em um sentido amplo
(LSA) e em um sentido estrito (LSE). A LSE, específica do Homo sapiens, seria um
sistema linguístico computacional abstrato, o qual propôs ser independente de outros
sistemas, como o da memória. É um sistema computacional que gera representações
internas e mapeia-as na interface sensório-motora, por meio de um sistema fonológico, e
na interface conceitual-intencional por meio de um sistema semântico formal.
Dessa maneira, uma propriedade fundamental da LSE, somente pertencente à
linguagem humana, seria sua capacidade de recursão, isto é, de embutir uma frase dentro
de outra, por exemplo, na bem conhecida fala “Hermione disse que Hagrid quer ver você”.
A recursão pode ser infinitamente geradora, mas é limitada pela capacidade de
armazenamento fonológico. Essa capacidade representa uma memória de curta duração
que pode ser retraçada a hominídeos próximos na escala evolutiva e a sistemas cerebrais
de primatas contemporâneos.
A linguagem deve ter evoluído primariamente pela expansão da capacidade de
memória de curto prazo, o que permitiu o processamento de sons que transmitem

147
significados elaborados, eventualmente participando também em processos sintáticos.
Esse incremento na memória produziu resultados imediatos no comprimento e na
complexidade das sentenças, o que pode fundamentar os argumentos em favor de que
uma linguagem, bem como de que tradições orais avançadas, são características de um
comportamento moderno.
Alguns autores argumentam, convincentemente, que essa independência de simples
frases declarativas morfêmicas, tornada possível pelo aumento da memória de trabalho,
bem como pelo incremento da LSE, auferiria às culturas a habilidade de compartilharem
mitos que as unem tanto ao mundo natural como aos seus ancestrais, tais como os mitos
de criação. Isso é provável ter acontecido no período Aurignaciano, com a cultura Cro-
Magnon.
Essas narrativas podem ter sido excelentes substitutos para experiências que
demandavam bastante tempo ou que eram perigosas. Também podiam auxiliar na
transmissão de conhecimentos relativos à habitats, colheitas, migração de animais,
geografia, plantas, fauna, tempo, calendário e mesmo práticas numéricas.
Vale indagar qual a relação da recursão com a linguagem e o pensamento moderno.
Uma capacidade de memória incrementada permite “manter na mente” um número muito
maior de opções, bem como proporcionar ao falante uma maior criatividade e
flexibilidade comportamental. Então é possível que a capacidade de formulações como
“então se..., o que se...”, do modo subjuntivo da linguagem, as quais podem ser
formuladas apenas através da recursão, surgiu com o aumento da memória de trabalho.
O modo subjuntivo é fundamental em formulações matemáticas, tais como: “se”
(isto) “então” (aquilo), na formulação de hipóteses, ou em relações de implicação: “se”
(isto) “implica” (aquilo).
O modo subjuntivo da linguagem expressa uma ação ou estado como um fato irreal,
ou simplesmente possível, ou desejado. Isso permite a adoção de um simbolismo muito
mais elaborado. Também pode ter sido fundamental para a criação de arquétipos, que até
hoje se mantém.
Esse modo de expressão, se supõe, pode ter sido a base da arte teriantrópica, que
conjuga animais a seres humanos, uma das mais impressionantes realizações da arte pré-
histórica Aurignaciana. Monstros permeiam o imaginário coletivo desde essas priscas
eras.

148
Do ponto de vista matemático, a recursão é fundamental na formulação da noção
de sucessor de um número, o que permite a geração de uma cadeia potencialmente infinita
de números.
A neurofisiologia associa os lobos intraparietais inferiores, particularmente os
giros supramarginal e angular superior, como a capacidade de armazenamento fonológico
e com processos articulatórios sub-vocais, isto é, com a capacidade de “fala
interiorizada”.

Competência numérica dos bebês recém-nascidos

Somente nos últimos trinta anos a competência numérica dos bebês recém-nascidos
humanos tem sido examinada empiricamente. Até recentemente a visão construtivista de
Piaget, elaborada há uns sessenta anos, dominava esse campo. Ela afirmava que as
habilidades matemáticas e lógicas são progressivamente construídas nas mentes dos
bebês, pela observação, internação e abstração de regularidades do mundo exterior. Ao
nascer o seu cérebro era uma página em branco, vazia de qualquer conhecimento
conceitual. O conceito de número, para Piaget, deveria ser construído no curso de suas
interações sensoriomotoras com o ambiente. Crianças nasceriam, então, sem qualquer
ideia preconcebida sobre a aritmética.
As primeiras experiências que mostraram que bebês com seis meses de idade já
mostravam competência para empregar certos aspectos do conceito de número, muito
antes que tivessem qualquer oportunidade de abstraí-lo do ambiente, contrariando assim
Piaget, foram realizadas em 1980 na Universidade da Pensilvânia, por Starkey e Cooper.
Mostraram que bebês entre 16 e 30 semanas de vida são capazes de discriminar
numerosidades 2 e 3.
Posteriormente, Antell e Keating, da Universidade de Maryland, evidenciaram que
mesmo recém-nascidos podem discriminar números 2 e 3 poucos dias após o seu parto.
Em 1992 Karen Wynn publicou na revista Nature um artigo sobre adições e subtrações
simples realizadas por bebês com quatro e cinco meses de idade. Demonstrou que bebês
sabem que 1+1 perfaz não 1 ou 3, mas exatamente 2.
Cabe ressalvar, contudo, que embora as habilidades numéricas de crianças de tenra
idade sejam reais, elas estão limitadas à aritmética mais elementar. Sua habilidade para
cálculo não parece se estender para além dos números 1,2,3 e talvez 4. Sempre que
experimentos envolvem 2 ou 3 objetos, elas podem discriminá-los, porém, somente

149
ocasionalmente revelaram-se capazes de diferenciar 3 do 4. Nunca um grupo de bebês
com menos de um ano de idade distinguiu 4 pontos de 5 ou mesmo de 6. Sua competência,
nesse domínio, pode talvez ser inferior a do chipanzé adulto, cuja capacidade se mostrou
acima do acaso mesmo quando tem de escolher entre seis contra sete chocolates.
Chipanzés possuem igualmente senso numérico, semelhante ao do homem (cf.
Dehaene, 1997). Além disso, Woodruff e Premack, da Universidade da Pensilvânia,
mostraram, em 1981, que eles conhecem frações simples e também são capazes de efetuar
operações aritméticas com elas, demonstrando assim uma noção intuitiva de como essas
frações podem se combinar. Esses animais sabem que um quarto de uma torta está para a
torta inteira assim como um quarto de litro de leite está para um litro inteiro.
Outra linha de pesquisa questiona se crianças e primatas não-humanos têm uma
compreensão inata da ordenação, ou seja, que 2>1, 3>2, 4>3 e assim por diante. É uma
questão relevante, pois junto da habilidade de representar relações operacionais entre
pequenas numerosidades (1+1=2, 2-1=1, etc.), animais deveriam ter também uma
competência para compreender a “ordem” segundo a qual elas estão organizadas.
Em etologia, teorias de otimização de forragens ou coleta predizem que animais
“procuram por mais”, isto é, desenvolvem estratégias para forragear ou coletar que
maximizem seu ganho líquido de energia quando nessa atividade (i.e., o ganho de energia
excede a sua perda nessa atividade).
Feigenson em 2002 organizou um experimento com dois grupos de crianças com
10 e 12 meses de idade, onde lhes eram mostrados dois recipientes que continham
números diferentes de guloseimas, a saber: 1x2, 2x3, 3x4 e 3x6. Os bebês eram colocados
a um metro de distância dos recipientes e então liberados pela mãe para escolherem um
recipiente. O resultado foi de que ambos os grupos de idade escolhiam o recipiente de
maior numerosidade quando 1x2 e 2x3 eram confrontados, mas não quando 3x4. Desse
modo determinaram que crianças de tenra idade já estabelecem uma relação ordinal entre
duas numerosidades, procurando pelo recipiente que continha “mais”.
Hauser em 2000 realizou o mesmo experimento com macacos rhesus. Manipulou
também condições onde dois recipientes contendo números diferentes de guloseimas
eram confrontados, nos quais 1x2;2x3;3x4;3x5;4x5;4x6;4x8;3x8 unidades foram
cotejadas. Os macacos escolheram o recipiente com maior número nos testes onde
1x2;2x3;3x4;3x5 unidades foram apresentadas, mas não nos casos 4x5;4x6;4x8;3x8.
Os resultados mostraram que os macacos apresentam uma habilidade espontânea
de ordenação de pequenas numerosidades muito similar à das crianças recém-nascidas.

150
Isso patenteia uma limitada capacidade de ordenação, de “procurar por mais”, que poderia
eventualmente ser apenas uma característica dos primatas, talvez não compartilhada por
outras espécies.
Porém, em 2003 Uller e outros mostraram que salamandras, anfíbios distantes na
linha evolucionária dos primatas, também compartilham dessa aptidão. Apresentaram a
esses anfíbios dois tubos contendo números diferentes de drosófilas, moscas de frutas,
guloseimas apetitosas para essa espécie. Elas foram capazes de escolher a maior entre
duas numerosidades quando se confrontaram 1x2 e 2x3 drosófilas, mas não nos testes
onde se comparou 3x4 e 4x6.
Como no caso dos macacos e dos bebês, a salamandras também têm uma limitada
capacidade de ordenação, de “procurar por mais”. Isso indica que essa capacidade pode
ser mais disseminada no reino animal do que se supunha anteriormente.
Em 2008 um grupo coordenado por Ângelo Bisazza, da Universidade de Pádua,
divulgou os resultados de uma pesquisa efetuada com uma espécie de peixe, o Gambusia
holbrooki, originário da América do Norte, que se alimenta de larvas de mosquito e que
chegou à Europa no começo do século XX para combater a malária.
Esses peixes tendem a formar grupos numerosos para se protegerem dos
predadores. Foi constatado que ao se colocar um peixe dessa espécie num aquário, frente
a dois grupos de peixes de número diverso, o peixe solitário reconhece o de maior número
e tende a se juntar a ele. O peixe solitário faz sua escolha sempre que fica diante de grupos
com dois e três membros, ou grupos com três ou quatro integrantes. Porém, quando tem
que escolher entre pequenos cardumes com cinco ou seis peixes, o animal solitário não
consegue distinguir qual dos grupos é o maior.
Isso mostra que esta espécie possui um senso numérico que vai até quatro, embora
também consiga diferenciar entre grupos maiores. Quando tem que decidir ente cardumes
de oito e dezesseis unidades, o peixe solitário é capaz de se unir ao mais numeroso.
Porém, essa “procura por mais” não necessariamente envolve um senso numérico
strictu sensu, pois outras considerações podem ser aventadas, como a percepção do
volume apresentado pelo cardume maior. Isso é interessante, pois a noção de
“companheirismo”, de um animal ter a tendência de se agregar a um grupo maior, não
necessariamente envolve senso numérico.
Conceito similar, mas não igual, é o de “imprinting”, desenvolvido por Konrad
Lorentz em 1935, quando descreveu o processo de aprendizagem nos gansos. Esse é um
fenômeno exibido por vários animais filhotes, principalmente, pássaros tais como

151
pintinhos e patinhos, quando, logo após saírem dos ovos, seguirão o primeiro objeto em
movimento que eles encontrarem no ambiente, o qual não necessariamente pode ser a
mãe.
Em 2016 pesquisadores da Universidade de Oxford mostraram que patinhos são
capazes de reconhecer conceitos abstratos como “mesmo” e “diferente”, e que esse traço
é aprendido logo após o nascimento, pelo processo de imprinting. Isso lhes permite
identificar o primeiro objeto em movimento que encontrem como “mãe”, e objetos ou
seres diferentes como “não mãe”.

Qual a Fronteira Entre a Matemática Animal e a Humana?

A matemática animal, a matemática compartilhada com os companheiros do reino


animal, como denominamos, está correlacionada com a necessidade de sobrevivência das
espécies. O Homem também necessita sobreviver, o objetivo fundamental da espécie é
transmitir seus genes às futuras gerações. O que distinguiria, portanto, a matemática
animal da matemática humana?
A diferença primordial parece estar em que o Homo, satisfeitas suas necessidades
de sobrevivência, busca explicações, o conhecimento, tem sede de transcender.
Como bem observa D’Ambrosio, “A Matemática, como o conhecimento em geral,
é resposta às pulsões de sobrevivência e de transcendência, que sintetizam a questão
existencial da espécie humana” (2002, p.27).
Diversos estudos procuraram determinar quais elementos da cognição humana são
puramente humanos, não compartilhados com outras espécies animais. Alguns animais
têm uma memória episódica, ou uma habilidade matemática não linguística, ou uma
habilidade de se orientar empregando referenciais. Apesar dessas similaridades aparentes,
uma profunda fenda cognitiva divide os animais dos humanos. O desafio é identificar
quais sistemas animais e humanos compartilham, quais são únicos, e como esses sistemas
interagem entre si.
Foram levantados quatro ingredientes da cognição humana que aparentemente a
tornam única: 1) a habilidade de combinar e recombinar diferentes tipos de informação e
conhecimento para obter novos insights; 2) a capacidade de aplicar a mesma “regra” ou
solução de um problema a uma situação inteiramente nova em um contexto diferente; 3)
a capacidade de criar e facilmente compreender representações simbólicas a partir de

152
inputs sensoriais e computacionais; 4) a habilidade de elaborar raciocínios abstratos a
partir de inputs sensoriais e perceptuais brutos.
Essas habilidades podem ser classificadas como matemáticas, pois são basilares ao
raciocínio matemático. Desse modo, pode-se afirmar que talvez a principal competência
cognitiva que distingue o homem dos demais animais que não a possuem seja sua
capacidade de pensar matematicamente. A Matemática, portanto, é básica às estruturas
cognitivas de pensamento que classificamos como pensamento puramente humano. A
Matemática é, portanto, parcela estruturante do pensamento humano.
Resta, porém, buscar a explicação da natureza, do mecanismo dessas intuições ou
sensos. O primeiro a estudar o impacto da atividade aritmética sobre o cérebro humano
foi William G. Lennox (1884-1960) que, em 1931, estudou o efeito da circulação cerebral
no trabalho mental.
No rastro dos trabalhos de Lennox, vários estudos mostraram que o cérebro é
consumidor voraz de energia, absorvendo sozinho quase um quarto da energia total gasta
pelo corpo inteiro. Louis Sokoloff (1921-2015) foi o pioneiro em mostrar a relação entre
a circulação cerebral, o metabolismo local e a atividade das áreas cerebrais. Os
mecanismos de regulação do fluxo sanguíneo têm sido explorados pela ciência nos
últimos anos com o intuito de mostrar quais regiões do cérebro estão ativas durante as
várias atividades mentais.
Embora as primeiras neuroimagens do cérebro humano ativo datem de 1970,
somente em 1985 Roland e Friberg publicaram as primeiras imagens da atividade cerebral
durante cálculos mentais. Seus estudos evidenciaram que sujeitos efetuando subtrações
repetidas demonstraram ativações bilaterais no córtex parietal inferior do cérebro, bem
como em múltiplas regiões do córtex préfrontal.
Na sequência, Stanislas Dehaene (1997) estudou como a atividade cerebral varia
durante experimentos de comparação e multiplicação de números. Igualmente
evidenciou-se que várias regiões do cérebro estavam ativas durante a comparação e
multiplicação de números. A comparação é um conceito matemático estruturante do
cérebro humano. Apontou-se o córtex parietal inferior como crucial para o senso
quantitativo de número.
Durante a multiplicação, a atividade cerebral era mais intensa no hemisfério
esquerdo, que governa a linguagem, mas durante a comparação, estava igualmente
distribuída nos dois hemisférios ou mesmo se verificava no direito. Isso está em
concordância com a observação de que a multiplicação, mas não a comparação, em parte

153
depende das habilidades linguísticas do hemisfério esquerdo. Outra área subcortical, o
núcleo lenticular esquerdo, também estava mais ativa durante a multiplicação do que
durante a comparação.

Modelo da Arquitetura Funcional e Anatômica do Sistema de Processamento de


Números

Fig. 4.3 Modelo cross-modal esquemático. Composição dos autores.

Deahene e Cohen propuseram um modelo que tenta explicar a arquitetura


funcional e anatômica do sistema de processamento de números em humanos, conhecido
como modelo do código triplo (triple-code model - TCM). Esse modelo assume que
números podem ser representados no cérebro humano de três formas: como numerais
arábicos (ou outros), como sequência de palavras e como representações analógicas de
quantidades numéricas correspondentes.
No código visual arábico, números são codificados como sequências de dígitos
em uma memória visual de trabalho. Essa visualização, envolvendo trajetórias dos
lóbulos occipital e temporal, permite a identificação dos numerais ajudando em operações
com múltiplos dígitos, bem como em julgamentos de paridade.
No código verbal os números são codificados como sequências de palavras, Essa
representação, suportada pela área de Broca, permite a compreensão de numerais falados.
No código de magnitude, números são representados como quantidades analógicas em
uma linha orientada (cf. Chochon, 1999).
Esse modelo mostrou-se útil para uma compreensão elementar do processamento
de números pelo cérebro, ainda que venha recebendo diversas contribuições visando seu
aperfeiçoamento. A Figura (4.3) mostra uma representação esquemática desse modelo.

154
Embora esse modelo tenha sido arquitetado nos fins da década de 1990, ocorreram
progressos em termos de metodologia, de estudos desenvolvimentistas e de diagnósticos.
Assim, algumas das suas afirmações iniciais foram elaboradas, outras rejeitadas.
Contudo, concluem Siemann e Petermann, que efetuaram em fins de 2017 uma
reavaliação do mesmo, sua arquitetura principal ainda é aceita na maioria das teorias
presentes sobre a aritmética (Siemann, 2017).

Como o Cérebro Opera Numerosidades

Restava, porém, identificar qual região do cérebro respondia pelo reconhecimento


de numerosidades, ou seja, pelo senso numérico. Desconfiava-se, através de estudos
realizados em macacos, que o córtex pré-frontal (PFC) e o córtex parietal posterior (PPC)
estivessem envolvidos em julgamentos numéricos.

Fig.4.4 Lobos parietais: superior e inferior; córtex pré-frontal; sulco intraparietal.


Adaptado. Wikimidia.

Em 2004 Andreas Nieder e Earl Miller, por meio de estudos em macacos rhesus,
conseguiram mostrar que o fundus, a parte inferior, do sulco intraparietal (F-IPS) era a
principal fonte de processamento de numerosidades. Também mostraram que a
concentração de neurônios que codificam numerosidades numéricas no IPS igualmente
se localiza na mesma área em cérebros humanos, indicando uma homologia nesse
processamento nas áreas correspondentes entre cérebros humanos e de macacos.

155
Deahene, em 1999, já tinha reconhecido uma maior ativação do IPS quando pessoas
estimavam resultados aproximados de uma adição ao invés de calcularem resultados
exatos. Pinel, em 2001, reportou que a ativação do IPS é determinada pela distância
numérica, independente da notação empregada para expressar quantidade numérica.
Esses estudos mostraram a existência de um paralelismo entre os modos de
processamento numérico, seja esse processamento efetuado por macacos ou por humanos.
Isso demonstra a existência daquilo que cognominamos de matemática animal. A área do
cérebro responsável pela identificação do número cardinal de um pequeno conjunto foi,
assim, pela primeira vez identificada, mostrando que esse conceito matemático é, de certa
forma, componente estrutural de nosso pensamento. Isso já era de suspeitar, pois ele é
importante em situações envolvendo sobrevivência, como comparação entre conjuntos de
inimigos, na repartição ou escolha de alimentos.

Fi.g. 4.5 Superior: Lobos Cerebrais; inferior: Sulcos Parietais.


Desenhos adaptados pelo autor.

Esses estudos mostraram como neurônios individuais nos córtices cerebrais de


primatas (o homem inclusive) podem codificar o número de elementos em um estímulo.
Além da compreensão de como números cardinais são representados, a investigação sobre
esses neurônios elucida o processamento e transformação de informações numéricas em
tarefas que requerem controle cognitivo necessários a uma pré-adaptação para a
aritmética.

156
Se um neurônio responde igualmente a estímulos de numerosidades variados
sistematicamente, pode-se concluir que este neurônio responde a um número, o que nos
autoriza concebermos “neurônios numéricos”.
Contudo, neurônios numéricos respondem mais fortemente aos seus números
preferidos, mas também respondem mais fracamente a números adjacentes, desta forma
apresentam uma curva de resposta em forma de sino, ou seja, de uma função gaussiana.
Tendo em vista que a noção de “número” é abstrata, um número não é somente
codificado em domínios sensoriais únicos, pré-determinados, mas também em domínios
independentes da modalidade sensorial, isto é, seu processamento deve ser supramodal
(cross-modal).
As respostas de neurônio numéricos supramodais pode ser facilmente associadas a
signos arbitrários, tais como formas visuais ou sons audíveis, para estabelecer
representações de números em humanos através de numerais ou de palavras para
números.
Em 2013, Harvey et. al. empregando imagens de ressonância magnética funcional
descreveram um mapa de populações neurais sintonizadas com pequenas numerosidades
no córtex parietal humano. O lobo parietal direito (PPC) apresentou uma distribuição
topográfica que refletia uma preferência por informação acerca de numerosidade, que se
deslocou da área medial para a lateral quando a numerosidade aumentava.
A superfície da área cortical devotada a uma determinada numerosidade diminuía
com o aumento da numerosidade, o que sugere que há uma seletividade mais precisa para
pequenas numerosidades (1,2,3,4) do que para grandes numerosidades (5,6,7). Essas
descobertas sugerem que o cérebro processa numerosidades de uma forma análoga aos
mapas topográficos obtidos por percepções sensoriais. Eles concluíram que neurônios em
uma única região cortical podem codificar numerosidades ou pistas sensoriais, ou ambas,
ao mesmo tempo. (Harvey, 2013; Gebuis, 2013).
Todavia, não se encontrou um mapa topográfico para dígitos, o que sugere que
sejam processados em uma região diferente do cérebro. O processamento envolvendo
dígitos deve ser diferente.

157
Fig. 4.6 A representação topográfica de numerosidades está presente no córtex parietal
posterior humano (PPC). A preferência por numerosidade se desloca da área frontal para
a lateral com o aumento da numerosidade. Adaptado de Harvey, 2013.

Quando uma população de neurônios é sintonizada para um determinado número,


ela se comporta como em uma votação democrática, a maioria vence, mesmo que haja
votos aberrantes, ou seja, a maioria dos neurônios desta população determina a
preferência por este número. Isso significa que a participação relativa é o que importa.
Muitos neurônios nos córtices parietal e préfrontal respondem não somente a
numerosidades, ou seja, a magnitudes numéricas discretas, mas também a magnitudes
contínuas, tais como comprimento, distância e tempo.
Magnitudes contínuas são fundamentais para a vida, permitem avaliar tempos,
distâncias, sem os quais, por exemplo, a prática de esportes seria impossível. O conceito
de participação relativa poderia eventualmente também explicar como os efeitos de duas
ou mais magnitudes poderiam ser desembaraçados. Um sistema de magnitudes poderia
se beneficiar da detecção de padrões nas respostas relativas de uma população de
neurônios que são sintonizados diferentemente para, por exemplo, número, comprimento
e duração, e na base destes padrões o valor atual tanto numérico, como de comprimento
ou duração, poderia ser determinado (Nieder, 2016).

Vias cerebrais separadas para matemática e leitura

Matemática e leitura envolvem redes cerebrais distribuídas e têm ambas


componentes cognitivos tanto compartilhados (e.g. codificação de estímulos visuais)
como dissociados (e.g. processamento de quantidades). Até o presente, desconhecem-se
quais são as redes de matemática e de leitura com substratos de matéria (ou substância)

158
cinza e de matéria branca, que são compartilhadas e quais são as dissociadas. Todavia,
estudos do grupo de pesquisa coordenado por Mareike Grotheer, em 2018, forneceram
alguns resultados preliminares sobre essas questões.
Desnecessário frisar a importância das competências tanto de leitura como
matemáticas no aprendizado. Contudo, seu substrato neurológico ainda é pouco
conhecido e pesquisas nessa direção são de valor inestimável para a pedagogia.
É possível perceber no sistema nervoso central duas porções com colorações
distintas: uma porção com a coloração mais acinzentada e outra com uma região mais
esbranquiçada. A região acinzentada recebe o nome de substância (ou matéria) cinzenta,
e a região esbranquiçada recebe o nome de substância branca.
A substância cinzenta é formada por uma grande quantidade de corpos celulares
de neurônios. Já a substância branca é formada por uma porção de prolongamentos de
neurônios, em especial os axônios. Como os axônios de alguns neurônios apresentam-se
envolvidos por mielina, essa substância dá um aspecto esbranquiçado à substância branca.
Fascículos são feixes de fibras, de tractos, que são as vias de associação cortical.
Alguns de seus resultados revelaram que: a) há distintas regiões de matéria cinza
as quais são preferencialmente engajadas em: ou competências matemáticas ou
competências em leitura; b) o fascículo longitudinal superior (SLF) e o fascículo arqueado
(AF) são compartilhados por redes de matemática e de leitura. Surpreendentemente,
dentro desses fascículos existem tractos relacionados tanto com leitura como matemática,
que estão separados em sub-feixes paralelos e mostram diferenças estruturais relativas à
sua mielinação (Grotheer, 2018).
Embora leitura e matemática sejam encaradas como competências distintas, elas
compartilham diversos processos cognitivos, tais como: codificação de estímulos visuais,
verbalização e memória de trabalho. Admite-se que as ativações das redes cerebrais
compartilhadas dependem da tarefa aritmética, por exemplo, são mais ativadas é
necessário recuperarem fatos (e.g., durante a adição de números pequenos) do que quando
executam cálculo baseados em procedimentos (algoritmos). Além disso, existe uma
notável taxa de co-morbidade entre deficiências comuns entre matemática e leitura: 66
% das crianças que sofrem de discalculia também padecem de dislexia, o que sugere que
matemática e leitura podem ter substratos neurais compartilhados (id.).
Pesquisas indicaram que diversos fascículos de matéria branca são importantes
para a leitura. Entre eles encontram-se: a) o fascículo arqueado, que conecta os córtices
frontal e temporal; b) o fascículo fronto-ocipital inferior (IFOF), que também conecta os

159
córtices frontal e occipital; c) o fascículo longitudinal inferior (ILF), que conecta o lobo
occipital com a ponta anterior do lobo temporal. Contudo, o compartilhamento desses
fascículos com atividades matemáticas era pouco conhecido até os estudos de Grotheer.
Esses estudos mostram novas visões sobre as redes de fascículos da leitura e da
matemática. Primeiro, mostram que o fascículo longitudinal superior (SLF) e fascículo
arqueado (AF) são compartilhados entre as redes de leitura e de matemática. Segundo,
que mesmo como o SLF e o AF são fascículos chaves para ambas competências, cada um
contém sub-feixes especializados para leitura ou matemática. Esses sub-feixes distintos
sugerem que possivelmente as conexões da matéria branca para leitura e matemática são
mais espacialmente específicas do que previamente imaginado (id.).

Fig.4.7 A1: fascículo longitudinal superior (SLF); sagital; A2: fascículo arqueado
(AF); sagital; B1: fascículo longitudinal inferior; sagital; B2: fascículo
longitudinal inferior; axial. Fonte: Eliasz Engelhardt; Denise M Moreira. A
substância branca cerebral. Dissecção virtual dos principais feixes: tratografia..
In: Revista Brasileira de Neurologia » Volume 44 » No 4 » out - nov - dez, 2008

Isso pode acarretar que, se mesmo processos cognitivos de matemática e leitura são
compartilhados, seu processamento é efetuado principalmente me paralelo. Logo,
melhorias em uma habilidade não necessariamente são transmitidas à outra. Sabe-se que
a mielinização é dependente da atividade neural e que, como a leitura é praticada mais

160
intensamente que a matemática durante a infância, esses estudos levantam a intrigante
possibilidade de que a prática mais ativa de leitura pode afetar mais a mielinização de
seus tratos, em detrimento da dos feixes matemáticos (id.)
A função da mielina é de proteger o axônio. Além disso, ela também acelera a
velocidade da condução dos impulsos nervoso. Se a bainha de mielina que envolve a fibra
nervosa for lesada ou destruída, os impulsos nervosos se tornam cada vez mais lentos ou
não são transmitidos. Portanto, mielinização atípicas dos tractos dentro do SLF e do AF
durante o desenvolvimento das crianças podem estar associados com deficiências de
aprendizado de leitura ou matemática.
Os estudos de Grotheer sobre atividades matemáticas limitaram-se à adição de
pequenos números, muito mais pesquisas precisam ser desenvolvidas para operações
mais complexas, como multiplicação e divisão, para nos limitarmos às aritméticas, que
podem envolver outras áreas do cérebro ainda não estudadas. É um fértil e inexplorado
campo de pesquisa.

Fig. 4.8 a) Fascículos dedicados à leitura; e) fascículos dedicados à matemática; i) fascículos


compartilhados entre a leitura e a matemática. Fonte: Grotheer, 2018.

Aspecto ordinal do número

Após a localização da região neuronal envolvida no aspecto cardinal do número,


Nieder voltou sua atenção para o processamento do aspecto ordinal do número. O aspecto
ordinal do número é mais complicado, pois envolve a apresentação um por um dos
elementos de um conjunto, os quais necessitam ser enumerados sucessivamente ao longo
do tempo.

161
Esse processo constitui um precursor não verbal da contagem real, a qual é um
processo de enumeração sequencial por meio de símbolos de números, ou seja, de
numerais. Numeral, recordemos, é qualquer signo capaz de representar um número. Se
esse signo é um sinal gráfico, temos então os numerais em seu sentido habitual: 1, 2, 3,
4,..., I, II, III, IV,.... Se esse signo é uma palavra, temos então os nomes para os números.
Humanos e animais, já era sabido, podem enumerar não verbalmente itens visuais
apresentados em sequência ao longo do tempo, ou rapidamente estimar o tamanho de um
conjunto espacial de pontos em um único relance. Porém, o mecanismo neuronal para a
determinação de numerosidades sequenciais difere do de senso numérico. Que o
processamento de informações numéricas envolvia o córtex parietal posterior, incluindo
o sulco interparietal, era conhecido. Porém, como informações numéricas extraídas de
apresentações numéricas espacial e temporalmente arranjadas eram combinadas a nível
neuronal permanecia um mistério.
Estudos realizados por Nieder em 2006, empregando macacos, provaram que
diferentes populações de neurônios do estão envolvidas na extração de numerosidades
através de arranjos espaciais e temporais durante um processo de quantificação em
andamento. Além disso, um terceiro grupo de neurônios é envolvido na quantificação do
resultado final do processo. Assim, a determinação da numerosidade intermediária de um
processo de quantificação em andamento e o arquivamento da cardinalidade final são
funções realizadas por populações neuronais diferentes.
Os estudos apontaram que as pausas entre as apresentações sucessivas dos itens
individuais constituem um mecanismo chave para a codificação de numerosidades
sequenciais.
Para muitos neurônios, constata Nieder, as mudanças de ativação durante as pausas
são algumas vezes mais proeminentes que durante a apresentação dos itens sucessivos.
Nesses neurônios, afirma, a ativação devida à apresentação de cada item parece disparar
descargas sempre crescentes, o que parece apontar para um mecanismo de acumulação,
que armazena os totais parciais. A enumeração de itens apresentados sequencialmente
requer um mecanismo biológico capaz de manter o registro da posição do item
apresentado previamente, um acumulador vivo.
Esses mecanismos de acumulação biológicos podem desempenhar papel
extremamente importante para compreensão dos processos matemáticos, de como a
matemática opera, pois são fundamentais para a contagem, para a noção de sucessor, bem
como para a geração de conjuntos infinitos, como veremos na sequência.

162
Estudos neurofisiológicos e eletrofisiológicos realizados em seres humanos
sugerem igualmente que processos diferentes são envolvidos no julgamento de
cardinalidades (quantidades numéricas), quando opostas a ordinalidades (posição serial),
mas com uma ativação comum do córtex parietal e do córtex pré-frontal.
Os estudos sugerem que neurônios dos córtices parietal posterior e pré-frontal são
conectados para formar uma única rede neural funcional, destinada à representação de
informações numéricas através do espaço e do tempo.
É interessante notar a importância funcional das pausas na enumeração sequencial
não verbal. Isso pode propiciar importantes pistas em processos que envolvam tais
enumerações.
Portanto, considera-se hoje bem estabelecido que humanos e outros animais
representam não verbalmente valores numéricos empregando um processo cognitivo
comum, com uma longa origem evolucionária. Desse modo, símbolos discretos, tais
como os numerais indo-arábicos (1, 2, 3,...) ou palavras para números (um, dois,...;
primeiro, segundo,...), não constituem a única rota para conceitos numéricos, pois tanto
humanos como não humanos podem representar números aproximadamente em um
código não-verbal (Cantlon, 2015).

Aritmética Animal

Após o reconhecimento da existência de um processo cognitivo numérico, não-


verbal, não simbólico, comum aos humanos e a outros seus companheiros do reino
animal, passou-se a investigar se também podia haver uma aritmética animal, comum a
eles.
Os mecanismos paralelos para a discriminação de números em humanos e em
várias espécies animais não-humanas implicam na existência de um sistema muito antigo,
produto de extensa evolução, para a representação de números. Nesse sistema a
representação numérica assume um formato dotado de magnitudes analógicas, onde
representações de valores numéricos são proporcionais às numerosidades que
representam. O mecanismo dessa formatação analógica ainda não é conhecido. Porém,
uma vantagem primordial na representação de números em formatos analógicos reside
em que essas representações podem entrar em operações aritméticas tais como seriação e
adição.
Em 2003 Whalsh sugeriu a ideia da existência entre animais de um sistema
comum de magnitudes não simbólico para a estimativa de tempo, espaço e número, que

163
é conhecido na literatura como ATOM (A Theory Of Magnitude). Por exemplo, animais
como pombos e ratos são capazes de processar número e tempo simultaneamente;
primatas não humanos, como os macacos rhesus, empregam uma rede neural para
representar informações espaciais e temporais. Contudo, ainda não existem estudos
definitivos que tenham investigado mais que duas interações nas mesmas espécies, tais
como número-espaço, tempo-número, tempo-espaço.
Essa “Teoria de Magnitude”, observando que a numerosidade se correlaciona com
muitas propriedades contínuas, como tamanho e densidade, propõe que “numerosidade”
pode não existir como um fator independente, mas sim ser parte de um sistema mais geral
de magnitudes. Dessa forma, a ideia de um “senso numérico” daria origem a um “senso
de magnitudes”. Contudo, estudos por Anobile (2018) mostram que isso não ocorre, e
que provavelmente o mecanismo para percepção de numerosidade é inato e não parte de
um sistema mais geral de magnitudes.
Retornemos às nossas considerações sobre a aritmética animal. As operações
aritméticas, adições, subtrações, multiplicações e divisões, requerem transformações
mentais sobre valores numéricos. A adição é uma operação que envolve a combinação de
duas ou mais representações quantitativas (somandos) para formar uma nova
representação (a soma). A habilidade de combinar mentalmente representações é inerente
a muitos aspectos da cognição humana, incluindo linguagem e expressões matemáticas
simbólicas.
Operações aritméticas, como a adição e a subtração, são consideradas tarefas
complexas devido a que requerem tanto o uso da memória de curto como a de longo
prazo. A memória de curto prazo é empregada para operar os somandos, os valores
numéricos durante a operação, enquanto a de longo é empregada para arquivar as regras
para adição ou subtração, bem como resultados parciais.
Estudo por Howard (2019) mostraram que abelhas treinadas para responder a uma
pista simbólica (cor) podem adicionar ou subtrair um item de um conjunto de objetos, o
que mostra que são capazes de realizarem operações aritméticas simples. Seus estudos
mostram igualmente que abelhas também conseguem reconhecer e interpretar símbolos,
podem aprender a usar as cores amarelo e azul como representações simbólicas para a
adição e a subtração. Como têm um cérebro minúsculo, contendo apenas
aproximadamente um milhão de neurônios, e estão separadas dos humanos por mais de
400 milhões de anos de evolução, isso mostra que cognições numéricas podem estar
acessíveis a animais não humanos muito antes do que se suspeitava.

164
Investigações recentes foram dirigidas para pesquisar se humanos e animais não
humanos compartilham uma aritmética não verbal.
Diversos estudos proveram evidências convincentes que humanos adultos, sem
contarem verbalmente, podem apontar a soma aproximada de dois ou mais conjuntos.
Assim, adultos que tem a capacidade de efetuar operações aritméticas simbólicas precisas
também têm a capacidade de executar adições aproximadas de quantidades não
simbólicas.
Jessica Cantlon e Elizabeth Brannon (2007) conduziram testes visando avaliar a
capacidade de macacos e de adultos humanos (estudantes universitários dos primeiros
anos de graduação - college students) de executarem adições não verbais aproximadas.
Além de constatarem que macacos também podem realizar adições mentais, notaram uma
similaridade qualitativa notável entre as capacidades dos macacos e dos humanos de
efetuar tais operações. Logo, humanos e primatas parecem compartilhar de um sistema
cognitivo inato para aritmética não-verbal básica, que parece refletir um elo evolucionário
entre seus sistemas cognitivos. O mecanismo preciso, a nível neural, de como humanos e
macacos executam adições não verbais ainda é desconhecido.
Embora seja impossível discernir com precisão as funções para que essa aritmética
animal possa ter sido necessária em nosso passado evolucionário, podemos aventar
algumas hipóteses sobre isso, por exemplo, em disputas territoriais com grupos
desconhecidos ou na escolha de um grupo maior de alimentos nas atividades de
forrageamento, estratégias ligadas à sobrevivência. Cantlon e Brannon (2007) concluem
assim seus estudos:

...quando macacos selecionam a soma de dois conjuntos de pontos, eles baseiam suas
decisões em uma representação (a soma) que eles geram mentalmente combinando duas
representações numéricas existentes (os somandos). A habilidade para combinar
representações é uma capacidade que humanos invocam regularmente para resolver
problemas cognitivos e especialmente produzir expressões matemáticas simbólicas.
Nossos resultados demonstram que, como os humanos, macacos são capazes de combinar
representações mentais de valores numéricos para resolverem problemas. Realmente, a
similaridade qualitativa entre o desempenho de macacos e de humanos nas tarefas de
adição não-verbal é evidência de que eles computam aritmética não-verbal simples muito
da mesma maneira.

Cientistas italianos, narra a psicóloga Rosa Rugani (2013), conseguiram mostrar


que pintinhos (frango doméstico, gallus gallus) com cinco dias de idade eram capazes de

165
fazer operações como "1 + 1" ou "3 - 2", quando eram introduzidos em caixas com
bolinhas de plástico amarelo que confundiam com outros indivíduos iguais a eles.
Em 1991 Deahene e Changeux propuseram um modelo de rede neural para o teste
psicológico clássico para avaliação neurológica conhecido como Wisconsin Card Sorting
Test. Ele é aplicado para se avaliar problemas de disfunções no lóbulo frontal do cérebro.
Inicia-se esse teste apresentando-se um conjunto de cartões estimuladores ao
participante. As formas dos cartões são diferentes em desenho, cor e quantidade. O
administrador do teste decide se os cartões devem ser emparelhados por desenho, cor ou
quantidade. É dado então ao participante um conjunto de cartões que devem ser
emparelhados com os cartões estimuladores, formando pilhas separadas de cartões para
cada combinação. Não se indica ao participante como os cartões devem ser emparelhados,
todavia lhe é dito se um dado emparelhamento está certo ou não. Durante o teste, as regras
de emparelhamento são mudadas, registrando-se o tempo que o participante leva para
aprender as novas regras, os erros cometidos durante este teste de aprendizagem então
são analisados para se chegar a um resultado.

O primeiro conceito matemático identificado a nível neuronal

Contudo, até 2009 o conjunto de neurônios responsável por qualquer uma


operação matemática não tinha sido identificado. Em 2010, Sylvia Bongard e Andreas
Nieder comunicaram que seus estudos mostraram que regras matemáticas básicas são
codificadas em primatas por neurônios do córtex pré-frontal, pela primeira vez na história
determinando, a nível de grupos de neurônios específicos, onde no cérebro uma
determinada operação matemática é realizada.
Como os princípios matemáticos operam em categorias muito abstratas (p.ex.,
quantidades, números) ao invés de estímulos sensoriais, elas requerem um alto grau de
estruturação interna do cérebro. Para investigar isso, eles mediram as atividades de
neurônios individuais do córtex pré-frontal lateral de macacos rhesus, treinados para
comparar o tamanho (numerosidade) de dois conjuntos e escolher entre duas regras
matemáticas: “maior que “>” e menor que “<”, a que os ordena relativamente. As regras
maior que > e menor que < são fundamentais em matemática, pois permitem a ordenação
e a seriação de conjuntos. Além de sua importância matemática, são primordiais para a
sobrevivência das espécies.

166
Mediram a atividade de 484 neurônios individuais nos córtices pré-frontais
laterais dos animais, em ambos os lados dos sulcos principais, enquanto os dois macacos
participantes das experiências escolhiam entre as regras maior e menor que. É uma
experiência que só poderia ser executada em animais, pois não é eticamente possível
implantar eletrodos em neurônios individuais de cérebros humanos, a não ser em casos
excepcionais, o que torna difícil o estudo dessas atividades em nossa espécie.
Bongard e Nieder determinaram que o aspecto semântico das quantidades
numéricas é representado por neurônios em uma rede neural cortical, principalmente no
fundo (fundus) do sulco interparietal. Sabia-se que neurônios desse fundus e do córtex
pré-frontal de macacos codificam numerosidades obtidas por meio de impressões visuais,
memorizando-as durante períodos de espera. Por meio de imagens funcionais (fMRI)
determinou-se que esses mesmos sítios são ativados em humanos na detecção de
numerosidades não simbólicas e de informações numéricas.
Embora o fundus do sulco interparietal (IPS) seja o primeiro sítio cortical onde
quantidades numéricas são extraídas de dados sensoriais, essas quantidades necessitam
ser processadas posteriormente, mediante a integração de diferentes fontes de informação
internas e externas, de modo a possibilitar o controle de ações comportamentais.
Esses autores sugerem que os neurônios do córtex pré-frontal estão na posição
ideal para implementar as estratégias abstratas requeridas pelas operações matemáticas
básicas. Desse modo, o locus, ou parte dele, responsável pelo menos por parcela da
matemática animal estaria identificado, o que é uma descoberta notável.
O córtex pré-frontal, é sabido, está engajado durante o processamento das
operações aritméticas em humanos e, quando danificado, surgem deficiências no
raciocínio com quantidades.
Seus estudos mostraram que os neurônios do córtex pré-frontal têm um
comportamento similar ao previsto pelo modelo de redes neurais proposto por Deahene e
Changeux para o teste neurológico clássico Wisconsin Card Sorting Test, o que pode
indicar o rumo para investigações posteriores.
Moskaleva e Nieder (2014) mostraram que as áreas 45/46 de Broadmann do córtex
pré-frontal lateral de macacos, que nunca foram treinados para manipularam
numerosidades, são capazes de fazê-lo. Argumentam que neurônios selecionadores de
numerosidades visuais podem se desenvolver espontaneamente e naturalmente, dentro
das estruturas visuais neurais do cérebro de primatas, mesmo antes de que eles aprendam
como usar essas informações em tarefas arbitrárias. Concluem que, ao contrário de

167
categorias que são aprendidas, a numerosidade é uma categoria natural que pode possuir
uma posição privilegiada no cérebro primata.
Pesquisas futuras em diferentes regiões corticais e subcorticais provavelmente
ajudarão a esclarecer a rede completa das regiões cerebrais envolvidas nas habilidades
matemáticas básicas.

A lei de Weber-Fechner

Ernest Heinrich Weber (1795-1878) foi precursor em quantificar o modo de como


um ser humano responde a um estímulo físico. A Lei que leva seu nome (Lei de Weber)
estabelece que uma diferença noticiável entre dois estímulos é proporcional à magnitude
dos estímulos. Gustav Theodor Fechner (1801-1887) aperfeiçoou a Lei de Weber,
estabelecendo que a sensação subjetiva é proporcional ao logaritmo da intensidade do
estímulo.
Essa relação pode ser descrita pela equação diferencial = , onde dp é o

acréscimo diferencial na percepção, ds é o acréscimo diferencial no estímulo e S é o


estímulo em um dado instante. A constante de proporcionalidade k deve ser determinada
experimentalmente. Integrando essa equação, obtemos por solução = + , onde
ln denota o logaritmo neperiano (natural) de S e C é uma constante de integração.
Para encontrarmos o valor de C, coloquemos p = 0, isto é, consideremos no
instante inicial a ausência de percepções, obtendo daí = − ln , valor este que
substituído na solução obtida e empregando as propriedades dos logaritmos conduz à =
ln , o que mostra que a relação entre estímulo e percepção é logarítmica.

Uma consequência da Lei de Weber-Fechner é que a habilidade para discriminar


entre dois valores de estímulo depende mais na sua razão do que dos seus valores
absolutos. Essa fração, conhecida como fração de Weber, relaciona S, um estímulo em
um instante considerado, com S0, um estímulo inicial. Portanto, a sensação subjetiva é
proporcional à fração , ou melhor, ao logaritmo dessa fração. Desse modo, a sensação

subjetiva é a mesma para frações como 12:8 ou 45:30, pois sua razão é a mesma: 1,5;
independente dos valores absolutos.

168
O modelo logarítmico assume uma escala logarítmica, isto é, distribuições
desiguais entre numerosidades, sendo a distância representacional mais baixa maior
enquanto a magnitude cresce.

Fig. 4.8.1 Escala Logarítmica.

Uma régua de cálculo tem escalas logarítmicas, e nomogramas empregam


frequentemente escalas logarítmicas.
Cantlon e Brannon (2006) estavam interessadas em saber se havia um limite na
capacidade numérica dos macacos, pois os estudos até então processados não passavam
de 10 como limite superior. Mostraram que macacos rhesus que aprenderam os valores
de 1 a 9 podiam estender além sua capacidade, para valores como 10, 15, 20 e 30, o que
sugere não haver um limite superior na sua capacidade numérica.
Isso implica em que macacos representam valores tão grandes como 30 como
magnitudes mentais, bem como em que essa capacidade repousa em processos de
comparação, que são controlado pela Lei de Weber-Fechner. Isso pode talvez explicar
porque caçadores coletores, como os Mundurucu, podem operar com numerosidades
muito maiores, do que o seu limitado número de palavras para números,
Em seguida, repetiram as experiências com humanos, chegando à conclusão que
a similaridade entre os seus desempenhos mostra uma forte evidência da existência de um
mecanismo evolucionário primitivo, não-verbal, para a comparação e a representação de
valores numéricos. Parece, tanto para macacos como para humanos, não haver um limite
numérico superior nessa capacidade.
Bebês com apenas 50 horas de idade já discriminam numerosidades (Kutter,
2018). A experiência parece ser um fator crítico para o refinamento da sensibilidade
numérica no desenvolvimento inicial dos humanos, pois, de fato, bebês entre 6 a 8 meses
de idade progridem rapidamente, de discriminarem inicialmente uma razão 1:2 (por
exemplo, entre 4 e 8) para discriminarem valores com uma razão de 2:3 (p.ex., 8:12). O
mesmo parece acontecer na infância e na adolescência, o que permite supor que a
169
experiência influi na sensibilidade numérica durante toda a vida. As frações de Weber
correspondentes seriam 2/1 = 2 e 3/2 = 1,5, o que ilustra como a percepção diminui com
o aumento da distância numérica (efeito distância).
Limites nessa intuição inicial são percebidos quando a criança ao redor dos 2,5 a
4 anos de idade começa a aprender os nomes dos números. Por um longo período, a
criança sabe o significado da palavra um, por exemplo, associando-a a um único objeto,
uma boneca ou bola, mas não o significado de outros números, dois ou três.
Lentamente aprende a conectar os nomes dos números: um, dois, três, quatro às
quantidades correspondentes, uma a uma, até que de repente entende que cada nome de
número corresponde a uma quantidade. Pode ser necessário mais seis meses para entender
que palavras para números maiores, como seis, oito ou dez, correspondem a outras
quantidades, iniciando assim a compreender relações de ordem.
Somente aos cinco anos ela entende que uma palavra como sete se aplica a um
conjunto, mesmo que seus elementos sejam embaralhados, mas que não se aplica a esse
conjunto se ele é acrescido ou diminuído de um elemento, ou mesmo dobrado ou dividido
ao meio.
Cumpre observar que os mecanismos neurológicos de como a criança desenvolve
o conceito de unidade são desconhecidos. Não sabemos como o cérebro constrói a
unidade, o número um. O que se conhece são as constatações temporais mencionadas,
percebidas pela psicologia.
Daniel Ansari (et alii, 2005) mostrou que redes neurais que executam o
processamento simbólico de números sofrem mudanças em seu desenvolvimento entre as
idades de 9 e 20 anos, nos seres humanos. Essas mudanças parecem envolver uma
mudança de um forte envolvimento das áreas frontais direitas para um engajamento
crescente das regiões intraparietal e parietal posterior (Ansari, 2005).
Aparentemente, resultados similares também se verificam para a aritmética mental.
Essa mudança ontogenética pode refletir um aumento na flexibilidade do mapeamento
entre os numerais arábicos e as quantidades que eles representam.
Como essa é a idade escolar, esses resultados mostram que o cérebro responde à
exposição crescente da matemática simbólica, incrementando sua flexibilidade no
tratamento numérico. Tal automaticidade aumentada passa a requerer menor
recrutamento das áreas frontais, normalmente associadas com atenção, memória
operacional e funções executivas.

170
Dominar uma nova habilidade, mediante o aprendizado, induz a modificações
químicas em neurônios, as quais resultam em transmissões mais fortes ou fracas nas
sinapses. Um bebê, como é sabido, principia sua vida com um crescimento grande e denso
de sinapses.
O seu cérebro constrói as conexões corretas durantes intervalos de intenso
desenvolvimento, que podem durar meses ou anos, que são conhecidos como períodos
críticos. A maioria desses períodos ocorre durante a infância, contudo alguns podem
chegar mesmo tardiamente, durante a adolescência. Tais períodos permitem a modelagem
e a formatação das conexões neurais, o que é conhecido como plasticidade.
Esses estágios formativos foram descobertos há mais de 50 anos, sendo que Torsten
Wiesel e David Hubel receberam o Prêmio Nobel por parte do trabalho em 1981. Já foram
identificados pelos neurocientistas períodos críticos para a visão, a audição, a linguagem
e diversas formas de interação social.
O conhecimento crescente sobre as moléculas que principiam e finalizam esses
períodos, permitiu aos cientistas desenvolverem algum controle sobre os mesmos,
mediante compostos químicos, restaurando a plasticidade até mesmo na idade adulta (cf.
Hensh, 2016). Essas pesquisas no futuro provavelmente conduzirão a aperfeiçoamentos
na compreensão e na melhoria do desempenho dos mecanismos de aprendizado.
Como o córtex frontal está implicado em muitos processos cognitivos, como
atenção e resposta seletiva, o incremento das funções associadas com processamento
simbólico numérico pode também ser reflexo da maturação de outras funções cognitivas
associadas ao córtex parietal que contribuem para a melhoria no desempenho de tarefas.
Uma questão interessante está no processamento de números multi-dígitos, cujo
funcionamento neural ainda é pouco conhecido. Krizinger (2010) argui em favor de que
ele é fortemente influenciado por habilidades gerais visuais-espaciais, conectadas com o
sistema posicional de dígitos, sejam eles arábicos ou outros.
Lembramos que, historicamente, o sistema numérico posicional está diretamente
ligado às posições das colunas no ábaco, as quais representam as potências da base
empregada no sistema de numeração. O sistema posicional foi inventado pelos
sumerianos, provavelmente antes da terceira dinastia de Ur (Ur III, c. 2050 a.C.), algo
entre 2500-2200 a.C., e cuja base era sexagesimal (Almeida, 2011).

171
Palavras para números seguem a Lei de Weber-Fechner

Palavras para números, ou seja, seus nomes, são símbolos para números, portanto
seria razoável postular que o seu uso seguisse a Lei de Weber-Fechner. Rinaldi e Marelli
(2019) mostraram que o uso de palavras para números em uma linguagem natural, usual,
realmente obedece a essa Lei e se fundamenta em um pré-verbal ANS.

A aderência a essa Lei foi verificada em várias línguas, tais como o inglês, alemão,
holandês, hindi, italiano, francês, chinês e russo. Desse modo, a diferença no modo em
que nós falamos acerca de dois e quatro na linguagem cotidiana é o muito similar à
diferença na maneira com que falamos entre quatro e oito, pois a razão subentendida entre
essas palavras é a mesmo, i.e., 0,5.

Como o emprego de palavras para números, numerais, repousa em um ANS,


numerais expressando números pequenos são mais precisamente empregados do que
numerais que denotam números maiores. Por isso, o modo com que palavras para
números são usadas na produção da linguagem é similar ao modo com que humanos
processam quantidades simbólicas e não simbólicas. O uso dessas palavras está, portanto,
associado com as distâncias numéricas entre as quantidades associadas, isto é, o efeito
distância.

A organização do ANS se reflete na linguagem por causa da posição deste sistema


tanto na hierarquia dos processos cognitivos como na escala evolucionária temporal.
Desse modo, o ANS pode servir como fundação para o processamento simbólico
numérico e obviamente surgiu mais cedo na evolução quando comparado com a
capacidade de se atribuir símbolos para números.

Neurônios que codificam números

Em importante estudo realizado em 2018 Kutter & Nieder et al. mostraram como
neurônios únicos no lobo temporal mediano (MTL) codificam informações numéricas.
Também demonstraram que numerosidades e numerais abstratos (símbolos) são
codificados por populações neuronais distintas. Já representações e numerosidades
apresentam um efeito distância, enquanto numerais são codificados categoricamente.
As habilidades específicas do homem de operar números simbólicos que sustentam
tanto a ciência como a tecnologia atuais, se originam de representações não simbólicas
de numerosidades. Apesar da importância da competência numérica, seus mecanismos no
cérebro humano, ao nível de um único neurônio, são desconhecidos.

172
Embora áreas dos córtices pré-frontal e parietal são conhecidas como as mais
importantes para o processamento de números simbólicos e não simbólicos, as
investigações, devido ás condicionantes da pesquisa, restringiram-se a áreas do lobo
temporal médio (MTL), também envolvidas nesse processamento. A ampla rede
numérica cortical também incorpora áreas do MTL, tais como hipocampo, o córtex
hipocampal, o córtex entorhinal e a amigdala. O MTL compreende áreas do cérebro que
são direta e reciprocamente ligadas com a rede numérica frontal, bem como é sabido que
neurônios do MTL humano são conhecidos por sua seletividade de categorias abstratas.
O grupo de pesquisa, empregou grupos de microeletrodos no lobo temporal médio
(MTL) de pacientes recém operados. Registraram as ativações de 585 neurônios únicos
no lobo temporal medial (153 na amígdala, 126 córtex parahipocampal, 107 no córtex
entorrhinal córtex, e 199 no hipocampo) de nove seres humanos que realizavam tarefas
de cálculo.
Descobriram que grupos distintos de neurônios representam ou números não
simbólicos ou números simbólicos, mas não ambos formatos de número
simultaneamente.
A maior fração de neurônios dedicados a numerosidades, ou seja, não simbólicos,
no MTL foram encontrados no córtex parahipocampal (29%), seguido pelo hipocampo
(18%). A preferência dos neurônios seletivos cobriu toda a gama testada de
numerosidades, embora com a maioria dos neurônios preferindo numerosidade ''cinco'',
o que é interessante.
Quando os participantes calculavam com números arábicos, a maior fração de
neurônios seletivos a representações simbólicas no MTL foi novamente encontrada no
córtex parahipocampal (6%), seguidos pela amigdala (4%). Seis neurônios apresentaram
atividade de processamento simbólico, apenas 1% de todos os neurônios envolvidos no
teste, contudo um resultado muito significativo quando comparado com o número de
neurônios que não apresentaram seletividade.

173
Fig. 4.9 Região de maior concentração de neurônios seletivos para numerosidades: giro
temporal médio (MTL); giro e córtex parahipocampal; formação hipocampal (hipocampo) .
Fonte: http://anatpat.unicamp.br/bineucerebrocoronalindice.html#indexalfa

Esses dados sugerem duas descobertas principais no nível neuronal. Primeiro, a


representação dos números não simbólicos é abundante e comparável à rede de
numerosidades de primatas não-humanos (Nieder et al., 2002, 2006; Nieder e Miller,
2004), enquanto que a representação de números simbólicos é escassa no MTL. Em
segundo lugar, os neurônios que respondem tanto a formatos não-simbólicos como
simbólicos são raramente eram encontrados, o que sugere uma compartimentação das
representações.
Esses achados sugerem que símbolos para números adquirem seu significado
numérico quando ligados a numerosidades durante seu desenvolvimento cognitivo
evolutivo. Isso está de acordo com o pensamento de Damerow e dos autores, sobre a
necessidade de se contextualizar o desenvolvimento cognitivo numérico dentro da
história evolutiva da humanidade. Dai, sublinhamos novamente, a importância do estudo
tanto da Pré-história como da História da Matemática. (Almeida, 2009, 2011, 2017,
2019).
Nieder, em 2019, baseado nesses achados, propôs que a competência numérica em
humanos é resultado de três condicionantes neurais. A primeira, que os mecanismos de
estimação de quantidades são parte de nossa herança evolucionária e podem ser
testemunhados pela filogenia dos vertebrados e dos macacos. A segunda, que um
conhecimento básico de número, que simboliza uma quantidade, é inatamente conectado
no cérebro e dá origem ao senso numérico. A terceira, que ao contagem simbólica e a
aritmética estão enraizadas em um sistema neural primevo, determinado pela evolução.

174
Essas três condicionantes neurais conjuntamente determinam o processamento básico de
números na mente humana. (Nieder, 2019).

Neurônios e regras das operações aritméticas

As operações aritméticas de vem obedecer a determinadas regras, por exemplo,


primeiro executar as operações entre parêntesis, depois os expoentes, em seguida as
multiplicações e divisões e por último as somas e subtrações.
Depois que quantidades foram extraídas dos inputs sensoriais e mantidas na
memória a curto prazo, os números precisam ser processados segundo determinadas
regras ou princípios gerais. Regras podem ser entendidas como formas subjuntivas, tais
como afirmações condicionais “se-então”, que determinam a lógica para se realizar certa
tarefa. São cruciais para a aritmética e constituem a sintática da matemática.
Regras como “maior que: >”; “menor que: <” podem ser aplicadas tanto para
números como magnitudes. Nieder (2016) sugere que poderiam existir “regras gerais de
magnitudes”, tais como essa, complementares às regras aplicadas a magnitudes
individuais.
Estudos com macacos indicam a existência de “neurônios generalistas”, capazes de
aplicarem regras gerais a mais de uma magnitude diferente. Esses neurônios generalistas
forneceriam uma vantagem computacional se comparada com neurônios especializados e
poderiam operar em uma hierarquia funcional mais elevada, que permitiria
generalizações e adaptações de regras quantitativas a novas circunstâncias.
Durante problemas matemáticos um conjunto limitado de neurônios necessita ser
capaz de resolver diversas tarefas ao longo do tempo, bem como atender a tarefas
diversas. Desse modo, a atividade cerebral precisa ser altamente dinâmica e esses
neurônios devem se adaptar para trocar entre diferentes codificações.
Mesmo neurônios do córtex préfrontal que sinalizam números, cardinalidades,
quando necessário muitos deles podem dinamicamente mudar para codificarem funções
de controle cognitivo, tais como decisões baseadas em regras.
De acordo com Nieder (2016) esse mecanismo poderia eventualmente explicar
como regras matemáticas podem ser interpretadas pelo cérebro. Contudo, cabe um caveat.
Muitos outros processos cognitivos podem estar eventualmente envolvidos no
processamento dessas regras, e todo o processo é altamente complexo e pouco conhecido.

175
Multiplicação

As operações aritméticas são aprendidas durante a infância em três estágios. No


primeiro estágio, a criança necessita adquirir conceitos de procedimentos, isto é, de regras
de como efetuar operações aritméticas. Isso significa que conceitos como soma,
multiplicação e procedimentos para a manipulação de magnitudes necessitam ser
aprendidos e praticados. É útil que a criança desenvolva uma compreensão do conceito
de multiplicação e praticar procedimentos para a manipulação de magnitudes antes de
memorizar as tabuadas.
Em um segundo estágio, intermediário, estratégias para a lembrança de fatos são
desenvolvidas. Por exemplo, um problema é relacionado com outro problema para
resolver uma dada tarefa: e.g., para encontrar 5 x 6, a criança lembra que 5 x 5 = 25, então
5 x 6 = 30, ou seja 5 a mais que 25. Nesse estágio, tanto a lembrança de fatos por meio
da memória de longo prazo como a manipulação de magnitudes ocorrem.
No terceiro estágio, problemas podem ser resolvidos apelando-se simplesmente à
memória de longo prazo. Nesse caso, a criança já decorou previamente as tabuadas, que
então estão armazenadas na memória de longo prazo, e simplesmente recorda que 5 x6
perfazem 30.
Bloechle (et. al.) realizaram uma pesquisa em 2016 empregando imagens de fMRI
em voluntários que realizavam mentalmente multiplicações difíceis (e.g., 36 x 8) durante
o estudo. Estudos anteriores mostraram que durante problemas de multiplicação ocorria
uma ativação mais intensa da rede fronto-parietal de processamento numérico, como no
giro frontal inferior e no sulco intraparietal (IPS). Contudo, o papel do giro angular
esquerdo é debatido.
O giro angular esquerdo é recrutado especificamente quando um problema
aritmético pode ser resolvido pela lembrança de fatos de um memória de longo prazo, por
exemplo, da tabuada 5 x 6. Uma comparação direta de diferentes métodos de
aprendizagem (exercícios, repetições versus estratégias) parece corroborar o papel desse
giro na recordação de fatos aritméticos.
Um fato importante, é que problemas de multiplicação quando treinados por
exercícios conduzem a um envolvimento maior do giro angular esquerdo do que
problemas treinados por estratégias. Isso conduz a recomendação determinante: o
treinamento por exercícios parece ser mais efetivo do que o de por estratégias na
consolidação das redes neurais envolvidas na aritmética (Bloechle, 2016).

176
Todavia, outras estruturas relacionadas com a memória de longo prazo, tais como o
hipocampo, o parahipocampo e o córtex retroesplenial começam a ser estudadas para a
elucidação de seu papel no aprendizado numérico.

Remates

Muito se tem debatido presentemente entre os pesquisadores sobre se o senso


numérico (numerosidades) é uma capacidade inata, independente, ou se ele faz parte de
um sistema mais geral de avaliação de magnitudes.
Aparentemente, o estado atual das pesquisas parece indicar que o senso numérico
realmente é inato e desvinculado de um possível sistema geral de contemplação de
magnitudes. É uma propriedade de per si, tanto do nosso cérebro como também do de
outros animais, produto de talvez milhões de anos de evolução.
Provavelmente foi condicionado como fator importante para a sobrevivência das
espécies, como bem observou D’Ambrosio.

177
CAPÍTULO V

NÚMEROS RACIONAIS

Deus nos deu os números inteiros,


todo o resto é obra do homem.
Kronecker
Introdução

Neste Capítulo tornar-se-á evidente como as lições da Pré-História e da História


da Matemática podem contribuir para que possamos compreender como os processos
mentais que regem esta disciplina evoluíram ao longo da trajetória da humanidade.
Em matemática, um número racional é todo número que pode ser representado
por uma razão ou fração de dois números inteiros, um numerador a e um denominador

não nulo b. Pode-se considerar que todos os números inteiros também são racionais,
bastando tomar b igual a 1.
O vocábulo “racional”, em matemática, nada tem a ver com pensamento racional,
mas sim com “razão” (do latim ratio, razão, divisão, no sentido de calcular a
comparação/relação entre duas grandezas).

Fundamentação Matemática Moderna do Conceito de Número

Graças aos trabalhos de Julius Wilhelm Richard Dedekind (1831-1916), Friedrich


Ludwig Gottlob Frege (1848-1925) e de Giuseppe Peano (1858-1932) temos hoje uma
sólida fundamentação do conceito de número, especialmente de número natural, que é
primordial para a Matemática. Embora complementares, as visões de Frege e de Peano-
Dedekind diferem em seus fundamentos.
Os números naturais são aqueles empregados em contagens, ou seja, os inteiros
positivos; o zero, historicamente, não pode ser considerado um número natural, nenhum
primitivo começa contar: zero, um, dois, três,... Somente muito mais tarde na história das
humanidade, o zero foi incluído como um número natural e em alguns contextos.
Em 1879, Frege propôs uma definição de “número cardinal” que, mais tarde, em
1901, foi independentemente proposta por Bertrand Russel. Para isso, necessitamos
conhecer a noção de equipotência entre dois conjuntos. Dois conjuntos são denominados
de equipotentes se é possível estabelecer uma correspondência um-a-um (ou biunívoca)
entre seus elementos. A noção de correspondência um-a-um é considerada um conceito
primitivo.

178
Desse modo, a definição de Frege-Russel estabelece: o número cardinal de um
conjunto S é a classe de todos os conjuntos equipotentes a S. Logo, o número cardinal 2
seria a classe de todos os pares, e dizer que um conjunto S “tem dois elementos” significa
apenas afirmar que seu “número cardinal é 2”, e vice-versa. O âmago dessa concepção
reside, portanto, na noção primitiva de “correspondência um-a-um”.
Analisando (cf. Heck, 1999) a proposta de Frege-Russel observamos que ela
repousa sobre duas asserções fundamentais:

1) O número (cardinal de um conjunto S) é ...: [ou, N é o número de...]


Essa afirmação é um predicado extra-lógico, significa nominar algo, associar um símbolo
a alguma coisa. O problema com essa afirmação é que ela emprega o conceito de
“número” sem esclarecer o que ele é; contudo, foi a solução que Frege encontrou. Nesse
caso, como já se argumentou, “número” poderia ser qualquer coisa, César, por exemplo,
poderia ser um “número”.
2) a classe de todos os conjuntos equipotentes a S.
O que é um axioma não-lógico, fundamentado da noção primitiva de correspondência
um-a-um entre todos os conjuntos considerados.

Por exemplo, pode-se estabelecer uma correspondência um-a-um entre as letras F


e G de um alfabeto, ou entre o número de facas (F) e garfos (G) colocados em uma mesa,
desde que não sobre ou falte alguma. Contudo, muitos estudiosos lembram a necessidade
de se recorrer ao princípio de Hume, que afirma algo como: “o número de F´s é o mesmo
número dos G´s”.
Porém, argui-se que encontramos aí o mesmo problema: quando se estatui “o
número de ...” faz-se uso do conceito de “número” como uma entidade primitiva.
Frege forneceu então um teorema, conhecido como Teorema de Frege, que
fundamentou toda sua concepção de números cardinais, que pode ser formulado como:
“o número de F´s é o mesmo que o número dos G’s se e somente se os F’s estão em uma
correspondência um-a-um com os G’s”.
Cabe notar, do ponto de vista da Pré-História da Matemática, a importância da
afirmação “o número é...”, a qual nada mais é do que dar nome a alguma coisa, nominá-
la, e após isso ela passa a existir. O mesmo acontece com as definições matemáticas,
objetos matemáticos passam a “existir” por força da sua definição. Lembramos, portanto,
a crucialidade da doutrina do nome sob o ponto de vista histórico, seguindo a qual alguma
coisa passa a existir após receber um nome (cf. Almeida, 2009, 2017).
179
Já a fundamentação proposta por Peano e Dedekind, reside nas noções primitivas
de: número (natural), unidade e da relação de “sucessor”. Ela também inclui uma noção
não lógica primitiva, extra-matemática, o princípio da recorrência ou da indução
completa, que permite a geração de uma sequencia infinita de números naturais. Os
postulados de Peano podem ser enunciados como segue:

1) 1 é um número natural;
2) todo número natural possui um e apenas um sucessor (o sucessor de x será representado
por x´);
3) 1 não é sucessor de nenhum número natural;
4) se x e y forem números naturais e se x´= y´, então x = y;
5) se 1 possui a propriedade P e se um número natural n qualquer também possuir P
acarretar que n´ também possuir P, então todo número natural possui P (princípio da
recorrência ou da indução completa).

Do mesmo modo do que a concepção de Frege, a de Peano também não esclarece


o que é um “número”, para ela também é um conceito primitivo. Insistimos nesse ponto
porque ele é muito importante para que venhamos a entender a neurofisiologia da
matemática, ou seja, como o cérebro processa o que denominamos de “número”. Seria
“número” uma “magnitude mental”? Ou uma representação mental criada por uma rede
neuronal?
Isso levanta a importante questão: quão “primitivos” realmente são os “conceitos
primitivos”, aceitos sem discussão? Qual a correlação entre eles e os mecanismos
neurofisiológicos que os compreendem e manipulam? Esse ponto essencial já tinha sido
levantado por Poincaré em sua disputa com Hilbert acerca dos fundamentos da escola
formalista axiomática, a qual aceita determinados axiomas sem mostrar como e de onde
eles se originam.
Nos primórdios da psicologia desenvolvimentista os psicólogos estavam em contato
direto com matemáticos que trabalhavam com os fundamentos da matemática. Karl e
Charlotte Bühler participavam de discussões no Círculo de Viena, que incluía nomes
como Rudolf Carnap, Kurt Göedel e Karl Menger. Os trabalhos de Piaget foram
profundamente influenciados pela escola francesa estruturalista de Bourbaki, o próprio
Piaget manteve discussões com Jean Dieudonné, um dos seus expoentes.

180
Em décadas recentes a psicologia, especialmente a desenvolvimentista, se afastou
dos trabalhos nos fundamentos da matemática, contudo, as recentes descobertas em
neurofisiologia da matemática tornaram importante uma reaproximação da psicologia
com os estudos sobre os fundamentos da matemática.
Portanto, essas duas concepções se baseiam em noções primitivas diferentes, as
quais podem originar distintas interpretações no estudo da evolução histórica do conceito
de número. A de Frege, que se baseia no princípio da cardinalidade de conjuntos, tem
ligações íntimas com as numerosidades. A de Peano, fortemente se apoia na ordenação,
na noção de sucessor. Ambas contribuem para compreensão dos números naturais de um
ponto de vista matematicamente maduro. Números, nas duas concepções, são tratados
como entidades abstratas, o que somente ocorreu em um estágio avançado da História da
Matemática, com os gregos.
Muito é discutido sobre o que é o “conceito de número”. Não há um entendimento
consensual, uma definição precisa do que seja esse “conceito”. Por exemplo, Wilder
(1965) considera que um “conceito de número” só se desenvolveu quando surgiram
símbolos escritos para números, atribuindo isso à matemática babilônica. Número, como
hoje é entendido, é uma entidade abstrata, portanto independente de qualquer vínculo, ou
material (numerais grafados) ou oral (nomes de números). Além disso, é produto de
processos neurofisiológicos imersos no cérebro humano.
De um ponto de vista histórico, poder-se-ia defender que um “conceito de número”
só surge quando começamos a empregar processos de contagem, de enumeração, embora
haja uma capacidade inata de avaliar numerosidades, pois somente a partir daí temos o
início de uma tradição contínua que culminou na nossa matemática.
Para uma narrativa minuciosa de como o conceito de número surgiu desde a Pré-
História, sugerimos a consulta de nossa obra “A Gênese do Número” - Os Neandertais
sabiam contar?28

A Geração dos Números Inteiros

No presente, parece haver um consenso de que há um sistema inato, não verbal,


que humanos, incluindo crianças, compartilham com animais desprovidos de fala, o qual
representa quantidades discretas e contínuas e suporta raciocínios aritméticos. Um

28
Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/330366857_A_Genese_do_Numero_-
_Os_Neandertais_sabiam_contar_The_Genesis_Of_The_Number-
The_Neanderthals_knew_how_to_count_2019

181
problema atualmente em pauta é: quais são os aspectos indispensáveis desse sistema pré-
verbal?
Um aspecto importante é se esse sistema opera analógica ou digitalmente.
Sistemas analógicos, como aparentemente são os sistemas neurofisiológicos, não
admitem a noção de igualdade exata, porque magnitudes mentais são imprecisas, vagas,
representam quantidades somente aproximadamente. Por exemplo, registram valores
como: 0,87; 2,03; 2,78, etc., dificilmente acusando valores inteiros exatos: 1; 2; 3;...; ou
seja, não são estruturalmente digitais. Porém, um número natural, tal como “1”, ou “um”,
refere-se a uma única quantidade exata e não a um intervalo de valores.
Os inteiros positivos são os números utilizados no processo de contagem. Quando
se conta, por exemplo, quatro coisas, intuitivamente admite-se que o valor cardinal
resultante dessa contagem deva ser exatamente igual ao valor da magnitude registrada no
cérebro para ela. Contudo, é difícil acreditar nessa intuição, pois se o cérebro representa
valores cardinais por meio de reais imprecisos dois valores exatamente iguais nunca
ocorrerão. Embora haja no presente fortes evidências da existência de um modelo análogo
de representação de magnitudes, que sustenta tanto o processo de contagem como outras
técnicas numéricas, a igualdade exata desafia esse modelo. Esse é o nó górdio com que
os cientistas cognitivos hoje se deparam.
Cientistas cognitivos propõem teorias sobre o assunto, que possam ser testadas
experimentalmente. Uma das mais recentes, proposta por Leslie, Gelman e Gallistel em
2008, se baseia nas seguintes assunções:

1) há ao menos um símbolo inato com um valor inteiro, UM = 1;


2) há uma regra recursiva inata, que associa a um número seu sucessor S(x) = x + UM;
3) a cada valor obtido no item anterior corresponde um valor em um mecanismo
acumulador inato; a diferença entre dois valores sucessivos acumulados neste
mecanismo é sempre igual a UM;
4) existe um mecanismo de inferência inato que permite a generalização, construindo-
se assim uma sequência ilimitada de inteiros.

Porém, essas assunções são conhecidas dos matemáticos há tempos, nada mais são
que a axiomática proposta por Peano nos fins do século XIX, associada ao princípio de
recorrência denominado de princípio de indução completa.
O cerne da questão reside em identificar no cérebro os mecanismos neuronais
responsáveis pelo processamento dessa sequência de axiomas, bem como os processos

182
cognitivos neurofisiológicos envolvidos. Não se conhece como o cérebro processa a
noção de “unidade”. Igualmente não se conhece esse mecanismo acumulador inato, e nem
se tem a menor ideia de como ele atuaria recursivamente. A simples sugestão da
existência de uma “memória episódica recursiva” não comprova sua realidade. Embora a
parte matemática pareça esclarecida, a parte biológica ainda é arcano enigma.
Atualmente os cientistas cognitivos acreditam que os humanos herdam dois
sistemas pré-verbais que apresentam conteúdo numérico. O primeiro, ao qual
denominamos de matemática animal, pode ser disponibilizado em qualquer tempo, trata
tipicamente com apenas três ou quatro objetos, raramente com poucos mais. O segundo
sistema é denominado de “sistema de magnitudes análogas” ou de “sistema de
numerosidade aproximadas”. Este sistema representa numerosidades como sintonizadas
aproximadamente com magnitudes internas sobre uma linha de números mental.
As crianças normalmente não têm problemas em identificar (contar) visualmente
conjuntos com até quatro elementos, contudo, o cerne do problema reside em como elas
podem contar a partir de quatro, sem disporem de palavras para os números seguintes, de
cinco em diante, mediante a regra recursiva S(x) = x + UM, de indução, se os nomes dos
números anda não lhes foram apresentados? Como podem contar conjuntos com esse
número superior de elementos quando lhes forem visualmente apresentados?
Lembramos a importância do poder do nome, segundo o qual uma coisa passa a
existir somente quando recebe um nome, ou um número, segundo os pitagóricos. Isso
constitui um forte argumento em prol dos defensores, entre os quais nos incluimos, de
que o estabelecimento de palavras para números é necessário para humanos
desenvolverem um conceito mais evoluído de número.
Os povos mais primitivos, caçadores-coletores, dispõem de um léxico numérico que
dificilmente ultrapassa quatro. Aparentemente, essa é fronteira numérica mínima
adequada à sobrevivência das espécies. A partir dessa fronteira o conceito de número
evolui, mediante influências culturais, forçado por exigências contextuais das mais
variadas naturezas, sejam elas econômicas, ambientais, ou outras.
O entendimento da unidade, da construção neural do número um, aparentemente
está firmemente correlacionado com os mecanismos neurais que envolvem as percepções
sensoriais, sejam elas tanto visuais como auditivas, ou mesmo táteis. Os animais
percebem sensorialmente unidades: um leão, uma fruta, etc., e também auditivamente:
um pio, um rugido, um guincho, etc. Essas “unidades sensoriais” são então informações

183
que geram inputs nos diversos sistemas sensoriais, propiciando então o que se poderia
denominar de “unidades perceptivas”.
A sensação refere-se ao processo de sentir o nosso meio ambiente através do tacto,
paladar, visão, audição e olfato. É realizada por meio de conjuntos de células
especializadas. Essa informação é enviada para os nossos cérebros, onde é processada.
Percepção é a nossa forma de interpretar essas sensações e, portanto, dar sentido a tudo
que nos cerca.
Todos os estímulos recebidos pelos diversos receptores sensoriais são transduzidos
para um potencial de ação, que é transportado ao longo de um ou mais neurônios aferentes
em direção a uma área específica do cérebro. Embora o termo córtex sensorial seja
frequentemente usado informalmente para se referir ao córtex somatosensorial29, o termo
se refere mais precisamente às múltiplas áreas do cérebro em que os sentidos são
recebidos para serem processados. Para os cinco sentidos tradicionais nos seres humanos,
isso inclui o córtex primário e o secundário dos diferentes sentidos: o córtex
somatosensorial, o córtex visual, o córtex auditivo, o córtex olfativo primário e o córtex
gustativo. Outras modalidades possuem áreas correspondentes do córtex sensorial,
incluindo o córtex vestibular para o senso de equilíbrio.
Um córtex sensorial é uma área do córtex cerebral em que as informações sensoriais
são interpretadas para gerarem sensações e percepções. Cada sistema sensorial tem uma
área cortical específica: áreas sensoriais primárias e áreas secundárias. As áreas primárias
são aquelas que recebem primeiro as informações provenientes dos receptores, já as
secundárias são as envolvidas com a interpretação de aspectos seletivos da informação
sensorial. As denominadas áreas associativas reúnem dados interpretados pelas áreas
primárias e secundárias para criar uma percepção coesa e coerente, podem reunir,
portanto, informações provenientes de vários sistemas sensoriais.
Combinações dessas unidades perceptivas podem adquirir conotações simbólicas:
macacos, por exemplo, os macacos de cheiro da região amazônica, combinam gritos
formando canções de advertência quando da aproximação de predadores, expressando

29
O sistema somatosensorial ou sensorial somático é a sistema que permite ao ser vivo experimentar
sensações nas partes distintas do seu corpo. Podem ser sensações de tato, temperatura, pressão, vibração,
da posição das partes do corpo ou dor. Os receptores do sistema somatosensorial se encontram repartidos
pelo corpo todo, servem para detectar os estímulos mecânicos, químicos e físicos.

184
perigo iminente. Esses conjuntos de unidades auditivas, esses cantos de advertência, são
conjuntos de signos unitários cuja interpretação simbólica expressa perigo. O mesmo
acontece com aves e outros animais e esses cantos podem não simbolizar apenas perigo,
mas também canções de namoro, de acasalamento, ou mesmo de acontecimento sociais,
como combinações de táticas de caça. No caso dos golfinhos, determinadas “canções”
podem mesmo simbolizar um “nome”, um signo individual, caracterizando assim o
“nome próprio” de determinado golfinho.

Fig. 5.1 Córtices sensoriais e respectivas áreas


associativas: frontal, parietal, temporal e occipital. Fonte:
https://pt.slideshare.net/DouglasTudella/sistema-
nervososensorialsomatico; Wikimidia

Combinações, conjuntos de unidades perceptivas induzem a formação de um


primitivo conceito neuronal de número. Cabe lembrar que Piaget denominava as
numerosidades de “números perceptuais” e já antevia que todos os conceitos da
psicologia desenvolvimentista, em algum momento, deveriam ter sua fundamentação em
processos orgânicos, neuronais, não sendo apenas meras constatações episódicas.
Contudo, todas essas conjecturas ainda necessitam serem comprovadas pela
neurofisiologia, para que se tenha uma fundamentação consistente do conceito neuronal
de “unidade”, que pode gerar a sucessão dos números inteiros.

Piaget e Damerow: Desenvolvimento versus Evolução Histórica

Peter Damerow (1939-2011), do Instituto Max Planck para a História da Ciência,


desenvolveu um arcabouço teórico para uma epistemologia histórica do conceito de

185
número, levando em conta noções da Epistemologia Genética de Jean Piaget. Esboça uma
história da evolução cognitiva do conceito de número, por meio da psicologia cognitiva.

Para Piaget, o conceito de número está, por um lado, fundado em universais


cognitivos e, por outro, sujeito a mudanças históricas fundamentais. Tentou prover
substanciais evidências para basear suas teorias de que o pensamento matemático não é
determinado pelas estruturas linguísticas, mas sim por esquemas de coordenação de
ações. Sua epistemologia genética não faz concessões a uma determinação sócio-cultural
do pensamento matemático, considera o desenvolvimento dessa ciência com respeito às
formas lógico-matemáticas apenas um reflexo social da evolução biológica do indivíduo.

Piaget defende que os estados ontogenéticos do desenvolvimento cognitivo são


universais; que diferenças no ambiente não têm efeito na sequência na qual estes estágios
ocorrem nas estruturas lógico-matemáticas de pensamento, as quais são o produto
cognitivo final.

A teoria cognitiva de Piaget busca explicar o desenvolvimento cognitivo humano.


De acordo com esta teoria, o desenvolvimento cognitivo humano é dividido em 4
estágios: no primeiro, o estágio sensório-motor, que dura do nascimento até
aproximadamente o segundo ano de vida, a criança busca adquirir controle motor e
aprender sobre os objetos que a rodeiam. O segundo estágio de desenvolvimento é o
estágio pré-operacional, que coincide com a fase pré-escolar e vai dos dois anos de idade
até os sete anos em média.
No estágio seguinte, o operatório concreto, que dura dos 7 aos 11 anos de idade em
média, a criança começa a lidar com conceitos como os números e relacões. Esse estágio
é caracterizado por uma lógica interna consistente e pela habilidade de solucionar
problemas concretos. No último, o estágio operatório formal, desenvolvido a partir dos
12 anos de idade em média, o adolescente começa a raciocinar lógica e sistematicamente.
Esse estágio é definido pela habilidade de engajar-se no raciocínio proposicional, onde as
deduções lógicas podem ser feitas sem o apoio de objetos concretos.
Descobriu que uma criança com cinco ou seis anos pode aprender os nomes dos
números e, se dez objetos são colocados em linha ela pode chamá-los por estes nomes,
mas se o arranjo linear é subvertido, a criança perde a certeza quanto ao total. Ela
aprendeu os nomes dos números, mas não entendeu a ideia essencial do número, que a
quantidade total de objetos permanece a mesma também quando eles são misturados.

186
Porém, meio ano ou mais posteriormente, aos seis e meio ou sete anos, ela formou
a ideia de número mesmo que não lhe tenha sido ensinado a contar, ensina Piaget. Nesta
idade, sendo-lhe apresentados dois grupos de igual número de objetos, um de objetos
azuis e outro de vermelhos, e perguntada qual grupo tem “mais”, ela irá descobrir que os
dois grupos têm o mesmo número de objetos colocando os azuis em correspondência com
os vermelhos. A noção de correspondência um-a-um, básica na técnica dos entalhes,
surge, portanto, nessa idade.

Piaget também descobriu que uma criança aprende espontaneamente a


compreender números cardinais (um, dois, três, ...) e ordinais (primeiro, segundo,
terceiro,...) quando ela cresce e aprende a distinguir que um objeto está antes ou depois
de outro no tempo e no espaço, isto é, na ordem da enumeração. Assimilou essa habilidade
manipulativa da geometria do tempo e do espaço antes mesmo de adquirir a verbalização
desses conceitos. Essas ideias provieram não do aprendizado, mas de estágios de
amadurecimento, afirma Piaget.

Contudo, Damerow não concorda integralmente com Piaget. Diverge em vários


pontos. Passemos a palavra a Damerow:

Nós estamos convencidos de que o pensamento matemático e aritmético em particular está


baseado na interação ativa com objetos concretos e que a estrutura de sua atividade é
internalizada na forma de estruturas mentais, as quais, por sua vez, conferem significado
aos termos da linguagem especializada da matemática. ... Vamos assumir que o pensamento
matemático é de fato transmitido culturalmente por meio de representações de estruturas
matemáticas. ... o desenvolvimento do pensamento matemático toma de fato lugar no
contexto de uma dependência específica sobre diferentes, historicamente determinadas,
representações das estruturas matemáticas e de seu desenvolvimento histórico, Eu sou,
assim, de opinião que uma consequência necessária do estudo dos processos de
aprendizagem da matemática, prevalescentes na teoria da educação matemática, é que os
conceitos da psicologia não são suficientes para uma clarificação teórica, porque são
incapazes de capturar a dimensão histórica das formas de pensamento matemático.
(Damerow, Abstraction and Representation, 1998, p. 150 e ss.).

Afirma, com razão, que apenas a psicologia individualmente é impotente para


compreendermos a evolução do pensamento matemático, pois não leva em conta o seu
desenvolvimento histórico. Continua:

187
Na minha visão análise históricas das condições do desenvolvimento do pensamento
matemático são necessárias. ... Para ganhar uma compreensão adequada dos processos de
aprendizagem matemática será necessário estudar o desenvolvimento das estruturas de
pensamento matemático em termos das mais simples condições de sua manifestação inicial
nos processos históricos. (Op. cit., p. 152-153).

Com isso Damerow quer dizer que devemos voltar nossa atenção para o estudo das
primeiras formas de ocorrência das estruturas de pensamento matemáticas no processo
histórico, pois surgem em suas formas mais simples, as quais, ao longo do tempo, vão
evoluindo, se tornando complexas. Por isso o estudo das primeiras formas de
aparecimento das estruturas de pensamento matemático é tão importante, se quisermos
realmente compreender o que é matemática, como surgiu, como se desenvolveu, e se
pretendermos entender como poderá evoluir.

Contudo, além das perspectivas desenvolvimentistas e históricas, acrescentaríamos


um enfoque neuronal, completando assim as três dimensões que reputamos inicialmente
necessárias para o estudo da evolução do conceito de número.

Interlúdio Histórico: O Conceito de “Número” entre os Gregos

Inicialmente, vejamos as definições de número que podemos encontrar na


antiguidade grega (Heath,1981, p.69-70):

Tales:

Número é uma coleção de unidades.

Eudoxo:

Número é uma determinada multitude.

Euclides (Livro VII, def. 2):

Número é uma multitude composta de unidades.

Aristóteles:

Número é uma multitude limitada.

Número é uma multitude (ou combinação) de unidades.

188
Números são diversos uns.

Número é uma multitude medida.

Número é uma multitude de medidas ( a medida sendo a unidade).

Nicômaco:

Número é um fluxo de quantidade feita de unidades.

Cabe aqui um esclarecimento sobre o que os gregos interpretavam por multitude.


Boécio, em seu De Institutione Arithmetica (Masi,1983, p.72), nos esclarece que há duas
espécies de essências, que compõem todas as coisas. Uma é contínua, denominada
magnitude, que caracteriza corpos contínuos, tais como uma pedra e uma árvore. A outra é
caracterizada por ser disjunta, determinada por suas partes, reduzida a uma única reunião
coletiva, tal como um rebanho, um coro, uma multidão, uma pilha de coisas, cujo nome
próprio é multitude. Diríamos, hoje, que magnitude é um conjunto contínuo e que multitude
é um conjunto discreto.

É praticamente impossível compreender a filosofia, principalmente a ontologia


grega, sem considerar a sua orientação matemática. Mesmo a caracterização de verdades
matemáticas como mathemata, i.e., coisas a serem aprendidas, serve como modelo para
todo o conhecimento.

Klein (1992, p.61 e ss.) discute a concepção grega de arithmos (número), elaborando
breve resumo histórico. Julius Stenzel sublinha o caráter intuitivo ou a proximidade
perceptual e a natureza figurativa do conceito grego de número, estabelecendo a interação
de pensamento, contagem e intuição como seu princípio diretor. Oskar Becker menciona um
caráter estranho, semelhante a figuras, de significado arcaico, do conceito de arithmos, que
ainda aparece em Aristóteles. Isso é notado claramente na teoria grega dos números
figurados (Almeida, 2003).

Klein argumenta que esses argumentos que sublinham o caráter intuitivo do conceito
de arithmos são emitidos de um ponto de vista moderno, de uma perspectiva atual, sem
considerar o contexto da ciência grega. Klein afirma (p.63): “A peculiaridade do conceito
grego de número repousa menos em um caráter “arcaico” ou “intuitivo”, o qual não é
inteiramente sua propriedade primária, do que na espécie de relação que ele tem com a coisa
[ser] que intende.”

189
Compreenderemos melhor essa relação se lembrarmos a etimologia arcaica da
palavra símbolo, pois número é um símbolo de uma quantidade. A palavra símbolo é
derivada do grego arcaico σύμβολον (symbolon), que significava a metade de um objeto
quebrado para que, colocada junto com a outra metade, verificasse a identidade do
portador. A palavra grega passou para symbolum em latim ("símbolo" em português) (cf.
Liddel, 1940). No seu significado etimológico original, equivaleria à função de uma talha
dupla (Almeida, 2019). Esse entendimento está hoje quase esquecido

Aristóteles acusa a existência de três tipos de arithmoi:

1. o arithmos eidetikos, o número idéia;


2. o arithmos aisthetikos, o número sensível;
3. o arithmos mathematikos, ou monadikos, o número matemático ou monádico.
(KLEIN, p..91)

O arithmos aisthetikos, o número sensível representa as próprias coisas. Coloca o


arithmos mathematikos entre o primeiro e o segundo, indicando que reparte com o primeiro
sua “pureza” e “imutabilidade”, e com o segundo sua “pluralidade” e “reprodutibilidade”.
Os arithmoi monadikoi eram os números de unidades “puras”.

Já o número ideia grego é definido como algo [o número abstrato] que tem múltiplas
relações com outra ideia [o objeto contado], de acordo com sua natureza particular, e o qual
é, contudo, indivisível, sozinho ou conjugado (Klein, p. 91). De certo modo, pode-se
argumentar que essa noção platônica de número ideia ecoa a noção de número que depende
do contexto.

A teoria dos números-ideias de Platão é conhecida nos dias de hoje principalmente


pela polêmica levantada contra ela por Aristóteles. É questionável mesmo se Platão
arquitetou algo mais que um esquema geral dela. Parece até mesmo ter limitado esses
números a dez; portanto cabem reservas quanto à afirmação de que esses números teriam o
mesmo papel dos números naturais abstratos da matemática moderna; porém a sua
importância para o desenvolvimento dos números naturais, como hoje os concebemos, é
inegável.

190
As definições gregas mais antigas de número espelham uma noção de número
baseada em contagem concreta. O número 5, produto da contagem de uma pilha de 5 cocos,
seria apenas uma multitude composta de 1+1+1+1+1 cocos unitários.

Considerações de ordem filosófica influíram no desenvolvimento da matemática


grega, especialmente no conceito de número. Começam com a própria definição do que é
unidade, também conhecida como mônada (ou mônade). Euclides nos ensina que:

Uma unidade é aquilo por cuja virtude cada das coisas que existe é chamada um
(Elementos, def. VII 1).

Essa definição é atribuída por Sextus Empiricus a Pitágoras. Para os gregos o um, a
unidade-mônada, era indivisível. Se o um fosse divisível, não seria um, mais muitos.
Escondida nesta definição reside a justificativa teórica dos gregos pela qual excluíam as
frações da antiga ciência da aritmética. Naturalmente, tanto os engenheiros como os
comerciantes gregos empregavam frações em seus cálculos; porém a ciência antiga da
aritmética não admitiu sua existência até o tempo de Arquimedes.

Szabó afirma que a definição Euclidiana de unidade nada mais é que um sumário
conciso da doutrina eleática do SER. Os eleáticos mantinham que a única coisa que existia
era o UM, O QUE É; negavam a existência da pluralidade, afirmando serem capazes de
provar que mesmo a noção de pluralidade era contraditória. Negar a pluralidade era, porém,
negar a verdadeira existência da aritmética.

Este autor nos ensina que os pitagóricos não entraram em disputa com a doutrina
eleática do UM, mas a desenvolveram, procurando contornar este ponto controverso. Platão
nos lembra que os matemáticos foram forçados a “multiplicar” o UM. Fizeram isto para
evitar a divisão da unidade. Para isso introduziram o conceito contido na definição VII-2,
isto é, que um número era composto de uma “multitude”, ou pluralidade, de unidades.
Resolveram o problema das frações na aritmética pitagórica substituindo-as por razões
numéricas, ou quocientes entre números inteiros.

Os números pitagóricos diferiam dos nossos números usuais não apenas por causa
das frações, mas também porque não consideravam o um, a unidade, como número.
Começamos a contar com um, e de acordo com a maneira habitual de pensar, um é um
número. Isso, todavia, é incompatível com as definições VII - 1 e 2. Números, se são

191
multitudes compostas de unidades, podem ser decompostos em unidades. A unidade, porém,
não pode ser decomposta de maneira alguma; portanto não é um número, devendo ser
excluída do domínio dos números. Esse é o raciocínio que os gregos empregavam para
justificar por que o um não era considerado um número.

A teoria Eleática do UM indivisível forçou, portanto, os pitagóricos a introduzirem a


definição de números como múltiplos da unidade. Também conseguiram acomodar o
problema das frações, tratando-as como razões numéricas. Embora o UM continuasse
indivisível, o velho problema da divisibilidade reaparecia com os múltiplos do UM. Como
esses eram ”compostos de unidades”, também teriam de ser decomponíveis.

Os gregos, resumindo, reconheciam apenas os números inteiros como números.


Frações eram consideradas como quocientes de números inteiros. Operavam, portanto,
apenas com os números hoje conhecidos como racionais. Não tinham conhecimento, até
então, dos números irracionais.

Os pitagóricos, dentro de sua concepção filosófica de que Tudo é Número, tinham


concluído que as relações matemáticas entre magnitudes e as leis da natureza eram
expressáveis em termos de números inteiros e de suas razões. Esta foi a primeira tentativa
de aritmetização da matemática e das leis naturais; porém esta tentativa falhou.

Uma descoberta, ironicamente feita pela própria escola pitagórica, forçou uma
mudança dessa perspectiva. Provou-se que a razão entre a diagonal √2" e o lado (l) de um
$√
quadrado não pode ser expressa como uma razão entre números inteiros # $
= √2%, achado

que conduziu à descoberta dos números irracionais e ocasionou o que é conhecido como a
“crise dos irracionais”. Isso implica em que os números inteiros e suas razões não são
suficientes para a construção de uma geometria métrica ou de uma teoria das semelhanças.

Primeiro, os pitagóricos tentaram aritmetizar a matemática, porém, tendo descoberto


que o âmago das magnitudes geométricas é maior que os racionais, passaram a adaptar a
geometria como base para a matemática. Traduziram todas as operações aritméticas em
linguagem geométrica, começando a operar com objetos tais como segmentos, áreas e
volumes, sem recorrerem a números. Dessa forma procuraram contornar o problema da
incomensurabilidade. Zeuthen denomina esse período de período da “álgebra geométrica”.

192
Podemos atribuir a este período definições de número tais como Número é uma
multitude medida (Aristóteles), ou Número é uma multitude de medidas (id.), onde o termo
medida é claramente de origem geométrica.

Magnitudes comensuráveis são aquelas em que uma é um múltiplo ou submúltiplo


da outra ou, em outros termos, existe uma unidade em comum entre elas. Quando essa
condição não é satisfeita, as magnitudes são ditas incomensuráveis.
O problema da incomensurabilidade forçou, portanto, uma geometrização da
matemática grega. Há uma transformação ontológica que pode ser identificada nos livros
“aritméticos” de Euclides (VII, VIII, IX). Ali as unidades puras das quais os números são
compostos devem ser entendidas como unidades de medida, representadas por
comprimentos de segmentos de retas, diretamente mensuráveis, ao invés de pontos-unidades.

Essa noção de número como magnitudes mensuráveis ecoa certa forma de contagem
concreta (números associados a segmentos) e de números dependentes de contexto (pois se
referem a segmentos). Também cumpre notar que o processo de contagem é substituído pelo
processo de medida.

Como o Cérebro Processa as Frações

As frações podem ser representadas simbolicamente ou não-simbolicamente. As


frações simbólicas podem ser representadas em duas formas: as frações comuns (da forma
a/b, onde a e b são inteiros: 1/2, 1/12,...) e as frações decimais (0,5; 0, 314;...). Já as
frações não simbólicas representam proporções entre magnitudes (p.ex.: comparação
entre dois segmentos; duas áreas, etc.).
Contudo, cabe relembrar que o uso das frações decimais somente se tornou
habitual tardiamente na História da Matemática. Apenas após a publicação da obra “La
Disme” (1585), de Simon Stevin (1548-1620) o seu emprego se universalizou. Todavia,
as primeiras frações que a história registra foram as sexagesimais, ainda hoje de uso
extenso em computações de tempo e de ângulos. O sistema sexagesimal já estava em uso
pelos sumerianos, os inventores da escrita, antes de 2100 a.C. Os gregos mantiveram a
tradição do emprego de frações sexagesimais, que até hoje é empregada. Já os egípcios
preferiam operar com frações unitárias.

193
Por exemplo, quando hoje nós escrevemos 2 h 20 min 45 s isso equivale a
(
#2 + & ' +
& )
% horas, em notação sexagesimal, em notação decimal teríamos #2 + +
*

% horas, empregando frações unitárias, resultado que dificilmente seria reconhecido no


+

presente.
Logo, os autores levantam uma dúvida sobre como muitos dos estudos neuronais
atuais sobre frações são conduzidos. Até onde vai o conhecimento dos autores, eles se
limitam às frações decimais, costumeiras hodiernamente. Todavia, historicamente, elas
só surgem tardiamente, logo dificilmente influenciariam nos processos cognitivos
evolutivos concernentes às frações.
Isso permite supor que as mesmas são construtos culturais, mentefatos aos quais
algum tipo de processo cognitivo, ainda não devidamente esclarecido, merecedor de
pesquisa mais aprofundada, se adequa. Possivelmente, supomos, nesse processo as
frações seriam representações não simbólicas de magnitudes analógicas.
Do mesmo modo, como uma informação adicional sobre a sua natureza, pode-se
admitir que esse processo independa da base do sistema de numeração empregado para
notar as frações, seja ele decimal, sexagesimal ou qualquer outro, o que reforça a hipótese
anterior.

Frações comuns

Até recentemente não tínhamos ideia de como o cérebro processa frações; tanto
os processos cognitivos neurofisiológicos envolvidos como o local no cérebro onde são
processadas constituíam mistérios arcanos. Recentes estudos, realizados por Simon Jacob
e Andreas Nieder (2009), começam a desvendar os véus que os encobrem.
A habilidade de codificar magnitudes, de quaisquer espécies, é um pré-requisito
imprescindível para o desenvolvimento da matemática. O surgimento da linguagem, a
emergência do pensamento simbólico, a invenção da escrita e sua capacidade para
armazenar externamente símbolos, tornaram possível que o ser humano pudesse evoluir
de uma aproximada representação de magnitudes absolutas, em seus estágios iniciais,
para um conceito de número sofisticado.
A introdução de frações comuns, como a razão de dos números inteiros, foi um
passo conceitual fundamental avante, ampliando os limites do campo dos números
inteiros para tratar com magnitudes. Embora o conceito de números inteiros seja intuitivo

194
e adequado à contagem e à ordenação, apenas com a introdução das frações o sistema
numérico tornou-se mais flexível e ganhou em precisão. Porém, questões essenciais
permaneciam, tais como: o cérebro humano processa frações automaticamente ou,
alternativamente, acessa numerador e denominador em separado?
Sabia-se que magnitudes absolutas eram codificadas por neurônios individuais, os
quais emitem picos de descargas elétricas em resposta a determinados números. Contudo,
não era conhecido se como a razão de dois números era codificada, se processando o
numerador e o denominador em separado, ou pela extensão da codificação de magnitudes
às quantidades relativas.
Os resultados de suas pesquisas mostram que frações não são apenas construtos
mentais, resultados de considerá-las como a razão entre dois números inteiros, mas sim
são dadas intuitivamente, ou seja, são representações inatas.
Os experimentos por eles realizados mostraram que populações de neurônios no
córtex parietal, ao redor do sulco interparietal (IPS) anterior e horizontal, são sintonizadas
para determinadas frações, independentemente do formato de sua representação. Isso
quer dizer que não importa se as frações são representadas como numerais, ou seja,
simbolicamente: 1:6, 3:6, 5/,..., ou são apresentadas em uma forma verbal (1/6 um sexto:
sechstel, em alemão; ¼ um quarto: viertel, etc.). Desse modo razões simbólicas são
representadas como uma categoria de magnitudes abstratas no cérebro humano. Portanto,
o córtex interparietal representa frações comuns de um modo independente de sua
notação.
Desse modo, constatou-se que as regiões do cérebro com populações neuronais
ativadas por mudanças nas frações que lhe são apresentadas, tanto simbolicamente como
verbalmente, são o sulco interparietal e o córtex pré-frontal.
Esses estudos demonstram que o cérebro humano não executa uma simples
divisão para criar um número real, p. ex. 1/4 = 0,25, processando então números reais ao
invés de frações ou proporções, mas sim constituem uma categoria própria de magnitudes
abstratas, específica, inata.
Seria de se esperar que resultados similares fossem obtidos quando fossem
apresentados como estímulos razões de magnitudes não simbólicas e não verbais;
analógicas, portanto. Dados obtidos com primatas não humanos sugerem que macacos
também compartilham o conceito de proporcionalidade (frações) quando treinados a
discernir entre as razões de dois comprimentos de linha.

195
Estudos eletrofisiológicos subsequentes do córtex pré-frontal mostraram fortes
similaridades na codificação de quantidades absolutas e relativas; a atividade neuronal
decresce gradualmente quando a distância entre um estímulo pré-determinado e um
estímulo apresentado aumenta, devido ao efeito SNARC.
Numerosas evidências mostram, portanto, que as mesmas áreas do cérebro que
processam numerosidades estão também sintonizadas no processamento de frações.
Essa nova compreensão sobre como o cérebro interpreta frações comuns contribui
para esclarecer a importância das frações de Weber no tratamento de numerosidades.
Como elas são representações inatas, uma categoria própria de magnitudes abstratas, as
frações de Weber se constituem em um elemento chave na compreensão de como o
cérebro processa numerosidades e do porque ele percebe números em uma escala
logarítmica, conhecida como efeito SNARC, pois a percepção é proporcional a essas
frações.
Esses resultados impactam o modo de como a pedagogia da matemática atua no
ensino de frações. Sobre o assunto, Jacob e Nieder (2009) assim concluem:

Em contraste com proporções não simbólicas, frações são acreditadas serem não intuitivas e difíceis
de compreender, apesar do construto semanticamente análogo. Crianças requerem ensino formal
para compreender e usar corretamente frações, e constata-se que mesmo adultos tratam o numerador
e o denominador em separado, implicando que o termo [fração] é processado por operações
separadas sobre inteiros. ... Aqui, demonstramos que, em ausência de uma tarefa específica, temos
acesso uma representação automática de quantidades relativas. Nossos resultados advogam uma
visão de frações menos rígida e formal, desencorajando seu uso primário como meros lóculos para
números racionais, [ou] decimais. Adotando um enfoque mais instintivo, natural para frações, a
educação matemática poderia ser modificada para nos auxiliar a melhor explorar sua formidável
base neuronal.

Isso abre novas perspectivas sobre o tema para a educação matemática. Técnicas
inovadoras de ensino podem ser desenvolvidas, mais naturais e adequadas à nossa
estruturação cerebral. Também confirma nossa opinião que a natureza da matemática
pode ser mais bem entendida por meio de estudos sobre como nosso cérebro a processa.
Igualmente comprova que uma visão multidisciplinar pode propiciar novos insights sobre
os processos cognitivos envolvidos, como propugnamos.
O conhecimento de que os humanos processam frações como uma categoria
especial de magnitudes abstratas ajuda a compreender porque os povos primitivos, os
quais, embora não representassem frações simbolicamente, exprimindo-as talvez
verbalmente, concebiam sua existência e desenvolveram técnicas para manipulá-las. Esse
fato permite uma melhor compreensão da evolução histórica do conceito de frações.

196
Esses estudos demonstram que o cérebro humano não executa uma simples
divisão para criar um número real, p. ex. 1/4 = 0,25, processando então números reais ao
invés de frações ou proporções, mas sim constituem uma categoria própria de magnitudes
abstratas, específica, inata.
Como cada fração é interpretada pelo cérebro por meio de uma representação
abstrata, por exemplo, 1/3, lhe é natural considerá-la como submúltiplo de uma unidade
numérica de ordem superior, por exemplo: 1 = 1/3 + 1/3 + 1/3. Isso mostra como nosso
cérebro está estruturado para o uso de raciocínios tais como os empregados nas operações
aritméticas de povos da antiguidade, em termos de frações unitárias e/ou de transposições
de unidades para unidades de menor ordem.
A transposição de unidades para unidades de menor ordem está registrada nos
denominados tabletes proto-literatos sumerianos, os mais antigos registros numéricos
escritos que possuímos, pois esse povo é considerado o inventor da escrita em torno de
3500 a.C. Eles não possuíam um único sistema numérico, mas sim vários, cada qual
empregado para contar um determinado tipo de coisa.
Um “diagrama de fatores” de cada um desses sistemas indica uma hierarquia de
progressivamente maiores unidades e um número de regras de conversão. Contém
informação sobre as formas dos signos, nomes e valores das unidades sucessivas de um
dado sistema de números e medidas, começando com as unidades mais altas e com os
fatores de conversão, os quais expressam quantas unidades de uma dada espécie estão
contidas na próxima unidade mais alta. Joran Friberg foi o arquiteto dessa elegante,
condensada e elucidativa forma de expressar um sistema metro-numérico.
Por exemplo, o Sistema S usado para contar a maioria dos objetos discretos, p.ex.,
pessoas, animais, peixes, objetos de madeira e de pedra, produtos do leite, tecidos, etc.
possuía o seguinte diagrama de fatores:

A ideia da transposição de unidades para unidades de menor ordem constitui o


kern do sistema tanto de trocas de moedas como de qualquer sistema metrológico, e
parecer ser baseada no fato de que o cérebro interpreta uma fração com uma representação
abstrata única.
197
Os egípcios, cuja escrita foi desenvolvida logo após a sumeriana, estabeleceram
um complicado sistema de cálculo onde procuravam expandir qualquer fração em frações
unitárias, operando então com elas. Por exemplo, 2/21 = 1/14 + 1/42 ou 2/35 = 1/30 +
1/42, expansões do papiro de Rhind. São exemplos de como transpor frações para frações
unitárias, de menor ordem, neurologicamente mais intuitivas.
Além disso, contribui para esclarecer os aspectos psicológicos de porque os gregos
somente reconheciam como números verdadeiros os números racionais, ou seja, as
frações. Tanto os números inteiros como as frações compartilham o fato de que possuem
representações abstratas independentes de notações em nosso cérebro. Além disso,
comprovou-se que o cérebro humano não executa uma simples divisão para criar um
número real, p. ex. 1/4 = 0,25, processando então números reais ao invés de frações ou
proporções. Logo, não deixa de ser inerente à nossa estruturação mental a assunção de
que somente os números racionais são verdadeiros. Lembremos a célebre frase de
Kronecker: “Deus nos deu os números inteiros, todo o resto é obra do homem”.
Isso colabora igualmente para explicar o pavor experimentado pelos gregos
quando da descoberta dos irracionais, entidades incomensuráveis, pois estamos
condicionados, devido à nossa estruturação mental inata, a admitir como naturais somente
as operações com números racionais.
Como já mencionado, pesquisas recentes indicam que o processamento de
magnitudes não simbólicas (proporcionais) está associado à ativação sulco intraparietal.
(IPS). Do mesmo modo, áreas cerebrais associadas ao processamento de números (ou
seja, magnitude absoluta) foram ativadas tanto durante o processamento de frações
simbólicas, bem como de proporções não simbólicas.
Estudos conduzidos por Julia Mock e Stefan Huber, em 2018, investigaram o
processamento cognitivo de proporções simbólicas (por exemplo, frações e decimais) e
não simbólicas (por exemplo, padrões de pontos e gráficos de pizza) em um procedimento
de duas etapas. Primeiro, investigaram ativações cerebrais relacionadas ao processamento
de proporcionalidades. Em segundo lugar, avaliaram se proporções (frações) simbólicas
e não simbólicas compartilham substratos neurais comuns.
Para isso, realizaram um estudo empregando fMRI usando tarefas de comparação
de magnitudes com proporções (frações) simbólicas e não simbólicas, utilizando a
avaliação do efeito de distância como indicador do processamento de proporções
relacionado à magnitudes.

198
A maior ativação cerebral para o processamento simbólico, quando comparada ao
não simbólico, foi encontrada no giro supramarginal direito, no sulco intraparietal e no
giro angular esquerdo. Essas regiões são reputadas como importantes durante cálculos
exatos e na recuperação de fatos aritméticos, p.ex., durante a adição.
Seus resultados indicaram ativação conjunta de áreas específicas occipito-parietal,
incluindo o sulco intraparietal direito (IPS), durante o processamento de proporções de
magnitude. Mais especificamente, os resultados indicam que o IPS, que é
comumente associado ao processamento de magnitude absoluta (números inteiros), está
também envolvido no processamento de informações de magnitude relativa (frações),
independentemente do formato de apresentação, seja ele simbólico ou não simbólico, o
que confirma parcialmente as suposições levantadas pelos autores anteriormente.
Isso significa que há um substrato neural comum para o processamento tanto de
magnitudes relativas, ou seja, de frações, como de números inteiros. No entanto, também
encontraram padrões distintos de ativação para o processamento de magnitude de
diferentes formatos de apresentação,
Concluíram que seus resultados sugerem que o processamento para formatos de
apresentação separados não está associado apenas a manipulações de magnitude no IPS,
mas também ao aumento das demandas sobre funções executivas e uso de estratégias,
associadas com regiões cerebrais frontais, bem como atenção visual e codificação em
regiões occipitais.
Assim, o processamento de proporções (frações) de magnitude pode não refletir
exclusivamente o processamento de informações de magnitude numérica, mas também
de informações de domínio geral (Mock, 2018).
Isso significa que esse mecanismo cognitivo poderia também, além de processar
proporções (frações) numéricas, igualmente processar proporções não simbólicas de
outras grandezas continuas, como área, tamanho, densidade, etc. Lembramos que
números são apenas símbolos que expressam quantidades, dessa forma esse mecanismo
cognitivo que processa proporções (frações) relativas seria importante parcela
estruturante tanto da mente humana como dos animais, confirmando assim a tese de que
conceitos matemáticos constituem tijolos fundamentais para construção da mente animal.
Números constituiriam uma estratégia arquitetada pelo homem para avaliar
proporções relativas de quantidades, sejam elas discretas ou contínuas, suportando a tese
de D’Ambrosio, quando afirmou que a Matemática é uma das estratégias elaborada pelo

199
homem em busca da sobrevivência de sua espécie (D’Ambrosio & Almeida, 2017;
Almeida, 2017).
De certa forma, isso recorda a ATOM (A Theory Of Magnitude) de Walsh (2003),
contudo, devemos proceder com cautela, cum grano salis, pois a academia ainda não
aceita unanimemente esses resultados, pois existem alguns estudos contraditórios. Muita
pesquisa necessita ainda ser realizada para esclarecer pontos dúbios.
Resta esclarecer como o cérebro operaria os números irracionais. Como esses
números preenchem o contínuo dos reais, poderiam, de alguma forma, serem também
tratados por um mecanismo neural geral, que também envolveria proporções (números
racionais) de magnitudes. Nesse caso, esse mecanismo teria condições de processar
qualquer número real. Contudo, nada é conhecido até o momento sobre isso, em parte
devido às dificuldades de se arquitetarem testes que os envolvam.
Não resistimos à tentação de propor aqui um problema. Nosso cérebro está
adaptado evolucionariamente a operar com números racionais, ou seja, razões entre
números inteiros. Porém, extremamente importante é a razão contendo números
irracionais conhecida como razão áurea ou número de ouro:

Essa razão, embora envolvendo irracionais, parece ser de certo modo intrínseca às
nossas noções estéticas de beleza e harmonia. Qual o motivo disso? Porque, além de seu
quase onipresente surgimento na natureza, influi em nossas noções estéticas em
atividades tão díspares como a arte, a música, o cinema, a arquitetura, etc.? Que circuitos
neuronais desperta? Porque nossa estruturação cerebral é por ela ativada? São
questionamentos intrigantes, porém certamente merecedores de pesquisas futuras.

Como o cérebro humano interpreta o zero matemático?

O “zero” é entendido usualmente como o “vazio” ou o “nada”, mesmo assim é


considerado como uma das maiores conquistas da humanidade. Não é nosso objetivo aqui
fornecer uma exaustiva história da emergência do zero matemático atual, como o
conhecemos, sugiro a quem desejar aprofundar essa questão a leitura da erudita obra “The
Universal History of Numbers”, de Georges Ifrah. Vamos apenas elencar alguns detalhes
sobre esse conceito, para melhor entendermos como ele é processado pelo nosso cérebro.
Antes de tudo, devemos recordar que o zero indo-arábico “0” é um numeral, ou
seja, um signo que representa um número, o qual corresponde a uma abstração de uma

200
quantidade que, no caso, é uma quantidade nula. Na aritmética moderna, dotada do
sistema numérico indo-arábico, o zero desempenha um papel posicional, conforme esteja
em posições intermediárias, como 103, 203049, ou terminal, como 10, 16400.
Em posições iniciais geralmente é descartado, exceto quando desempenha um papel
posicional, por exemplo, para demarcar posições em números de contas bancárias:
0000234056, as quais, por eventuais necessidades operacionais, devem ter dez dígitos.
Veremos que o primeiro papel histórico do zero foi de representar um espaço vazio, ou
uma referência, posteriormente evoluiu para o seu significado verdadeiramente numérico,
significando uma quantidade nula.
Já na moderna teoria dos conjuntos um conjunto que não contém algum elemento é
denominado de conjunto vazio e denotado por ϕ. O número cardinal de um conjunto
denota o número de elementos que ele contém. O zero matemático corresponde ao
número cardinal do conjunto vazio. Convém recordar que um conjunto, nessa teoria, é
um ente matemático, logo não tem existência física, não se pode manusear um conjunto,
contudo, pode-se apenas manusear um agregado de todos seus elementos.
Portanto, o conceito de “zero” na realidade incorpora várias instâncias, segundo
Nieder: 1) na representação perceptiva, sensorial, zero corresponde a uma ausência de
estímulos; 2) na representação categórica, zero manifesta a oposição entre “nada” (zero)
e “alguma coisa”; 3) na representação quantitativa, zero corresponde a uma quantidade
nula; 4) na matemática moderna, zero é um número abstrato, seja ele solução de uma
equação ou número cardinal de um conjunto.
Na Idade da Pedra, partir de quando um hominídeo dispusesse de palavras para
números, ele não teria necessidade de empregar o “zero” em processos de contagem, pois
nenhum deles contaria: “zero” lobos, um lobo, dois lobos,... Nessa era apenas entalhes ou
calculi eram empregados como registros de contagens, e ninguém executaria “zero”
entalhes, ou separaria “zero” calculi, para registrar quantidades nulas.
Se entendermos como números naturais os números empregados em processos de
contagem, então historicamente o zero não é um número natural. Contudo,
modernamente, a partir de quando o emprego de números negativos se tornou costumeiro,
convencionou-se considerá-lo, por conveniência, como um número natural, o único que
não é nem negativo nem positivo. Vamos, rapidamente, esquematizar a evolução histórica
desse conceito.
Estruturas maciças de pedra, como as antigas pirâmides do Egito, requeriam
fundações profundas e cuidadosos nivelamentos das carreiras de pedras. Linhas de nível

201
horizontais eram empregadas para orientar a construção. Uma dessas linhas, muitas vezes
no nível do pavimento, foi empregada como referência e foi denominada de , nfr, ou
zero. Outras linhas horizontais eram espaçadas de 1 (um) cúbito e rotuladas de 1 cúbito
acima de nfr, 2 cúbitos acima de nfr, etc. O hieroglifo triliteral nfr (nfr+f+r), que
significa beleza, bom, perfeito, era empregado para demarcar o nível zero. Nesse caso
temos o emprego de um símbolo para representar o nível zero no nivelamento de
construções.
Um registro contábil da 13ª dinastia, c. 1700 a.C., mostra um balanço do recebido
e do pago pela corte real durante viagens. Subtraindo o desembolso total do total recebido,
um zero foi registrado em várias colunas. Este resto zero foi representado pelo mesmo
símbolo nfr, tal como empregado como linha de referência em construções.
Os mesopotâmios não tinham um símbolo especial para o zero. Isso ocasionava
problemas, pois deixavam um espaço em branco para indicar uma posição vazia, o que
implica em que muitas vezes o valor do número deve ser adivinhado pelo contexto do
problema. Somente no período selêucida, apenas em textos astronômicos e nunca em
posição terminal ou inicial, empregavam um símbolo (duas cunhas inclinadas) para
denotar uma posição vazia.
A notação posicional foi inventada na terceira dinastia de Ur, c. 2500 a.C.,
provavelmente inspirada no uso do ábaco em contas. As colunas do ábaco correspondem
às potências da base empregada; deixar uma coluna em branco significaria um “zero”
nesta posição. Desse modo, o primeiro papel histórico do “zero” foi de representar um
espaço vazio (para detalhes, ver Almeida 2011).
Os maias conheciam a numeração com valor posicional e o conceito de zero. O
símbolo para o zero era uma concha. Os maias tinham um sistema de numeração com
base vinte: um ponto representava “um”; uma linha “cinco”, um ponto acima de uma
concha “vinte”, a base do sistema maia:

Os gregos, no século VI a.C., desenvolveram um sistema de numeração


empregando letras alfabéticas, conhecido como sistema ático, baseado no princípio
acrofônico, segundo o qual a letra inicial da palavra para o número era seu numeral. Para
as potências positivas da base dez, empregava as letras iniciais das palavras

202
correspondentes: Δ, para deka, dez; H, para hekaton, cem; X, para khilioi, mil; M, para
myrioi, dez, mil. Dessa forma, podiam desenvolver sua matemática sem um símbolo para
o zero.
Outros povos, como os egípcios e os hebreus, também dispensavam um símbolo
para o zero em suas matemáticas. Isso significa que etnomatemáticas podiam ser
desenvolvidas mediante sistemas de numeração que dispensavam símbolos para o zero.
Ptolomeu (c.150 a.D.) empregava a letra grega omicron “ο” como nosso zero, tanto
na posição medial como na terminal. Omicron é primeira letra para a palavra grega ouden,
“nada”. Papiros deste período mostram um pequeno ”o” com uma barra em cima; o
pequeno “o” sózinho só apareceu no período bizantino. Mesmo nesse período
Neugebauer considera que dificilmente o pequeno “o” provinha do grego ouden.
Os hindus foram os primeiros a entenderem o conceito do zero, devido a possuírem
avançadas noções filosóficas acerca de “vacuidade”, nihilismo, nulidade, não-ser,
ausência e insignificância, provavelmente concebidas no princípio da era cristã. O
shûnyatâ era o principal conceito da shûnyatâvadâ, a filosofia da vacuidade, que pregava
que tudo feito coisa (samskrita) é vazio, impessoal, e sem natureza original.
Esta visão não distingue entre a realidade e a não-realidade das coisas, reduz todas
as coisas à total insubstancialidade. Em sânscrito a designação do zero é shûnya, vazio.
Esta filosofia pode ser resumida na seguinte resposta que, acredita-se, Buda deu ao seu
discípulo Shariputra, o qual erradamente confundiu o vazio (shûnya) com forma (rûpa):

“Isto não é certo”, disse Buda, “no shûnya não há forma (rûpa), nem sensação, não há idéias, nem
volições, e nem consciência. No shûnya não há orelhas, narizes, língua, corpo ou mente. No shûnya
não há cor, barulhos, cheiros, gostos, contactos ou elementos. No shûnya não há ignorância, nem
conhecimento, ou mesmo o fim da ignorância. No shûnya não há envelhecimento ou morte. No shûnya
não há conhecimento, ou mesmo a aquisição de conhecimento”.

Esta filosofia chega a distinguir vinte e cinco tipos de shûnya, expressando nuances
como: o vazio da não existência, do não-ser, do não-nascido, do não-criado ou não
presente, o vazio da não-substância, do não-pensado, da imaterialidade ou
insubstancialidade, o vazio do não-valor, do ausente, do nada, etc. Outro termo do
sânscrito para o zero é bindu, que significa “ponto”, e é a figura geométrica mais
elementar que há, constituindo-se de um círculo reduzido ao seu centro.
Para os hindus bindu simboliza o universo em sua forma não manifesta, antes de
sua transformação no mundo das aparências. Este universo não-criado é dotado de uma
energia criativa capaz de engendrar tudo. Assim surge a associação natural destas ideias

203
com a figura geométrica do ponto, a mais básica de todas, mas que é capaz de gerar todas
as linhas e formas possíveis. É o símbolo perfeito para o zero, a mais negligenciável
quantidade que há, embora o conceito mais básico de toda matemática abstrata.
As regras que regem o uso do zero aparecem pela primeira vez no livro de
Brahmagupta (598 – 670), o Brahmasputha Siddhanta (A Abertura do Universo), escrito
em 628. Ali Brahmagupta considera não somente o zero, mas números negativos e as
regras algébricas para as operações aritméticas elementares com esses números.
O primeiro europeu a advogar o uso do zero na Europa foi Abraham ben Meir ibn
Ezra (1092-1167), que escreveu Sfer H Mispar (O Livro do Número), no qual usou o
círculo para representar o zero. Preferiu empregar as primeiras nove letras do alfabeto
hebreu ao invés dos nove algarismos indo-arábicos. Denominou o zero de Galgal (hebreu
para roda) ou Sifra (apud o árabe Sifr, certamente). Também mudou o antigo sistema de
numeração alfabética hebraico para um sistema decimal como o nosso.
Quando os árabes adotaram os numerais hindus e o zero, denominaram o último de
sifr, tradução literal do sânscrito shûnya, vazio. Quando o conceito do zero chegou na
Europa, sifr foi traduzida pela palavra quase homófona em latim zephyrus, que significava
“vento oeste”, uma leve brisa, quase nada. No seu Liber Abaci, Fibonacci (Leonardo de
Pisa) usou o termo zephirum, e este termo continuou em uso nesta forma até o século XV.
Foi o termo zephirum de Fibonacci que deu origem ao nome moderno de zero, através do
italiano zefiro. Zero é apenas uma contração de zefiro, no dialeto vêneto.
É importante notar que o “zero matemático” não tem a mesma conotação do “zero
físico”, o nada, associado ao vácuo. Mesmo admitindo-se que o vácuo interestelar não
contenha nenhuma partícula material, radiação ou qualquer forma de energia, ele contém
ao menos uma coisa: o espaço, ou melhor, o contínuo espaço-tempo, se quisermos
empregar a nomenclatura da teoria da relatividade geral de Einstein. Atuais teorias da
física propõem que o Universo foi criado a partir da polarização do vácuo (físico), por
meio de um processo denominado de inflação. O “zero físico” tem, portanto,
substancialidade.
O “zero matemático” moderno, de certa forma, reassume as suas concepções
originais provenientes da filosofia hindu, contudo esta era muito mais abrangente em sua
concepção do shûnya. Ela associava a não existência, a não substancialidade, à doutrina
do shûnya, algo extremamente difícil para a mentalidade moderna contemplar.
Por exemplo, não podemos filosofar sobre algo que não podemos denotar, ou seja,
que não possui um nome, um signo sobre o qual nós possamos nos referir. Contudo, a

204
doutrina do nome assevera que uma coisa passa a existir quando lhe atribuímos um nome;
na matemática um seu ente passa a existir quando lhe atribuímos um nome, mediante sua
definição. Isso é válido para objetos meignonianos, contos de ficção, entes teológicos,
fantasmagóricos ou até mesmo científicos.
Vamos supor, por exemplo, que ao estado de não existência, não substancialidade
denominamos de “null”, zero, nada em alemão. “Null”, portanto, seria o estado de não
existência, não substancialidade. Somente o fato de atribuirmos um nome a esse estado
e de nos referirmos a ele empregando este nome, isso é suficiente para criá-lo, dar-lhe
uma existência. Isso gera uma contradição incontornável, paradoxal, pois um estado de
não existência, não substancialidade, não poderia existir, nem ser associado a qualquer
materialidade.
Um conjunto vazio, por exemplo, não pode ser associado a essa concepção da
doutrina do shûnya, pois ele foi criado mediante sua definição, passando então a existir,
contrariando assim a doutrina da não existência.
A representação categórica do “zero”, quando manifesta a oposição entre o “nada”
(zero) e “alguma coisa”, é talvez a mais difícil questão filosófica para a mentalidade
moderna, quando esta procura entender a shûnyatâvadâ, a filosofia hindu da vacuidade.
Até recentemente, as origens biológicas que fundamentam o conceito do zero eram
desconhecidas. Segundo Nieder (2016), estudos atuais sobre psicologia
desenvolvimentista, cognição animal e neurofisiologia, associados a estudos da História
da Matemática, permitem admitir que a emergência do zero matemático passa por quatro
estágios.
No primeiro, a ausência de estímulos (nada) corresponde a um mental/neural estado
de repouso, no qual faltam assinaturas especificas. No segundo estágio, a ausência de
estímulos é reconhecida como uma categoria comportamental específica, mas sua
representação é ainda vazia de relevância quantitativa. No terceiro estágio o nada adquire
um significado quantitativo e é representado como um conjunto vazio no extremo inferior
de um contínuum numérico, ou linha dos números. Finalmente, a representação do
conjunto vazio é estendida para se torna o zero matemático. Para Nieder, esses diferentes
estágios do conceito de zero refletem progressivos níveis de abstração mental.
Veremos agora como conceitos semelhantes ao do zero se desenvolvem em
crianças. Crianças com cinco meses já tem a capacidade de apreciar o número de itens
em um conjunto; podem mesmo efetuar operações básicas de adição e subtração, quando
objetos aparecem ou desaparecem, como em um teatro de marionetes. De um modo

205
surpreendente, crianças com oito meses não diferenciam operações de 1 – 1 = 1 ou 0 + 1
=1, o que tem sido interpretado como a inabilidade de crianças com esta idade entenderem
uma quantidade nula, embora possam já representar um pequeno número de itens.
Crianças com 3 a 4 anos começam a entender que, quando um último objeto é
retirado de um cenário, a condição que subsiste é chamada de “nada” e pode ser
denominada com o nome especial de “zero”, este então assume como um indicador de
“ausência”. Contudo, ela ainda não integrou esse “zero” com o conhecimento quantitativo
de outros pequenos números inteiros; por exemplo, quando perguntada “o que é menor,
zero ou um?”, ela muitas vezes insiste que “um” é menor. Ao redor dos quatro anos a
criança começa a incluir, de modo ainda não quantitativo, a representação do “nada”
como um conjunto vazio em sua linha numérica mental.
O próximo estágio de seu desenvolvimento é quando ela compreende que zero é
uma quantidade e coloca-o em um continuum numérico, junto com outros números. Isso
ocorre aproximadamente aos seis anos, quando lhe são apresentadas notações simbólicas
do zero e dos números inteiros, sejam elas palavras para números ou numerais. A partir
dos sete anos, crianças tipicamente compreendem operações elementares com o zero, tais
como 0 < n, n + 0 = n, n – 0 = n.
Mesmo entre adultos a representação do zero tem um status diferenciado dos outros
números inteiros. Estudos psico-físicos mostram que quando adultos leem números em
linha, o tempo que leva o zero em sua leitura é consistentemente maior que o esperado, o
que sugere que ele não deve ser considerado como parte natural da linha mental dos
números.
Vários estudos com animais, tais como chimpanzés, papagaios, etc., mostraram que
a sua capacidade de entender as várias facetas do zero é muito limitada. Aparentemente,
não pode ser excluído que animais associam o signo “0” com nada mais que a ausência,
o nada, ao invés da quantidade nula. Para animais transcenderem da representação do
conjunto vazio para uma representação do número zero, que satisfaça a teoria dos
números, teriam que compreender todo um sistema simbólico o que, aparentemente, está
além do seu alcance. Contudo, isso pode ser devido apenas a um acaso darwiniano de sua
evolução. Nada obsta que, em outros mundos, poderiam ter alcançado.
Para o cérebro humano, a representação do zero, seja como representado o nada, ou
conjuntos vazios, ou mesmo números abstratos, é um desafio, como acertadamente afirma
Nieder. Seus neurônios sensórios se desenvolveram para representar “alguma coisa”, na

206
ausência de estímulos perceptuais os neurônios estão inativos, gerando apenas sinais
potenciais de atividade como assinaturas de estado de repouso ou default.
Hans Berger, já em 1929, afirmava que o sistema nervoso central está sempre – e
não só em vigília – num estado de considerável atividade, também foi visto que cerca de
60 a 80 % de toda a energia consumida pelo cérebro ocorre em circuitos não relacionados
a qualquer atividade externa, isto é, é gasta enquanto ele não executa nenhuma tarefa
específica, presumivelmente apenas dispendida para mantê-lo vivo e operacional.
O seu consumo de energia aumenta apenas à razão de 5 % da atividade base
subjacente, ao desempenhar determinada tarefa, ou seja, há um incremento mínimo da
energia gasta quando ele estiver ocupado em relação à energia gasta quando estiver em
repouso, como vimos. Vimos que a rede de modo padrão (Default Mode Network) precisa
ser acionada de modo a que o cérebro saia de seu modo inercial, default, contudo seu
exato papel ainda é envolto em mistério.
Para animais simples, com limitado repertório comportamental, uma
representação ativa, simbólica, do “nada” está fora de seu alcance. Contudo, para animais
cognitivamente mais avançados, a ausência de estímulos pode se tornar uma categoria
comportamental relevante e consequentemente ser codificada por neurônios.
Passarei agora a mostrar como o cérebro opera as diversas instâncias do zero,
conforme descrito por Nieder (op. cit.). Para que se tenha uma representação quantitativa,
espera-se que os neurônios não somente denotem a ausência de estímulos como também
sejam capazes de colocar conjuntos vazios no extremo inferior de um continuum
numérico.
Para uma ordenação sistemática de magnitudes, a distância entre os números que
as representam é fundamental. Neurônios numéricos encontrados na rede parieto-frontal
de primatas são sintonizados para numerosidades escolhidas, onde apresentam atividade
máxima, quanto mais distantes eles estão da numerosidade alvo escolhida, menor a sua
atividade neuronal, devido ao efeito distância.
Quando há um input na rede neuronal, neurônios na área ventral intraparietal
(AVI) não exibem um forte efeito distância, contudo codificam conjuntos vazios como
uma categoria distinta das outras numerosidades, a o status de presença versus ausência
de itens. Dessa forma, os neurônios da área ventral intraparietal são capazes de denotar,
de uma forma não numérica, o zero mediante uma representação categórica.

207
Fig. 5.2 Áreas codificadoras do zero. Adaptado pelo autor, ap. Nieder 2016

Já os neurônios do córtex pré-frontal representam conjuntos vazios abstratamente.


Esses resultados sugerem que há uma hierarquia no processamento pelo cérebro de
conjuntos vazios, da área ventral intraparietal para o córtex pré-frontal lateral (CPL), ao
longo da qual conjuntos vazios são gradualmente destacados de suas propriedade visuais
e colocados em um contínuo numérico.
Desse modo, o cérebro transforma a ausência de itens contábeis (nada),
representada no cérebro pelas categorias mais baixas na hierarquia, como na AVI, em
uma categoria quantitativamente abstrata (zero) nas áreas mais altas dessa hierarquia,
como no CPL. Como o CPL está também engajado na representação de regras
quantitativas básicas, ele provavelmente fornece a base para o raciocínio simbólico em
crianças.
No primeiro estágio de Nieder a ausência de estímulos (nada) corresponde a um
mental/neural estado de repouso, no qual faltam assinaturas especificas. Esse estágio
equivale ao do coma profundo, onde o cérebro está em estado vegetativo, anestesiado.
Não há percepções, nenhum contato sensorial com o mundo exterior persiste, a caverna
de Platão está escura, nenhuma sombra tremula. Ele apenas vive. Nesse estágio não há o
que se convencionou chamar de consciência, assim não há Matemática, ou qualquer outra
coisa que seja produto da mente. Os animais, humanos inclusive, nesse estágio não se
diferenciam dos vegetais. Em termos da História da Matemática, esse estágio antecede ao
que denominamos de Matemática Animal.
No seu segundo estágio, a ausência de estímulos é reconhecida como uma categoria
comportamental específica, mas sua representação é ainda vazia de relevância
quantitativa. Nesse estágio surge a consciência, a mente consegue reconhecer a ausência
de estímulos; o homem se diferencia dos vegetais. Corresponde ao estágio cognominado

208
de Matemática Animal, onde numerosidades são reconhecidas, mas ainda não há
percepção ou hierarquização do conceito do zero.
Como Nieder observou, a evolução das representações da ausência de estímulos
para a de conjuntos vazios requer a transformação de um evento não sensorialmente
reconhecido para uma atividade cerebral gerada categoricamente. Isso exige que a
consciência desencadeie redes neurais capazes de executar essas tarefas, contudo, os
mecanismos fisiológicos envolvidos ainda permanecem desconhecidos.
No seu terceiro estágio, afirma, o nada adquire um significado quantitativo e é
representado como um conjunto vazio no extremo inferior de um contínuum numérico,
ou linha dos números. A ausência de itens contábeis (nada) é representada no cérebro na
área ventral intraparietal. Nesse ponto, cabe uma observação.
Todavia, Núñez, Cooperrideer e Wassmann (2012), levantaram uma questão
interessante, arguindo que povos que adotam uma contagem corporal, como os
Mundurukus ou os Yupno, não necessariamente mapeiam o conceito de número segundo
uma linha, que é um espaço unidimensional com uma métrica aproximada, seja ela
horizontal (culturas ocidentais), ou vertical (chineses).
Isso avivou entre esses autores a suspeita de que a representação linear contínua do
conceito de número poderia não ser universal. Um sistema de contagem corporal não
mapeia representações de números de uma forma linear, métrica, unidimensional, mas
sim de uma maneira bidimensional, associando números a partes do corpo, sem uma
métrica definida, seja ela linear ou logarítmica. Seus usuários tendem a usar apenas os
pontos extremos do segmento de linha, não empregando assim uma representação
contínua, gerando o que foi denominado de uma resposta bimodal.
A representação linear de números parece estar associada a povos com escritas,
cujos modos de escrever empregam linhas, sejam elas horizontais ou verticais. Contudo,
povos desprovidos de escrita, como os que empregam contagens corporais, não
necessariamente seguem-na, o que mostra que essa forma de representação de números
provavelmente é adquirida culturalmente.
Isso levanta uma interrogação interessante, como o cérebro hierarquizaria
quantitativamente o nada, o conjunto vazio, sem colocá-lo no extremo inferior de uma
linha numérica? Essa questão é pertinente se quisermos entender como, na pré-história,
os hominídeos dominariam esse conceito. A cultura parece ser a chave da resposta a essa
questão. Daí a importância de se estudar essas questões do ponto de vista da
etnomatemática.

209
No quarto e último estágio de Nieder a representação do conjunto vazio é estendida
para se tornar o zero matemático. O cérebro então transforma a ausência de itens contábeis
(nada), representada no cérebro pelas categorias mais baixas na hierarquia numérica
neuronal, na AVI, em uma categoria quantitativamente abstrata (zero) nas áreas mais altas
da hierarquia, no CPL.
Para Nieder, esses diferentes estágios do conceito de zero refletem progressivos
níveis de abstração mental. Observa então, magistralmente, que a sequência desse
processo cerebral espelha a linha do tempo dos avanços culturais e ontogenéticos da
evolução do conceito do zero. Note-se que essa é exatamente a posição defendida por
Damerow o que, novamente sublinhamos, demonstra a importância do estudo tanto da
Pré-História como da História da Matemática.
Isso fundamenta a importância desses estudos, da visão de suas origens, dos seus
primórdios, do seu nascimento, ou seja, de sua Uranschauung. A Matemática, como a
conhecemos modernamente, é um produto cultural, historicamente construído.
O “zero matemático” é um mentefacto, para empregar um termo introduzido pelo
biólogo Julian Huxley (1887-1975) como base de sua teoria da cultura. Os mentefactos
incluem os símbolos e códigos de uma cultura. Dessa forma, cultura mental pode ser
entendida como um conjunto de símbolos e códigos. Ele somente adquiriu sua
importância com os hindus, principalmente pela obra de Brahmagupta (598 – 670), cuja
aritmética sistematizou o emprego do zero e dos números negativos. Povos antigos, como
os egípcios, os gregos, os mesopotâmios não necessitavam de um símbolo para o zero
matemático no desenvolvimento de sua etnomatemática.
A codificação da ausência de estímulos e da quantidade nula requer treinamento
específico, observa Nieder, aparentemente não é uma propriedade inata, transmitida
geneticamente. As representações equivalentes ao zero, consideradas como categorias
comportamentais relevantes, se desenvolvem ao longo do tempo, como resultados de
tentativas e erros, e necessitam de reforço de aprendizado.
Quando um sujeito aprende a responder apropriadamente a ausência de estímulos
ou a conjuntos vazios recebe uma recompensa, este mecanismo é suficiente para tornar
neurônios sintonizados, alterando assim o seu estado inicial de repouso, default, ou seja,
de não sintonizados, gerando uma rede neural adequada ao tratamento dessa questão.
As capacidades cognitivas da mente humana se originam do trabalho de neurônios,
de sua organização em redes neuronais. A luta histórica e ontogenética da humanidade

210
para chegar ao conceito do zero matemático, pode, ao menos parcialmente, ser um reflexo
desse desafio neurobiológico, e talvez vice-versa.
Esse é outro exemplo de como conceitos matemáticos básicos podem ser elementos
estruturantes da mente que podemos denominar de tipicamente humana. Também é
exemplo de como cérebros estruturalmente diferentes poderiam chegar a soluções
distintas para tratamento de conceitos que denominamos de “matemáticos”, contudo,
sumamente importantes para a sobrevivência das espécies.
Longo caminho se descortina ainda no horizonte, para que parcamente possamos
compreender essas questões, muito permanece ainda sombrio. Todavia, ensinamentos
colhidos no caminho podem ser úteis para a Educação, para o aprendizado tanto da
Matemática como o de qualquer outra Ciência.

Animais têm noção do zero?

Quatro estágios são necessários para descrever a apreensão do conceito de “zero”:

1. A habilidade de definir “zero” como “nada”, i.e., a ausência de estímulos.


2. A classificação categórica de “zero” como “nada” versus “alguma coisa”.
3. A compreensão do zero como uma quantidade no extremo inferior de um contínuo
numérico.
4. A representação do zero como um símbolo.

Macacos rhesus aprenderam que conjuntos vazios de objetos ocupam uma posição
em um continuum numérico; macacos vervet usaram um raciocínio semelhante à
subtração para determinar se a alimentação estava presente ou ausente; um chimpanzé
treinado alcançou desempenho quase perfeito em tarefas que envolviam o conceito de
zero e um papagaio cinzento africano etiquetou espontaneamente um objeto ausente como
"nenhum". Isso mostra que, eventualmente, algumas espécies de animais podem ter
alguma noção do conceito de “zero”.
Howard (et. al.), em 2018, mostraram que a abelha, um pequeno inseto em um
ramo da árvore da vida animal, muito distante dos seres humanos, também pertence ao
clube de elite de animais que compreendem o conjunto vazio como o precursor conceitual
do número zero. As abelhas têm uma reputação de insetos inteligentes, possuem
elaborada memória de curto prazo, que lhes permitem considerar as próximas decisões,

211
compreender conceitos abstratos, como igualdades e diferenças e entender intrincadas
habilidades demonstradas por outras abelhas, além de poderem estimar o número de até
quatro objetos.
Mas Howard (et al.) demonstraram um número ainda mais surpreendente de
habilidades desses insetos. Esses pesquisadores relatam que as abelhas podem não só
classificar quantidades numéricas de acordo para as regras "maior do que" e "menor do
que", mas também podem extrapolar a regra “menos do que” para colocar conjuntos vazio
no extremo inferior de uma linha numérica mental. Todavia, a base neurofisiológica da
competência numérica dos insetos ainda é desconhecida, o que levante a intrigante
questão de como seus cérebros transformam “nada” no conceito abstrato de “zero”.
Um interessante e ilustrativo experimento foi realizado por Marie-Claire
Cammaerts e Roger Cammaerts em 2019. Conhecendo que operários da formiga Myrmica
sabuleti têm uma noção concreta de zero, e que elas podem esperar o tempo e o local da
próxima entrega de alimentos, examinaram experimentalmente se essas formigas
poderiam localizar o zero em sua devido lugar na linha numérica.
As formigas foram treinadas visualmente, passo a passo, para uma série contínua
de duas quantidades de elementos diferindo por uma unidade; no estudo os elementos
apresentados às formigas eram pequenos cartazes de papel onde foram desenhados
5,4,3,2,1 e zero (nenhum) retângulos, cada cartaz continha, em cada etapa, uma
quantidade inferior ou superior de retângulos, a qual era associada com comida.
O objetivo era examinar se as formigas poderiam definir o zero em seu devido lugar:
no final de uma série decrescente de números (5,4,3,2,1) e no início de uma série crescente
de elementos (1,2,3,4,5).
No final do experimento, concluem os pesquisadores, as formigas perceberam o
zero como sendo "1 elemento menos 1", bem como 1 elemento como sendo '0 elemento
mais 1'. Elas tinham, portanto, corretamente localizado o zero em seu lugar devido na
linha numérica.
Os mesmos pesquisadores, em outra pesquisa, igualmente interessante, mostram
que operários da mesma espécie de formigas podem adquirir a noção de “zero” por meio
do olfato. Essa espécie usa essencialmente odores para navegação e usa pistas visuais
somente na ausência de odores úteis.
Quando os experimentos empregavam um odor agradável (baunilha, lavanda), a
noção básica de “nada” foi associada com uma recompensa e sua ausência indicava falta
de recompensa, O que chamou a atenção, é que essa noção foi mais facilmente aprendida

212
quando o experimento propunha o contrário, isto é, a ausência de um odor associada com
uma recompensa e sua presença relacionada com a falta de recompensa. Quando o odor
era desagradável (cebola), as formigas aprendiam essa noção mais facilmente quando a
ausência do odor era recompensada.
É a primeira vez que uma pesquisa mostra que a noção de “nada” em animais pode
ser aprendida por meio de pistas olfativas, o que nos permite admitir que essa noção pode
ser assimilada por meio de estímulos provenientes de qualquer um dos órgãos sensórios.

A Representação Numérica nos Lobos Parietais: é Abstrata ou Não Abstrata?

Na última década emergiu um consenso quase geral de que a representação de


informação numérica é abstrata e processada no sulco interparietal (IPS). Representações
são padrões de ativação dentro do cérebro que correspondem a aspectos do ambiente
externo. Acredita-se, portanto, que o IPS é uma região essencial para a cognição
numérica, capaz de representar números independentemente se a notação de input é
simbólica (p.ex., símbolos numéricos, como 3, V, etc., ou palavras: one, dez, etc.) ou não
simbólica (p.ex., padrões de pontos: :::) e sem importar se os estímulos são apresentados
visual ou audivelmente.
Populações neuronais que codificam inputs numéricos abstratamente são
insensíveis à forma de input na qual a informação numérica é apresentada, isto é, sejam
dígitos, palavras para número ou numerosidades. Representações não abstratas são
populações neuronais que são sensíveis à forma na qual os números são apresentados,
isto é, populações que codificam a magnitude do dígito 9, ou da palavra NOVE, não serão
as mesmas.
Essa é uma questão fundamental para a compreensão de como símbolos são
processados neurofisiologicamente. Como a matemática é uma ciência simbólica por
excelência, também é ponto fulcral para o entendimento do funcionamento de seus
processos cognitivos no cérebro humano. O homem, segundo Cassirer, é um ser
simbólico por natureza, porém, como ele processa esses símbolos? O homem moderno
cedo aprendeu a manipulá-los, mas como o faz ainda é mistério.
Suportando a ideia de que números são representados abstratamente descobriram-
se alguns fenômenos, como, por exemplo, a associação numérica espacial de códigos de
resposta (SNARC). Pessoas respondem mais rapidamente a números pequenos com
respostas tecladas pela mão esquerda que com a mão direita, mas mais rapidamente a
grandes números com teclas manipuladas pela mão direita do que com a mão esquerda.

213
Por exemplo, responder ao dígito 2 com a mão direita. Esse efeito é independente de
notação.
Outro fenômeno é o efeito da distância numérica: o tempo de resposta a um teste
aumenta quando a distância entre dois números diminui, o qual também é independente
da notação.
Contudo, recentemente descobriu-se que a representação numérica nos lobos
parietais pode não ser integralmente abstrata. Kadosh (2007) e outros, empregando
ressonância magnética funcional, descobriram que ao menos parte dos substratos
neuronais para representação numérica em adultos saudáveis é dependente de notação.
Em 2019 estudos do grupo de pesquisa de Alexandrine Faye confirmaram a
predição do Triple Code Model - TCM de que ambos os sulcos intraparietais (IPS), tanto
o direito como o esquerdo, possuem uma representação analógica e independente de
formato (abstrata) de quantidades numéricas. Os principais resultados de seus estudos
indicaram que há uma ativação bilateral de ambos sulcos intraparietais em todas as
condições, independente do formato (simbólico ou não simbólico).
Também confirmaram que o giro angular desempenha um papel importante em
fatos aritméticos. O giro angular esquerdo parece estar envolvido em atividades
correlacionadas a magnitudes, sugerindo que esta região pode participar na identificação
e interpretação de dígitos arábicos, pareando quantidades com os respectivos dígitos.
Aparentemente, as ativações simbólicas e não simbólicas se diferenciam apenas em
áreas secundárias da região dos IPS, particularmente no giro frontal inferior. Além disso,
dois circuitos fronto-parietais lateralizados parecem estar associados com habilidades
numéricas, um direito para magnitudes não simbólicas e um esquerdo para magnitudes
simbólicas (Faye, 2019).
Verguts e Fias em 2004 apresentaram um modelo de rede neural capaz de ser
treinado com inputs simbólicos e não simbólicos. Seus resultados mostraram que um
subconjunto de neurônios originalmente respondendo a números análogos não simbólicos
adquiriu seletividade ao símbolo discreto correspondente e, enquanto preservando
propriedades de respostas análogas, tornou-se mais finamente sintonizado com o símbolo
numérico específico.
Esse estudo envolveu unicamente um modelo computacional de uma rede neural,
porém, estudos neurofisiológicos recentes (Eger, et alii., 2009), parecem suportar essas
conclusões. Isso parece implicar que redes neuronais com processamentos análogos
podem ser “treinadas” para sintonizarem símbolos correspondentes. Embora essa possa

214
ser uma resposta ao problema, a questão de se representação numérica é inteiramente
abstrata ainda permanece aberta, ao menos sob certas condições.

Representações Ordinais e Cardinais de Números – Efeito SNARC

Um problema sobre o qual já se verteu muita tinta é sobre a precedência do aspecto


cardinal ou do ordinal do conceito de número. A cognição numérica abrange os conceitos
de quantidade (cardinalidade: quantos ?) e de ordem (seriação: primeiro, segundo,
terceiro, etc.,). Discute-se qual o primeiro. Matemáticos, historiadores dessa ciência,
psicólogos, educadores e demais interessados já se debruçaram, vez ou outra, sobre o
tema. Consensos foram acordados e posteriormente renegados. Vejamos o que os
neurocientistas nos têm a dizer.
Fias (2007) mostrou que a ordenação de letras no alfabeto é processada por uma
rede neuronal cortical bastante similar àquela envolvendo o julgamento de magnitudes, o
que sugere que o processamento mental de números cardinais e ordinais é baseado nas
mesmas estruturas corticais. Em termos de processamento neural, quantidade e ordem
podem ser apenas dois lados da mesma moeda.
Aparentemente, na cultura ocidental tanto o alfabeto como os números parecem ser
representados em uma “linha mental” horizontal orientada da esquerda para a direita (o
efeito SNARC: Spatial-Numerical Association of Response Codes). Já os chineses
letrados associam números a um eixo vertical, o que mostra que fatores outros, como a
direção da escrita adotada, podem influir nessa percepção. É interessante observar como
a cultura pode influir nesse efeito cognitivo.
Na maioria dos adultos, a mera apresentação de um numeral arábico já levanta
preconceitos na orientação da sua atenção e na sua resposta motora. Mesmo quando
executando uma tarefa simples como decidir se um número é par ou ímpar, ou se é maior
ou menor que cinco, números pequenos são automaticamente colocados no lado esquerdo
do espaço, enquanto que números maiores são mapeados no lado direito. Isso é uma
consequência do efeito SNARC.
Quando se pede para indicar a posição correta de certos números ditados em um
segmento de reta, numerado de 1 à esquerda e 100 à direita, mesmo crianças do jardim
da infância colocam números menores à esquerda e números maiores à direita. Contudo,
não distribuem os números de um modo uniforme, mas devotam mais espaços para
números menores, impondo assim gradativamente uma maneira logaritmicamente

215
comprimida, seguindo a Lei de Weber-Fechner. Mesmo não civilizados se comportam
desse modo, como constatado entre os Mundurucus, o que mostra que esse efeito
(SNARC) independe da educação e da cultura.
O que é interessante é que tanto pessoas que enxergam quanto pessoas cegas
apresentam o efeito SNARC, o que demonstra a existência de uma maneira de
representação de números inata, relacionada com a estruturação do cérebro.
Fischer, Castel, Dodd, & Pratt (2003) conduziram estudos de ERP 30 visando
investigar se essa representação interna de números poderia induzir uma mudança de
atenção no campo de visão correspondente. Empregaram pistas numéricas visuais
lateralizadas, isto é, números 1 e 2, 8 e 9, desprezando os centrais 3,4,5,6,7. Seus estudos
mostraram que, pessoas com visão normal seguiam mais rapidamente pistas numéricas
pequenas (1 e 2) quando apresentadas no campo visual esquerdo, enquanto que pistas
numéricas grandes (8 e 9) eram detectadas mais rapidamente quando apresentadas no
campos visual direito. Isso confirma o efeito SNARC, números pequenos são
automaticamente colocados no lado esquerdo do espaço, enquanto que números maiores
são mapeados no lado direito, associando-o aos campos visuais correspondentes.
É interessante observar que a percepção de numerosidades diminui com a visão
periférica, particularmente quando os pontos estão densamente compactados, o que não
é de se admirar, pois a visão é inferior nesta região.
Salillas, Grana, El-Yagoubi e Semenza (2009) resolveram investigar se o mesmo
fenômeno se verificava em pessoas desprovidas de visão. Empregando pistas numéricas
auditivas ao invés de visuais, comprovaram que pessoas, tanto com visão normal como
cegas, em culturas onde números são escritos da esquerda para a direita, são mais rápidas
em efetuar julgamentos sobre números pequenos com a mão esquerda, enquanto que para
números grandes a mão direita é melhor.
A ausência de inputs visuais e o uso de recursos auditivos, com menor poder de
discriminação, mas que requerem maior de memória de trabalho, pode conduzir pessoas
cegas a manipular a linha numérica mental de uma maneira mais controlada do que

30
Um potencial relacionado a um evento (event-related potential - ERP) é a resposta medida da reação do
cérebro que é resultado direto de um evento sensorial, cognitivo ou motor. O estudo do cérebro dessa
maneira proporciona meios não invasivos de avaliação de pacientes com doenças cognitivas, e é feito por
meio de eletroencefalogramas.

216
pessoas normais conseguem. Isso pode explicar porque pessoas cegas têm uma melhor
performance quando comparadas com pessoas normais nessas tarefas.
Outra investigação interessante diz respeito a se a linha numérica mental pode
sofrer influência sistemática de outras magnitudes. Holmes e Lourenço (2013) da
Universidade da Califórnia analisaram essa possibilidade fazendo pessoas efetuarem
julgamentos sobre números enquanto expostas a outra magnitude, no caso, peso.
Mostraram que a linha numérica mental é modulada por informações de outra
magnitude (peso), mesmo quando essa informação é irrelevante para as tarefas em
execução. Levantam a possibilidade de que outras magnitudes possam influir na linha
numérica, abrindo com isso novas linhas de investigação sobre como diferentes tipos de
informações sobre magnitudes são combinadas mentalmente. Mesmo assim, existem
autores que defendem que a linha numérica independe de modulações de outras
magnitudes (Moskaleva & Nieder, 2014).

A Linha dos Números, o Eixo dos Reais, é uma Característica Estrutural do Cérebro
Humano?

Cabe aqui indagar sobre uma interessante questão levantada por Núñez,
Cooperrideer e Wassmann, da Universidade da Califórnia, em um artigo sobre o conceito
de número entre indígenas da Nova Zelândia (2012). Aparentemente, a totalidade das
culturas já estudadas mapeia o conceito de número segundo uma linha, que é um espaço
unidimensional com uma métrica aproximada, seja ela horizontal (culturas ocidentais),
ou vertical (chineses).
Essa linha está tão impregnada na cultura matemática, que é praticamente
impossível aos matemáticos modernos conceberem os números senão ordenados em uma
linha, denominada pelo Cálculo moderno de linha dos números reais, ou eixo numérico.
Associa-se a cada ponto desse eixo um número real. Contudo, esses autores arguem que
o conceito cardinal de número pode existir independentemente dessas representações, ou
seja, não necessariamente associando números a pontos de uma linha unidimensional.
Recordando, as crianças tendem a colocar números menores à esquerda de um
segmento e os maiores à direita, alocando mais espaços aos números menores e menos
aos maiores, de uma maneira logarítmica, o que suporta a ideia que esta representação
obedece á lei de Weber-Flechner, segundo a qual uma sensação subjetiva aumenta
proporcionalmente ao logaritmo da intensidade do estímulo. A medida em que as crianças

217
recebem uma educação matemática, elas tendem a distribuir os números dessa linha de
uma maneira linear, aproximadamente igualmente espaçados.
Os Mundurukus, como visto, também se comportam como as crianças ocidentais,
mapeando os números logaritmicamente. Contudo, observam esses autores, alguns dos
participantes do estudo entre os Mundurukus (cerca de 37%) tendem a usar apenas os
pontos extremos do segmento de linha, não empregando assim uma representação
contínua, gerando o que foi denominado de uma resposta bimodal. Isso levantou entre
esses autores à suspeitar de que a representação linear contínua do conceito de número
poderia não ser universal, exigindo assim investigações adicionais.
O grupo de Núñez conduziu estudos entre os Yupno, um grupo indígena das
remotas regiões da Papua, Nova Guiné. Os Yupno dispõem de um sistema de contagem
corporal, onde associam números às partes do corpo. Por exemplo, números de 1 a 5
associam aos dedos da mão, 11 ao dedo maior do pé, etc. Eles dispõem de nomes para
números além de 20 e têm acesso a um vocabulário creolo baseado no inglês, mas lhes
faltam ferramentas para medidas precisas de espaço e tempo.
É importante notar que o emprego de um sistema de contagem corporal não mapeia
representações de números de uma forma linear, métrica, unidimensional, mas sim de
uma maneira bidimensional, associando números a partes do corpo, sem uma métrica
definida, seja ela linear ou logarítmica.
Os resultados dos estudos de Núñez mostraram que adultos não escolarizados da
comunidade isolada de Yupno, nas remotas montanhas da Nova Guiné, apesar de terem
conceitos numéricos cardinais precisos, não exibem intuições numéricas lineares quando
apresentados à uma linha externa. Nem mesmo quando seguindo instruções explícitas
para colocar o número 5 em linha entre os extremos 1 e 10 conseguem fazê-lo. Isso talvez
devido à sua maneira corporal de contagem, que não é linear. Seus resultados conduziram-
nos à conclusão de que os Yupno apresentam o mesmo tipo de resposta bimodal que os
Mundurucus, o que sugere que a intuição de uma linha de números não se manifesta
universalmente de uma maneira espontânea.
A representação linear de números parece estar associada a povos com escritas,
cujos modos de escrever empregam linhas, sejam elas horizontais ou verticais. Contudo,
povos desprovidos de escrita, como os que empregam contagens corporais, não
necessariamente seguem-na, o que mostra que essa forma de representação de números
provavelmente é adquirida culturalmente.

218
Na Idade da Pedra provavelmente os Urmatemathikers não conheciam essa forma
linear de representação de números. Empregavam apenas correspondências um-a-um em
contagens corporais ou mediante calculi e possivelmente somente quando passaram a
empregar a técnica dos entalhes, que exigiria que cada entalhe seja executado
sequencialmente, de uma maneira ordinal, passaram a usar formas lineares.
A História da Ciência mostra que a representação de conceitos, ou objetos,
científicos condiciona a maneira de como os estudiosos os encaram. Como exemplo,
citaremos o caso da representação de átomos como pequenas esferas, ou pontos. Ainda
hoje, apesar dos avanços da mecânica quântica, é comum pensar em átomos como
pequenas esferas. Contudo, na antiguidade grega, Platão imaginava-os como pequenos
poliedros, e Aristóteles admitia que possuíam infinitas formas.
Essa forma de pensar dominou toda a antiguidade e a idade média, perdurando até
o renascimento. Somente com o trabalho de Giordano Bruno, de 1591, o De triplici
mínimo et mensura, a representação de átomos como pequenas esferas, ou “glóbulos”,
começou a tomar corpo continuando a prevalecer até o presente (cf. Lüthy, 2000).
Os povos da antiguidade, como os gregos, os egípcios e os babilônicos não
representavam os números segundo uma linha, essa forma de pensar lhes era estranha. A
noção de coordenadas, que utiliza eixos numéricos coordenados, embora já
primitivamente empregada pelos egípcios, os quais a ensinaram aos romanos, somente
foi consolidada com a adoção generalizada da Geometria Analítica de Descartes e Fermat.
A partir daí, com a imensa praticidade de, mediante seu emprego, se construírem gráficos
de funções para o estudo do Cálculo, a noção de linha dos números reais se tornou ubíqua
e indispensável ao pensamento matemático moderno.

Outros eixos espaciais também apresentam o efeito SNARC?

O efeito SNARC sugere que números são representados em uma linha horizontal,
orientada da esquerda para a direita, como o eixo dos números reais, onde os números
menores estão a esquerda e os maiores a direita.
Todavia, muito menos evidências existiam se outros eixos, como o vertical e o
sagital apresentavam esse efeito. Aleotti (et.al.) investigaram, em 2019, pela primeira
vez o efeito SNARC ao longo dos três eixos cartesianos.

219
Suas descobertas podem ser interpretadas como uma evidência em favor de três
linhas de número mental independentes, uma para cada eixo (ou seja, horizontal, vertical
e sagital). Fundamentaram suas conclusões mostrando que seus experimentos
encontraram evidências do efeito SNARC ao longo dos três eixos. Sugerem, portanto,
que os números sejam representados ao longo de um espaço numérico mental
tridimensional, que, por sua vez, pode ter guiado originalmente a formulação de
representações de números utilizadas em matemática, como o triedro de eixos
coordenados da geometria analítica.
Independentemente de dúvidas metodológicas sobre seus experimentos, como,
por exemplo, a influência de um espaço tridimensional iluminado durante suas execuções,
esse estudo suscita questionamentos bastante interessantes para a matemática. Mostra que
o cérebro tem uma capacidade de processar números tridimensionalmente, o que lhe
permite acessar volumes, de avaliar numericamente todo o espaço que nos cerca, nosso
Lebensraum. Isso esclareceria o mecanismo neural que processaria a Geometria, tanto
plana como espacial. Teríamos, pela primeira vez, uma pista sobre o tratamento neural
dessa parte da matemática.
Contudo, cabe uma observação. Isso não significa que temos em nosso cérebro
um sistema de eixos coordenados, seja ele cartesiano ou não, mas sim que temos a
capacidade neural de avaliar quantitativamente as três dimensões do nosso espaço:
comprimento, largura e altura. Estímulos provenientes de pistas sensórias, visuais,
auditivas ou outras podem, por meio desse sistema, serem avaliados quantitativamente
permitindo assim reconstruir a noção de um espaço tridimensional regrado.
Os estímulos visuais são produzidos pela projeção pelo cristalino dos objetos,
formando imagens bidimensionais no fundo da retina, sendo daí conduzidos pelo nervo
ótico para as áreas de processamento visual no cérebro. Estudos futuros serão necessários
para investigar se os três eixos podem compartilhar propriedades numéricas produzindo
efeitos SNARC "mistos", combinando os três eixos. A combinação dessas imagens
bidimensionais com uma terceira dimensão, por meio desse espaço numérico
tridimensional neural, possibilitaria cria uma representação neural do espaço. Contudo,
esse mecanismo ainda necessita ser investigado.

220
Existe um “Senso Geométrico” inato?

No item anterior vimos que o cérebro possui uma métrica primitiva inata, que
independe de eixos coordenados, baseada em magnitudes, que lhe permite fundamentar
uma geometria métrica inata.
O senso numérico seria a intuição básica para o conceito de número, para a
aritmética, porém cabe indagar se existiria um senso ou faculdade inato, responsável pelas
intuições básicas da geometria, um senso geométrico?
Kant distinguiu dois tipos de conhecimento humano a priori: o analítico, que
sabemos ser verdadeiro pela análise lógica, e o sintético, representado por nossas
intuições de tempo e espaço. Nosso conhecimento de tempo seria sistematizado na
aritmética, que se baseia na intuição de sucessão, e o nosso conhecimento do espaço seria
sistematizado na geometria. Para Kant nossos sentidos não podem fazer seu trabalho sem
ordenar suas percepções na estrutura de espaço e tempo.
Nosso conhecimento sobre o mundo externo depende principalmente das
informações obtidas pela visão. Existem diferentes trajetórias neurais para o
processamento de informações visuais sobre os objetos, tais como: forma, movimento,
cor e profundidade.
Vários autores, como Gombrich, Bednarik, Halverson, Latto e Hudson, enfatizaram
que os motivos primitivos, especialmente as formas geométricas, são esteticamente
interessantes não apenas porque refletem características do mundo, mas sim porque
estimulam propriedades do sistema visual humano.
Em 1980 Hubel e Wiesel descobriram que células do córtex visual primário são
organizadas para responder à orientações específicas de uma linha, e que a percepção de
formas pode ser fabricada pela agregação de características selecionadas. Descreveram
como o córtex pode funcionar como um estágio primário na análise da orientação de
linhas, e como é um aspecto importante do processamento da informação visual, que se
efetua por meio de uma hierarquia de células simples, complexas e hipercomplexas,
através das quais a natureza da informação acerca da linha pode se tornar cada vez mais
abstrata.
Barlow propôs a teoria da detecção de características, pela qual as células corticais,
que formam o nível inferior de uma hierarquia de células, respondem progressivamente
às características geométricas cada vez mais abstratas das formas. Dessa maneira, células
dos mais baixos níveis responderiam às linhas mais primitivas, enquanto que as dos níveis

221
mais altos responderiam à características geométricas simples dessas linhas, como
ângulos, paralelismo e perpendicularismo e, na sequência, pelas combinações de
atividades de células complexas e hipercomplexas particulares, surgiria a percepção de
formas geométricas mais elaboradas, como retângulos, losangos e círculos, e assim por
diante, até a percepção de figuras representacionais, que envolveriam centros de alta
ordem do córtex cerebral e do cérebro.
Presentemente essa teoria está superada, pois várias pesquisas mais recentes
demonstraram que o processamento visual é muito mais complicado do que se supunha.
O processo todo é ainda desconhecido, embora se conheçam algumas pistas sobre o
mesmo.
O olho humano capta a forma dos objetos e imprime na retina uma imagem
bidimensional (2D) dos mesmos, registrando basicamente seus contornos. O mecanismo
neural de como o cérebro reconstrói uma realidade tridimensional (3D) a partir dessa
imagem 2D tem fascinado os cientistas. Muita pesquisa tem se focado na estereopsia,
onde se procura inferir a sensação de profundidade com base em pequenas disparidades
de imagem entre os olhos direito e esquerdo.
Todavia, mesmo sem estereopsia, pode-se obter uma vívida sensação de
profundidade, que depende de outras pistas como sombras, perspectivas, texturas,
gradiente e paralaxe de movimento, ou outras.
Em 2010 cientistas do Montreal Neurological Institute and Hospital – The Neuro,
McGill University descobriram que o cérebro tem a habilidade de determinar a forma de
um objeto simplesmente processando sons codificados em frequência, sem o auxílio de
qualquer recurso, tátil ou visual, como nos golfinhos. Nós vivemos em um mundo onde
percebemos objetos usando informações provenientes de múltiplos inputs sensoriais e
nosso sistema perceptual pode integrar informações presentes em diferentes sentidos e
gerar uma representação única do objeto.
Kourtzi e outros (2003), empregando fMRI, mostraram que a sub-região posterior
do complexo lateral occipital (CLO), uma área envolvida na análise da forma visual, pode
processar características 2D de objetos independentemente de transformações de imagem
(pequenas rotações ou curvaturas), enquanto que a região anterior do mesmo complexo
pode representar a forma 3D de objetos e sua posição em profundidade em cenas visuais.
É possível, assim, que populações de neurônios no CLO posterior mediem a análise
de formas baseadas em propriedades de imagens 2D, enquanto que populações de
neurônios no CLO anterior intermediem o reconhecimento de objetos baseados em

222
representações 3D um tanto abstratas. Essas representações 3D algo abstratas, uma
espécie de senso geométrico inato rudimentar, podem desempenhar um papel importante
quando necessitamos interpretar rapidamente cenas complexas ou reconhecer objetos
independentemente de mudanças nas suas imagens.
Porém, ressaltamos novamente, o processo inteiro ainda é desconhecido, muito do
qual resta ser determinado. É possível, todavia, dentro do atual estágio de conhecimento
sobre a questão, que o homem possua um senso geométrico rudimentar, inato,
responsável pelas suas intuições geométricas elementares.
Aparentemente existem dois processos básicos dos humanos e a dos animais acerca
da sua apreensão do espaço: a visualização de objetos nele incluídos, ou seja, a percepção
das formas geométricas, e a sua navegação no espaço, a saber, como se deslocar e se
localizar no mesmo. Humanos e animais representam objetos geométricos codificando
seus ângulos e comprimentos relativos, definindo partes de estruturas tridimensionais ou
formas bidimensionais sem levar em conta seus tamanhos absolutos.
Contudo, quando navegando, representam sua posição codificando as direções e
distâncias de superfícies extensas no terreno, ao invés de observar os ângulos formados
pelas mesmas. Todavia, nenhum desses dois processos é adequado para proporcionar um
suporte completo para as intuições geométricas, que requer uma representação integrada
entre distância e ângulo.
Aos quatro anos crianças, com pouco treinamento ou feedback, podem empregar
mapas simples que simbolizam distâncias e relação de ângulos abstratas em uma vista
aérea de um conjunto de objetos ou superfícies. Essas crianças falham em integrar
informações sobre distâncias e ângulos nesses mapas. Somente entre 6 e 10 anos as
crianças começam a integrar informações sobre distância e ângulos, quando começam a
conhecer as propriedades dos triângulos, pontos sem dimensão e linhas perfeitamente
retas.
Para adultos que adquiriram intuições euclidianas mais abstratas, um triângulo pode
ser descrito pelas distâncias entre seus vértices, pelos ângulos entre seus lados, ou por
uma combinação entre comprimentos dos lados e seus ângulos respectivos, integrando
assim distância e ângulo.
Além do modo de como visualizar objetos, responsável pelas intuições geométricas,
é necessário saber como se orientar no espaço, como se deslocar no mesmo, como
construir mapas representando-o. A memória espacial é a parte da memória responsável
por reter informações sobre o ambiente e sua orientação espacial.

223
Nas ciências cognitivas orientação egocêntrica significa a orientação espacial em
relação à posição do corpo no espaço. O hipocampo é o órgão do cérebro que provê
animais com um mapa espacial do ambiente, arquivando informações em relação a um
espaço não egocêntrico, isto é, independente da posição desse corpo no espaço, assim
propiciando um ponto de vista independente na memória espacial.
O hipocampo é responsável pela memória de longo prazo alocêntrica, isto é, a que
faz referência à pistas externas no espaço, ou seja, é dependente do contexto. O
hipocampo direito é empregado na navegação em ambientes amplos, em larga escala,
enquanto o hipocampo dorsal realça a memória de localizações espaciais previamente
conhecidas.

224
CAPÍTULO VI

HOMO SIMBOLICUS

Um símbolo não traz explicações; impulsiona


para além de si mesmo na direção de um sentido
ainda distante, inapreensível, obscuramente
pressentido e que nenhuma palavra de língua
falada poderia exprimir de maneira satisfatória.

Karl Jung

Introdução

A Matemática é, por sua própria natureza, a ciência dos símbolos. A primeira


providência a ser adotada, como recomenda a escola formalista, é a expressão dos
conceitos matemáticos em símbolos. Para ela, a Matemática nada mais é que um jogo
com esses símbolos, seguindo determinadas regras. Considera que a linguagem do vulgo
não é adequada à concisão e exatidão por ela requerida.
Cassirer, em seu Essay on Man, define o Homem como um ser simbólico, ao invés
de um ser racional, porque é

este caráter do conhecimento humano que determina o lugar do homem na cadeia dos
seres. Conhecimento humano é por sua verdadeira natureza conhecimento simbólico. É
este o fator que caracteriza tanto sua força como suas limitações. E por pensamento
simbólico é necessário fazer uma distinção nítida entre o real e o possível. Um símbolo
não tem existência real como parte do mundo físico; ele tem um significado. No
pensamento primitivo é muito difícil diferenciar entre as duas esferas de ser e de
significado. Elas estão constantemente sendo confundidas; um símbolo é considerado
como que dotado com poderes mágicos físicos. Mas com o posterior progresso da cultura
humana a diferença entre coisas e símbolos tornou-se claramente sentida, o que significa
que a distinção entre realidade e possibilidade também se torna mais e mais pronunciada”
(apud Otte, 2003).

A seguir veremos o que é um símbolo, quais suas mais remotas possíveis


manifestações na escala evolutiva humana e porque o pensamento simbólico é
considerado uma indicação de comportamento moderno. Será vista a noção

225
matemática de correspondência, mostrar-se-á como ela é fundamental parcela
estruturante da mente humana, bem como o seu papel no soerguimento dos símbolos.
Analisaremos, um tanto extensamente, como a nominação e o poder criador da palavra
podem ser uma das mais antigas manifestações do pensamento simbólico, bem como
isso auxilia a compreensão do poder criador das definições em Matemática.
As primeiras expressões de pensamento simbólico matemático em hominídeos
podem ser de caráter geométrico e numérico e que podem ter ocorrido muito mais cedo
do que tradicionalmente se pensava.

Correspondências

A noção de correspondência, ou relação binária, é fundamental na estruturação


da mente humana. Matematicamente é considerada um conceito primitivo, aceito a priori.
Contudo, como o cérebro humano realmente processa esta noção, quais os mecanismos
neurofisiológicos envolvidos, quais seus circuitos neurais, são alguns dos mais arcanos
mistérios de nossa mente, sobre os quais pouquíssimo se conhece. Sabe-se, talvez, mais
acerca do universo do que sobre nossa mente.
Há uma correspondência entre dois conjuntos A e B, denominados de bases ou
conjuntos básicos, quando a cada objeto, ou alguns objetos, do primeiro conjunto A estão
associados, segundo uma lei ou um princípio qualquer, a um ou vários elementos do
conjunto B. Empregarei, neste contexto, a palavra vários significando um ou mais.
Uma correspondência entre dois conjuntos A e B, nesta ordem, pode ser um a
vários, vários a um, vários a vários e um a um. Daremos alguns exemplos. Sejam os
conjuntos básicos: A, dos números naturais: A={1,2,3,4,5}; B, das letras: B={a,b,c,d}.
Indicaremos, a seguir, esquematicamente, um exemplo de cada tipo de correspondência.

226
vários a um um a vários vários a vários um a um

ou unívoca Fig.6.1 ou biunívoca

Uma correspondência vários a um entre os conjuntos A e B, tal que todo elemento


de A entre na correspondência denomina-se aplicação ou, à vezes, função. O conjunto A
é então denominado de domínio e o B de contradomínio.
Teoricamente, a cada pessoa (ou objeto), considerada pertencente ao conjunto A
(p ∈ A), das pessoas (ou dos objetos), corresponderia um único nome, pertencente a B (n
∈ B), o conjunto dos nomes, em uma correspondência um a um ou biunívoca, e este nome
caracterizaria, de maneira única, esta pessoa (ou objeto). Essa é uma observação
importante, como será visto adiante, quando estudarmos o poder da nominação.
Contudo, na prática isso não ocorre, pois existem os homônimos, pessoas com o
mesmo nome, principalmente comuns como João da Silva, ou John Smith. Portanto, a
correspondência pessoa – nome é do tipo vários a um, ou seja, várias pessoas podem ter
um mesmo nome.
Uma correspondência um a vários, em linguística, chama-se polissemia, isto é, a
uma determinada palavra ou locução “l”, (l ∈ A), pode-se atribuir vários sentidos “s”,
(s ∈ B), por exemplo: “prato”, pode significar: 'vasilha', 'comida', 'iguaria', 'receptáculo
de balança', 'instrumento musical', etc.
Já a correspondência vários a vários pode parecer desordenada, contudo, pode ser
extremamente importante quando procuramos, por exemplo, analisar as funções sociais
em uma sociedade primitiva. As pessoas (p ∈ A), nessas sociedades, podem desempenhar
várias funções (f ∈ B). As mulheres, por exemplo, podem cuidar dos filhos, plantar,
colher, preparar a alimentação, etc. Já os homens devem caçar, guerrear, proteger a
comunidade, etc. Mas nada inibe que os homens possam também cuidar dos filhos ou

227
plantar e que as mulheres possam caçar ou guerrear (amazonas). A sociedade pode ter um
único chefe (cacique) ou ser regida por um conjunto de anciões.
A correspondência um a um, ou biunívoca, é a mais importante para o estudo da
Matemática da Idade da Pedra. É basilar, por exemplo, para se introduzir a contagem ou
enumeração. Se uma sociedade primitiva, onde ainda não foram inseridos nomes para
números, desejar manter um registro de quantas presas foram caçadas, ela pode separar
um seixo para cada animal, acumulando-os em um monte, ou efetuar um entalhe em um
osso, fazendo assim uso de correspondências biunívocas.
Um signo é um padrão de estímulo com um significado. Um símbolo é um signo
que denota seu objeto unicamente pelo fato de que convencionalmente deva assim ser
interpretado. Consiste em uma regra natural, convencional, lógica ou habitual que faz
corresponder um signo (s ∈ A), ao objeto (o ∈ B) que se pretende interpretar: . ↔ 0

A propriedade de um signo corresponder a um símbolo e, concomitantemente, um


símbolo corresponder a um signo é denominada nas ciências cognitivas de simetria.
Matematicamente isso é óbvio, pois toda correspondência biunívoca é necessariamente
simétrica.
Relembrando, a palavra símbolo é derivada do grego arcaico σύμβολον
(symbolon), que significava a metade de um objeto quebrado para que, colocada junto
com a outra metade, verificasse a identidade do portador. A palavra grega passou para
symbolum em latim ("símbolo" em português). No seu significado etimológico original,
praticamente cumpria a função de uma talha dupla. Esse entendimento está hoje quase
esquecido (Cf. Liddel, 1940).
Podemos identificar três tipos principais de talhas: a simples, formada por um único
bastão ou vara de madeira, onde se entalham registros numéricos. A dupla, que era feita
de um pedaço de madeira fendido no sentido de seu eixo longitudinal até quase a sua
extremidade. A parte maior era a “matriz” (stock), e a menor o “encaixe”(inset). Muito
mais raras eram as triplas, formadas por três partes.

228
Encaixe (inset) Matriz (stock)

Registros numéricos Marcas de


propriedade

Fig.6.2 - Talha dupla (autor)

Um número é um símbolo de uma quantidade, ou seja, algo que


convencionalmente denota uma quantidade. Já um numeral é um signo, um padrão de
estímulo com o significado de um número.
Um símbolo é algo que geralmente adquire conotações abstratas, enquanto que
um signo normalmente é algo visualizável, materialmente perceptível. Do mesmo modo,
um numeral (signo) é sempre menos que o conceito que ele representa, ou seja, de
número. Já o número (símbolo) representa mais do que o significado imediato e óbvio do
numeral.
Numeral é qualquer signo capaz de representar um número. Se esse signo é um
sinal gráfico, temos então os numerais em seu sentido habitual: 1, 2, 3, 4,..., I, II, III,
IV,.... Se esse signo é uma palavra, (um, dois, três,...; ein, zwei, drei,...) temos então os
nomes para os números.
Um número é a representação simbólica de uma quantidade, uma percepção de
uma propriedade abstrata que certos grupos têm em comum. Por exemplo, dados: parelha
de cavalos, junta de bois, par de meias, casal de coelhos - a abstração da propriedade
comum “dois” desses grupos, independentemente de qualquer conotação concreta, exigiu
da humanidade muito tempo para ser adquirida. Contudo, além de uma representação, no
que consiste o conceito de número? Quais suas raízes neurológicas?

Linguagem Simbólica

A comunicação entre seres, no caso, humanos, é mediada por uma linguagem, seja
ela verbal ou não. A linguagem popular, tanto verbal como escrita, não é adequada para
emprego em raciocínios que envolvam precisão, meticulosidade, pois não é
suficientemente rigorosa no estabelecimento e emprego de seus termos, o que conduz a
confusões, contradições e inconsistências.

229
Para se evitar que isso ocorra, emprega-se oque se denominou de linguagem
simbólica, em contraposição à linguagem, mediante o emprego de sinais ou símbolos.
Uma linguagem simbólica L é um conjunto de símbolos empregados de um modo
sistemático e orgânico.
Toda linguagem L possui uma sintaxe e uma semântica. A sintaxe trata da
estruturação de suas sentenças (frases), ou seja, estuda suas palavras (ou sinais, símbolos)
enquanto elementos da sentença, suas relações de concordância, de subordinação e de
ordem. Já a dimensão semântica da linguagem se ocupa do significado de suas palavras
(ou sinais, símbolos) e da interpretação das sentenças e de seus enunciados.
Fazemos questão de refrisar que a apreensão do conceito matemático de
correspondência é de fundamental importância para o estudo das origens do pensamento
simbólico do Homo sapiens. Defendemos igualmente sua primordial relevância na
estruturação da mente moderna do homem.

Símbolos, Mitos e Rituais

Símbolo é algo que, por convenção arbitrária, designa ou representa uma realidade
complexa. Alerta Jung (1964), porém, para a importante diferença existente entre sinal
(signo) e símbolo: o sinal é sempre menos do que o conceito que ele representa, enquanto
que o símbolo sempre representa mais do que o seu significado imediato e óbvio.
Exemplos disso têm-se na balança, símbolo da justiça, e na cruz, símbolo da cristandade.
Através da simples observação de seu aspecto material, ou da mera constatação da sua
utilidade, somos incapazes de intuir a complexidade de seu conteúdo simbólico.
Ë geralmente aceito que o comportamento moderno do homem se iniciou quando
começou a pensar abstratamente, ou seja, a empregar, consciente e intencionalmente,
símbolos.
Segundo Eliade (1986), o mito é uma realidade cultural extremamente complexa,
que conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar em um tempo
primordial, o tempo fabuloso dos “começos”. É a narração de uma criação, descreve-se
como uma coisa foi produzida, como começou a existir. Sua função soberana é revelar os
modelos de todos os rituais e de todas as atividades humanas significativas: tanto a
alimentação como o casamento, o trabalho, a educação, a arte ou a sabedoria.
Daí a importância dos chamados mitos de criação, os mitos cosmogônicos. Mito
e ritual são complementares; ritual é o drama mágico para o qual o mito é o seu livro de

230
palavras, que não raro sobrevivem muito depois de ter cessado o desenrolar do drama
propriamente dito.
Rituais são desempenhos para assinalar situações de liminaridade, como
passagem de um estágio de um ciclo vital para outro (nascimento, puberdade, casamento,
morte); ou mudança de uma atividade econômica (plantio, colheita); ou relacionados à
alteração de ciclos climáticos (chuvas, primavera, verão, outono, inverno); ou ainda de
caráter propiciatório (caça, pesca); divinatório (predição do futuro) e de cura.
A encenação ritual exige a personificação de seus atores, caracterizada de alguma
forma, seja pela sua ornamentação corporal, pelas suas vestimentas, adornos ou uso de
objetos rituais. Tudo é simbólico em um objeto ritual.
Ensina a etnologia que os mitos narram a origem, a aparência e o modo de uso dos
objetos rituais; portanto, pelo seu estudo e mediante a observação pormenorizada do
cerimonial poder-se-ia, teoricamente, chegar à fundamentação mítica dos objetos rituais.
Isso, contudo, é impossível em se tratando da pré-história, onde tanto os mitos como os
personagens desses cerimoniais há muito se desvaneceram nas penumbras do tempo.
Os povos caçador-coletores, como mencionamos, dispõem de um universo de
mitos extraordinariamente rico, porém de conteúdo aparentemente estranho ao
pensamento moderno ocidental, o qual, porém, deve apresentar significativa similaridade
com o pensamento abstrato vigente no paleolítico.

Tallies e Notações

Por “entalhes”, em inglês “tallies”, entendemos incisões, cortes, talhos, ranhuras


ou marcas em superfícies tais como: osso, pedra, madeira, etc. O processo de efetuá-las,
sua gravação, seu entalhamento, é denominado, em inglês, de “tallying”; empregarei,
indiferentemente, tanto os vocábulos vernáculos como seus equivalentes em inglês, por
estes já estarem consagrados na literatura.
É útil estabelecer uma diferenciação entre entalhes (tallies) e notações. A técnica
do entalhe registra uma correspondência um-a-um entre um grupo de objetos e um
conjunto de tallies, associando cada objeto desse conjunto a um tally, por exemplo:

♀♀☺♂ → ││││ → 4 , δ, IV, quatro, vier, four,...

231
A primeira parte desta associação, ou seja: ♀♀☺♂ → ││││, emprega a
noção de correspondência um-a-um, já a segunda: ││││ → 4 , IV, quatro, vier,
four,..., onde se encontra a representação desta quantidade sem o uso de marcadores,
tallies ou calculi, tais como “│”, aponta ao que se denomina de notação a qual, se
mediante o emprego de numerais (signos para números), constitui o que se denomina de
notação numérica. A notação implica em uma ciferização da correspondência.
Ressalte-se, portanto, que no emprego de uma notação numérica está implícito um
entendimento superior do conceito de número. Há um novo patamar cognitivo, passando
do inicial, envolvendo apenas o conceito de correspondência um-a-um, para o de notação
numérica, mais evoluído.
No paleolítico encontramos somente o primeiro patamar cognitivo do conceito de
número, que emprega correspondências, o uso de notações numéricas só começa a
aparecer consistentemente no neolítico, quando surgiu a necessidade de codificar grandes
números e de manter registros escritos de quantidades, e se firma com o surgimento da
escrita.
É importante notar que a diferença entre tallying e notação não reside apenas na
forma do tally, mas sim em que ocorre um notável salto entre patamares cognitivos, com
uma apreensão superior do conceito de número.

Simbologia de Peirce

Charles Sanders Peirce (1.839-1.914), filósofo, matemático e cientista, propôs diversas


tipologias e definições de signos. Entre seus trabalhos mais de 76 definições do que é
um signo puderam ser coletadas, todavia mais duradoura e crucial é a sua distinção
entre ícones, índices e símbolos. Um signo é um padrão de estímulo com um
significado.
Para ele, um ícone é um signo que denota seu objeto por meio de uma qualidade
compartilhada com ele, ou seja, parece ou imita fisicamente o objeto, como um retrato
ou diagrama. Uma fotografia é um ícone do objeto fotografado; um cigarro aceso
cruzado por uma barra representa “proibido fumar”. Diversas placas que orientam o
trânsito são icônicas.
Um índice é uma pista sensorial, diretamente visível, audível, cheirável, etc., que
correlacione ou implique algo. Nuvens carregadas são índices de chuva próxima; um
chamado de alarme é um índice de um predador ou e um perigo próximo; um perfume
232
agradável pode ser um índice que aponte uma mulher atraente; uma luz de freio acesa
inopinadamente é um índice que devemos parar o carro sob pena de um acidente.
Índices dependem de uma regularidade estatística entre um determinado sinal padrão
e uma situação comportalmente relevante; têm uma correlação no espaço e no tempo
com seu significado.
Um símbolo é um signo que denota seu objeto unicamente pelo fato de que
convencionalmente deva assim ser interpretado. Consiste em uma regra natural,
convencional, lógica ou habitual que associa um signo ao objeto que pretende
interpretar. Não apresenta necessariamente semelhança física ou sensorial com seu
interpretando. Em grego, a palavra symbolon significa “lançar em conjunto”, mas
igualmente significa “reunir”, “ligar”.
Abstração é considerada geralmente como o ato ou processo de se considerar que
alguma coisa tem uma qualidade ou característica geral à parte de sua realidade
concreta ou de suas propriedades específicas. Pertence à categoria dos objetos ou
representações mentais. Desse modo simbolização pode ser considerada como uma
categoria mais concreta de abstração, dado que abstração é muitas vezes considerada
no contexto das representações puramente mentais, não denotadas por objetos externos
ou físicos, e um símbolo é um signo (algo material) que se associa convencionalmente
a um referente.

Breve História do Simbolismo

Os primeiro símbolos parecem surgir na arte paleolítica, embora se suspeite que


possam ter vindo à luz mais cedo na escala evolutiva humana. Inicialmente se pensava
que eram apenas produto da art pour l´art, ou seja, as imagens eram feitas apenas por
prazer, divertimento ou decoração, despidas de significado simbólico. Achava-se que,
como os primitivos tinham muito tempo para o lazer, podiam dedicar-se a satisfazer
seus prazeres estéticos. Propagavam-se ideias românticas acerca dessa arte, como as
que estavam eternamente embebidos no culto à beleza.
Giambatista Vico (1668-1755), jurista italiano, um dos últimos a dominar o saber
universal, desafiou em 1734 a noção vigente que os povos “selvagens ou primitivos”
tinham uma mente diferente dos povos “civilizados”. Afirmou que os mitos e as
explicações que davam para os fenômenos naturais não eram simplesmente nonsense
baseado na ignorância, elas eram “poéticas” ou “metafóricas” e não deviam ser tomadas

233
literalmente. Como Vico estava muito adiante de seu tempo permaneceu ignorado; esse
preconceito de “mentalidade primitiva” perdura até hoje,
Em 1865, Sir Edward Tylor (1832-1917) já pressentia uma afinidade entre arte
pré-histórica e magia. Salomon Reinach (1858-1932), elaborando esta tese, propôs em
1903 que o único modo que podemos entender a arte paleolítica é examinando o modo de
vida de povos “primitivos” existentes no presente, ou seja, estudando as culturas dos
povos caçador-coletores. Levantou, na ocasião, uma questão para a qual ainda não temos
resposta: é possível compreender a arte paleolítica sem recorrer às analogias?
Empregando-as não estaremos simplesmente recriando o passado com uma imagem do
presente?
Outra ideia difundida no início do século XX foi a do totemismo. Esta palavra
deriva de um vocábulo Ojibwa, uma tribo norte-americana de índios, que denota um
animal, ou uma planta, que é o emblema de um clã. Pode-se falar, portanto, de um povo-
águia, ou um povo-urso. As cavernas paleolíticas seriam polos de grupos de determinados
totens e as suas imagens representariam totens. Porém, como numa mesma caverna
geralmente encontram-se imagens que representam diversos animais, a afirmação de que
esta caverna seria do “povo-bisão”, por exemplo, não se sustenta.
Contudo, a ideia do totemismo nos permite entender melhor a mentalidade de
povos caçadores-coletores, tais como os aborígenes australianos. Para eles a posse da terra
não é importante, ela não pertence a um indivíduo, mas é compartilhada pela tribo. A
propriedade da terra e seus produtos é uma herança perpétua e é transmitida de geração
para geração, não pode ser vendida, trocada ou transferida. Aborígenes de sangue puro
têm uma relação especial com a terra, sua remoção dela pode provocar sérios transtornos
psíquicos.
A terra inclui os espíritos pré-existentes, espaços sagrados, bem como animais e
plantas de existência totêmica. Os aborígenes estão unificados pelos seus mitos, rituais,
lendas e tradições de seus princípios, mantendo assim uma coexistência harmoniosa com
o ambiente. Eles se vêm como uma parte integral do ambiente físico, não distintos de
todas as outras coisas vivas dentro dele, mas mantendo uma íntima relação com ele (cf.
Havecker, 2006).
Mais tarde, o Abade Henry Breuil (1877-1961) e outros expandiram a hipótese da
magia para abranger a caça mágica, ou magia simpática, onde as imagens dariam ao
caçador poder sobre a presa. Atingir a imagem de um bisão com uma lança, por exemplo,
representaria uma antecipação do sucesso da caça, que estaria garantida pelo ritual mágico

234
prévio. Isso explicaria porque a maioria das imagens estaria escondida em recônditos de
cavernas: a magia deve ser feita longe vista dos curiosos. Porém, apenas 15 % das
imagens de bisões Paleolíticos mostram-nos feridos ou morrendo, a maioria parece
realisticamente estar viva.
A noção de estrutura foi desenvolvida pelo linguista suíço Ferdinand de Saussure
(1857-1913), sendo que algumas das distinções que levantou influenciaram o estudo da
arte paleolítica. Distinguiu entre langue (linguagem ou gramática) e parole (fala,
discurso); langue é assim a estrutura e parole o discurso produzido com esta estrutura.
Também diferenciou entre estudos diacrônicos e sincrônicos. Os diacrônicos estudam o
desenvolvimento de uma linguagem ao longo do tempo, já os sincrônicos examinam uma
linguagem em um dado tempo, ou seja, sua estrutura, sua langue. Símbolo, para Saussure,
consiste na unidade dentre o referente (signo) e o significado.
Max Raphael, seguidor de Saussure, adepto das teorias marxistas, afirmou que a
arte do Paleolítico Superior não explicita nada sobre os instrumentos de produção destes
povos, o sobre suas técnicas de caça, ou mesmo sobre suas habitações, isto é, sobre os
componentes materiais de sua infraestrutura. O que ela narra, por meio de um código
estruturado, é sobre a luta social. Como no totemismo, os grupos sociais eram
representados por meio de animais; animais em combate representavam lutas de clãs.
Annette Laming-Emperaire (1917-1978) em seus estudos argui que a mentalidade
do homem Paleolítico era muito mais complexa do que se supunha, e que as imagens
parietais deveriam ser estudadas como composições planejadas, não pinturas individuais
dispersas randomicamente. Rejeitava qualquer asserção simplista de totemismo, bem
como o valor de analogias etnográficas. Argumentava que a dificuldade de acesso a
muitas imagens subterrâneas apontava para prováveis intenções sagradas de seus
executores. Seus trabalhos cambiaram a ênfase de questões relativas à magia para seus
significados simbólicos.
Claude Levi-Strauss (1908-2009) foi o pai do movimento estruturalista na
antropologia e na arqueologia. A base de seu trabalho reside na noção de que oposições
binárias constituem o fio unificador, a lógica oculta, que governa todo o pensamento
humano. Por oposições binárias entendia duas noções opostas, como por exemplo, claro-
escuro, alto-baixo, homem-mulher, vida-morte. A linguagem de toda a sociedade, bem
como seu sistema de relações e sua a mitologia, incorpora variações deste tema binário.
André Leroi-Gourhan (19011-1986), seguindo os passos e Emperaire e Strauss,
analisou os dados numéricos das imagens e suas localizações em 66 cavernas, pois

235
entendia que uma cuidadosa série de agrupamentos de imagens tinha que ser
compreendida estudando-se suas relações uns com os outros.

Fig. 6.3 Grupos de sinais de Leroi-Gourhan

Dividiu as imagens de animais em quatro grandes grupos: A) pequenos


herbívoros: cavalo, ibex (bode montês), veado e corça (animais pequenos), rena; B)
grandes herbívoros: auroques (bois primitivos) e bisões; C) espécies periféricas: mamute,
veado (animais grandes, como os alces); D) animais perigosos: urso, felinos, rinocerontes.
Associou o grupo A com feminilidade, e o B com masculinidade.
Dividiu os sinais gráficos encontrados nas cavernas e que não representavam
animais em dois grupos: “a” e “b”. O grupo “a” compreendia os sinais “estreitos”: riscos
simples ou duplos, filas de pontos, ganchos, propulsores (dispositivos empregados no
lançamento de lanças), sinais com farpas. O grupo “b” abrangia sinais “amplos”:
triângulos, ovais, quadrangulares, símbolos claviformes. Entendia que os sinais do grupo
a e b pareciam originários de representações esquemáticas da genitália masculina e
feminina, respectivamente. Para ele, a arte parietal paleolítica podia ser resumida por uma
oposição binária principal: A+a (masculina) e B+b (feminina).
Leroi-Gourhan via A e B como constituindo uma oposição binária, sendo os
animais C adições periféricas. Construiu o que denominou de “mitograma”: A+B-C, onde
o sinal – não representava subtração, mas sim agregação. Esse mitograma era um modelo
mental, a estrutura (langue), da arte paleolítica. Os animais e sinais masculinos eram
espalhados pelas cavernas, enquanto que os femininos se concentravam nas suas áreas
centrais. Nas áreas centrais, o par cavalo: bisão, auroque tinha destaque, enquanto que os
animais do grupo C eram periféricos na composição das cenas. A câmaras profundas, os
divertículos, eram associados aos animais perigosos D.
Para ele, essa arte era a expressão das ideias do homem Paleolítico concernentes
à organização natural e sobrenatural do seu mundo, uma verdadeira Weltanschauung, e o
mitograma eram um veículo que poderia carregar uma carga ampla de significados.

236
Piaget, também um estruturalista e construtivista ferrenho, foi induzido por sua
oposição ao empirismo a exclusivamente enfatizar a construtividade do sujeito e a
considerar as estruturas matemáticas daí resultantes como fonte de toda a realidade e de
toda possibilidade. Considerava uma das principais objetivos de sua epistemologia
genética a explicação de como o conhecimento necessário, isto é, o conhecimento que
não se apoia em observações, emerge.
As ideias estruturalistas vêm sendo substituídas modernamente por um enfoque
psico-neuro-fisiológico, onde a ênfase em estrutura é trocada pela ênfase na atividade
consciente do homem, na sua consciência, traduzida por seu comportamento simbólico.
Hoje são aceitos como parâmetros de atividade simbólica: uma linguagem
estruturada completamente moderna; a confecção de imagens; o enterro elaborado de
alguns de seus mortos; adornos corporais que carregam informações sobre seus
portadores ou sobre o grupo a que pertencem; tecnologias de ferramentas de pedras que
vão além de modelos puramente funcionais, identificadoras de grupos sociais.
Por exemplo, a indústria lítica associada aos Neandertais, menos elaborada, com
peças mais cruas, é denominada de Chatelperroniana, com sua fase precedente a
Mousteriana, enquanto a que é correlacionada aos Cro-Magnon, representantes do Homo
sapiens moderno, mais complexa, é denominada Aurignaciana. Essas culturas são
conhecidas na atualidade como tecnocomplexos.
Steve Mithen, incorporando a noção de que a inteligência humana é modular,
propõe a existência de quatro módulos mentais, a saber: inteligência social; inteligência
técnica; inteligência relativa à história natural e a inteligência linguística. Além disso,
admite existirem quatro processos físico-cognitivos: a confecção de imagens visuais, a
classificação destas imagens em classes, a comunicação intencional e a atribuição de
significado às imagens. Embora as três primeiras possam ser encontradas em primatas
não humanos, a quarta é característica dos hominídeos.

Poder Criador da Palavra

O nome de algum objeto (lat.: res) é um símbolo que passa representar este objeto,
pode-se mesmo afirmar que este só passa a “existir” quando recebe um nome. Em muitas
sociedades primitivas, um dado seu membro só passa a “existir” quando recebe um nome,
o que é conhecido como o poder criador do nome, ou da palavra. Provavelmente o ato de
se dar um nome a alguma coisa (res) é uma das mais antigas manifestações do pensamento

237
simbólico e é própria da raça humana. Consiste em uma correspondência, na maioria das
vezes biunívoca, entre a pessoa e seu nome, e esta correspondência tem um poder criador,
a palavra engendra o ser.

A nominação de um fenômeno sempre antecede o trabalho intelectual da sua


compreensão e justificação. Esse é o processo que transforma o mundo de impressões
sensoriais, que compartilhamos com os animais, em um mundo próprio do homem, isto
é, cognitivo, um universo de idéias, explicações e significados. Toda a cognição teórica
tem como ponto de partida um mundo pré-moldado pela linguagem, observa Cassirer
(1953), desse modo qualquer cientista, historiador, filósofo ou religioso lida com seus
objetos somente após a linguagem tê-los apresentado.
O liame “nome ↔ objeto” é tão forte que hoje não conseguimos ter uma imagem
mental de um objeto a menos que façamos apelo ao seu nome. Por exemplo, somente
quando a linguagem nos apresenta a palavra “quadrado” é que associamos a imagem
mental do objeto “□”, pois o liame simbólico “quadrado ↔ □” é extremamente forte,
estabelecido a partir de quando desenvolvemos a fala.
O liame original entre a lingüística e a consciência mítico-religiosa é expresso no
fato de que estruturas lingüísticas aparecem também como entidades míticas; a Palavra
torna-se então uma espécie de força primária, da qual todas as ações e seres provêm
(Cassirer, 1953). A noção de que nome e essência de um dado ser estão intrinsicamente
relacionados, mediante uma correspondência necessária e interna, e que nome não apenas
denota, mas realmente é o próprio ser, bem como a potência do ser real está contida em
seu nome, eis o que parece um dos conceitos fundamentais da consciência mítico-religiosa
primitiva.
Isso também tem seus paralelos na Matemática. Quando definimos, nominamos
algum novo conceito, estamos criando, por meio da definição (mediante palavra ou
símbolos), um novo objeto matemático, por exemplo: quadrilátero é a figura com quatro
lados: 123 45 á7840 ↔ □. A definição faz corresponder o ser “□” ao objeto matemático
“quadrilátero”. Convém lembrar a corrente definicionista sobre as origens dos objetos
matemáticos, a qual afirma que as proposições da Matemática são essencialmente
“verdadeiras por definição”. Nessa acepção, o matemático representa o papel da deidade,
que cria objetos mediante o poder da palavra, ou do nome.

238
Doutrina do Nome

Os mitos de criação geralmente procuram justificar a origem do universo, dos


seres vivos e da matéria em geral como produto da intervenção divina. Entre as formas
dessa intervenção podemos identificar duas, de interesse mais próximo. A primeira diz
respeito à criação como produto de uma ação divina: Deus fez (fiat). A segunda é a criação
pela palavra: Deus disse. Bastava ao Deus criador estabelecer um plano, emitir uma
palavra e pronunciar um nome para que a coisa prevista viesse a existir.
Essa, em síntese, era o que se pode denominar, seguindo Conteneau (1950, p.167),
de doutrina do nome: uma coisa não existe até que receba, por intervenção divina, um
nome. Em consequência, se uma coisa não porta um nome, ela não existe. Por coisa (res)
entenderemos qualquer objeto, animado ou inanimado, material ou imaterial. Essa
doutrina encontrava-se amplamente difundida por todo o Oriente Próximo antigo. Pode-
se suspeitar que suas raízes mundial, imersas na pré-história.
Portanto, a nominação, isto é, a doutrina do nome, é de fundamental importância
para a matemática. Está presente nas práticas matemáticas, modernas ou antigas. A escola
formalista da matemática cria objetos matemáticos por meio de suas definições, ou seja,
eles passam a existir desde que definidos.
A seguir selecionei alguns exemplos de sociedades históricas, que ilustram isso.
Infelizmente não restam exemplos da pré-história, pois evidentemente não há registro
escrito dos mesmos.

Bíblia

Os estudiosos identificam pelo menos três correntes principais de diferentes


tradições que contribuíram para a composição literária da Bíblia cristã. A primeira, a
tradição javeísta, é assim chamada porque emprega o nome divino IAHWEH desde a
narração da criação. Teve origem provavelmente em Judá e talvez tenha sido escrita, no
essencial, durante o reino de Salomão.
A segunda, a tradição eloista, emprega o nome ELOHIM para designar Deus.
Estima-se ser mais recente que a javeísta, e em geral é relacionada às tribos do norte.
A terceira, a tradição sacerdotal, se preocupa com as leis, a organização do
santuário, sacrifícios e ofertas. Exprime o espírito legislativo e litúrgico. Esta tradição se
deve aos sacerdotes do templo de Jerusalém, embora preserve elementos antigos.
239
Salomão iniciou a construção do templo de Jerusalém logo depois de 970 a.C. Nesta
tradição, a criação obedece a um esquema semanal, litúrgico, tendo Deus descansado no
sétimo dia, o sábado, dia do repouso sabático.
A primeira descrição da criação, Gênesis 1,1 – 2,4, pertence à tradição sacerdotal,
a segunda descrição (2,4 b –3,24) é de lavra da tradição javeísta.
As duas formas de intervenção divina mencionadas estão bem documentadas na
tradição bíblica cristã, no Gênesis: "Deus fez o firmamento, que separou as águas que
estão sob o firmamento das águas que estão acima do firmamento, e Deus chamou ao
firmamento "céu""(Gen:1,7 - grifo nosso). É a criação como produto de ação: Deus
primeiro fez (criou) o firmamento, depois nominou-o: céu. Outros exemplos da criação
pela ação figuram nos versículos 16, os astros; 25, os animais terrestres; 26, o homem. A
criação pela ação está mais bem explicitada na segunda descrição da criação, narrada nos
versículos Gên.:2, 4b-25, possivelmente uma tradição mais antiga.
A criação pela palavra aparece em diversas outras instâncias, como em Gên.: 1,3:

Deus disse: "Haja luz" e houve luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as
trevas. Deus chamou a luz "dia" e as trevas "noite" (grifo nosso). [Observe-se que
primeiro Deus criou a luz por meio da palavra (Deus disse), denominando-a
posteriormente: luz.]

A criação pela palavra reaparece em Salmos 33,6:

O céu foi feito com a palavra de IAHWEH,


e o seu exército com o sopro de sua boca.

Este salmo faz parte da coleção atribuída ao rei David (c.1010-970 a.C.), embora
não se tenha certeza acerca da data de sua composição.
Talvez a mais notável expressão do poder criador da palavra apareça no
Evangelho de São João, versículo 1,1:
No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.

240
Outras Culturas Primitivas

Paralelo direto encontramos entre as tradições dos índios Uitoto: “No princípio, a
Palavra deu ao Pai sua origem” (Preuss, apud Cassirer, 1953, p. 45). Do mesmo modo,
encontramos na Índia a exaltação do poder da Palavra mesmo acima do poder dos deuses:
“Da Palavra falada todos os deuses dependem, [e] todos os animais e homens; na Palavra
vivem todas as criaturas...; a Palavra é o Imperecível, o primogênito da lei eterna, a mãe
dos Vedas, o umbigo do mundo divino” (Taittirya Brahm., 2,8,8,4; apud Cassirer, 1953,
p.48).

Entre os polinésios também encontramos mitos de criação em que o poder de


criação da Palavra é posto em evidência. Segundo um desses mitos, no início só existiam
as Águas e as Trevas. Io, o deus supremo, separou as águas pelo poder do pensamento e
pelo poder das suas palavras, criando assim o céu e a terra. Ele disse: “Que as Águas se
separem, que se formem os Céus, que a Terra surja” (Eliade, 1981). Outro mito similar
envolve o deus Tananoa. A ideia básica é que Tananoa induz o processo de criação pela
remoção do silêncio original (Mutuhei) através da produção da Palavra (tom) (Cassirer,
1953, p.46).

Como a Palavra é a primeira a aparecer, também é considerada o poder


supremo. Não poucas vezes, culturas primitivas consideraram o nome da divindade,
e não o próprio deus, como fonte real de eficácia.

Mesopotâmia

O Gênesis conta a história de Abraão, nascido em "Ur dos caldeus" (Gên.:11,28).


Sabe-se hoje que Ur era cidade da Suméria. Os ancestrais de Abraão eram nômades
semitas que habitavam a Mesopotâmia. Gên.12,1 narra que Deus ordenou a Abraão sair
da Mesopotâmia para a terra que lhe mostraria. É geralmente aceito que Abraão passou a
viver em Canaã por volta de 1850 a.C., o que nos permite afirmar que os relatos da criação
descritos no Gênesis provêm de tradições que remontam, no mínimo, ao final do terceiro
milênio antes da nossa era, e que podem ter sido influenciadas por narrativas similares
sumérias.

241
Aos Sumérios é geralmente creditada a invenção da escrita, por volta de 3500-
3200 a.C. Imediatamente em seguida, os seus vizinhos Elamitas desenvolveram a sua
escrita, que mostra clara influência da suméria.
A visão dos povos mesopotâmicos acerca do sobrenatural é uma mistura
inextricável de origem suméria e acádica, influenciada por crenças de uma população-
substrato de origem desconhecida. Como o eminente sumerólogo S. N. Kramer já
sublinhara, é muito possível que haja "traços de influência semítica mesmo na mais antiga
mitologia suméria, tanto quanto são encontrados no caso da língua suméria" (apud Heidel,
1963, p.12). Isto reforça as conexões entre os mitos de criação sumérios e os semitas
hebraico - bíblicos.
Muito da literatura suméria foi escrito por falantes de acádio, quando o sumério já
era língua extinta. Os acadianos falavam uma língua semítica, podendo ter estado
presentes na Mesopotâmia desde o tempo em que os sumérios chegaram, ou se haverem
difundido pela região logo após. As suas culturas se mesclaram e devem ter vivido
conjuntamente de forma pacífica, gradualmente tornando-se parte integral da cultura
suméria. Sobre tabletes sumérios de argila, encontrados em Fara, datados de 2900-2800
a.C., nomes semíticos (acádicos) são atestados pela primeira vez. Pode-se conjecturar,
por conseguinte, que os antepassados de Abraão mantinham relações com eles.
O mito de criação sumério Enûma Elish principia com as seguintes palavras:

1. "Quando no alto o céu (ainda) não tinha sido nomeado;


2. (E) abaixo a terra não tinha (ainda) sido chamada por um nome;" (Heidel, p.18).

Isto mostra que para os sumérios as coisas (o céu, a terra), só passavam a existir
após receberem um nome: é o poder criador da palavra. Os acadianos tinham uma
expressão para designar uma coisa qualquer: "Tudo isto (aqui) que porta um nome"
(Conteneau, p.167).

Heidel (1963) considera que o poema que ilustra esse mito, na forma como o
conhecemos, foi composto provavelmente durante a primeira dinastia babilônica (1894-
1595 a.C.), afirmando, porém, que o mito está indubitavelmente baseado na cosmologia
suméria.

242
Simbolismo e Cultura em Animais

Primatas podem reconhecer símbolos, outra característica que era considerada


exclusiva da nossa espécie. Vários experimentos mostraram que macacos podem ser
treinados a reconhecerem em uma tela um determinado alimento e associá-lo a um token
material, que pode ser de diferentes cores, materiais ou formas. Dessa maneira, associam
um alimento (objeto) a um token (símbolo). Reciprocamente, quando selecionam esse
token podem receber o alimento correspondente, ou seja, podem trocar o token por
alimento. Dessa forma o token assume o papel de uma moeda de câmbio.
Diversas espécies são capazes disso, entre as quais o chimpanzé (Pan troglodytes),
o capuchinho marrom (Cebus apela), tamarinos (Saguinus oedipus) e bonobos (Pan
paniscus).
Portanto, animais podem aprender a atribuir valor a objetos particulares depois
que eles são associados a determinados alimentos. Esses tokens materiais são símbolos
para alimentos e eles podem ser treinados para escolherem seletivamente trocarem tokens
com seus alimentos prediletos (Judge, 2013). Se escolherem determinado token, recebem
o alimento como recompensa.
Chimpanzés podem mesmo acumular diversos tokens antes de trocá-los. Esses
tokens podem ser encarados como uma ferramenta muito especial, com muitas
propriedades interessantes. Podem ser trocados por diferentes tipos de itens
(permutabilidade), são fáceis de transportar (portabilidade), seu valor permanece
imutável por períodos extensos de forma que podem ser acumulados. Podem ser
associados em um sistema hierárquico dentro de uma escala de valores, que podem ser
intercambiados (Sousa, 2001).
Em outras obras (Almeida, 2011, 2017) 31 descrevemos o sistema de tokens
sumerianos empregados pelo homem no neolítico, que deram origem à escrita, onde se
pode constatar que esses tokens materiais empregados pelos chimpanzés apresentam
similaridades com o sistema de tokens empregados por nossa espécie nesse período. Esses
tokens eram também materiais, sendo moldados em pequenas porções de argila
posteriormente secas, com diversas formas, como esferas, cones, discos, tetraedros, etc.
A cada forma correspondia um item, como carneiro, tecido, ovelha, pão, perfume, lã, jarro
de azeite, etc. Portanto, esses tokens correspondiam a símbolos para esses itens.

31
Sugere-se consultar estas obras onde extenso tratamento do sistema de tokens neolítico é apresentado.

243
Contudo, há uma diferença significativa entre o sistema de tokens materiais dos
primatas e o sistema de tokens neolítico humano. Os primatas podiam trocar tokens por
alimentos e mesmo acumulá-los, o que provavelmente não ocorria com o sistema
humano.
Todavia, essa diferença é facilmente explicável, pois os primatas não podiam fabricar
os tokens, como ocorre com a moeda, que não pode ser falsificada, tinham, portanto, um
valor intrínseco. Já os tokens materiais humanos eram feitos de argila, que qualquer um
poderia contrafazer, portanto tinham apenas um valor simbólico e não poderiam ser
trocados. Não há registros no neolítico que tenham sido empregados como moeda de
troca. O sistema de tokens neolítico é o mais antigo código, ou seja, sistema de signos
empregado para transmitir informações.
Um referente é uma pessoa ou coisa à qual um nome, uma expressão linguística
ou outro símbolo, se refere.

Fig. 3.
Símbolo Pictograma
Referente
Token Sumeriano
Ovelha Material
Neolítico Correspondente

O sistema neolítico de tokens de argila suplantou o sistema de entalhes


paleolítico devido às suas vantagens seguintes: a) era simples, a argila era um material
comum que não necessitava de ferramentas especiais ou habilidades exclusivas para ser
trabalhada; os tokens eram facilmente reproduzidos; b) o código permitia novos modos
de processamento de informações e de dados; c) os tokens eram facilmente manipuláveis
e permitiam o armazenamento de uma quantidade ilimitada de dados; d) eram adequados
às novas necessidades de contagem e contabilidade requeridas pela introdução da
agricultura e do pastoreio; e) eram independentes da fonética, tinham significado em
qualquer dialeto ou língua.
Além disso, o sistema de tokens materiais neolítico introduziu ineditamente
símbolos para números: um cone grande valia 60 unidades, uma esfera pequena equivalia

244
a 10 unidades e cada cone pequeno representava uma unidade. Os primatas nunca
atingiram esse estágio.
O comércio nessa época se efetuava mediante a troca de bens, em espécie,
operação conhecida modernamente sob o nome de escambo. Vamos supor que um criador
de ovelhas sumeriano desejava enviar, mediante intermediário, 223 ovelhas para um
comprador que mora em um local distante. Que certeza teria o remetente de que a remessa
seria entregue integralmente ao seu destinatário, ou seja, de que o intermediário não
desviaria nenhuma ovelha no meio do caminho? A tentação acomete mesmo os
portadores mais confiáveis. Devemos recordar que na época não existia o correio, fax,
telefone, empresas transportadoras, internet ou qualquer meio de comunicação moderno,
nem a escrita existia. Qual a solução que o leitor daria a esta importante questão da vida
prática, empregando apenas os recursos então existentes?
O criador sumeriano, para representar a sua remessa de 223 ovelhas, reunia 10
tokens: três cones grandes quatro esferas pequenas e três cones pequenos. Obtinha, com
isso: 3x60 + 4x10 + 3x1 = 223, que é o número de ovelhas que deseja remeter.
Acrescentava a esses, se o desejasse, o token que significava ovelha, disco com cruz
gravada. Modelava então em torno do seu polegar uma esfera de argila oca, com mais ou
menos 7 centímetros de diâmetro, ou seja, pouco maior que uma bola de tênis. Introduzia
pela abertura deixada pelo dedo os tokens que tinha agrupado, que representavam as 223
ovelhas, selando então a abertura com argila. A essa bola de argila Denise denomina de
"bulla", bula, verdadeiro envelope de argila.
Restava, ainda, um problema. Como se certificar de que o portador não trocaria a
bulla original por outra, falsificada, no transcorrer do percurso? Na Suméria e no Elam,
os homens de certa condição social possuíam cada um o seu próprio sinete, uma espécie
de pequeno cilindro de pedra, mais ou menos preciosa, com imagem simbólica esculpida.
Este sinete, cuja invenção se situa por volta de 3.500 a.C., representa a própria
pessoa do seu detentor; sua impressão, obtida rolando-se o cilindro em torno do seu eixo
sobre a superfície da argila úmida; servia para autenticar qualquer operação ou transação
jurídica ou econômica, em que o seu proprietário participasse. A sua impressão
corresponderia, hoje, à assinatura do interessado; portanto bastava rolar o sinete sobre a
superfície úmida da bulla, deixá-la secar ao sol, entregá-la ao portador que deveria
restituí-la intacta ao destinatário. Este, quebrando-a, conferia o valor dos tokens,
verificando assim a integridade da remessa.

245
Posteriormente, os sumérios passaram a imprimir, comprimindo os tokens sobre
a superfície úmida da bulla, a forma deles. Esse procedimento tornava desnecessário
quebrar a bulla para verificar o seu conteúdo.
Logo perceberam a inutilidade de se colocarem o próprio tokens dentro dela, pois
as suas impressões na superfície da bulla eram suficientes para que o destinatário
verificasse a integridade da transação, bastando constatar se não estava danificada. Esse
procedimento tinha a vantagem adicional de não se quebrar a bulla, danificando as
impressões dos tokens e do sinete,

Fig. 6.4 . Fila superior: tokens diversos; filas seguintes: tabletes arcaicos com
marcas de tokens incisas. Coleção do Staatliche Museum zu Berlin – Pergamon
Museum. Foto do Autor (M).

Por volta de 3250 a.C. as bullae (bulla, bullae - bula, bulas) deixaram de
ser ocas, achatando-se e originando os tabletes de argila. Os primeiros tabletes eram
espessos, como pequenos pães, e gradualmente se foram afinando, até atingirem a sua
espessura definitiva. As impressões dos tokens transformaram-se então em ideogramas,
o que propiciou a escrita.

246
Fig. 6.5. Fila superior: bulla fechada; bulla aberta mostrando os tokens em seu
interior; bulla fechada, com imagem de selo inscrita em sua superfície. Fila
inferior: selos de pedra arcaicos, que eram rolados nas superfícies das bullae.
Coleção do Staatliche Museum zu Berlin – Pergamon Museum. Foto do Autor
(M).

Os mais antigos exemplos de escrita da Mesopotâmia não parecem resultado de


pura invenção. Pelo contrário, parecem nova aplicação de sistema de registro numérico
indígena da Ásia Ocidental, que se originou há uns 11000 anos.
Cumpre observar que os signos numéricos sumerianos arcaicos pertenciam a uma
variedade de sistemas numéricos dependentes do contexto. Praticamente para cada coisa
que desejavam contar empregavam um sistema numérico diferente, o que torna muito
difícil a interpretação dos textos arcaicos. Porém, cada sistema possuía uma hierarquia de
tokens. A Figura 6.6 mostra a hierarquia do sistema S. que era empregado para contar a
maioria dos objetos discretos, por exemplo pessoas, animais. Peixes, objetos de madeira,
de pedra, tecidos, etc. Essa hierarquia é descrita mediante um diagrama de fatores.
Um “diagrama de fatores” indica uma hierarquia de progressivamente maiores
unidades e um número de regras de conversão. Contém informação sobre as formas dos
signos, nomes e valores das unidades sucessivas de um dado sistema de números e
medidas, começando com as unidades mais altas e com os fatores de conversão, os quais
expressam quantas unidades de uma dada espécie estão contidas na próxima unidade mais
alta.

Fig.6.6 Diagrama de Fatores do Sistema S. 247


Não apenas nossa espécie, o Homo sapiens sapiens, demonstra um
comportamento cultural. Convém esclarecer o que é “cultura” em não humanos, como
entendida pela etologia 32 . Se “cultura” é considerada transmitida por meio da
linguagem, então é um fenômeno puramente humano.
Porém, nas ciências biológicas, duas outras formas de transmissão cultural são
reconhecidas, a transmissão de comportamento entre gerações pode se processar
evolutivamente, geneticamente, ou por meio de aprendizado social.
Um comportamento cultural que é transmitido repetidamente através de
aprendizado social ou observacional, é denominado de uma tradição. Tradições bem
documentadas incluem dialetos de canções entre pássaros canoros, uso de ferramentas
para extrair cupins de seus ninhos, hábitos que envolvem cuidados das peles (catação,
etc.), costumes de fazer a corte, o respeito pelos mortos, etc.
Whiten e Goodall (1999) mostraram que chimpanzés têm uma rica complexidade
cultural; reconheceram pelo menos 39 padrões de comportamento cultural. O
repertório combinado desses padrões de comportamento cultural em cada comunidade
de chimpanzés fornece-lhes um caráter próprio, altamente distinto, o que era
considerado um fenômeno característico dos humanos, não anteriormente admitido em
outras espécies.

Como o cérebro processa os símbolos

Um sistema semântico simbólico é um sistema especializado em manipular


informações acerca dos significados e conceitos relacionados a signos. Recapitulando,
semântico, num sistema linguístico, é o componente do sentido das palavras e da
interpretação das sentenças e dos enunciados. Já semântica é uma teoria abstrata da
significação ou da relação entre os signos e seus referentes.
Uma teoria do significado dos símbolos necessita resolver o problema dos
fundamentos semânticos dos símbolos, ou seja, de como palavras e outros símbolos estão
relacionados com tipos específicos de objetos e de ações executáveis. Teorias que se
apoiam apenas em um sistema simbólico destacado de mecanismos sensórios motores
não conseguem resolver sozinhas o problema dos fundamentos semânticos dos símbolos.

32
Etologia é o estudo do comportamento social e animal dos animais em seu habitat natural.

248
Outras teorias baseadas principalmente nas percepções e nos sistemas da mente ativados
no cérebro também não o conseguem..
Mesmo no presente ainda persistem debates e controvérsias sobre a construção de
uma teoria do significado dos símbolos aceitável unanimemente, isto é um problema
ainda em aberto na ciência (Pulvermüller, 2013).
Palavras, os nomes das coisas (recordemos a doutrina do nome), são símbolos
orais, que somente foram introduzidas quando o homem principiou a falar. Já os primatas
nunca atingiram esse estágio, pois sua escala evolutiva nunca lhes proporcionou um
aparelho fonador anatômico adequado.
Como palavras são empregadas para enunciar diferentes tipos de objetos e ações,
essa abordagem implica em mecanismos semânticos específicos que dependem de
categorias da palavra. Por exemplo, como foi visto a palavra “prato”, pode significar:
'vasilha', 'comida', 'iguaria', 'receptáculo de balança', 'instrumento musical', etc.
Pulvermüller (2013) propõe quatro mecanismos semânticos ao nível de circuitos
neuronais: a) semântico referencial, que estabelece ligações entre símbolos e os objetos e
ações; b) semântico combinatório, que permite a aprendizagem do significado simbólico
a partir do contexto; c) semântico emocional-afetivo, que estabelece ligações entre sinais
e estados internos do corpo; d) mecanismos de abstração para generalizar ao longo de
uma faixa de casos de significado semântico.
O referencial, o combinatório, o emocional-afetivo e o abstrato todos são
mecanismos complementares, cada um necessário para o processamento do significado
na mente / cérebro.

Veremos agora algumas noções resumidas da anatomia cerebral, que facilitarão a


compreensão do que segue. O cérebro humano é dividido em regiões, denominadas de

249
lobos cerebrais: lobo frontal, lobo parietal, lobo temporal, lobo occipital e lobo límbico.
O córtex cerebral corresponde à camada mais externa do cérebro, sendo rico
em neurônios e é o local do processamento neuronal mais sofisticado e distinto. O córtex
humano tem 2-4 mm de espessura, e desempenha um papel central em funções complexas
do cérebro.

O cérebro apresenta inúmeras circunvoluções, a cada circunvolução dá-se o nome


de giro, e a cada depressão entre giros denomina-se de sulco. Os sulcos particularmente
profundos podem ainda ser chamados de fissuras. Este mecanismo de sulcos e giros é o
modo que a evolução encontrou para de aumentar a área cerebral sem no entanto aumentar
o seu volume, de tal forma que cerca de dois terços da superfície está oculta.

Fig. 6.7 Posição aproximada de algumas das principais estruturas do


cérebro. Desenho dos Autores.

Estudos de neuroimagens e neuropsicológicos revelaram que diversas regiões


corticais podem suportar processos gerais de significação e exibem uma especificidade
por categorias; iremos expor na sequência o resumo de Pulvermüller (2013) acerca do
assunto:

1. O córtex frontal inferior (iFC): a parte anterior da área de Broca (BA


44,45) e o tecido adjacente no iFC esquerdo (áreas de Brodmann: BA, 44, 45 e 47) estão
ativos no processamento semântico e em mudanças funcionais no iFC. Os sistemas
motores do iFC esquerdo e dos sistemas motores frontocentrais bilaterais tornam-se
ativos mais fortemente no processamento de palavras e frases relacionadas à ação; lesões
nestas áreas, como ocorre em acidentes vasculares cerebrais e demência, levam a

250
prejuízos relativamente pronunciados no processamento de palavras e conceitos
relacionados à ação .

2. O córtex temporal superior (sTC): Área de Wernicke, (BA 22) a área de


linguagem posterior clássico e adjacente ao giro temporal superior e sulco tem sido
enfatizada como um processador semântico com base em lesões, perfusão e dados de
imagens. O sTC bilateral é especialmente ativo em resposta às palavras relacionados a
sons; lesões no sTC esquerdo podem prejudicar o processamento dos sons das palavras.
As áreas de linguagem do hemisfério lateral esquerdo incluem a área de linguagem
expressiva (de Broca) e a de linguagem receptiva (de Wernicke).

Fig. 6.8: 1) Sulco pré-central; 2) Sulco central; 3) Sulco pós-central; 4) Giro pré-central; 5) Giro
pós-central; 6) Giro supramarginal; 7) Terminações ascendentes e descendentes do ramo posterior
do sulco de Silvio (ou Silviano); 8) Parte triangular - giro frontal inferior; 9) Parte opecular – giro
frontal inferior; 10) Giro de Heschl – giro temporal transverso anterior; 11) Giro temporal transverso
médio; 12) Parte orbital – giro frontal inferior; 13) Ramo posterior do sulco Silviano; 14) giro
3.
temporal superior; 15) Sulco temporal superior; 16) Giro temporal médio. Adaptado da Wikimidia.

3. O córtex parietal inferior (iPC): o giro supramarginal angular e adjacente


no iPC fornece outro candidato região para um hub semântico, que é mais fortemente
ativado durante o processamento semântico crossmodal de configurações espaciais e
temporais. O sTC bilateral é especialmente ativo em resposta às palavras relacionados a
sons, e lesões no sTC esquerdo podem prejudicar o processamento dos sons das palavras.
O iPC esquerdo, especialmente o giro supramarginal, é mais fortemente ativado pela

251
linguagem relacionada a espaço; lesões no iPC afetam mais fortemente a linguagem
relacionada a espaços, incluindo o tratamento de preposições. Já o giro angular (BA 39)
e sulco intraparietal no iPC são de especial importância para o processamento de palavras
e conceitos numéricos, de especial importância para esta obra.
Giro angular é uma região do cérebro no lobo parietal, que fica perto da borda
superior do lobo temporal, e imediatamente posterior ao giro supramarginal; está
envolvido em uma série de processos relacionados à linguagem, processamento de
números e cognição espacial, recuperação da memória, atenção e teoria da mente. É a
área de Brodmann 39 do cérebro humano.

Fig. 6.9 Sulcos cerebrais

4. O córtex temporal inferior e médio (m/iTC), na sua esquerda ou


bilateralmente: um local de ligação semântico geral entre palavras e seu significado; o
m/iTC foi sugerido com base nos resultados de neuroimagens, também evidências em
lesões igualmente suportam esta atribuição. Diferentes partes do m/iTC mostram efeitos
relacionados a categorias especificas de palavras ligadas a nomes de animais, ferramentas
e pessoas, palavras relativas a cor e termos emotivos, tanto em estudos de ativação como
de lesões.
5. Córtex temporal anterior (aTC): a demência semântica (SD) é um déficit
semântico grave e específico; é caracterizada por lesões graves de ambos os polos
temporais (TPs); alguns resultados de neuroimagens também apontam para um papel dos
TPs no processamento semântico. Trabalhos recentes mostram a melhor correlação entre
o défice semântico e reduções na ativação metabólica do cérebro no giro anterior
fusiforme, em vez de TP; dados de acidentes vasculares cerebrais em pacientes indicam

252
que papéis semelhantes aos do aTC esquerdo, bem como de outras áreas semânticas, na
causa de erros semânticos.
Como se pode constatar, analisando-se o resumo de Pulvermüller sobre essas
questões, múltiplas áreas do cérebro que atuam em categorias específicas estão
envolvidas no problema de como a mente atribui significados a símbolos, como símbolos
estão relacionados com tipos específicos de objetos e de ações executáveis. Portanto, o
processamento da significação dos símbolos é necessariamente multimodal.
Termos abstratos, como amor e ódio, mostram uma forte tendência a serem
semanticamente ligados ao seu significado por meio de emoções, por meio do mecanismo
semântico emocional-afetivo, que estabelece ligações entre sinais e estados internos do
corpo.
Palavras, construções concretas e abstratas, como as matemáticas ou as da
engenharia, podem ser melhor aprendidas quando eles estão sendo usadas para falar sobre
eventos da vida real, ações e objetos, ou suas características. Isso é muito importante no
ensino e no aprendizado da matemática, onde exemplos da vida real, do contexto em que
o aluno está imerso, auxiliam na retenção e compreensão do objeto do aprendizado. Isso
faz parte do mecanismo semântico combinatório, que permite a aprendizagem do
significado simbólico a partir do contexto.
Sabe-se hoje que os processos semânticos estão conectados às regiões
perisilvianas 33 da linguagem, incluindo suas áreas adjacentes, hubs multimodais, que
gerenciam as informações entre as diferentes áreas de categorias, bem como as áreas
sensoriais, motoras e límbicas do cérebro humano. As áreas límbicas e sensoriomotoras
são essenciais para a fundamentação da linguagem em ação, percepção e emoção. Já a
periferia do córtex perisilviano se engaja na semântica combinatorial.
Zonas de convergência multimodais no prefrontal, temporal anterior, e no córtex
parietal inferior são essenciais no processamento de significados abstratos, como os da
matemática. Fazem parte dos mecanismos de abstração para generalizar ao longo de uma
faixa de casos de significado semântico
Tanto as teorias que se apoiam apenas em um sistema simbólico destacado de
mecanismos sensórios motores, como as teorias baseadas principalmente nas percepções
e nos sistemas da mente ativados no cérebro, isoladas, não conseguem resolver o

33
Regiões entorno do sulco lateral , também denominado de sulco ou fissura de Silvio. Divide o lobo frontal
e o lobo parietal acima do lobo temporal adiante. Está em ambos os hemisférios do cérebro, sendo de
comprimento maior no hemisfério esquerdo.

253
problema. Somente uma combinação dessas poderia eventualmente chegar a uma
conclusão.
Na realidade, no presente os estudos se concentram em estudar como essas diversas
áreas se comunicam, trocam informações, em identificar os tractos que as unem, em
estabelecer os conectomas das ações dessas diversas regiões, em identificar os hubs34 que
gerenciam o tráfego dessas informações. Apenas estudos a nível neuronal podem auxiliar
a ciência e entender melhor o problema da significação.

34
Hub: pivô, nó, pólo, concentrador.

254
CAPÍTULO VII

ENSINAMENTOS DA NEUROCIÊNCIA

A chave de todas as ciências é inegavelmente


o ponto de interrogação.
Honoré de Balzac

Introdução

Neste Capítulo iremos sobrevoar alguns ensinamentos da neurociência, que


poderão colaborar para uma melhor eficácia do processo de aprendizado, sendo úteis para
uma melhor eficiência dos atuais processos pedagógicos. Não serão reabordados
preceitos da neurociência já apresentados em Capítulo precedentes. Muitos dos temas que
serão aqui discutidos são de caráter geral, não exclusivos do ensino da matemática, e
destinados a um aggiornamento da pedagogia.
Abrangeremos temas diversos, como percepções, o homem digital, treinamento,
memória, games, novos hábitos, comportamento e outros.
Sublinhar-se-á a importância de uma abordagem histórico-evolutiva para a
compreensão de como a mente humana se desenvolveu, à luz das descobertas recentes da
neurociência.

Revoluções perceptuais

Um percepto é uma forma percebida de estímulos externos ao corpo ou sua


ausência. Há uma distinção importante entre estímulo, ou sua ausência, e percepto:
estímulos não são necessariamente transladados em um percepto, raramente um único
estímulo translada em um percepto. Devido a isso, às vezes múltiplos estímulos são
necessários para que perceptos sejam produzidos.
A percepção, todavia, desempenhou e continua desempenhando um papel
fundamental na evolução da mente humana. A interface da mente com o mundo externo
são os sentidos.
Os animais têm significativa parcela de sua percepção do mundo externo
proveniente dos sentidos do olfato e da audição. O olfato é, para os animais, fundamental

255
para encontrar comida, identificar se esta é edível ou não, e para achar parceiros para o
acasalamento.
Os cães, por exemplo, possuem trinta vezes mais sensores olfativos que um ser
humano e são capazes de ouvir sons quatro vezes mais distantes que o homem, além de
ouvirem ultrassons que chegam até a 60 kHz, inaudíveis para o homem, que escuta até no
máximo sons de aproximadamente 20 kHz. Os elefantes se comunicam por infrassons,
sons de baixa frequência, inferiores a 20 Hz, abaixo da capacidade auditiva humana. A
capacidade auditiva humana está entre 20 e 20.000 Hz.
Os humanos compartilham com os chimpanzés cerca de 99,2 % de seu material
genético, o que permite ao estudo comparativo dos seus genes evidenciar as diferenças
chaves que influem em suas percepções individuais de mundo. Um estudo realizado por
Clark35 em 2003 de milhares de genes humanos e de chimpanzés mostrou que podem
existir diferenças fundamentais nas suas percepções.
Sequências diferentes de genes podem reger como humanos e chimpanzés
cheiram e ouvem, diferenças na audição podem mesmo ter afetado a evolução da fala
distintamente entre eles.
Três dos 21 genes testados correlacionados à audição mostraram altos níveis de
seleção positiva na linhagem humana. O mais afetado é o denominado alfa-tectorine, que
desempenha um papel vital na membrana do ouvido interno. A compreensão da
linguagem falada em humanos pode ter requerido uma sintonia fina de sua capacidade
aditiva. Ao alterar as propriedades da membrana interna suas propriedades vibratórias são
alteradas, o que poderia explicar as divergências no sentido da audição entre as espécies.
É sabido que humanos com deficiências com alterações genéticas nesta membrana
padecem de deficiências auditivas.
Dos 48 genes olfativos abrangidos no estudo, 27 genes humanos mostraram ter
sofrido muita seleção natural darwiniana positiva, desde que o ramo dos chimpanzés
divergiu do dos humanos há mais de cinco milhões de anos atrás. Isso pareceu aos
cientistas algo surpreendente, pois os humanos não parecem ter se apoiado fortemente no
olfato para sobreviverem. Porém isso é explicável se considerarmos que o distanciamento
entre as espécies é relativo, enquanto que houve para os humanos “uma seleção natural
positiva” quanto ao olfato, os macacos se beneficiaram de terem mantidos suas condições

35
Clark AG et al. Inferring Nonneutral Evolution from Human-Chimp-Mouse Orthologous Gene Trios.
Science 2003; 302: 1960–1963.

256
olfativas, que para eles são importante suporte de vida. É apenas uma questão de ponto
de vista.
Outro estudo, elaborado por Svante Paabo, Yoav Gilad36 e colegas no Max Planck
Institute for Evolutionary Anthropology em Leipzig, Alemanha, vindo à luz em 2004,
arguiu que tanto os humanos como os seus similares macacos podem ter sacrificado parte
do senso do olfato para desenvolver uma visão capaz de maior abrangência de cor.
Humanos, ratos e outros grandes macacos todos têm um número similar de genes
correlacionados ao olfato. Contudo, 60% desses estão inativos no homem, comparados a
somente 30 a 40% nos grandes macacos e a 20% nos ratos e nos cães. Parece ter havido
um decrescimento no repertório dos genes olfativos intactos nos macacos em comparação
com outros mamíferos, e um decrescimento ainda maior nos humanos.
A equipe do Max Planck encontrou evidências de que uma alta proporção de
pseudogenes37 olfativos está correlacionada ao desenvolvimento de visão tricromática,
ou visão inteiramente colorida, em alguns primatas. Humanos e seus primos próximos,
os macacos do velho mundo, empregam três diferentes proteínas, denominadas de
opsinas, em seus olhos para detectar comprimentos de onda da luz nas partes vermelhas,
verdes e azuis do espectro. Já os macacos do novo mundo, parentes mais distantes do
homem, somente têm duas opsinas e têm uma visão de cor muito mais limitada. O
desenvolvimento de uma visão tricromática pode ter relaxado a necessidade de um
apurado senso de olfato.
A retina do olho humano possui três tipos de células fotorreceptoras: os cone,
responsáveis pela percepção das cores, e os bastonetes, que detectam apenas o branco,
preto e cinza. Existem em média em cada olho humano 6 milhões de cones e 120 milhões
de bastonetes. Na década de 1990 foi descoberta um terceiro tipo de célula foto receptora,
as células retinais ganglionares, que não atuam diretamente na visão, mas provavelmente
suportam os ritmos circadianos e os reflexos pupilares. Existem estimativas que, contudo,
devem ser tomadas cum grano salis, que atribuem ao olho humano uma resolução de 576
megapixels, muito superior à das câmeras atualmente disponíveis.
Existem três tipos de cones. O primeiro denominado longo (L), tem um pico em
560 nm; o segundo responde a comprimentos de onda médios (M), com pico em torno de

36
Gilad Y, et al. Loss of Olfactory Receptor Genes Coincides with the Acquisition of Full Trichromatic
Vision in Primates. PLoS Biology 2004; 2: 0120-0125.
37
Genes sem função ou inativos.

257
530 nm; o terceiro, curto (S), com pico entorno de 420 nm. Contudo, não podemos ver
cores em outros comprimentos de onda, por exemplo, no ultravioleta, cuja faixa para o
ultravioleta próximo está entre 380-200 nm.
Estudo recente por Stoddard (2020, et al.) mostrou novas facetas sobre como o
universo de cores pode ser percebido pelos animais. Acompanharemos, na sequência, os
seus resultados.
Além do homem muitos animais têm o potencial de discriminar cores não
espectrais. Para os humanos, o roxo é o exemplo mais claro de uma cor não espectral. É
percebido quando dois tipos de cone de cor na retina (azul e vermelho) com curvas de
sensibilidade espectral não adjacentes são predominantemente estimulados. O
comprimento de onda da cor azul é λ = 440-485 nm e o da cor vermelha é λ = 825-740
nm, portanto não são cores espectralmente adjacentes.
O roxo é considerado não espectral porque nenhuma luz monocromática (como a
de um arco-íris) pode evocar essa estimulação simultânea. Exceto em primatas e abelhas,
poucos experimentos comportamentais examinaram diretamente a discriminação de cores
não espectrais, e pouco se sabe sobre a percepção de cor não espectral em animais com
mais de três tipos de fotorreceptores de cor, até o estudo de Stoddard.
As aves têm quatro tipos de cone de cor (em comparação com três em humanos)
e podem perceber cores não espectrais adicionais, como UV+vermelho e UV+verde. As
aves podem discriminar cores não espectrais, e essas cores são comportamentais e
ecologicamente relevantes?
Stoddard. usando experimentos comportamentais abrangentes, mostrou que beija-
flores selvagens podem discriminar uma variedade de cores não espectrais. Também
mostrou que os beija-flores, em relação aos humanos, provavelmente percebem uma
maior proporção de cores naturais como não espectrais.
Sua análise da plumagem e espectro de plantas revela muitas cores que seriam
percebidas como não espectrais por pássaros, mas não por humanos: o tipo de cone extra
dos pássaros permite que eles não apenas vejam a luz UV, mas também discriminam cores
não espectrais adicionais.
Seus resultados apoiam a ideia de que as aves podem distinguir cores em todo o
espaço de cores tetracromáticas e indicam que a percepção de cores não espectrais é vital
para sinalização e forrageamento (Stoddard. 2020).

258
Isso mostra uma limitação no espaço visual humano, encarcerado pela sua
percepção tricromática.
Outra observação pertinente diz respeito à comunicação, que se faz mediante a
fala. A fala articulada é uma das principais, talvez a principal, diferença que nos distingue
dos demais animais.
Povos primitivos, caçadores-coletores, tais como os San do deserto de Kalahari,
entre os quais os ! Kung e os G/wi, e os Hadzabe da Tanzania, estão entre as mais antigas
linhagens genéticas do mundo. Esses povos compartilham algo em comum: são todos
falantes da linguagem dos clicks.
Os símbolos ! e / representam certos clicks, sons percussivos emitidos pelos seus
falantes. Algumas das linguagens dessa família , denominada de Khoisan, têm mais de
100 diferentes sons, enquanto a maioria das línguas europeias tem em torno de 30.
Línguas não fossilizam, mas se as línguas de clicks foram faladas pelos ancestrais
dos San e dos Hadzabe, essas linguagens podem estar entre as mais antigas línguas
faladas, se não realmente as mais antigas, verdadeiros fósseis linguísticos.
Pelo emprego de técnicas para estimar a separação temporal do cromossomo Y e
do DNA mitocondrial, determinou-se que esses povos, bem como suas língua, podem ter
mais de 50 mil anos de idade.
Todavia, essas línguas têm uma riqueza de sons que não tem comparação com
qualquer outra linguagem existente, o que as permitem expressar noções sem similar no
pensamento moderno.
Uma revolução perceptual ocorre quando há uma mudança significativa na razão
ou proporção da participação dos sentidos na percepção. Pode-se associar uma revolução
perceptual a uma revolução tecnológica (ou científica) ao longo da história da
humanidade. Cada revolução tecnológica propicia uma extensão dos nossos sentidos e
faculdades, que ocasionam novos comportamentos conscientes coletivos (Almeida,
2011).
McLuhan nos ensina: “É impossível construir-se uma teoria de mudança cultural
sem o conhecimento das mudanças do equilíbrio relacional entre os sentidos resultantes
das diversas exteriorizações de nossos sentidos” (McLuhan, 1977, p.73).
Podemos identificar as revoluções perceptuais mais antigas na nossa espécie com,
primeiro, o decrescimento do seu senso olfativo em benefício da sua visão tricromática;
segundo, com pressões evolutivas que propiciaram uma sintonia fina na nossa audição,

259
talvez em benefício de uma melhor compreensão da fala, porém possivelmente com um
decréscimo na nossa gama auditiva em comparação a de outras espécies animais.
Essas primevas revoluções perceptuais parecem à primeira vista não estarem
associadas a uma revolução tecnológica (ou científica), porém indubitavelmente estão
conectadas às características evolutivas que nos definem como seres humanos e nos
distinguem dos nossos outros colegas do reino animal.
São elas as linhas divisórias que separam o Homo faber, o Homo sapiens dos outros
hominóides, e que principiam a prover o nosso gênero de aptidões para que desenvolva
as artes, tecnologias e ciências, que perpassam sua história, ocasionando assim as
revoluções artísticas, tecnológicas e científicas registradas no nosso passado.
Um antropólogo, Edward Hall, enfatizou magistralmente a extensão dos sentidos e
funções humanas, como podemos constatar na seguinte afirmação:

O homem hoje em dia desenvolveu, para tudo que costumava fazer com o próprio corpo,
extensões ou prolongamentos desse mesmo corpo. A evolução de suas armas [e de suas
ferramentas, adendo nosso] começa pelos dentes e punhos e termina com a bomba atômica.
Indumentária e casa são extensões dos mecanismos biológicos de controle da temperatura
do corpo. A mobília substitui o acocorar-se e sentar-se no chão. Instrumentos mecânicos,
lentes, televisão, telefones e livros que levam a voz através do tempo e do espaço
constituem exemplos de extensões materiais. Dinheiro é meio de estender os benefícios e
armazenar trabalho. Nosso sistema de transporte fazer agora o que costumávamos fazer
com os pés e as costas. De fato, podemos tratar todas as coisas materiais feitas pelo homem
como extensões ou prolongamentos do que ele fazia com o corpo ou com alguma parte
especializada do corpo (apud McLuhan, 1977, p.21-22).
A primeira extensão do sentido do tacto pode ser identificada com o aparecimento
das primeiras ferramentas, das primeiras armas, que complementam e ampliam as funções
da mão humana, limitadas a agarrar, pinçar e prender. O Homo habilis parece ter sido o
primeiro hominóide a empregar ferramentas, por causa de evidências encontradas junto
de seus restos. Existiu há cerca de 2,4 a 1,5 milhões de anos atrás e foi muito parecido
com os australopitecos.
O conceito de Homo faber, o homem como fabricante de ferramentas, trabalhador,
remonta a ideias de Benjamin Franklin, Karl Marx, Kenneth P. Oakley (1949), Max
Frisch (1957) e Hannah Arendt.
Essa foi talvez a primeira revolução tecnológica da humanidade, impulsionando
uma transformação em seus modos de vida e o abandono progressivo dos seus métodos
de sustento, uma mudança de paradigma na terminologia kuhniana, abandonando assim
o Homo sua posição passiva de coletor e carniceiro eventual, passando a uma ativa e
destemida posição de caçador, evoluindo de presa a predador.

260
McLuhan acentua que “ambientes tecnológicos não são recipientes puramente
passivos de pessoas, mas ativos processos [grifo nosso] que remodelam pessoas e
igualmente outras tecnologias” (op. cit., p.15).
A próxima revolução tecnológica notável foi o domínio do fogo pelo homem. Há
evidências que o Homo erectus, que existiu entre 1,5 milhões de anos e 100.000 anos
atrás, provavelmente empregou o fogo, bem como suas ferramentas eram mais
sofisticadas que as do Homo habilis. A mais antiga evidência do uso controlado do fogo
provém do sítio do paleolítico inferior de Gesher Benot Ya’agov, em Israel, datado de
790.000 anos atrás. O próximo sítio é o de Zhoukoudian, na China, berço do Sinantropus,
espécie de H. erectus, com cerca de 400.000 anos; o seguinte é o da Caverna Qesem, em
Israel, com idade entre 200.000 e 400.000 anos.
O uso do fogo permitiu que os alimentos ficassem mais macios, mais fáceis de
digerir, o que conduziu a uma redução dos músculos mastigatórios. Ocorreu, portanto,
uma revolução perceptual, com uma valorização do sentido gustativo.
É geralmente aceito que o comportamento moderno do homem se iniciou quando
começou a pensar abstratamente, ou seja, a empregar, consciente e intencionalmente,
símbolos. Ernest Cassirer, em 1944, apelidou o homem de animal symbolicum, o animal
que emprega símbolos.
Porém, alguns acadêmicos começam a desconfiar que as raízes do pensamento
simbólico não se restringem ao Paleolítico Superior (entre 45.000 e 10.000 anos atrás),
mas se aprofundam no Paleolítico Médio (que se estendeu entre 220.000 anos a até 45.000
anos atrás). Alguns, mais ousados, procuram-nas no Paleolítico Inferior, que começou
entre três e um milhões de anos e durou até 220.000 anos atrás.
Os primeiros símbolos foram, provavelmente, transmitidos por signos orais ou
gestuais, portanto auditivos ou tácteis. Porém, como vimos, a espécie humana
embrenhou-se em um aperfeiçoamento gradativo, evolutivamente selecionado, do seu
sentido da visão.
O problema com o uso de símbolos orais ou gestuais residia na sua comunicação e
na sua volatilidade. Quando as sociedades eram tribais, fechadas, como nos povos
caçadores coletores, o processo de sua comunicação não oferecia dificuldades. Quanto à
sua volatilidade, não havia meios, ou seja, tecnologias, capazes de registrá-los de forma
permanente ou semipermanente.
Em um determinado momento da nossa história evolutiva ocorreu uma nova
revolução perceptual, associada a uma nova revolução tecnológica: a introdução dos

261
grafismos. Ampliaremos aqui o conceito de grafismo bidimensional, onde se inclui
elementos pictóricos, como riscos, linhas desenhos, etc., para que abranja igualmente
elementos tridimensionais, tais como os escultóricos. Usaremos daqui em diante,
portanto, esse conceito estendido de grafismo.
Essa revolução acentuou a participação do sentido da visão; complementarmente,
pode-se igualmente suspeitar que a introdução dos grafismos, com seu potencial
simbólico associado, também contribuiu para que mecanismos evolutivos favorecessem
prioritariamente esse sentido.
Quando os signos, vetores dos símbolos, passaram a ser intencionalmente
produzidos, grafados, encontramos o que podemos classificar como uma notável
mudança de paradigma, uma revolução científica, talvez a mais importante na evolução
da mentalidade que se pode classificar como especificamente humana.
Estava rompida a barreira da comunicação e contornada a volatilidade dos símbolos
orais e gestuais. Pela primeira vez símbolos podiam ser armazenados, terem sua
permanência garantida e adquirirem uma forma material. Estava eliminada sua
transitoriedade. Essa capacidade de armazenamento simbólico externo, fora das mentes,
coletivas ou individuais, é uma das maiores e mais importantes conquistas do ser humano.
O ponto talvez mais importante nessa revolução perceptual, introduzida pela
revolução tecnológica ocasionada pela factibilidade da produção de grafismos simbólicos
materiais, seja a transferência de recursos perceptuais áudio-táteis para, com uma
renovada ênfase, recursos perceptuais visuais.
O campo do sentido da audição é simultâneo, ou seja, podem-se perceber vários
sons ao mesmo tempo, enquanto que o modo visual é sucessivo, a vista se concentra em
uma imagem por vez. Antes do surgimento dos grafismos imperava o paradigma auditivo,
a oralidade, a áudio-tatilidade, depois reinou o paradigma visual.
Antes da agricultura imperava um paradigma predominantemente áudio-tátil, com
uma pequena quota de percepção visual.
A introdução da agricultura pode ser considerada como uma revolução tecnológica
extraordinária, senão a mais notável na história da humanidade. Ocasionou fundamental
mudança no modus vivendi de nossa espécie. De caçador-coletores passamos a
agricultores, de nômades a sedentários. Surgiram vilas, cidades, novos deuses e religiões,
templos, taxas, impostos, o trabalho remunerado e a noção de propriedade de terras. Essa
nova tecnologia ocasionou radical mudança na estrutura social, no modo de vida e na
concepção de mundo de seus adeptos.

262
Podemos dizer que isso forçou a uma revolução matemática. Os rudimentos dessa
ciência, suficientes até então às necessidades das sociedades caçador-coletoras, não mais
atendiam aos requisitos de uma cultura agrícola. Registros de produção agrícola
necessitavam ser mantidos, bens distribuídos, tudo exigia registros numéricos não mais
confiáveis puramente à memória, efêmeros, portanto.
Da necessidade da manutenção de registros numéricos permanentes surgiu a escrita,
primeiramente como uma forma de armazenamento externo de registros numéricos de
modo durável, posteriormente adaptada para registrar os sons ou fonemas de uma língua.
Historicamente, portanto, o numeral antecede a letra.
Estava, assim, sobrepujada a transitoriedade e a impermanência material desses
signos. A escrita é, então, uma extensão da memória humana, nos dizeres de Hall. Essa
necessidade forçou a um rápido, senão explosivo, desenvolvimento da matemática.
Porém essa revolução tecnológica ocasionou uma revolução perceptual, passando
de um paradigma áudio-tátil então vigente, devido à oralidade, para um paradigma
hegemonicamente visual. De um espaço multidirecional dos sons passou-se a um espaço
linear, contínuo, da visão.

Homo digitalis

Desde a antiguidade até os tempos hodiernos o homem é definido como um animal


falante. No século XVIII, Carl von Linné (Carl Linnaeus, 1707-1778), botânico, médico
e zoólogo sueco, introduziu o sistema moderno de classificação taxonômica das espécies.
Popularizou o termo Homo sapiens sapiens, indicador que a humanidade estava se
orientando para o conhecimento. No século XIX surgiram novos cognomes para o
homem; expressões como Homo faber, Homo oeconomicus proliferaram, refletindo a
importância da revolução industrial para a civilização moderna.
Denominações para nossa espécie despontaram, espelhando suas características:
Homo ludens, Homo loquens, Homo demens, Homo politicus, Homo creator, Homo
aestheticus, Homo discens, Homo investigans, Homo religiosus, Homo laborans e muitas
outras.
A denominação Homo digitalis foi popularizada por Nicolas Negroponte,
principalmente por seu bestseller Being Digital, de 1995. Negroponte foi um dos
fundadores e professor do Media Lab, o laboratório de multimídia do Massachusetts

263
Institute of Technology (MIT), sendo também fundador e da organização não lucrativa
One Laptop per Child, que objetiva prover cada criança de um computador pessoal.
No presente estamos nos deparando com uma revolução tecnológica no mínimo
comparável à revolução industrial, ocasionada pelas novas tecnologias de computação,
comunicação e informação. Denominações como sociedade digital ou sociedade da
informação vêm à tona.
Como a presente revolução tecnológica irá influenciar na estrutura, nas concepções
de mundo, nos valores éticos e morais, na educação, nas percepções, em suma, na vida,
no cotidiano de nossa civilização no porvir ainda é uma incógnita.
O mouse, o teclado, telas touchscreen, são extensões da mão humana, amparadas
em um paradigma perceptual tátil. As telas (LCD, plasma, etc.) são as interfaces entre a
visão humana e a máquina, suportadas pelo paradigma visual. Já dispositivos de realidade
virtual/aumentada empregam um paradigma ampliado, que pode eventualmente conter
percepções auditivas, táteis, visuais e outras. Dispositivos como a Alexa, ou a Cortana,
possibilitam que a fala atue como interface, dispensando o acesso tátil.
Realidade virtual é uma tecnologia de interface entre um usuário e um sistema
operacional através de recursos gráficos 3D ou imagens 360º cujo objetivo é criar a
sensação de presença em um ambiente virtual diferente do real. Para isso, essa interação
é realizada em tempo real, com o uso de técnicas e de equipamentos computacionais que
ajudem na ampliação do sentimento de presença do usuário no ambiente virtual. Esta
sensação de presença é usualmente referida como imersão. (Wikipedia).
Realidade aumentada (RA) é uma experiência interativa de um mundo real, onde
objetos que residem no mundo real são “acentuados” por informação perceptiva criada
por computadores, incluindo visual, auditiva, tátil, somatossensorial e olfatória. Pode ser
construtiva (agrega ao ambiente natural) ou destrutiva (que mascara o ambiente natural).
A realidade aumentada altera o mundo real do usuário, enquanto a realidade virtual
substitui completamente o mundo real do expectador (id.).
No próximo Capítulo exploraremos como essas novas tecnologias podem ser
proveitosas para a pedagogia, como elas podem eventualmente auxiliar uma nova
revolução perceptual.
Estamos no limiar de um novo universo perceptual, onde a interface entre o cérebro
humano e a máquina pode dispensar o recurso aos sentidos anatômicos. Próteses visuais
e auditivas, em substituição a olhos e ouvidos humanos danificados, começam a surgir.
Mais além, começa-se a implantar eletrodos no cérebro que permitem a ativação direta

264
de computadores ou máquinas. É o início de uma linha de comunicação direta entre o
cérebro a as máquinas. Pode-se argumentar que, em um futuro próximo, exista a
possibilidade do ser humano dispensar o paradigma sensorial anatômico de que hoje
dispõe.
O mundo digital, com sua Revolução Perceptual inerente, para nos limitarmos
apenas ao aspecto do ensino/aprendizado, exige que tanto a pedagogia como as
instituições de ensino criem novas alternativas, tanto metodológicas como tecnológicas,
que se adequem à realidade do milênio.

Treine seu cérebro

A eficácia do aprendizado não depende unicamente de fatores externos,


características neurológicas desempenham um papel importante e explicam as diferenças
na capacidade de aprender. O cérebro muda constantemente em decorrência do
aprendizado e permanece plástico por toda a vida. Essa propriedade de adaptabilidade é
denominada de neuroplasticidade. Isso se deve ao processo pelo qual as conexões entre
os neurônios, que formam uma rede neuronal, se fortalecem quando são simultânea e
frequentemente ativados, isto é, pelo treinamento.
Um exemplo ilustrativo disso encontramos em uma pesquisa da professora
Eleanor Maguire, do University College London, sobre o cérebro dos taxistas de Londres.
Eles, para conseguir a licença que lhes permite trabalhar, têm de obter o “The
Knowledge” e para isso precisam demonstrar profundo conhecimento das ruas e
monumentos de Londres. O treinamento para isso consome três anos e apenas a metade
dos candidatos obtém sucesso (Frith, 2012).
A pesquisa, baseada em imagens de fMRI, executadas enquanto os motoristas se
moviam em um ambiente de realidade virtual mostrou que a massa cinzenta dos taxistas
aumentou com a memorização do complexo layout da ruas de Londres. Quanto maior a
sua experiência, maior era seu hipocampo, a estrutura espacial associada com a memória
ea localização espacial. A plasticidade do cérebro depende da experiência, que é
conseguida por meio do treinamento.
Contudo, as habilidades adquiridas exigem treino contínuo para manter as
mudanças cerebrais;, no caso dos taxistas, por exemplo, houve reversão dessas mudanças
após sua aposentadoria. Assim como os atletas precisam treinar os músculos, as
habilidades cognitivas precisam de treino continuo para que sejam mantidas.

265
Torkel Klingberg, do Instituto Karolisnka, mostrou que a memória de trabalho
pode ser melhorada com algumas semanas de treino intensivo. Sua equipe monitorou o
cérebro empregando tomografia PET e confirmou que o treinamento intensivo acarreta
uma mudança no número de receptores de dopamina D1 no córtex, neurotransmissor que
desempenha papel fundamental em muitas funções cerebrais (id.)
O treinamento tanto reforça como cria novas conexões cerebrais, os conectomas,
as fibras nervosas que interligam as regiões cerebrais. Essas descobertas fundamentam a
aplicação de metodologias em que o estudante se exercite mais, as metodologias ativas.
O treinamento por meio de vídeogames didáticos também pode propiciar benefícios,
desde que observadas as cautelas que mencionaremos a seguir.
Esses achados explicam porque os alunos devem estudar (que é um treinamento)
contínua e intensivamente, não apenas antes de exames. No caso da matemática, isso já é
conhecido desde a antiguidade. Vários tabletes sumerianos, que foram os pioneiros da
escrita, e que, portanto, conservam os mais antigos registros, contém listas de exercícios
para o aprendizado dos escribas.
Logo, a pedagogia mediante treinamento, por meio de exercícios, não constitui
nenhuma novidade, contudo, somente agora, se principia a compreender seus substratos
neurológicos. A carência de domínio de habilidades básicas de linguagem, que
possibilitam a comunicação, e matemáticas, que desenvolvem o raciocínio abstrato,
lógico dedutivo, ocasiona sérios desafios para avanços na escolaridade.
Entre esses desafios podemos citar a dislexia e a discalculia, nos quais a criança
enfrenta consideráveis obstáculos para o domínio da leitura e da matemática. Muitas
crianças tem problema para entender ou produzir a linguagem falada, bem como
habilidades motoras deficientes e ainda sintomas de falta de atenção, hiperatividade e
impulsividade, como no caso do transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH). Crianças disléxicas possuem padrões anormais de ativação em áreas cerebrais
envolvidas na linguagem e na leitura.
Estudos mostraram que a fraca percepção de números é uma causa subjacente da
discalculia. Jogos de computador foram desenvolvidos para que essas crianças treinem a
compreensão de números adequados ao seu nível de desenvolvimento mental, por
exemplo, introduzindo números maiores conforme avançam.

266
Criar novos hábitos

A neurociência está começando a compreender quais os mecanismos cerebrais


envolvidos na criação de novos hábitos. Para que nos adaptemos a um regime de
treinamento, por exemplo: fazer exercícios, sejam físicos ou de matemática, ou estudar,
é necessários que adquiramos novos hábitos.
Três passos são necessários para que possamos aprender e adquirir novos hábitos:
explorar um novo comportamento, formar um hábito e depois gravá-lo no cérebro.
Aparentemente, pois o processo ainda não está completamente esclarecido, o corpo
estriado coordena cada passo. O córtex infralímbico monitora o que fazemos, mesmo que
façamos sem pensar, irrefletivamente.
Quando um comportamento é repetido, um ciclo de feedback entre o córtex
sensório motor e o corpo estriado é firmemente estabelecido, o que auxilia a gravação da
rotina como uma única unidade de atividade cerebral. Essa unidade se instala
parcialmente no corpo estriado e depende da entrada da dopamina no mesencéfalo.
Para explorar o novo comportamento, o córtex cerebral se comunica com o corpo
estriado, que interage com o mesencéfalo, onde a dopamina auxilia a aprendizagem
atribuindo valor aos objetivos, ou seja, considera a rotina recém- adquirida benéfica.
Assim que um hábito é arquivado como uma unidade de ações, o córtex
infralímbico parece ajudar a marcá-lo como uma atividade semi-permanente, demarcando
uma unidade de comportamento. Isso explica porque sentimos falta dessa rotina quando,
por qualquer motivo, deixamos de executá-la. O córtex infralímbico, auxiliado pela
dopamina, parece atuar para conceder permissão para praticarmos essa nova rotina. O
bloqueio dessa região pode mesmo suprimir hábitos profundamente arraigados (Graybiel,
2014).

Fig. 7.1 Componentes do cérebro. Sistema Límbico, responsável pelas emoções e comportamentos sociais.

267
Na superfície medial do cérebro dos mamíferos, o sistema límbico é a unidade
responsável pelas emoções e comportamentos sociais. É uma região constituída de
neurônios, células que formam uma massa cinzenta denominada de lobo límbico.
O córtex infralímbico é uma sub-região do córtex pré-frontal medial necessária
para a aquisição e consolidação de memórias, contudo, seu papel exato ainda não é
completamente conhecido.

Núcleo caudado
Cápsula interna Corpo
estriado
Núcleo lentiforme

Claustrum

Núcleos da Cápsula Tálamo- Diencéfalo


Base- interna
Telencefalo

Fig.7.2 Núcleos da base . Wiki. Unicamp

Videogames

A atração hodierna por videogames é globalizada e ao que parece duradoura. As


tecnologias são cada vez mais aprazíveis, deleitantes, porém, atirar em zumbis ou repelir
alienígenas pode proporcionar uma melhoria duradoura nas habilidades mentais? Podem
contribuir, de alguma forma, para uma melhoria no aprendizado de disciplinas
fundamentais? Ou são meramente um passatempo divertido?
Embora a denominação de “videogames” esteja amplamente difundida, muitos
não são propriamente ”games”, isto é, jogos, mas sim vídeos digitais destinados a outras
finalidades que não apenas de pura diversão.
Esses vídeos digitais tem uma ampla e variada gama de finalidades, além da
puramente lúdica: servem para treinamento, desenvolvimento de habilidades específicas,

268
inclusive médicas, terapêuticas ou militares, simulação de estratégias, melhoria do
aprendizado, introdução de novas técnicas didáticas, melhoria na socialização, etc.
O ecossistema dos videogames é complexo, exibindo dezenas de subgêneros.
Entre eles, selecionamos: os jogos de: ação, estratégia em tempo real, quebra-cabeças,
envolvimento social.
A indústria dos jogos digitais é hoje uma das mais lucrativas, não apenas as
promotoras de tecnologias, mas também as que os desenvolvem. Sua atratividade é
inequívoca, porém cabe aquilatar seus limites, vantagens e desvantagens. Cumpre
ponderar o que é conhecido economicamente como relação custo/benefício dos mesmos,
ou, em outros termos menos elegantes, a relação entre gênios e imbecis que os mesmos
originam.
Deixando de lado seus aspectos puramente lúdicos, o que interessa para a
pedagogia é sua efetividade no processo de ensino/aprendizagem. Todavia, jogos também
desempenham papel importante em outras áreas, sejam elas médicas, fisioterapeutas,
esportivas, linguísticas, militares ou outras.
Durante a extensa carreira didática dos autores eles tiveram a oportunidade de
visitar dezenas de escolas do ensino médio e fundamental, tanto privadas como públicas,
em muitas delas acompanhados pelos seus respectivos diretores. Esses orgulhosamente
exibiam suas “salas de computadores”, ondo os estudantes se debruçavam em frente aos
monitores, jogando arcanos videogames, e o professor repousava em sua mesa até a
entrada do dirigente, quando então diligentemente se nos dirigia ou flanava pela sala.
Esses episódios eram comuns, com honrosas exceções.
Indagávamos curiosos: Que jogos praticavam? Eram didáticos? Quem os
aconselhou? Foram testados? Quais eram as competências / habilidades que propunham
desenvolver? Como eles estavam incluídos nos programas das disciplinas? E nos
respectivos currículos dos cursos? Foram feitas avaliações para saber se as
competências/habilidades pretendidas foram atingidas?
Praticamente nunca obtínhamos respostas satisfatórias. Se as respostas essas
questões não forem previamente consideradas, debatidas, esclarecidas, então as “aulas
com jogos didáticos” dificilmente atingem seus objetivos, são então merecedoras do
ignóbil apodo lhes atribuídas pelos alunos de “matação (sic) de aula”, e a “sala de
computação” não passa de um “estacionamento de alunos”.
Jogos didáticos digitais devem ter objetivos programáticos/curriculares
específicos pré-programados, claramente estabelecidos, serem previamente testados e

269
seus resultados conferidos, não podem ser puramente lúdicos ou viciantes e após sua
aplicação os alunos devem ser avaliados para se verificar se realmente auferiram os
conhecimentos a que se destinavam. Caso contrário, sua aplicação é desnecessária e inútil.
Além disso, é salutar que vários jogos com os mesmos objetivos devem\ ser
previamente testados, pois sua proliferação no presente é exponencial, e seus resultados
avaliados para a definição de sua escolha. Caso não seja possível testar vários softwares,
por vários motivos, inclusive econômicos, é construtivo procurar aconselhamento junto a
fóruns especializados, artigos acadêmicos ou mesmo outros usuários.
Os melhores softwares educativos não necessariamente são os mais modernos, os
mais tecnologicamente avançados, os mais caros, os que apresentam imagens e
animações fantásticas, mas sim aqueles que melhor se prestarem para que os alunos
absorvam mais eficientemente os conteúdos para os quais foram propostos. Por esse
motivo, reiteramos, a avaliação da eficiência do aprendizado após sua aplicação é
fundamental. Senão, serão apenas brinquedos custosos, adornos vistosos pomposamente
ostentados, mas de moda fugaz, logo relegados ao esquecimento, submergidos no Lethe38.

Vantagens

Pessoas que se divertem regularmente com jogos de ação demonstram maior


capacidade de se concentrar em detalhes visuais e também possuem uma maior
sensibilidade para contrastes visuais. A capacidade de um jogador reagir a eventos que se
desenrolam rapidamente também melhora.
Ajudam a habilidade de tomar decisões corretas sob pressão, o que é útil em
muitas profissões. Cirurgiões jogadores parecem trabalhar de forma mais eficiente, não
apenas mais rápida. Já os cirurgiões laparoscópicos, que também são jogadores, são
capazes de realizarem cirurgias mais rapidamente, mas mantendo a precisão.
Jogadores tem a necessidade de transitarem entre estados de concentração,
enquanto monitoram o jogo, alternando propositadamente entre os que os psicólogos
denominam de atenção concentrada e distribuída, suprimindo informações distrativas.
Isso é muito importante para determinadas profissões, como policiais e militares.
Exames de varredura cerebral fornecem mais evidências dos benefícios dos jogos,
mostrando que regiões muito espalhadas entre si no córtex cerebral, que regulam a
atenção, mudam mais acentuadamente sua atividade em jogadores do que em não

38
Rio do esquecimento completo, como acreditavam os romanos.

270
jogadores. Entre elas estão o córtex pré-frontal dorsolateral, que ajuda a manter a atenção;
o córtex parietal, que muda o foco entre diferentes alvos; e o córtex cingulado, que
monitora o comportamento (Bavalier, 2012).
Os jogos de estratégia produzem melhorias na flexibilidade cognitiva, a
capacidade de mudar rapidamente de uma tarefa para outra. Já os jogos de quebra-cabeça
exibem uma vantagem estatisticamente significativa em medidas de solução de problemas
e habilidade espacial. Os jogos pró-sociais, que envolvem personagens que se ajudam
mutuamente, ajudam a promover a interação social, incentivando a caridade e a
benevolência dos participantes.
Os jogos podem constituir fundações para games terapêuticos destinados, por
exemplo, para pessoas com déficit de atenção ou para aumentar o tempo de reação de
idosos. Eles criam ricos ambientes em que novos desafios surgem sem parar, tirando os
participantes de suas zonas de conforto. Constituem uma experiência gratificante,
divertida, que ajuda a promover a aprendizagem.

Desvantagens

Contudo, os jogos não têm somente vantagens, podem também ocasionar sérios
problemas de diversas ordens. Esses problemas são especialmente preocupantes, pois
atingem não somente jovens, mas também adultos com fraquezas cognitivas e
psicológicas, facilmente convencíveis e impressionáveis. Principiaremos elencando os
problemas de saúde que podem ocasionar, quando jogados em excesso.
Os jogos podem ser viciantes, o vício é algo fortemente impulsivo, que pode
ocasiona sérios problemas de saúde, como ganho ou perda de peso, falta de higiene
pessoas e horário de sono irregular. Em alguns casos, os jogadores deixam de lado
refeições essenciais, como almoço e janta, com medo de perder tempo no jogo.
Outro fator é que podem promover comportamentos agressivos; jogadores
obsessivos são capazes de desenvolveram adversidades como depressão e ansiedade. Sua
irritabilidade aumenta, tornando o jogador mais agressivo. Crianças correm acentuados
riscos de se tornarem impulsivas e anti-sociais;.
Tanto na TV como nos monitores, ou mesmo com os smartphones, olhar
excessivamente uma tela poderá causar cansaço visual que, eventualmente, poderá
culminar em um glaucoma. Isso é prejudicial, pois o jogador passa a piscar menos quando
em contacto visual com um jogo.

271
Um efeito que pode ser ocasionado pelos vídeos digitais é conhecido como “Efeito
Tétris”. Esse efeito se dá quando o indivíduo passa horas e horas jogando sem parar, e
quando “retorna ao mundo real” começa a ver componentes do jogo. Isso é especialmente
preocupante com jogos de ação onde, desnecessariamente, zumbis são decapitados,
pessoas estripadas, explosões fulminantes, torturas sanguinolentas são mostrados. O
universo da fantasia tende a se incorporar no real.
Outro efeito dos jogos é o sedentarismo. A vontade de não praticar alguma outra
atividade que não seja jogar pode surgir e está cada vez mais comum. Infelizmente muitas
pessoas, hoje, trocam uma prática de vôlei ou futebol para jogarem essas mesmas
atividades no videogame.
Existem categorias de jogos especialmente perniciosos e mesmo altamente
perigosos. Um notável exemplo desses é o jogo da Baleia Azul, ligado ao aumento de
suicídio de adolescentes. O jogo envolve uma série de tarefas dadas pelos curadores as
quais os jogadores deverão completar, normalmente uma por dia, algumas das quais
envolvem auto-mutilação.
Algumas tarefas poderão ser dadas com antecedência, outras poderão ser
repassadas pelos curadores durante o dia, sendo para última tarefa o suicídio. Acredita-se
que o criador desta modalidade de jogo seja o russo Filipp Budeykin, que aliciava jovens
e adolescentes para tais grupos de suicídio desde 2013. Preso na Rússia, ele disse que teve
intenção de fazer uma "limpeza na sociedade". Esse jogo provocou o suicídio e
automutilação de centenas de jovens, em vários países do mundo, inclusive em vários
estados do Brasil.
É feita uma distinção entre vício e adição. Um comportamento aditivo, que se
refere a um impulso compulsivo, não necessariamente uma desordem, para tomar alguma
substância ou se engajar em alguma atividade que danosa para a vida. Alguns preferiam
tomar uma atitude dúbia, preferindo denominar o vício em videogames de “adição ao
jogo”,
O vício digital é equivalente ao de outros, libera o neurotransmissor ‘dopamina’,
responsável pela sensação de prazer, de recompensa ao cérebro.
Contudo, em maio de 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) anunciou
uma revisão da Classificação Internacional de Doenças (ICD). A partir dela, nasce a
versão de número 11, que traz, entre as novidades, a adição do "vício em games" à lista
de doenças modernas.

272
A "gaming disorder", algo como "distúrbio de jogar", é classificada como
distúrbio de saúde. Esta classificação coloca-a dentro da categoria das doenças causadas
por "uso de substâncias ou comportamentos viciantes" – lado a lado com o alcoolismo, o
vício em apostas, ou as drogas.
De acordo com a OMS, o vício em games se caracteriza por um padrão recorrente
ou persistente relacionado a jogos digitais ou videogames, que pode acontecer online ou
of-line.
Entre os "sintomas", estão a falta de autocontrole sobre o ato de jogar, e a
priorização excessiva dos games, mesmo frente à atividades essenciais para a vida, como
comer ou dormir.
Para identificar o distúrbio, deve-se prestar atenção na frequência, intensidade,
duração das sessões de jogo, finalização (espontânea ou forçada, por exemplo), e
contexto. Quando estes padrões de comportamento persistem por cerca de um ano ou
mais, é sinal de que algo está errado.
A Organização ainda afirma que aqueles que possuem o vício podem prejudicar
suas vidas em todos os âmbitos: pessoal, familiar, ocupacional, profissional e social.
Uma pesquisa realizada pelo Centro de Medicina e Vícios de Kurihama, Japão, da
Organização Nacional Hospitalar, entrevistou aleatoriamente pessoas em todo o Japão.
Participaram do estudo mais de 4.400 pessoas de idade entre 10 e 29 anos e que jogaram
videogames no último ano.
A pesquisa indicou que quanto mais tempo jogando videogames, mais graves são
os efeitos na vida dos jogadores. Dentre os participantes que jogavam menos de uma hora
por dia, 1,7% declarou jogar mesmo após quedas no rendimento acadêmico ou demissão
do emprego. E 2,4% dos jogadores com menos de uma hora disseram ter continuado a
jogar mesmo depois de ficarem deprimidos ou de terem dificuldade de dormir. Quase
25% daqueles jogando mais de 6 horas diziam não ser capazes de parar mesmo em tais
situações. Dentre aqueles que jogam mais de 6 horas, 37% revelaram ser incapazes de
parar mesmo depois dos jogos causarem danos à saúde mental.
A China, por exemplo, determinou regras voltadas para controlar o hábito de jogar
videogames no país. Menores de 18 anos passam a ser proibidos de jogar após as 22h e
antes das 8h, sem extrapolar 90 minutos de games durante os dias úteis.
A Coreia do Sul determinou que os adolescentes menores de 16 anos sejam
impedidos de jogar games a partir da meia-noite. A restrição vai até às 6 horas da manhã.

273
Videogames e o terror

É evidente que os videogames estão ficando cada dia mais violentos e realistas,
mas é bom lembrar que ataques hediondos são feitos por criminosos que seguem sua
própria agenda doentia, e querer colocar inteiramente a responsabilidade em um jogo é
uma generalização talvez indevida, Contudo, isso não os exime integralmente de culpa,
quando avaliamos sua influência em diversos atentados sofridos no mundo inteiro.
Um dos incidentes mais ilustrativos, e que ainda hoje é inspirador de mentes
delinquentes, é conhecido como o Massacre de Columbine, que ocorreu em 20 de abril
de 1999, na Columbine High School, em Columbine, no Colorado, Estados Unidos. Além
do tiroteio, o ataque complexo e altamente planejado envolveu o uso de bombas para
afastar os bombeiros, tanques de propano convertidos em bombas colocados na
lanchonete, 99 dispositivos explosivos, e carros-bomba. Os autores do crime, os alunos
seniores Eric Harris e Dylan Klebold, mataram 12 alunos e um professor. Eles também
feriram outras 21 pessoas, e mais outras três ficaram feridas enquanto tentavam fugir da
escola. Depois de trocarem tiros com policiais a dupla cometeu suicídio.
O incidente provocou debates sobre leis de controle de armas, gangues do ensino
médio, subculturas e bullying. Também resultou em um aumento na segurança de escolas
americanas com políticas de tolerância zero e um pânico moral sobre a cultura gótica, a
cultura de armas, pessoas rejeitadas pela sociedade, o uso de anti-depressivos por
adolescentes, o uso da internet por adolescentes e a violência em videogames.. A dupla
colecionava vídeos em que falavam sobre explosivos e como construir artefatos caseiros,
obtidos na internet, bem com utilizar as armas e as munições, que haviam obtido
ilegalmente. (cf. Wikipedia).
No caso de Columbine, a música que os atiradores escutavam (Slayer e Marilyn
Manson) e principalmente os jogos Doom e Quake foram apontados como os grandes
culpados pelo terrorismo juvenil.
O ataque ao Aeroporto Internacional Domodedovo foi um atentado suicida
realizado contra o Aeroporto Internacional Domodedovo, no dia 24 de janeiro de 2011.
O atentado matou pelo menos 35 pessoas e feriu aproximadamente 180 (incluindo 3
armênios), dos quais 86 tiveram de ser hospitalizados. Dos feridos, 31 morreram no
aeroporto, três nos hospitais e um em uma ambulância. O trágico ataque suicida em um
aeroporto na Rússia pode ter sido inspirado pelo jogo Call of Duty: Modern Warfare 2,

274
Anders Behring Breivik, também conhecido como Fjotolf Hansen (Oslo, 13 de
fevereiro de 1979), é um terrorista cristão, ativista da extrema-direita norueguesa, e o
autor confesso dos atentados na Noruega que mataram 77 pessoas e feriram outras 51
pessoas, no dia 22 de julho de 2011.
De acordo com Breivik, ele começou a planejar o atentado quando tinha 23 anos
de idade. Ele admitiu vestir-se como um policial, entrar em 22 de Julho de 2011, no
terreno de um acampamento de jovens da Arbeiderpartiet norueguês (Partido dos
Trabalhadores) na ilha de Utøya, abrir fogo contra os jovens presentes, matando pelo
menos 68 deles naquele momento. Ele também confessou a autoria das explosões
combinadas ocorridas duas horas antes em Oslo. Anders foi preso em Utøya, onde ficou
sob custódia da polícia.
Anders Breivik disse ter passado mais de um ano treinando para ataque e usou
games para planejá-lo. Breivik disse que no Réveillon de 2010 para 2011 passou 17 horas
seguidas jogando Modern Warfare, e acrescentou que jogos desse tipo serviam para
simular a reação policial ao atentado e a melhor estratégia de fuga. Breivik afirmou
sorrindo, ao descrever o sistema de mira do game Modern Warfare, é “bom se você quer
simular para propósitos de treinamento".
Todavia, cabe lembrar que não apenas os softwares de games violentos inspiram
atentados, mas também tecnologias, hardwares a eles associados o fazem. Exemplo disso
encontramos no atentado executado por quatro indivíduos na Nova Zelândia em 15 de
março de 2019. Pelo menos 49 pessoas morreram e 20 ficaram feridas, 12 em estado
grave, em ataques realizados nesta sexta-feira em mesquitas da cidade de Christchurch.
Um deles, Brenton Tarrant, um australiano de 28 anos, levava uma câmera presa
à sua cabeça que lhe permitia transmitir não apenas os assassinatos, mas também os
momentos anteriores ao atentado, como o interior do carro que ele dirigia e o arsenal de
armas preparado para o massacre. São 17 minutos de vídeo que registram o momento em
que ele chega à mesquita Al Noor e abre fogo contra as pessoas, transmitidos ao vivo pelo
Facebook..
Ele usou um modelo popular entre o público jovem, que faz sucesso em
plataformas como o YouTube e principalmente o Twitch: o streaming de um gameplay,
de uma partida de videogame que é comentada pelo jogador. Contudo, para ele, o
gameplay foi matar 49 pessoas. A câmera GoPro que o atirador levava na cabeça permitiu
obter imagens que se igualaram, em atrocidade, às de games como Call of Duty,
Battlefield e Far Cry.

275
Atentados terroristas deixaram dezenas de mortos e feridos no Aeroporto
Internacional de Zaventem e na estação de metrô Maelbeek em Bruxelas, na Bélgica,em
22 de março de 2016. na manhã desta terça-feira (22). O Estado Islâmico reivindicou a
responsabilidade pelos ataques. Os terroristas do Estado Islâmico poderiam ter usado o
console PlayStation para se comunicar e planejar os ataques.
Em Paris, em 2015, um ataque terrorista que matou pelo menos 127 pessoas e
deixou mais de 300 feridos, envolveu um dos itens de entretenimento mais populares: um
PlayStation 4, que o grupo terrorista empregou para se comunicar e planejar os ataques.
A prova de que esse tipo de mecanismo é efetivo e tem sido utilizado pelo Estado
Islâmico é o caso envolvendo o vazamento de informações por Edward Snowden.
Segundo os dados do delator, em 2013, as agências de inteligência norte-americanas NSA
e CIA se infiltraram em um dos MMORPGs mais populares atualmente, o World of
Warcraft, para investigar possíveis encontros entre terroristas.
RPG é a sigla em inglês para role-playing game, um gênero de jogo no qual os
jogadores assumem o papel de personagens imaginários, em um mundo fictício. Os jogos
online chamados de MMO (massively multiplayer online) são jogos de RPG, em que você
cria um personagem, evolui de nível, escolhe habilidades, seleciona uma classe, quais
itens irá utilizar e, ainda, se fará parte de um clã ou se será um andarilho solitário. Podem
ser jogados em conjunto com múltiplos participantes. Esses jogos fazem com que seu
personagem seja, praticamente, você mesmo dentro do mundo virtual. Muitas vezes, você
pode até escolher as feições e características físicas dele.
Todavia essas carnificinas não ocorrem somente no exterior, o Brasil não está
imune a elas. Colégios brasileiros foram cenário de ao menos sete atentados com armas
de fogo cometidos por alunos e ex-alunos adolescentes nos últimos anos. Lembramos os
de: Salvador, 2002; Taiúva, 2003; Realengo, 2011; São Caetano do Sul, 2011; João
Pessoas, 2012; Goiânia, 2017; Medianeira, 2019; Suzano, 2019.
Os motivos, com exceções, são semelhantes: humilhações; bullying; vingança,
necessidade de: aparecer em manchetes, se tornar conhecido; impressionar alguém e
normalmente envolvem jovens que se isolam, antisociais, com poucos ou mesmo nenhum
amigo.
Esses indivíduos padecem do que poderíamos denominar de síndrome do lobo
solitário. Embora não convivam com a matilha ou, no caso de jovens, com grupos ou
amigos, eles seguem seus instintos, suas convicções, isoladamente. Normalmente não
preferem, ou não tem condições, de estabelecerem contactos presenciais diretos,

276
preferem-nos via web. Geralmente são pessoas lábeis, facilmente manipuláveis por
indivíduos ou grupos mal intencionados.
Por isso, é extremamente importante os mestres monitorarem o comportamento
de jovens com pouco ou nenhum envolvimento social, dando especial atenção a casos de
bullying, de humilhações sofridas, fazendo o que estiver ao seu alcance para evitar
tragédias futuras. Concordamos, contudo, que a carga horária dos mestres não poucas
vezes é excessiva, que turmas grandes são difíceis ou impossíveis de se monitorar, mas
isso não os impede de fazerem o que tiver ao seu alcance para evitarem prováveis
acontecimentos funestos.
Outro ponto de fundamental importância é o acolhimento dos sobreviventes e o
fornecimento do apoio psicológico e mesmo material que necessitarem. Incrementar a
segurança e o acompanhamento pedagógico nas escolas, ouvir e esclarecer denúncias
sobre bullying e humilhações, não fazer ouvidos moucos sobre as mesmas; estabelecer
programas educativos sobre o uso excessivo e viciante de videogames violentos;
promover ações sociais, esportivas ou artísticas, que promovam a socialização, entre
outros temas, são algumas das possíveis ações a serem desenvolvidas nas mesmas.

Como o cérebro entra em colapso

Travar, congelar sob estresse, é uma experiência comum para todos em algum
momento da vida, isso ocorre pela perda de controle das funções executivas que
controlam as emoções. Os centros executivos de comando das emoções, as áreas dos
córtices pré-frontais, normalmente mantém as emoções sobre controle. São áreas
cerebrais que evoluíram mais recentemente, podendo ser mais sensíveis as ansiedades e
preocupações diárias. Quando as coisas vão bem e o indivíduo não está estressado, essas
áreas mantém as emoções e impulsos básicos sob controle.
O córtex pré-frontal é a região mais evoluída do cérebro, chegando a um terço do
córtex humano. Ele amadurece mais lentamente que qualquer outra área do cérebro,
atingindo sua maturidade plena só ao final da adolescência.
Normalmente, sinais do córtex pré-frontal são enviados para áreas mais profundas
do cérebro, regulando nossos hábitos (corpo estriado), apetites básicos, como a fome, o
sexo, a agressão (hipotálamo) e respostas emocionais, como o medo (amigdala). Tanto o
hipotálamo como a amigdala e o corpo estriado, são regiões muito antigas, que surgiram

277
cedo na escala evolutiva, e foram responsáveis pelos instintos básicos de sobrevivência
da espécies (Arnsten, 2011).
O corpo estriado é um dos núcleos de base do diencéfalo. É formado pelo núcleo
caudado e pelo núcleo lentiforme, que é o conjunto do putâmen e do globo pálido. É a
estação de entrada principal do sistema dos gânglios basais fazendo ligação com o córtex
cerebral.
O córtex pré-frontal também regula as respostas de estresse do tronco cerebral,
inclusive a atividade dos neurônios que produzem a noradrenalina e a dopamina. A
noradrenalina, também chamada de norepinefrina, é um neurotransmissor que influencia
o humor, ansiedade, sono e alimentação. A dopamina é um neurotransmissor que atua
sobre as emoções, humor e a atenção.
Níveis moderados desse neurotransmissores ativam receptores que fortalecem as
conexões no córtex pré-frontal. Essa área abriga a rede neural para o pensamento abstrato
e nos permite concentrar e permanecer ativos em uma tarefa. Esse circuito funciona por
meio de uma extensa rede interna de conexões e neurônios de forma triangular,
denominados de células piramidais. Quando relaxados, os circuitos dessa rede vibram
juntos com satisfação, emitindo sinais de tranquilidade.
Ao mesmo tempo essa área armazena informações em uma espécie de bloco de
rascunho mental, que nos permite, por exemplo, manter em mente a soma dos dígitos que
precisamos levar para uma próxima coluna ao realizar a adição.
Quando o estresse chega, pequenas mudanças de âmbito neuroquímico podem
enfraquecer as conexões da rede neural instantaneamente. A amigdala comanda a
produção da noradrenalina e da dopamina em excesso sob condições estressantes, o que
bloqueia o funcionamento do córtex pré-frontal, mas fortalece a atividade no corpo
estriado e na amigdala, provocando reações emocionais.
Níveis altos e noradrenalina e dopamina no córtex pré-frontal ativam receptores
que abrem canais e desconectam as ligações entre os neurônios pré-frontais,
enfraquecendo o papel da área no controle de moções e impulsos. A dopamina chega até
uma série de estruturas cerebrais profundas, denominadas coletivamente de gânglios ou
núcleos de base, que regulam respostas habituais emocionais ou motoras.
Esses efeitos pioram conforme as glândulas adrenais, perto dos rins, liberam o
cortisol, o hormônio do estresse, enviando-o para o cérebro. Essa cascata de
neurotransmissores gerada no interior do cérebro desencadeia então uma onda emocional
de pânico (id.)

278
Dai o indivíduo trava, desliga. No retorno à normalidade, enzimas costumam
eliminar esses neurotransmissores, permitindo o retorno à tranquilidade.
Essas crises de paúra são comuns e frequentes em várias atividades da vida
acadêmica, como em um exame difícil, na apresentação de um trabalho, nas defesas de
trabalhos de conclusão de curso, de dissertações, de teses, ou ao enfrentar uma turma ou
um auditório, entre outras.
Uma resposta lógica para a nossa compreensão dos mecanismos neurológicos do
estresse consiste em traçar estratégias para manter nosso centro de controle intacto.
Treinamentos diversos, como para emergências ou para os serviços militar e policial,
consistem em ensinar os gânglios basais a aprender reações automáticas, para
ultrapassarem situações estressantes, necessárias á sobrevivência.
Sabe-se que uma rotina de exercícios propicia que os jovens crescem e se tornam
mais capazes de lidar com o estresse se tiverem múltiplas experiências bem sucedidas ao
lidarem com uma sua versão leve na juventude.
As técnicas pedagógicas hodiernas envolvem paradigmas visuais bidimensionais:
quadro negro ou branco, telas de projeção, monitores, etc. Novas tecnologias deverão
envolver paradigmas visuais tridimensionais, como projeções estereoscópicas,
holografia, etc, para mencionar apenas as visuais Deve-se dar preferência às
multimensionais, que acrescentam outros sentidos, como vibrações, odores, texturas, etc.,
pois quanto mais estímulos forem fornecidos, eles ocasionarão mais sensações
prazerosas, permitindo assim maior ativação das áreas pré-frontais.
Novas técnicas ou tecnologias didáticas devem ser capazes de gerar emoções
construtivas, de contentamento, de bem estar, ativando então positivamente a área pré-
frontal dos alunos.

O cérebro prefere a leitura em papel

Nós não nascemos com circuitos cerebrais dedicados à leitura, pois a escrita só foi
inventada pelos sumerianos em volta de 3300 a.C.
Na infância o cérebro improvisa um novo circuito para a leitura, mediante um
treinamento intensivo, conectando várias áreas neurais dedicadas a outras aptidões, como
a fala, a coordenação motora e a visão. Quando aprendemos a ler e a escrever, começando
a reconhecer as letras, com seus arranjos particulares de linhas, curvas e retas, bem como
de espaços vazios. Ao lermos escrita cursiva, ou abecedários com caracteres complexos,

279
o cérebro literalmente acompanha os movimentos da escrita, mesmo que estejamos com
as mão vazias.
O cérebro pode perceber um texto em sua totalidade, como uma espécie de
paisagem física, mesmo que estejam faltando partes do mesmo. Vejamos o exemplo
seguinte:

De aorcdo com uma peqsiusa de uma uinrvesriddae ignlsea, não ipomtra em qaul odrem as
lteras de uma plravaa etãso, a uncia csioa iprotmatne é que a piremria e útmlia lteras etejasm
no lgaur crteo.

Embora o texto esteja bagunçado, é possível entendê-lo, o importante é que a


primeira e a última letra estejam no lugar certo, O cérebro interpreta as palavras como um
todo. Ele consegue mesmo substituir letras faltantes no texto para que as palavras façam
sentido, não importa se as faltantes forem substituídas por números ou outros caracteres:

35T3 P3QU3NO T3XTO 53RV3 4P3N45 P4R4 M05TR4R COMO NO554 C4B3Ç4
CONS3GU3 F4Z3R CO1545 IMPR3551ON4NT35 !

Como ele consegue fazer isso ainda não está totalmente esclarecido, parece certo
que associa, de alguma forma, o aspecto visual das palavras com seu conteúdo semântico
e, além disso, consegue interpretá-las para que o texto todo faça sentido, ou seja,
incorpora também o conteúdo semântico do texto como um todo.
Os livros em papel tem uma topografia mais óbvia do que o texto em tela; abertos
apresentam uma página direita e uma esquerda, bem como oito cantos para orientação. É
possível se concentrar em uma única página, de um livro de papel, sem perder a
consciência de um texto completo, pois conseguimos sentir a espessura das páginas já
lidas e a das faltantes.
Isso não é possível em textos na tela, é necessário irmos até o final para constatar
quantas páginas faltam e estimar o tempo necessário para o resto da leitura. Virar as
páginas é como deixar um rastro após outro em uma trilha: há um ritmo e um registro
visível do progresso da leitura. Isso torna o texto em papel mais navegável, facilitando a
formação de um mapa mental coerente desse texto.
Ao contrário, a maioria dos dispositivos digitais interfere na navegação intuitiva
de um texto, inibindo o leitor de construir um mapa mental do seu conteúdo. Algumas
pesquisas sugerem mesmo que prejudicam a compreensão por distorcerem o sentido de c
localização de pessoas ou coisas dentro do texto. A rolagem, que exige concentração

280
consciente do leitor tanto no texto como no movimento, consome mais recursos mentais
do que virar uma página.
A tinta eletrônica de dispositivos como o Kindle reflete a luz ambiente,
comportando-se semelhantemente com a tinta em um livro de papel. A e-ink do Kindle
se assemelha muito com a tinta de impressão. Já as telas de computadores, smartphones
e tabletes são iluminadas, refletindo a luz diretamente nos olhos. Uma leitura prolongada
nessas telas pode ocasionar cansaço visual, dor de cabeça, visão turva e mesmo glaucoma.
Nesse ponto de vista, a leitura em dispositivos com tinta eletrônica é vantajosa
sobre a nas telas, contudo sua limitação tecnológica de propiciarem apenas textos em
preto e branco torna-os pouco competitivos. Talvez no futuro quando for desenvolvida
uma tecnologia de tinta eletrônica colorida esses dispositivos venham a imperar.
Um estudo realizado em 2005 por Liu Ziming, da San Jose State University,
concluiu que as pessoas que leem em tela tomam muitos mais atalhos, passam mais tempo
navegando, escaneando e buscando palavras chaves, em comparação aos leitores em
papel que tendem a ler apenas um documento de cada vez. Isso as torna mais dispersivas
(Jabr, 2013).
Outro estudo, realizado em 2003 por Kate Garland, da Universidade de Leicester,
mostrou que estudantes que leram no papel aprenderam o material de estudo mais a fundo
e com mais rapidez do que os que leram em telas, pois não dispenderam tempo em obter
informações sobre o texto. Estudos mostram que para a compreensão de textos áridos é
melhor efetuar sua leitura em papel (id.)
Contudo, e-books têm algumas vantagens sobre os livros em papel. Os livros
impressos são volumosos, requerem manutenção e limpeza constantes, são sujeitos a
pragas, como traças, baratas, cupins, etc.. Além disso, ocupam bastante espaço,
requerendo estantes, prateleiras, bibliotecas, que igualmente demandam manutenção. No
presente, quando as moradias estão ficando cada vez menores, devido ao seu custo
exponencial, não há mais espaço para bibliotecas amplas.
Já os e-books não ocupam espaço, dispensam manutenções e podem ser
armazenados em diversos tipos de mídias eletrônicas, ou mesmo na nuvem (cloud) digital.
Além disso, geralmente são mais baratos e acessíveis. Todavia, respostas a questões como
a quem cabe a herança de um acervo de livros digitais ainda são nebulosas, ao contrário
do que ocorre com os livros em papel.
A substituição do papel por telas em crianças de idade muito tenra apresenta
desvantagens que não podem ser ignoradas. As criança se lembram mais das histórias em

281
papel, principalmente quando lidas pelos pais, que ajudam os filhos a relacionar o
contexto da história com a vida dos filhos. Histórias em meios digitais muitas vezes tem
efeitos sonoros, animações apitos e assobios que distraem a criança. Essas distrações, o
apertar de botões, impedem a criança de seguir o fio da narrativa.

Anotar à mão ou no computador?

Uma pesquisa feita por Mueller (et al.), da Universidade da Califórnia, em 2014,
estudou se é melhor tomar notas à mão ou empregando o computador. Descobriram que
os alunos que tomaram notas em laptops tiveram pior desempenho em questões
conceituais do que alunos que tomaram notas à mão. Mostraram que, enquanto tomar
mais notas pode ser benéfico, os tomadores de notas de laptop tendem a transcrever
palestras textualmente, ao invés de processar informações e reformulá-las em suas
próprias palavras, o que é prejudicial à aprendizagem. Sintetizar e resumir a mão, em vez
de uma transcrição literal, é melhor para o aprendizado.
Poderia admitir que os prejuízos para a codificação como computador serem
parcialmente compensados pelo fato de que a transcrição textual deixaria um registro
mais completo para um armazenamento externo, o que permitiria um melhor estudo
posterior a partir dessas notas. No entanto, a pesquisa mostrou o contrário, mesmo quando
permitido a revisão de suas notas após uma semana, os participantes que tiveram notas
tomadas com laptops tiveram pior desempenho em testes tanto do conteúdo factual como
da compreensão conceitual, em relação a participantes que tinham tomado notas
manualmente (Mueller, 2014).
A grafia de uma letra requer estímulos, tanto táteis como motores, muito mais
complexos do que um simples apertar de uma tecla. O controle do instrumento de escrita,
seja ele um lápis ou uma caneta esferográfica ou de tinteiro, ao desenhar uma letra, exige
uma participação dos órgãos sensórios motores muito maior.
Por isso, é aconselhável permitir que estudantes tomem notas com o computador
somente quando tiverem completo domínio da escrita, quando então estão desenvolvidas
assuas habilidades motoras neurais. Todavia, lembramos que essas habilidades só são
mantidas mediante um treinamento contínuo, caso contrário são perdidas. Esse é um
problema grave no mundo atual, com a comunicação permanente por e-mails ou
whatsups, quando como escrever é esquecido, isso sem falar da gramática.
Os emojis, sticks, memes são signos de símbolos que representam sensações,
conceitos ou outros objetos, e pode-se mesmo afirmar que fazem retornar no tempo a um

282
paradigma sensorial pré-histórico, quando os grafismos surgiram pela primeira vez na
história da humanidade. Com isso, a humanidade parece regredir para um paradigma
sensorial pré-escrita. De certa maneira, o uso continuado desses recursos dificulta que as
pessoas consigam se expressar por escrito. O futuro irá determinar se isso é uma revolução
ou uma involução.
Contudo, alerta Fossa (2019) sabiamente sobre tomar notas em excesso, seja a
mão ou por meio do computador. Lembra que o aluno submerge quando está tomando
exaustivamente notas, dispersando energias que poderia empregar mais efetivamente em
outros lugares, bloqueando assim o pensamento efetivo dele e impedindo uma sua
participação mais ativa durante a aula.
Enquanto compulsivamente toma notas, observa Fossa, o estudante não é capaz
de, por exemplo, fazer qualquer outra escolha matemática, apontar outro caminho
original, para decidir como proceder em uma determinada demonstração, ou mesmo
simplesmente apreciar a beleza da estrutura matemática e da sua lógica intrínseca. Isso
bloqueia sua capacidade de pensamento original, de vislumbrar novos insights, tanto na
matemática como em qualquer outro domínio do conhecimento.

O cérebro pode ser turbinado?

A noção de que medicamentos possam melhorar a cognição em pessoas saudáveis


remonta ao início do século passado. Em 1929, o químico Gordon Alles introduziu para
uso médico a anfetamina, droga sintética similar à efedrina. Durante a Segunda Guerra
Mundial ambos os lados utilizaram diversas variedades de droga para manter os soldados
despertos e incutir coragem. Alemães e japoneses empregavam a anfetamina, enquanto
que os americanos preferiam a benzedrina, droga semelhante ao Adderall.
Algumas dessas drogas como as anfetaminas e o metilfenidato, alteram a atividade
do neurotransmissor dopamina nas sinapses, onde ocorrem as junções dos neurônios. A
sinalização aumentada pela dopamina pode eventualmente melhorar o aprendizado e o
interesse em uma tarefa.
Na atividade sináptica normal, quando um neurônio está ativo, algumas vesículas
(que são pequenos sacos) no neurônio que transmite o sinal (emissor pré-sináptico)
liberam esse neurotransmissor. Algumas de suas moléculas atravessam a fenda sináptica
e se ligam no neurônio que recebe o sinal (receptor), ativando-o. Isso permite o disparo
da informação entre os neurônios. Bombas no neurônio emissor então retiram a dopamina
da fenda e a levam para seu interior.

283
Quando a atividade sináptica é aumentada por drogas, como o metilfenidato
(p.ex., ritalina e concerta), elas bloqueiam a reabsorção da dopamina. Então uma
quantidade maior de dopamina fica disponível para se ligar ao neurônio receptor, o que
amplifica a força do sinal do neurônio emissor. Já as anfetamiinas e o Adderall, que
entram no neurônio emissor por meio de mecanismos de bombeamento, fornecem uma
maior quantidade do neurotransmissor, que é despejada na fenda sináptica, aumentando
dessa forma a potência do sinal. Mecanismos diferentes, que produzem o mesmo efeito
(Stix, 2009).
A era de ouro das anfetaminas ocorreu há cerca de 60 anos, quando o consumo
delas pelos americanos atingiu 10 bilhões de pílulas nos fins da década de 1960, antes
que a sua agência reguladora de alimentos e medicamentos (FDA), as rotulasse como uma
substância controlada, exigindo uma prescrição especial.
Vejamos, como ilustração, alguns dos medicamentos disponíveis no mercado,
seus usos médicos, suas eficiências e seus riscos envolvidos.

• O metilfenidato (Ritalina, Concerta e outros) são estimulantes usados no


tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), bem
como narcolepsia (ataques de sono inevitáveis). Esse medicamentos melhoram o
desempenho cognitivo em algumas tarefas sob condições de cansaço, podem
melhorar o planejamento e um tipo de memória de trabalho; parecem melhorar o
desempenho em tarefas maçantes e repetitivas. Todavia, podem piorar o
desempenho em um subconjunto de usuários ou em tarefas complexas, podem
ocasionar complicações cardiovasculares e ataques, alucinações e vício.
• O modafinil (Provigil) é um estimulante para narcolepsia e sonolência extrema,
devido ao trabalho em turnos ou apneia obstrutiva do sono. Parece aumentar o
foco mental e melhorar o desempenho em um conjunto limitado de medidas
cognitivas, como a lembrança de grandes sequências de números. Contudo, pode
ter um potencial viciador maior do que se pensava e pode causar erupções graves
na pele.
• O donozepil (Aricept) é empregado para o tratamento cognitivo da doença de
Alzheimer, aumenta a quantidade do neurotransmissor acetilcolina para melhorar
a cognição. Pode ajudar na memória ou no aprendizado, mas seus resultados são
ainda inconclusivos; pode levar semanas para surtir efeito e não é tão utilizado
como os medicamentos anteriores (Stix, 2009).

284
Um dos ramos de pesquisa mais recentes se concentra nos processos bioquímicos
de formação da memória, incentivados em descobrir tratamentos para o Alzheimer.
Várias classe de medicamentos têm sido pesquisadas, como os ativadores do receptor
nicotínico de acetilcolina, as ampaquinas, os inibidores de fosfodiesterase e as
antihistaminas. Esses medicamentos empregam diferentes modos de ação (id.)
Neurocientistas postulam que a memória a longo prazo envolve a ligação do
neurotransmissor glutamato a dois tipos de receptores nos neurônios que recebem as
sinapses (receptores). O mercado para aprimoradores de cognição é extremamente
atraente e lucrativo para as firmas farmacêuticas, o que incentiva a pesquisa nesse sentido.
Contudo, a melhor opção para os estudantes em busca de melhorias na cognição
ainda parece ser o saudável café (quando não ingerido em excesso), pois até o presente
não existem medicamentos sem contraindicações perigosas. Bem conhecido é o dito de
que um matemático é uma máquina capaz de transformar xícaras de café em teoremas.
Atualizando-o para a era digital, diríamos que um programador é uma máquina capaz de
transformar xícaras de café em programas.
Acreditamos que é inconcebível que educadores sensatos possam indicar drogas
perigosas para seus alunos, por melhor que seus alegados efeitos cognitivos sejam
propalados.

Dimensões Intersensoriais

Existem dimensões intersensoriais ainda pouco exploradas. Hoje fenômenos


como os sinestésicos são admitidos, porém pouco compreendidos. Sinestesia (do grego
συναισθησία, συν- (syn-) "união" ou "junção" e -αισθησία (-esthesia) "sensação"), é a
relação entre planos sensoriais diferentes. Em uma forma de sinestesia, letras ou números
são percebidos como coloridos. Em outra, sons se afiguram coloridos.
Há cerca de 60 tipos de sinestesias hoje identificados, porém seu mecanismo não
é conhecido. Existe, portanto, um amplo território intersensorial inexplorado, virgem,
carente de entendimento, campo fértil para novas pesquisas. Discute-se se são fenômenos
inatos ou aprendidos, ou uma conjugação de ambos.
Uma forma numérica é um mapa mental de números, a qual automática e
involuntariamente surge quando alguém experimenta pensar números como formas.
Foram primeiramente identificadas por Sir Francis Galton, no seu trabalho “As Visões de
Pessoas Sãs”, de 1881, que assim as denominou. As formas numéricas foram
recentemente incluídas entre as sinestesias. Estudos atuais sugerem que são o resultado

285
de uma ativação cruzada entre regiões do lobo parietal, que se sabe envolvido na cognição
numérica e na cognição espacial.
Pesquisas recentes sobre tempos de reação mostraram que sinestesistas que
percebem formas numéricas são mais velozes em reconhecer qual de dois números é o
maior, quando os números são arranjados em uma maneira consistente com sua forma, o
que sugere que formas numéricas são evocadas automaticamente.
As formas numéricas são conscientes, idiossincráticas e estáveis por toda a vida
do sinestesista. Isso mostra que não são fenômenos transitórios, mas novos estados de
percepção, o que mostra que o potencial do cérebro humano, mesmo em questões
matemáticas, ainda não é inteiramente compreendido.
O efeito distância também apresenta outra consequência: a habilidade de
distinguir entre dois números melhora (com relação ao tempo de resposta e precisão)
quando a distância (numérica ou alfabética) entre os itens aumenta.
Isso parece indicar que as posições de itens em sequência são codificadas
aproximadamente por funções sintonizantes; números e letras são determinados de um
contínuo de representações análogas que parcialmente se sobrepõem.
Portanto, a rede cortical para o processamento de ordem coincide com as áreas já
conhecidas que processam quantidade numérica, todavia, isso não significa que neurônios
individuais possam codificar cardinalidade e ordinalidade simultaneamente. Somente
estudos adicionais poderão esclarecer essa questão.
Outro distúrbio cognitivo notável é conhecido sob a denominação de Síndrome de
Savant, que é considerado um distúrbio cognitivo com o qual a pessoa possui uma grande
habilidade intelectual aliada a um déficit de inteligência. Tais habilidades são sempre
ligadas a uma memória extraordinária, porém com pouca compreensão do que está sendo
descrito.
É citada na literatura científica desde 1789, quando Benjamim Rush, o pai da
psiquiatria americana, descreveu a incrível habilidade de calcular de Thomas Fuller que,
de matemática, sabia pouco mais do que contar. Em 1887, no entanto, John Langdon
Down, mais conhecido por ter identificado a síndrome de Down, descreveu 10 pessoas
com a síndrome do sábio, com as quais manteve contato ao longo de 30 anos como
superintendente do Earlswood Asylum (Londres). Langdon usou o termo idiot savant
(idiota-sábio), para identificar a síndrome, aceito na época em que um idiota era alguém
com QI inferior a 25. Atualmente, sabe-se que pessoas com Síndrome de Savant têm,

286
geralmente, QI (Quociente de inteligência) entre 40 e 70 - embora possa ser encontrada
em outras com QIs de até 114.
Um caso particularmente notável foi o de Laurence Kim Peek (1951 – 2009, QI
de 87), que chegou a ser conhecido com megasavant. Foi a inspiração para o personagem
Raymond Babbit, interpretado por Dustin Hoffman, no filme Rain Man.
Ele podia lembrar, ipsis literis, o conteúdo de 12.000 livros. Descrevia os
números de rodovias que vão para qualquer cidade, vilarejo ou condado dos EUA,
códigos DDD, CEPs, estações de TV e as redes telefônicas que os servem. Identificava o
dia da semana de uma determinada data em segundos. Era mentalmente incapacitado e
dependia de seu pai para suas necessidades básicas.
Peek nasceu com macrocefalia, com danos no cerebelo e sem corpo caloso, uma
condição em que está faltando o feixe de nervos que conecta os dois hemisférios do
cérebro; no caso de Peek também faltaram conexões secundárias como a comissura
anterior, que é um conjunto de fibras que conectam os dois hemisférios cerebrais através
da linha média. Especula-se que seus neurônios fizeram conexões incomuns devido à
ausência de um corpo caloso, resultando em um aumento da capacidade de memória.
A Síndrome de Savant confere a Daniel Tammet (1979-) capacidades especiais na
memorização de números e grande facilidade na aprendizagem de línguas. Ele foi capaz
de dizer 22.514 dígitos de Pi e de aprender a falar islandês em uma semana. Atualmente
fala onze línguas diferentes, além de ter criado seu próprio idioma, o Mänti.
Pessoas com o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista - TEA podem
também ter o diagnóstico de Savant, mas não necessariamente: cerca de 50% dos casos
da Síndrome de Savant são associados ao TEA e os outros 50% com outros transtornos.
E cerca de 10% dos indivíduos com TEA também podem manifestar a Síndrome de
Savant, mas em diferentes graus. A diferença entre graus é que muitos indivíduos com
TEA têm interesses restritos a determinados assuntos e, por estudarem muito e focarem a
atenção nisso, acabam dominam o conteúdo. Já os savants possuem uma habilidade inata,
ou seja, não precisam estudar para dominar certo tema.
Acredita-se que a disfunção de determinadas regiões cerebrais provoque uma
resposta paradoxal com a super ativação e potencialização de outras áreas do cérebro,
processo esse conhecido "facilitação funcional paradoxal". Deste modo, após haver um
dano cerebral em determinada região, geralmente no hemisfério esquerdo, há ativação de
outra região cerebral, com reconfiguração dos circuitos neurais e o aparecimento de

287
capacidades até então adormecidas. Isso ocorre por um processo de desinibição de
habilidades previamente armazenadas na nova região recrutada.
As habilidades presentes em pacientes com Síndrome de Savant estão mais
associadas às funções do hemisfério direito (que incluem aptidões para música, arte,
matemática, formas de cálculos, entre outras). Por sua vez, as habilidades mais deficientes
são as relacionadas com as funções do hemisfério esquerdo (linguagem e especialização
da fala).
Contudo, não se conhecem exatamente o que desencadeia essa síndrome, pois
pode surgir tanto inatamente como após danos no cérebro. Somente pesquisas futuras
poderão esclarecer suas origens.
Todavia, tanto a sinestesia como a Síndrome da Savant mostram que o cérebro
tem potencialidades inexploradas, pouco conhecidas, mas que é de uma plasticidade
admirável. Longo caminho se descortina ainda no horizonte, para que possamos
compreender essas questões, muito ainda permanece sombrio.
A seguir estudaremos duas das mais comuns deficiências de aprendizado com que
nossos mestres se deparam.

Discalculia e Dislexia

Existe uma grande comorbidade entre os transtornos de aprendizagem,


principalmente entre a dislexia e discalculia. Um estudo com uma amostra de 799 crianças
em idade escolar publicado no Journal of Learning Disabilities, em 2008, constatou que
15% das crianças com discalculia também apresentavam o transtorno da leitura, e 7%
com dislexia apresentavam transtorno na matemática.
Numerosos estudos têm investigado se dislexia e discalculia compartilham
mecanismos cognitivos comuns sem, contudo, chegarem a conclusões definitivas. É uma
área ainda em aberto.
Todavia, podemos classificar as hipóteses vigentes para tal em três grupos
principais: a) postula-se que dislexia e discalculia exibem perfis cognitivos distintos,
separados, isto é, existe um déficit fonológico em dislexia e existe separadamente um
déficit no processamento de números na discalculia; b) propõe-se que tanto a dislexia
como a discalculia compartilham um déficit cognitivo mais fundamental, residindo talvez

288
na memória de trabalho; c) postula-se que déficits na percepção visual podem
desempenhar um papel importante tanto na dislexia como na discalculia.
A discalculia é um tipo de transtorno de aprendizagem caracterizada por uma
inabilidade ou incapacidade de pensar, refletir, avaliar ou raciocinar processos ou tarefas
que envolvam números ou conceitos matemáticos, como no julgamento rápido, preciso e
confiante dos números realizados para um pequeno número de itens (subitizing) ou em
somas simples. Afeta entre 3,5-6,5 % das crianças de ambos os gêneros em idade escolar,
dependendo do país e dos critérios de diagnóstico.
Os déficits comportamentais observados entre os indivíduos com discalculia
tendem a variar. Uma característica comum é ter um sentido de número prejudicado.
Indivíduos com discalculia geralmente têm um mau senso de magnitude numérica, faixa
de subitização reduzida (estimativa de pequeno número de itens), mapeamento numérico
prejudicado e transcodificação entre palavras de números, dígitos e quantidades
(especialmente na representação simbólica de número).
Normalmente, indivíduos com discalculia enfrentam graves dificuldades na
contagem; eles muitas vezes empregam estratégias de contagem imaturas e ineficientes,
como a dependência de dedos, e mostram pouca capacidade de empregar estratégias
automáticas de recuperação. No cálculo, eles têm habilidades limitadas em decompor
somas difíceis ou grandes e mostram uma falta de compreensão dos procedimentos e
conceitos básicos do cálculo aritmético (Kadosh, 2017).
Não deve ser confundida com acalculia, que geralmente é devida mais tarde na
vida, ocasionada por injúrias severas, pois a discalculia é observada cedo, geralmente na
infância. Não raramente está associada com TDAH (transtorno do déficit de atenção com
hiperatividade) e com dislexia, comorbidades frequentes.
Não existe um protocolo padronizado para o seu diagnóstico, embora alguns testes
estejam disponíveis. Estima-se que 1 em cada 5 adultos sofrem de numeracia deficiente,
o que torna seu diagnóstico na fase adulta ainda mais difícil (Kadosh, 2017).
Numeracia é a capacidade de raciocinar e aplicar conceitos numéricos simples, ou
seja, habilidades básicas que consistem em compreender aritmética fundamental, como
adição, subtração, multiplicação e divisão.
Observa-se uma certa confusão entre numeracia e numerosidade, mesmo em
alguns artigos científicos. Numerosidade é inata, e está envolvida no senso numérico, no
reconhecimento de pequeno número de padrões, por exemplo, de pontos. Já a numeracia

289
é a capacidade de entender, raciocinar e aplicar conceitos numéricos simples, inclusive
de captar numerosidades.
Os déficits funcionais e estruturais associados à discalculia parecem ser
distribuídos principalmente nas regiões parietal e frontal, e em menor grau em outras
regiões cerebrais, contudo, as suas bases neurais ainda permanecem desconhecidas.
Desconfia-se que a discalculia possa estar associada com reduções no volume da matéria
cinza no sulco intraparietal direito e áreas frontais, como o cíngulo anterior, o giro frontal
interior esquerdo e o giro frontal bilateral médio.
Suspeita-se que fatores genéticos possam também estar envolvidos, um estudo
familiar mostrou que a metade de todos os irmãos de crianças com discalculia também
sofria da mesma condição, que é um risco 5 a 10 vezes maior do que o da população típica
(id.).
Dislexia é uma deficiência da aprendizagem caracterizada pela dificuldade de
leitura, apesar da inteligência da pessoa ser normal. Essa deficiência prejudica. as pessoas
em diferentes graus. Seus principais sintomas são: dificuldades em pronunciar
corretamente as palavras, em ler rapidamente, em escrever palavras à mão, em
subvocalizar palavras, em pronunciar corretamente palavras ao ler em voz alta e em
compreender aquilo que se está lendo. Normalmente essa deficiência é identificada na
idade escolar. Quando a pessoa anteriormente conseguia ler sem dificuldade, mas em
determinado momento perde essa deficiência se denomina alexia.
De um ponto de vista histórico-evolutivo, a dislexia só começou a ser identificada
a partir da invenção da escrita pelos sumerianos, em torno de 3300 a.C. , pois somente
então a leitura começou. Mesmo assim, a capacidade de leitura por muitos milênios
continuou restrita a uma pequena parcela da humanidade, compartilhada por uma pequena
porção de indivíduos letrados, que sabiam ler e escrever, geralmente pertencentes a
classes destacadas, superiores.
Em termos evolutivos, essa deficiência é muito recente, logo provavelmente
incapaz de ocasionar alterações anatômicas significativas (ou mesmo genéticas) no
cérebro humano. Isso permite supor que as causas da dislexia são mais funcionais que
estruturais. Todavia, isso deve ser considerado com cautela, pois mesmo a introdução dos
produtos lácteos, que ocorreu somente recentemente no neolítico (c. 10.000 a.C.), foi
capaz de propiciar alterações genéticas, originando genes que processam a lactose.
Teorias antigas sobre as causas da dislexia propunham que deficiências no
cerebelo, órgão que controla os movimentos dos músculos na formação das palavras pela

290
língua e pelos músculos faciais, estão ultrapassadas pelas novas descobertas da
neurociência,
Pesquisas realizadas por Moreau (et al.; 2018) mostram que não existem
evidências de correlações sistemáticas da matéria branca cerebral com a dislexia e a
discalculia. Em outro estudo Moreau (et al.; 2019) concluiu que também a matéria cinza
do cérebro não apresenta anormalidades tanto na discalculia como na dislexia. Isso sugere
que essas deficiências possam estar ligadas a processos, ativações cerebrais e não a
características ou alterações anatômicas.
No presente, várias descobertas acerca da neurociência da leitura fornecem pistas
de como a dislexia funciona. Primeiramente, indivíduos com boa e deficiente capacidade
de leitura diferem em seus padrões de ativação em termos dos graus de que eles ativam
partes do cérebro associados à leitura, tais como reconhecer sinais gráficos familiares (a
região occipitotemporal), ligar letras e sons (a área temporoparietal), e o processamento
de fonemas (o giro frontal inferior). O que é importante, é que os leitores com dislexia
não apenas mostram menos ativação global, eles mostram um padrão diferente de
ativação.
A região temporoparietal serve como centro de decodificação da leitura pelo
cérebro. As principais áreas envolvidas dentro da região temporoparietal são: o giro
temporal superior (que se sobrepõe com a área de Wernicke); o giro supramarginal, e o
giro angular. O giro temporal superior é a principal região de processamento da fala e
ajuda a extrair fonemas do discurso que ouvimos. O giro supramarginal serve como um
link entre fonemas e grafemos. O giro angular pode estar envolvido em no processamento
dos significados das palavras.
Uma segunda importante descoberta, é que quando estudantes com dislexia
participam com sucesso em sessões de leitura, seus padrões de ativação do cérebro não
são os mesmos de estudantes normais. Essas diferenças ocorrem mesmo quando
estudantes com dislexia participam de sessões de leitura focadas nos sons, dos fonemas,
das palavras.
Uma terceira descoberta da neurociência parece suportar as técnicas de
reconhecimento de palavras empregadas para o tratamento da dislexia.
Nesse ponto, pesquisas por Schneps (2013) evidenciam que novas tecnologias (e-
readers, como o Kindle), podem ser mais efetivas no tratamento da dislexia do que textos
impressos em papel. E-readers podem ser facilmente formatados para apresentarem
poucas palavras por linha e fontes maiores, facilitando significativamente a velocidade

291
de leitura e a compreensão. Aqueles estudantes que padecem com problemas de
decodificação de fonemas ou de deficiências na visão das palavras podem ler mais
rapidamente usando esses dispositivos. Como o texto fica menos apinhado, a atenção é
mais fixada durante a leitura. .
Estudo realizado por Cheng (et. al., 2018) mostrou que tanto indivíduos com
discalculia, como com dislexia e mesmo com as duas condições (comorbidade) têm um
substrato neural comum onde partilham déficits de percepção visual. Paralelamente
mostrou que tanto crianças com dislexia como com discalculia tem déficits similares no
processamento de números. Conclui que déficits de percepção visual é um déficit
cognitivo comum subjacente tanto à dislexia com à discalculia (Cheng, 2018). É
interessante notar que aparentemente o processamento de números desempenha um papel
fundamental em ambas as condições.
Estamos à beira de uma nova revolução perceptual, engatilhada pelas novas
tecnologias. Por isso, é importante analisarmos sob um ponto de vista histórico-
evolucionário como as percepções influíram nas nossas estratégias de sobrevivência, no
presente caso, como contribuíram para o desenvolvimento da matemática.

A evolução da contagem à luz da ótica das revoluções perceptuais

Já se afirmou que provavelmente o homem começou a contar empregando seus


dedos; as mãos parecem ter sido a primeira máquina de calcular de que o homem dispôs.
A noção fundamental foi o fato de que o homem compreender ser possível efetuar
uma correspondência entre a coisa a ser contada com um dedo da mão.
O uso dos dedos implica em uma dominância do sentido tátil. Inicialmente,
conjecturamos, o homem provavelmente não dispunha de nomes para os números.
Associava à coisa contada um dedo, levantando-o. É possível que tenha intuído essa
correlação quando apontava o dedo para a coisa objeto da contagem. Passava à próxima
coisa do conjunto a ser contado, separando outro dedo. Prosseguia assim por diante, até
que o conjunto objeto fosse inteiramente contado.
Numa primeira fase, devia se restringir a números menores que 5 ou 10, passíveis
de serem contados com as mãos. Posteriormente, deve ter compreendido que poderia
empregar outras partes do corpo no processo de contagem, tais como os dedos do pé,
cotovelos, etc. Evoluiu, assim, da contagem digital para a corporal. Nesta fase, imperava
um paradigma tátil para o processo de contagem.

292
O emprego de nomes para números surgiu somente quando o homem contava com
um domínio adiantado da fala. O fato de atribuir nome a uma entidade abstrata, um
número, registra, talvez ineditamente, o emprego de um signo matemático. O nome do
número – dois, por exemplo, é um signo verbal do conceito abstrato número dois.
Cabe lembrar que nessa etapa primária da nossa história, nos princípios da fala,
no domínio da oralidade, as palavras eram revestidas de auras mágicas. Lembremo-nos
da doutrina do nome, que se sabe comum em sociedades primitivas: uma coisa não existe
até que receba, normalmente por intervenção divina, um nome.
A noção de que nome e essência de um dado ser estão intrinsecamente
relacionados, mediante uma correspondência necessária e interna, e que nome não apenas
denota, mas realmente é, o próprio ser, bem como a potência do ser real está contida em
seu nome, eis o que parece um dos conceitos fundamentais da consciência primitiva.
O fato do homem primitivo se capaz de cunhar um nome para um número,
portanto, se reveste de conotações que o homem moderno esqueceu, não lhe são habituais
pela sua herança cultural e pelo seu meio social.
O levantar do primeiro dedo, associado à primeira coisa a ser contada, constitui o
núcleo primevo da ideia de unidade, que assim surge pela primeira vez na história de
nossa espécie. Também é o germe da noção posterior, adotada, por exemplo, entre os
gregos, de que a unidade (mônada) gera todos os números.
A passagem de um dedo para o próximo é o passo mais primitivo no processo da
construção dos números, pois o homem compreende pela primeira vez que qualquer
número pode ser formado se acrescentado uma unidade - 1+1+1+1+.... - ao anterior. É a
origem da noção de sucessor, básica no processo de construção formal dos números
inteiros. As noções de unidade e sucessor constituem, ainda hoje, o núcleo essencial, o
kernel, da construção formal moderna dos números naturais.
Também é importante registrar que encontramos aqui uma das, senão a, mais
antigas evidências do emprego da recorrência; seu emprego, como Poincaré já notava,
constitui o raciocínio matemático par excellence, para usarmos suas palavras. Não é ainda
o princípio da indução completa, mas sua ideia básica, sua semente, de que qualquer
número pode ser construído adicionando-se uma unidade ao anterior.
Não sabemos quando compreendeu que podia associar à coisa contada um calculi
ou um entalhe, primeira ocorrência de armazenamento simbólico numérico externo,
possivelmente em uma fase posterior à da contagem digital, pois não temos evidências
disso.

293
Também aqui ocorreu uma revolução perceptual, com a evolução do processo de
contagem tátil (digital ou corporal) para o emprego de entalhe ou calculi, o que não deixa
de ser uma revolução tecnológica, para um paradigma visual, pois então podia
contemplar, externamente a seu corpo, o resultado da contagem. O paradigma visual para
a contagem começava, então, entrar em ascensão.
Com o surgimento da escrita, passou a registrar signos para os números, grafando
assim pela primeira vez os numerais. Essa nova revolução tecnológica ocasionou então
uma mudança importante em seu paradigma perceptual, que passou a ser então
hegemonicamente visual, originando assim o enfoque perceptual da matemática que até
hoje se estende para os números. Porém, mesmo no presente, inconscientemente
contamos com os dedos, resquício talvez genético desse processo imemorial.

A evolução da álgebra à luz da ótica das revoluções perceptuais

As etapas evolutivas da álgebra habitualmente costumam serem classificadas em


três gêneros: a álgebra retórica, a álgebra sincopada e a álgebra simbólica. Essa divisão
foi introduzida por G.H. Nesselmann, na sua obra “Die Álgebra der Griechen”, em 1842.
A distinção entre elas é apontada a seguir:

• Álgebra Retórica: empregavam-se somente palavras para designar as operações.


Havia uma completa ausência de símbolos.
• Álgebra Sincopada: certas palavras de uso frequente são gradualmente abreviadas.
• Álgebra Simbólica: as abreviações contraem-se até que sua origem seja esquecida,
de maneira que os símbolos não têm nenhuma conexão óbvia com as operações
que representam. Ou, alternativamente, são criados novos símbolos que não tem
nenhuma conexão aparente com a operação representada.

A evolução histórica da álgebra pode ser melhor entendida à luz dos conceitos de
revoluções e paradigmas perceptuais.
Desde a antiguidade, após a introdução da escrita, a leitura de um texto era
predominantemente feita em voz alta. Havia, portanto, uma ascendência do sentido da
audição sobre os demais. Nesse período, que se estende até os fins da Idade Média,
quando se empregavam somente palavras para designar as operações algébricas, havia
uma completa ausência de símbolos. Os manuscritos eram em lidos voz alta; nos
294
mosteiros medievais havia celas individuais de leitura nas bibliotecas, para que os monges
leitores não perturbassem seus vizinhos.
Com a introdução da imprensa com tipos móveis, por Joahnes Gutenberg (c.1390-
1468), nos fins da Idade Média e princípios do Renascimento, houve uma significativa
mudança nos hábitos de leitura, com uma paulatina aceitação da leitura silenciosa. Esse
período corresponde ao período transicional da álgebra sincopada, onde certas palavras
começavam a serem abreviadas, pois uma ascendência do sentido da visão começava a
se impor. É, portanto, um período de transição entre uma dominância do sentido auditivo
para uma dominância do sentido visual.
Pacioli (1494), por exemplo, empregava cosa para a incógnita x, e sua abreviação
co. ; censo para o quadrado da incógnita, x^2, abreviada ce. ; cubo para o cubo da
incógnita, x^3. abreviada cu. ; ce.ce. era x^4; etc.
A predominância absoluta do sentido visual propiciou o surgimento da álgebra
simbólica na Idade Moderna, onde as abreviações se contraem até que sua origem seja
esquecida, de maneira que os símbolos não têm nenhuma conexão óbvia com as
operações que representam ou, alternativamente, são criados novos símbolos que não têm
nenhuma conexão aparente com a operação representada.
O zênite da álgebra simbólica pode ser identificado com a escola formalista
moderna, tipificada pela escola bourbakiana. Sem uma predominância incontestável do
sentido visual esse tipo de álgebra é impossível. O mesmo vale para a lógica simbólica
moderna, caracterizada pela completa ausência de palavras em seus conceitos, a qual é
igualmente quase impossível de ser desenvolvida sem o auxílio de recursos visuais.
De um modo geral, pode-se afirmar que seria inviável o desenvolvimento integral
da matemática moderna sem o auxílio da visão, dada a predominância desse sentido no
estágio atual dessa ciência. O paradigma perceptual atual da matemática, portanto,
fundamenta-se na visão.

Cômputo digital versus calculadoras

O cômputo com os dedos é a técnica de contagem mais antiga empregada pela


humanidade, enraíza-se certamente na pré-história, e até hoje é utilizada. Discute-se,
todavia, a eficácia dessa técnica como importante recurso pedagógico na atualidade.
Países orientais, como a China e a Coréia, vêm empregando-a no ensino de operações
aritméticas básicas para seus alunos. Apregoa-se, inclusive, que o cômputo digital pode
ser mesmo mais rápido do que com calculadoras.

295
Fig. 7.3 Classes na China onde disputa-se a eficiência no cômputo
de operações aritméticas básicas com dos dedos. Fonte: Wikimedia.

Os alunos são orientados e treinados a efetuarem as contas com a mão esquerda,


enquanto mantém na memória uma representação mental de um ábaco, ou seja, de noções
sobre a numeração posicional. Realmente, alguns adquirem uma excepcional velocidade
no manejo da técnica, como pode ser constatado, por exemplo, em alguns vídeos
disponíveis39.
O método coreano chisanbop ou chisenbop (do coreano chi (ji) dedo + sanpŏp
(sanbeop) cálculo 지산 법 /指算法) é uma técnica de contagem com os dedos simulando
um ábaco, ou seja, empregando conceitos da numeração posicional, provavelmente criado
na década de 1940, e é usado para executar operações matemáticas básicas. Com este
método é possível exibir todos os números de 0 a 99 com as duas mãos.
Contudo, foram feitas algumas experiências com esse método nos Estados Unidos
e seu emprego foi descartado, pois se constatou que, embora fossem capazes de adicionar
grandes números rapidamente, bem como executar outras operações elementares, os
alunos não aprenderam como fazê-las mentalmente.
Ou seja, não adquirem o treinamento necessário para executar essas operações de
memória, pois suas redes neurais necessárias para tal não foram desenvolvidas. O mesmo

39
https://www.thatsmags.com/china/post/29655/watch-chinese-students-use-hand-swinging-technique-at-
math-competition
https://twitter.com/alvinfoo/status/1157510365506408448

296
argumento é válido para o cômputo digital chinês. Só as redes neurais envolvidas nos
processos motores são aperfeiçoadas. Apenas a rapidez motora no cálculo não é suficiente
para a consolidação das redes neurais necessárias para o domínio integral das operações
matemáticas básicas.
Esses mesmos argumentos podem ser transportados para o ensino de operações
aritméticas básicas empregando calculadoras. Uma questão multiplamente levantada,
tanto por pais como por professores, é quando se deve apresentar a calculadora para uma
criança. O domínio do uso da calculadora por ela é rápido, e logo ela se aferra ao seu uso,
pois não precisa pensar, basta ler o resultado.
Portanto, o uso da calculadora por uma criança antes que ela adquira a capacidade
de executar mentalmente operações aritméticas básicas é desaconselhado. Tal como no
cômputo digital, elas não contam ainda com o treinamento necessário para executar essas
operações mentalmente, pois suas redes neurais necessárias para isso não foram
desenvolvidas. Isso irá prejudicar sua capacidade futura no aprendizado da matemática.
O uso de recursos tecnológicos, tais como calculadoras, tablets, smartphones ou
computadores no ensino da aritmética para crianças somente é aconselhado quando elas
dominem cabalmente como executar mentalmente essas operações.

Mecanismos neurais das diferenças de aprendizado em crianças

Uma questão central para a ciência do aprendizado não resolvida é como alguns
indivíduos aprendem e são capazes de empregar, transferir, esse conhecimento para
novos problemas ou contextos melhor do que outros, ou seja, porque existem perfis de
aprendizado diferentes. O nó górdio da questão envolve em saber, de um lado, porque
existem circuitos cerebrais que processam diferentemente problemas treinados de novos,
e de outro, como um conhecimento generalizável dependeria da formação de
representações neurais e da integração funcional de circuitos envolvidos tanto no
processamento de problemas treinados como de novos.
Estudos de neuroimagens mostraram que em adultos o treinamento aritmético está
associado com uma diminuição da atividade do córtex fronto-parietal e um subsequente
relativo aumento da atividade do giro angular esquerdo. Em crianças, mostraram que o
hipocampo está implicado tanto no ganho de performance e no aumento da taxa de
recuperação de informações, como em mudanças no cérebro relacionadas com o aumento
da idade e com a estabilidade das representações neuronais.

297
Para identificar os mecanismos subjacentes ao aprendizado e à transferência do
conhecimento para novos problemas em crianças, o grupo de pesquisa de Hyesang Chang,
da Universidade de Stanford, desenvolveu em 2019 um estudo empregando fMRI sobre
essas questões.
Para isso, selecionaram um grupo de 29 crianças, com idades variando entre 8 e
10 anos (média do grupo = 9,49 anos), todas com um conhecimento de aritmética de
médio ou acima da média, sendo 15 meninos e 14 meninas. O grupo foi então submetido
ao teste americano WJ-III de competência em matemática e recebeu uma lição
introdutória de como resolver problemas de adição.
As seções de treinamento duravam uma hora e consumiram 5 dias, dentro de uma
semana, orientadas por um tutor, e consistiam em uma variedade de atividades para
resolver 14 problemas em cada seção. Terminado o treinamento, as crianças completaram
uma tarefa dentro de um scanner de fMRI, a qual envolvia tanto problemas treinados
como novos problemas, de nível de dificuldade similar ao dos praticados. Após o scanner,
foi-lhes solicitado lembrar quais problemas que reconheceram das seções de treinamento
e quais novos viram no scanner.
A lição introdutória expunha estratégias para a solução dos problemas.
Incialmente era introduzida uma estratégia que consistia em dividir os números em
múltiplos de dez, mais números de um digito, por exemplo: 65 + 7 = 60 + 5 + 7 = 60 +
12 = 72, a qual não envolvia o transporte de números, como ensinado normalmente.
Essa mesma operação é aprendida da seguinte forma: na primeira casa decimal,
soma-se 5 com 7, resultado 12, escreve-se 2 nessa casa e uma unidade é transportada para
a casa decimal seguinte, resultando 6+1=7 na segunda casa, obtendo o total 72.
Essa operação simula a execução dessa conta segundo as colunas do ábaco, onde
cada coluna representa as potências da base do sistema de numeração. O que é importante
é que essa estratégia envolve o transporte de números que devem ser mantidos na
memória de trabalho envolvendo, portanto, mecanismos neurais distintos.
Após a análise dos resultados, a pesquisa apresentou resultados interessantes, os
quais resumiremos a seguir. Após o treinamento, os participantes mostraram
significativamente melhor desempenho nos problemas treinados do que nos novos. Cinco
dias de treinamento melhoraram a performance e aumentaram a lembrança das estratégias
empregadas nos problemas previamente treinados. Isso era de se esperar, pois o
treinamento, ou, em outros termos, o estudo, é o fundamento de toda a teoria pedagógica.

298
Outro resultado demonstrado foi que as crianças que aprendiam mais rapidamente
desempenhavam melhor não somente em problemas que aprenderam durante o
treinamento, mas também na solução de novos problemas. Passou-se então a investigar
os mecanismos neurais subjacentes.
Descobriram que os problemas treinados provocaram uma atividade
significativamente maior no hipocampo anterior e médio, no giro parahipocampal (PHG),
no giro temporal médio, e bilateralmente no giro angular, bem como no córtex pré-frontal
medial esquerdo e no córtex cingulado posterior direito.
Também se observaram a redução significativa das atividades, quando em
problemas treinados, no giro frontal inferior, no sulco intraparietal, no giro
supramarginal, na área motora suplementar, no giro occipital médio, no cerebelo e no
caudal direito.
Esses resultados indicaram que os cinco dias de treinamento diminuíram o
engajamento de sistemas fronto-parietais e aumentaram o envolvimento do lobo temporal
medial (MTL) e do giro angular em problemas previamente treinados, em comparação
com o que acontecia com problemas novos.
Já aqueles que aprendiam mais rapidamente mostraram grande similaridade
representacional no MTL e no neocórtex, tanto no desempenho em problemas treinados
como em novos. Eles apresentam maior estabilidade em padrões representacionais no
MTL e no sulco intraparietal (IPS).
Isso parece indicar que aqueles que aprendem mais rápido apresentam um maior
grau de representações compartilhadas entre problemas treinados e novos, o que reflete a
existência de um mecanismo chave subjacente à transferência de conhecimentos para
novos problemas.
Logo, áreas cerebrais mostram diferenças de ativação entre problemas treinados e
novos problemas. Portanto, a existência de diferentes perfis de aprendizado tem origens
neurais, o que pode ser melhor visualizado nas imagens a seguir (Fig. 7. e 7. ).
Essa pode ser talvez uma explicação para a criatividade em matemática, que
depende da experiência acumulada e da inspiração, com a transferência de experiências
adquiridas para novos problemas e contextos. Isso mostra que possivelmente exista uma
base neural, ou mecanismos neurológicos, que fazem parte da estruturação mental dos
indivíduos criativos.

299
Fig. 7. 4 Áreas cerebrais mostrando diferenças na ativação para problemas treinados versus novos.
Problemas treinados (mostrados em vermelho-amarelo) provocaram maior atividade do que novos
problemas no hipocampo (HIP), giro parahipocampal (PHG), giro angular (AG), giro temporal
médio (MTG), córtex pré-frontal medial (mPFC) e córtex cingulado posterior (PCC). Novos
problemas provocaram maior atividade (mostrada em azul-verde) no giro frontal inferior (IFG),
ínsula, frontal média e giro superior, sulco intraparietal (IPS), giro supramarginal (SMG), área
motora suplementar (SMA), giro occipital médio (MOG), cerebelo (CBL) e caudal (CAU). Fonte:
Chang, 2029.

Fig. 7. Clusters de ativação do lobo temporal medial (MTL) (mostrados em laranja)


sobrepostos no lobo: (a) medial (m) HIP (ciano) e PHG (verde). Hemisférios L:
esquerdo; R:direito.Fonte: Chang, 2019.

300
Portanto, os alunos de aprendizado mais rápido mostraram maior semelhança de
representações neurais entre problemas treinados e novos no MTL, incluindo o
hipocampo anterior direito e no giro parahipocampal, sugerindo que o MTL facilita a
transferência de aprendizado em crianças. O papel do MTL no aprendizado e sua
transferência para problemas estruturalmente semelhantes é consistente com um grande
conjunto de evidências da literatura acerca da memória, as quais sugerem que o
hipocampo está envolvido em representações generalizadas de itens recentemente
aprendidos (Chang, 2019).
Chang observa que, além do MTL, os alunos mais rápidos mostraram maior
similaridade representacional no giro frontal superior, na área motora suplementar, nos
giros temporais: pré-central, superior, médio e inferior, no giro occipital médio e no
tálamo, indicando que eles também dependem de múltiplos sistemas corticais para
transferir seu aprendizado.
Também descobriu que os alunos mais rápidos mostraram maior estabilidade de
padrão, especificamente para novos problemas, no hipocampo direito e no sulco
intraparietal direito. Esses achados sugerem que crianças que aprendem mais rapidamente
problemas treinados podem ser capazes de transferir os conhecimentos adquiridos a partir
dessas sessões de adestramento e aplicá-los de forma mais consistente a novos problemas,
se comparados com aquelas que aprendem mais lentamente.
Portanto, estudos mostram que dois componentes chaves de um aprendizado
eficiente em crianças estão relacionados: a) a velocidade de aprendizagem e b) a
profundidade da mesma, que se refletem na transferência de conhecimentos para novos
problemas.
Isso mostra a eficácia de se proporem novos desafios para crianças,
principalmente, mas não somente, para aquelas que mostrarem maior pendor e velocidade
de absorção de conteúdos em geral. Também que se deve incentivar sua participação em
eventos como as Olímpiadas de Matemática, cujos resultados vêm se mostrando
gratificantes.
Explicam também porque nem todos os alunos tem igual pendor para essa ou outra
disciplina. Suas conformações neurais são diferentes, não basta apenas o treinamento.
Esse fornece apenas as bases mínimas de competência, suficientes para uma vida profícua
na sociedade. Igualmente, sinalizam existirem limites no aprendizado.
Quando um indivíduo (mormente adulto) apresenta sérios déficits de aprendizados
em uma determinada área do conhecimento, no caso a matemática, a sua recuperação,

301
descartadas patologias ou entraves psicológicos, é possível somente até um determinado
ponto. Isso pode ocorrer devido a que suas conformações neurais definitivamente não se
adequam a essa área e o processamento de seus conceitos lhe é muito difícil ou
impossível.
Ao contrário do que apregoam algumas correntes pedagógicas, não adianta insistir
ad infinitum nisso. É preferível (e saudável) aconselhá-lo a investir em outra área do
conhecimento em que se sinta confortável. Lembremo-nos da lição do evangelho:
“Muitos serão convidados, mas poucos os escolhidos” (Mateus, 22:14).
Uma limitação desse estudo é que a amostra empregada foi relativamente
modesta, outra foi de que não se adquiriram dados de fMRI antes do treinamento, somente
após.

Mapeamento neural em crianças com déficits cognitivos

O estudo de Hyesang Chang,(2019) mostrou que em crianças normais as que


aprendem mais rápido auferem melhores condições para tratarem de problemas novos e
que existem diferentes perfis de aprendizado. Contudo, em crianças com dificuldades de
aprendizado, ou com outras desordens cognitivas apresentadas durante seu
desenvolvimento, o progresso na compreensão dos seus mecanismos neurais causadores
subjacentes tem sido lento.
Estima-se que entre 14% a 30% das crianças e adolescentes, em todo o mundo,
padecem ou de déficits de aprendizado ou de alguma desordem cognitiva suficientemente
severa, que requer tratamento especializado (Siugzdaite, 2020). Os problemas variam,
entre os quais podemos citar: dislexia, discalculia, desordem do desenvolvimento da
linguagem (DLD), dispraxia, déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), desordens do
espectro autista (TEA). Comorbidades também ocorrem.
As pesquisas divergem, algumas dessas desordens têm sido associadas a distintas
áreas cerebrais, por exemplo, o TDAH foi associado com diferenças na matéria cinza do
cérebro dentro tanto do córtex cingulado anterior como do núcleo caudato, do cerebelo,
do córtex pré-frontal, do córtex pré-motor, e de muitas partes do lobo parietal. A razão
dessas inconsistências reside em esses grupos de diagnósticos são muito heterogêneos e
não poucas vezes eles se sobrepõem.
Para remediar essas contradições, no presente se advoga em enfoque
transdiagnostical, ou seja, um enfoque visando identificar sintomas subjacentes que se

302
encontram presentes em múltiplos diagnósticos. Para empregarmos um conceito
matemático, ele visa identificar os sintomas presente na intersecção dos múltiplos
diagnósticos.
Processos ou déficits cognitivos podem ter múltiplos fatores contribuintes e o
mesmo déficit neural pode ter diferentes consequências funcionais em crianças diferentes.
Neurocientistas empregam os termos multifinalidade e equifinalidade no estudo desses
fatores. Multifinalidade é empregado para significar que o mesmo déficit neural pode
resultar em múltiplos sintomas cognitivos entre indivíduos. Já equifinalidade significa
que podem existir múltiplas rotas para a mesma desordem ou perfil.
Talvez o motivo principal dessas contradições possa ser devido a que as pesquisas
anteriores se dedicavam apenas a delimitar as áreas cerebrais anatômicas envolvidas, sem
levar em conta as conexões entre elas, os conectomas, ou seja, que possam existir
múltiplas rotas cerebrais causadoras de uma mesma desordem.
O grupo de pesquisa de Roma Siugzdalte, da Universidade de Cambridge,
executou um estudo transdiagnóstico sobre o mapeamento cerebral de desordens
cognitivas no desenvolvimento de crianças. Dados de neuroimagens, cognitivos, e de
aprendizado, foram coletados em 479 crianças, das quais 299 eram meninos, com idade
variando entre 62 e 223 meses. Dessas crianças, 337 apresentavam problemas cognitivos
relacionados com o aprendizado. Dados cognitivos foram levantados das 479 crianças por
meio de exames de ressonância magnética ponderada por difusão (DWI), os quais
permitiram a construção de um algoritmo de aprendizado por meio de uma rede neural
artificial, que possibilitou a construção dos perfis de aprendizado dessa amostra,
capturando relações não lineares e admitindo medir diferenças entre os mesmos
(Siugzdalte, 2020).
O emprego de exames de ressonância magnética ponderada por difusão (DWI)
possibilitou estabelecer os conectomas da matéria branca em todo o cérebro das crianças.
O uso da teoria matemática dos grafos permitiu o estabelecimento de toda a rede de
conexões cerebrais, bem como dos nodos (polos, hubs) entre elas. O algoritmo da rede
neural artificial permitia simular o desligamento de conexões, ou mesmo de polos,
admitindo assim que fossem feitos “ataques” ao funcionamento das suas redes cerebrais,
o que modificaria seus perfis de aprendizado. Essas simulações ensejaram dados
profícuos sobre como os conectomas influem sobre as desordens cognitivas em crianças.
Uma teoria prevalente na ciência das redes é a que é conhecido como “pequeno
mundo”, ou “o clube dos ricos”, a qual afirma que apenas um pequeno número de

303
componentes é responsável pela organização ótima para um sistema complexo. Uma rede
de “pequeno mundo” é um grafo matemático no qual a maioria das áreas cerebrais não
está conectada diretamente, mas sim organizada ao redor de um pequeno número de
polos.
Esse princípio organizacional foi identificado em redes sociais, em redes de genes
e recentemente no cérebro adulto humano. Os polos permitem o compartilhamento da
informação dentro da rede enquanto minimizam o “custo” com as conexões. Desse modo,
o déficit de uma mesma rede neural regional poderia ser associado com diferentes perfis
cognitivos por causa das diferenças individuais na forma em que as regiões do cérebro
estão integradas via polos.
Foram simulados ataques nessas áreas do “clube de ricos”, por meio de
degradações das conexões a um mínimo possível. O estudo então revelou que ataques
simulados nos conectomas das crianças mostraram que realmente algumas das suas redes
cerebrais estavam fortemente organizadas ao redor de polos altamente conectados.
Crianças com essas redes tinham somente déficits cognitivos seletivos, menores, ou então
nenhum déficit ao todo.
Ao contrário, os mesmos ataques tiveram um impacto significativamente diferente
em algumas das redes das crianças, devido a que sua eficiência cerebral estava menos
dependente dos polos. Essas crianças tinham as mais severas deficiências cognitivas.
Desse modo, o estudo concluiu que a conectividade dos polos cerebrais é um
importante previsor transdiagnóstico dos perfis cognitivos das crianças (Siugzdalte,
2020).
Essa pesquisa, que abrangeu tanto uma amostra como um esforço considerável,
aponta como o estudo dos conectomas está ainda em sua infância, e demonstra a sua
importância para a compreensão dos nossos processos cerebrais.

Remates

A ampliação do espectro de inovadoras tecnologias, como o ciberespaço,


realidade virtual imersiva, inteligência artificial, holografia (displays em 3D), meios
inovadores de comunicação (www, e-books, blogs, YouTube, Facebooks, Twitter, etc.),
e muitas outras, descortina espaços perceptuais tanto para a matemática como para a
pedagogia ainda não inteiramente discerníveis, momentaneamente nebulosos, porém
certamente influentes.

304
O desafio do novo milênio para os matemáticos e pedagogos envolverá, entre
outras batalhas, em: como lidar com esses novos horizontes perceptuais; como estes
implicarão nos rumos futuros desta ciência; como as mudanças estruturais que deverão
se seguir às essas revoluções tecnológicas influirão na práxis matemática; como divisar
novas formas de ensino desta disciplina, adequadas à pedagogia novomilenar; como as
implicações éticas provenientes dessa nova matemática e pedagogia serão percebidas;
como ela irá contribuir para a sociedade e para o engrandecimento da humanidade.

305
CAPÍTULO VIII

TECNOLOGIAS EDUCACIONAIS INOVADORAS

Nossa maior fraqueza está em desistir.


O caminho mais certo para vencer é
tentar mais uma vez.
Thomas Edison

Introdução

Neste Capítulo iremos tratar de temas relativos ao uso das mais recentes
tecnologias midiáticas no âmbito da prática pedagógica e a relação dessas com a
percepção por meio de múltiplos estímulos sensoriais. Voltamos a destacar que alguns
temas que serão aqui discutidos são de caráter geral e destinados a uma atualização das
práticas pedagogias.
Serão tratados aqui temas como realidade virtual, realidade aumentada,
holografia, ambientes imersivos, ambientes colaborativos, ambientes interativos e a
relação destes com os ambientes de aprendizado.
Destaca-se igualmente aqui, a importância de uma abordagem histórico-evolutiva
das tecnologias midiáticas para a compreensão de como elas podem contribuir de forma
efetiva no aprendizado segundo a ótica da neurociência.

Revoluções midiáticas

A evolução tecnológica acompanha a humanidade desde seus primórdios


existenciais. A criação de instrumento para potencializar suas ações tem sido parte
integrante do processo evolutivo e permanece constante até os dias atuais. Criar
mecanismos ou artefatos que amplificam a suas capacidades cognitivas e ampliam suas
competências, tem sido o meio mais eficiente e eficaz para a conquista de novas fronteiras
do conhecimento.
No que se refere às mídias, o final século XIX e o começo do século XX, se
destacaram pelas contribuições tecnológicas ainda presentes na sociedade moderna. O
advento da primeira gravação e reprodução de áudio (audio streams) por Thomas Edison
em 1877; o primeiro registro fotográfico feito por Joseph Nicéphore Niépce em 1826; o
registro de imagens em movimento (video streams), o cinetoscópio, patenteado por
Thomas Edison em 1890; a fotografia estereoscópica (3D picture) apresentado por Sir

306
David Brewster e Parisian Jules Dubosq em 1849; o registro de filmes em estereoscopia
(3D vídeo streams), patenteado por Peter Hubert Desvignes em 1860; a pseudo-
holografia por reflexo (Pepper’s ghost) apresentado por John Henry Pepper em 1862; a
comunicação telefônica por voz patenteado por Alexander Graham Bell em 1879; a
comunicação via rádio por Guglielmo Marconi em 1899; o televisor de tubo de raios
catódicos por Philo Taylor Farnsworth em 1927; a computação digital (Electronic
Numerical Integrator Computer - ENIAC) posto em funcionamento por John Persper
Eckert Jr e John William Mauchely em 1946 e, por fim a Internet, a rede mundial de
computadores, idealizada por Joseph Carl Robnett Licklider em 1962.
Todos esses eventos formam os pilares de sustentação das tecnologias midiáticas
que permeia as mais diferentes soluções da atualidade, permitindo avanços importantes
na construção de novas aplicações em diferentes áreas do conhecimento humano,
incluindo-se a essas a educação.
Adentrando o século XXI os cenários que se descortinam se mostram mais
desafiadores. Aparatos tecnológicos com as mais diversas finalidades são parte do
cotidiano das pessoas, TV’s inteligentes (Smarth TV), Telefones inteligentes (Smarth
Phones), Relógios inteligentes (Smarth Watchs) e toda sorte de dispositivos móveis
carregam o rasto da Inteligência Artificial (IA), uma das áreas da computação com
presença predominante nas novas tecnologias.
Além da IA, o novo milênio trouxe consigo uma bagagem significativa de
recursos para a transformação das relações sociais e da maneira como a sociedade vê e
interage na execução de suas tarefas. O uso de telas em ultra-alta definição e sensíveis ao
toque (touchscreen), câmeras 3600, scanner laser, impressão 3D, projetor 3D, scanner
estereoscópico são apenas alguns exemplos dessa transformação tecnológica. O grande
desafio agora é como usar de maneira eficaz e eficiente esses recursos e como aferir a
qualidade desse uso.

Ambientes Imersivos

A imersão é um processo que permite a um ou mais observadores experienciar


uma realidade dentro de um espaço restrito e controlado. A experiência pode ser
individual ou coletiva, pode envolver objetos do mundo real, virtual ou uma combinação
de ambos (experiência mista). Os ambientes imersivos podem utilizar diferentes
tecnologias dependendo dos objetivos almejados.

307
A imersão individual atende a um único observador, que é colocado em um
contexto por meio de um processo de simulação, no qual a tecnologia empregada,
proporciona a ambientação necessária a fim de vivenciar eventos relativos ao mundo real.
Um bom exemplo desses ambientes são os simuladores de voo. A figura 8.1 mostra um
sistema imersivo para voos simulados com avião de caça para uso militar.

Figura 8.1: Simulador de voo profissional TL39 de origem Tcheca40.

A imersão coletiva envolve um grupo de pessoas. Nesse caso, a experiência


vivenciada é compartilhada entre os participantes e tem por objetivo a interação entre os
participantes e o meio. A figura 8.2 mostra os fuzileiros navais norte americanos do
Batalhão de Logística de Combate 11, treinando no Combat Convoy Simulator no
Tactical Vehicle Simulation Center.
Cabe aqui uma pequena ressalva, o uso bélico das tecnologias é histórico na
sociedade humana e vem, ao logo do tempo, sendo precursor de muitos aperfeiçoamentos
que acabaram por beneficiar a humanidade em períodos de paz. Alguns exemplos
históricos como a computação digitais e a própria Internet são frutos desse processo. O
grande volume de investimentos aplicados pelos governos nessa área é o principal
propulsor das tecnologias de ponta.

40 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Simulador_de_voo

308
Figura 8.2: US Combat Convoy Simulator41

A inclusão de diferentes tipos de objetos, reais, virtuais e mistos, tem por objetivo
a ampliação do conjunto de recursos e propiciar aos participantes uma experiência o mais
próximo possível da realidade.

Ambientes Interativos

A interatividade em um ambiente é um processo que permite aos participantes


interagirem/reagirem aos estímulos produzidos pelo ambiente. Nos processos passivos os
participantes são apenas espectadores que recebem estímulos sem poderem externar
qualquer reação que retroaja ao ambiente de forma a propiciar alguma mudança de
cenário ou estado. Um bom exemplo desse tipo de ambiente são as salas de cinema, não
importando a tecnologia utilizada, 3D ou convencional, figura 8.3.

Figura 8.3: Exemplo de teatro de projeção cinematográfica42.

41Fonte:https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marines_with_Combat_Logistics_Battalion_11_train_
in_the_Combat_Convoy_Simulator_at_the_Tactical_Vehicle_Simulation_Center.jpg
42 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sala_de_cine.jpg#file

309
Ambientes imersivos, tais como os Domos, que também são conhecidos com
planetários, figura 8.3, presentes em parques temáticos, museus, universidades e
planetários, também se enquadrariam nesta classe, pois são capazes de gerar estímulos,
mas não oferecem interatividade significativa.

Figura 8.4: Digital Arena4344.

Os sistemas interativos devem, por preceito, produzirem algum estímulo nos


participantes, os quais, por conseguinte, geram reações de retorno. Essas reações, por sua
vez, podem modificar o cenário onde o estímulo foi inicialmente produzido. Uma
sequência de ações/reações é chamada de processo interativo. Os estímulos, nesses casos,
podem advir de diferentes fontes e, por conseguinte, sensibilizar diferentes sentidos dos
participantes. Bons exemplos de sistemas interativos são os jogos digitais, figura 8.5.

Figura 8.5: Pessoas interagindo com o jogo PONG no The National Videogame Musion45

43 Fonte: http://www.mcacoelho.com.br/?portfolio=pucpr-•-arena-digital
44 Fonte: http://www.leiaecocentral.com.br/filme-em-planetario-e-boa-opcao-educativa/
45 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Pong_(28684491143).jpg

310
Ambientes Colaborativos

Com o advento da Internet e o significativo avanço nas tecnologias de


comunicação, novas possibilidades de interação à distância se mostraram viáveis. Esse
processo vem ocorrendo em ondas que atingem um ou mais setores da sociedade,
dependendo da tecnologia envolvida.
Nas últimas décadas observou-se significativo progresso nos recursos de
comunicação tais como o uso de tecnologia digital de comunicação via rádio, das fibras
óticas e dos satélites de comunicação, o que, por conseguinte, impulsionou outros setores,
tais como a Internet e os sistemas televisivos. Com o advento das bandas largas de
comunicação, surgiu a possibilidade de transmissão de informações em diferentes
formatos, tais como, voz, dados e imagens.
Esse conjunto pode, desse modo, ser enviado em diferentes canais de uma mesma
banda de frequência. Essa tecnologia permitiu que inúmeros outros serviços surgissem.
A comunicação móvel foi uma dessas ondas, atingiu inicialmente o setor de telefonia e
atualmente se integra ao sistema televisivos e de telefonia fixa, herdando todo o aparato
de recursos já disponível nessa última.
Na atualidade é possível efetuar uma vídeo-chamada, assistir um programa de TV
em tempo real, acessar a Internet, enviar mensagem e se manter conectado a um provedor
de serviços dos mais variados (músicas, filmes, etc.). Outro recurso que se beneficiou
dessas tecnologias foram os ambientes colaborativos.
Os ambientes colaborativos estão presentes na sociedade desde a revolução
industrial que teve seu ponto de partida no século XVIII, no ano de 1760. Tratava-se de
um local, ambiente físico, no qual um grupo de pessoas se reunem para discutir e deliberar
sobre algum assunto. Na atualidade, são chamados de Workplaces.
Igualmente nesses ambientes as ondas tecnológicas se fizeram presentes.
Inicialmente como uso de videoconferência ponto-a-ponto e atualmente, com o uso das
Reuniões Virtuais (Virtual Meetings), envolvendo duas ou mais pessoas em diferentes
localidades. Cabe aqui destacar a importância desse recurso. Ele permite que atividades
empresariais, educacionais (Virtual Classroom) e inúmeras outras se mantenham em
funcionamento, mesmo em períodos de isolamento social, a exemplo do que ocorreu nos
anos de 2020, com a pandemia do COVID-19, figura 8.6.

311
Figura 8.6: Pessoas participando de reunião por vídeo conferência46.

Fatores positivos dos ambientes colaborativos estão em reduzir distâncias e, por


conseguinte, reduzir custos operacionais relativos ao deslocamento de pessoas e como
consequência, reduzir a necessidade de infraestrutura física para propiciar reuniões e
atividade que necessitam da participação de um grupo de pessoas. A desvantagens está
no custo da infraestrutura tecnológica exigida para a conectividade e participação do
grupo, tais como computadores individuais, rede de Internet com velocidade de
comunicação adequada, câmeras, microfones e outros acessórios que se fizerem
necessários. Dependendo das necessidades tecnológicas do grupo de trabalho a reunião
pode se tornar restritiva, não atender à todas as necessidades ou ter custo elevado de tal
forma que inviabilize seu uso.

Estereoscopia

A estereoscopia é um fenômeno natural, decorrente da visão binocular, que


permite ao ser humano ter a sensação ou percepção visual volumétrica e em profundidade.
Ela ocorre quando cada olho observa uma mesma cena com diferentes pontos de visão.
Como cada olho encontra-se separado, em média, por uma distância de seis (6)
centímetros, variando de pessoa para pessoa, para mais ou para menos, eles captam a
mesma cena com uma pequena variação angular e quando o cérebro junta estas duas
informações, ele cria o efeito ou sensação de profundidade ou visão estéreo, figura, 8.7.

46 Fonte: https://scholarlykitchen.sspnet.org/2020/06/23/virtual-conference-season-is-here-are-you-
prepared/

312
Figura 8.7: Visão binocular ou estéreo47.

O fenômeno ou efeito da estereoscopia pode ser reproduzido de várias maneiras


distintas. A mais antiga das técnicas é por meio do uso de um binóculo, figura 8.8(a). A
mesma cena é reproduzida em duas fotografias obtidas usando uma câmera fotográfica
estereoscópica, figura 8.8(b), que usa duas lentes distintas para obter o par estéreo de
fotografias.

(a) (b)
Figura 8.8: (a) Binóculo usado para visualizar par imagens estereoscópicas48. (b) Câmera estereoscópica
de 187049.

Existem duas fases diferentes a serem avaliadas num sistema estereoscópico


completo, a primeira é a aquisição ou captura de imagem ou de um stream de vídeo.
Lembrando que um stream nada mais é do que uma sequência de quadros de um filme ou
vídeo seja ele 2D ou 3D. A segunda é o processo de visualização.
O primeiro aspecto relevante da estereoscopia está forma de obtenção ou
aquisição da imagem ou captura. Na atualidade a estereoscopia pode ser obtida por
diferentes meios, qual sejam, câmeras e filmadoras que produzem streams de vídeo 3D.
Alguns exemplos de recursos de aquisição: câmeras justapostas, figura 8.9(a), lente
acoplada à uma câmera convencional que divide a cena em duas imagens, figura 8.9(b),
câmera estereoscópica, figura 8.9(c), scanner estereoscópico F2S2, que além de ser capaz

47 Adaptado de: http://www.motionesque.com/stereography-and-the-cardboard-effect/


48 Fonte: https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Holmes_stereoscope.jpg
49 Fonte: https://www.nms.ac.uk/explore-our-collections/collection-search-results/?item_id=20037620

313
de obter o par estéreo de imagens, também gera o modelo stream 2D, um formato de dado
que permite a visualização dinâmica do objetos em visão estéreo, isso é, o objeto em
movimento nos três eixos cartesianos, como em um modelo computacional 3D, figura
8.9(d), ou ainda, efeitos produzidos por filtros de cor aplicados computacionalmente,
figura 8.9(e), efeito de visualização.

(a) (b)

(c) (d)

(e)
Figura 8.9:(a) Stereo Camera System 50 ; (b) Lentes Estéreos 51 ; (c) Câmera Panasonic 52 ; (d) Stereo
Scanner F2S253; (e) Imagem Estereoscópica Anaglifo54.

Outro aspecto relevante a se destacar está na forma de visualização. As imagens,


vídeos ou modelos volumétricos 3D’s estéreos, podem ser observados utilizando
diferentes tecnologias. A primeira e mais simples visualização, é a apresentada na figura
8.8(a). Essa técnica é utilizada na atualidade pelos óculos de realidade virtual, os
chamados óculos RV ou Realidade Virtual, como será visto no tópico seguinte.

50 Fonte: https://www.theimagingsource.com/newsletter-2.0/20171004/body.en_US.phtml
51 Fonte: http://www.3dstereo.com/viewmaster/lsl-nik.html
52 Fonte: https://estereoscopia3d.wordpress.com/2011/04/13/panasonic-apresenta-nova-camera-3d-ag-
3dp1/
53 Fonte: https://www.scitepress.org/Papers/2018/67014/67014.pdf
54 Fonte: https://akvis.com/pt/sketch-tutorial/examples/3d-sketch.php

314
A segunda visualização é a apresentada na figura 8.9(e), que utiliza óculos com
filtros por cor, usualmente azul e vermelho, figura 8.10(a). Esta técnica é chamada de
polarização por cor ou polarização passiva e oferece uma qualidade visual inferior,
quando comparado com às outras técnicas, pois os filtros acabam por alterar, de forma
sutil, as cores originais do objeto. Outro fator indesejável é a fadiga visual provocada por
essa modalidade de polarização.
A terceira é muito utilizada em ambientes imersivos como domos e salas de
projeção de filmes 3D. Está outra técnica utiliza a associação de óculos de polarização
ativa chamado 3D-Link, esses óculos são usualmente associados aos projetores 3D. O
projetor envia pulsos de sincronismo, em rádio frequência ou infravermelho, para os
óculos que alterna a visualização do par de imagens estéreo em um dos olhos de cada vez,
figura 8.10(b). Essa tecnologia de óculos proporciona a melhor qualidade de imagens e
cores em alta definição e conforto em uso prolongado, isto é, mais de uma hora contínua.

(a) (b)
Figura 8.10: (a) óculos estereoscópicos com polarização por cor; (b) óculos estereoscópicos com
polarização ativa.

Realidade Virtual

Realidade Virtual (RV) é o produto gerado da criação sintética de objetos e ou


ambientes do mundo real. A criação desses objetos e cenários pode ocorrer de maneiras
diversas e servir para diferentes propósitos. A RV foi concebida nos anos 1960 e recebeu
diferentes nomes no decorrer desse tempo tais como: ambiente sintético, ciberespaço,
realidade artificial, tecnologia de simulador, até a adoção do termo RV atual. O uso desse
recurso se caracteriza pelo processo de imersão que ele proporciona. O processo de
imersão em um ambiente RV pode ocorrer de maneiras distintas, dependendo da
tecnologia empregada, com o uso de óculos com diferentes tecnologias. Também pode
ser uma experiência individual ou coletiva.

315
A imersão individual ocorre com o uso dos chamados óculos RV. Esse recurso
passou por vários versionamentos durante as últimas décadas, mas se popularizou,
inicialmente, com uma versão DIY (Do It Yourself ou faça você mesmo), conhecido como
Virtual Reality Headset – Google CardBoard, figura 8.11. Está é uma versão em papelão
que utiliza um smartphone como recursos de projeção e execução de aplicativos (App).
Uma imagem distinta de um par estereoscópico é projetada em cada olho
produzindo a sensação de profundidade. Versões mais sofisticadas, figura 8.12, com tela
de projeção com tecnologia OLED e resolução de até 1080 x 1200 pixels, recursos de
hardware para execução das App’s e sensores de movimento adicionais, conferem a esses
novos modelos recursos interessantes em aplicações de simulação e jogos digitais.

Figura 8.11: Óculos RV da Google55.

(a) (b)
Figura 8.12: (a) Óculos Rift CV1; (b) Óculos HTC Vive56.
Os aspectos positivos estão na qualidade das telas de projeção e o grau de resposta
oferecido por esses dispositivos, permitindo movimentos contínuos e naturais, tendo uma
performance mais realísticas quando associados aos sensores de movimento. Os fatores
negativos estão no desconforto visual provocado por essa classe de dispositivo. O uso
prolongado, mais de 30 minutos, pode provocar náuseas, tontura e fadiga visual. Outro
aspecto negativo está na interatividade com outras pessoas. Por se tratar de um dispositivo
de uso pessoal, a interatividade com outros usuários só ocorre se integrado a um sistema

55 Fonte: https://arvr.google.com/cardboard/
56 Fonte: https://www.techtudo.com.br/noticias/noticia/2016/07/oculus-rift-ou-htc-vive-veja-qual-o-
melhor-oculos-de-realidade-virtual.html

316
mais complexo de imersão, com unidades de processamento que deve ser carregado pelos
participantes ou distribuída por uma unidade central de processamento que replica para
todos o mesmo ambiente e experiência, figura 8.13.

Figura 8.13: A Lightshape desenvolveu um aplicativo colaborativo de design RV baseado em um


mecanismo de jogo Unity para a Audi. Imagem cortesia de Lightshape57.

Existe uma outra modalidade de RV que utiliza um ambiente completa e costuma


ser utilizado em atividades em grupo. Essa modalidade necessita de um ambiente
apropriado de imersão que pode ser um domo, como o visto na 8.4 ou uma CAVE
(Cave Automatic Virtual Environment), figura 8.10.

(a) (b)
Figura 8.9: (a) Reunião usando uma CAVE 58 . (b) Óculos polarizados estereoscópico. Para uso em
CAVE’s ou Domos59.

Realidade Aumentada (RA)

Realidade Aumentada é outra modalidade que também pode ser incluída na classe
de visualização estereoscópica, dependendo do dispositivo usado. Ela difere da RV pois

57 Fonte: https://www.digitalengineering247.com/article/is-ar-vr-ready-to-go-beyond-visualization
58 Fonte: https://www.asc.ohio-state.edu/price.566/courses/BVE/examples.html
59 Fonte: https://www.improovr.com/blog/what-is-vr/

317
mescla objetos do mundo virtual com o cenário do mundo real. Essa tecnologia surgiu
nos anos 1990 para fins militares, mas se tornou popular na última década. A
popularização se deu grassas aos smartphones e tablets, devido aos recursos integrando
tela touchscreen e câmera, viabilizando assim, o surgimento das primeiras aplicações,
figura 8.10.
A câmera capta o cenário real que recebe, computacionalmente, objetos gráficos
adicionais. A inclusão dos objetos é determinada por tags ou marcadores que indicam na
cena onde e qual objeto gráfico deve ser adicionado. Os marcadores podem ser códigos
QR (Quick Response, um código de barras bidimensional que pode ser facilmente
escaneado usando a maioria dos telefones celulares equipados com câmera).
Esse código é convertido em texto, um endereço URL (Uniform Resource
Locator) da Internet, um número de telefone, uma localização georreferenciada, um e-
mail, um contato ou um SMS60; Short Message Service), imagens e outros, que devem
ser visíveis por meio da câmera e afixados em um local da cena.

(a) (b)
Figura 8.10:(a) RA usando um smartphone61. (b) RA usando um tablet62.

Outra modalidade de dispositivo de visualização RA são os óculos, esses óculos


se baseiam em duas tecnologias, o de projeção binocular refletida e outra também com
projeção binocular usando tecnologia OLED (Organic Light-Emitting Diode) ou diodo
orgânico emissor de luz. No primeiro caso, a projeção é feita por intermédio de

60 Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Código_QR
61 Fonte: https://www.springwise.com/tech-explained-augmented-reality/
62 Fonte: https://www.forbes.com/sites/theyec/2019/02/06/augmented-reality-in-business-how-ar-may-
change-the-way-we-work/#7779693351e5

318
microprojetores holográficos que projetam as imagens nas lentes que ficam posicionadas
em frente aos olhos.
Um exemplo do uso dessa tecnologia é o Microsoft Hololens63, figura 8.11(a). Ele
dispensa o uso de uma unidade adicional ou computado para operar, possui câmeras e
vários sensores que auxiliam na identificação de movimento e gestos. A outra tecnologia
utiliza uma lente com painel OLED incorporado à lente, como em uma tela de TV com
fundo transparente. Um exemplo de uso dessa tecnologia é o MOVERIO64 da Epson,
figura 8.11(b). Possui versões que vão agregando mais sensores, é compacto e possui uma
unidade separada de controle.
Assim como os exemplos apresentados anteriormente, existem outros modelos e
fabricantes. No entanto, a escolha do melhor dispositivo a ser usado, depende da
finalidade a que se destina. Alguns aspectos relevantes devem ser levados em
consideração neste caso, tais como, conforto no uso, peso, adequação para quem já utiliza
óculos, uso em ambientes internos e/ou externos, resolução da imagem, tempo de duração
da bateria, entre outros.

(a) (b)
Figura 8.11: (a) Microsoft Hololens65. (b) Epson Moverio BT30066

Holografia

A holografia é um termo muito utilizado na atualidade para representar a projeção


volumétrica de um objeto no mundo real, isto é, no espaço tridimensional.
Conceitualmente seria a possibilidade de visualização integral de um objeto,
independente da posição do observador, figura 8.12. No entanto, ainda hoje a tecnologia
não atingiu o estado da arte desse processo, estando apenas nos estágios iniciais de
pesquisa e desenvolvimento.

63 Marca Registrada Microsoft Inc.


64 Marca Registrada Epson Inc.
65 Fonte: https://productz.com/en/microsoft-hololens/p/5nJD
66 Fonte: https://productz.com/en/epson-moverio-bt-300/p/MXJG

319
Figura 8.12: Projetor holográfico desenvolvido pelas. USC67
Como já visto nesse capítulo, algumas soluções alternativas para a holografia vêm
sendo desenvolvidas, principalmente com o auxílio dos óculos RA e dos ambientes de
imersão estéreo, que também faz uso desse recurso. No entanto, uma técnica desenvolvida
nos anos de 1800, conhecida como Pirâmide Holográfica, ou Pepper’s ghost apresentado
por John Henry Pepper em 1862, que se tornou muito popular e tem se mostrado uma
solução simples e de baixo custo, para os que desejam usar a “pseudo-holografia”, sem a
necessidade dos óculos.
O processo é similar ao utilizado nos óculos RA por reflexão. Um conjunto de
vidros planos e polidos, no formato de uma pirâmide, é posicionado a um ângulo de 45o
de uma tela de projeção, que reproduz imagens de um objeto, em ângulos de visão
distintos, para cada quadrante, figura 8.13. O reflexo das imagens em cada face da
pirâmide gera o efeito da visão em profundidade.

(a) (b)
Figure 8.13: (a) Pirâmide holográfica de 4 faces68; (b) Pirâmide holográfica de 3 faces69.

67 Fonte: https://www.wired.com/2008/06/usc-lab-creates/
68 Fonte: https://milz.it/work/hologramm-pyramide
69 Fonte: http://www.smaxscreen.com/Full-HD-270-3D-Holographic-Pyramid-Display-Showcase-
Hologram-Box-pd6187300.html

320
Cada uma das tecnologias possui suas aplicabilidades e apresenta pontos fortes e
fracos. Os óculos possuem o inconveniente de atender a um usuário somente enquanto a
pirâmide pode atender a um grupo de pessoas simultaneamente. Portanto, a sinergia e a
interatividade do grupo são mais evidentes e simples de implementar. No entanto, os
óculos possuem uma área de projeção maior e que permite o movimento do objeto e do
observador, o que na pirâmide fica restrito à cada uma das faces.

Mesas Interativas

Como visto até o presente momento, a interatividade é um fator importante para


qualquer ambiente colaborativo, não importando a finalidade a que se presta. Existem, na
atualidade, uma série de recursos de interatividade, tais como mouse, teclados, consoles
de games, luvas, telas sensíveis ao toque (touchscreen) e muitos outros.
Alguns deles são de uso geral e se adequam a esse fim por intermédio de um
aplicativo, assim como os smartphones e tablets. No entanto, outros apresentam recursos
diversos para atender aplicações mais complexas que exigem uma ergonomia adequada
ao uso. Um desses recursos são as mesas interativas. Como o próprio nome apresenta, se
trata de uma mesa com tela multitoques e com capacidade de processamento apropriada
a sua aplicação. Possui tamanho e layouts variados, figura 8.14. pode possuir recursos de
estereoscopia polarizada ou anaglifo, associando a ela o uso de óculos apropriado.

(a) (b)
Figura 8.14: (a) Mesa interativa para estudo da anatomia humana desenvolvida pelo CIIM – Centro de
Inovação em Imagens Médicas da PUCPR e apresentada no evento Oxinovação70; (b) Mesa interativa
com estereoscopia71.

70 Fonte: Evento Oxinovação 2020 promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
71 Fonte: https://www.itnews.com.au/news/curtin-uni-adds-an-interactive-hologram-table-533324

321
A principal característica positiva desse dispositivo se encontra no efeito sinérgico
que ele provoca. Ele permite o trabalho em grupo com uma dinâmica de
compartilhamento de recursos e conteúdos digitais único.

Ambientes Imersivos de Aprendizagem

Ambientes imersivos de aprendizagem (AIA) rementem às práticas ativas de


aprendizado. As tecnologias atuais oferecem um grande número de recursos midiáticos
que propiciam as experiências imersivas, interativas e colaborativas. Não obstante, os
avanços contínuos no uso dessas tecnologias em diferentes áreas da sociedade moderna,
tais como a comunicação, medicina e engenharia, é possível igualmente evidenciar as
limitações que tais tecnologias enfrentam quando incorporadas aos ambientes
educacionais, sem uma visão crítica de suas potencialidades.
Assim sendo, o que se faz necessário, nesse momento, é trazer à luz uma análise
construtiva a fim de avaliar os prós e contras em relação a aplicabilidades dessas
tecnologias para fins pedagógicos, no que tange os processos de aprendizagem.
Quando se pensa em tecnologias educacionais as ideias recaem sobre um dado
recurso ou software que atenda a uma necessidade particular ou supre às necessidades de
uma aplicação específica. Assim sendo, soluções tecnológicas, para o ensino e
aprendizado, são desenvolvidas com base em um problema específico.
No entanto, a neurociência nos tem mostrado que o aprendizado se dá, de forma
mais robusta e permanente, quando diferentes estímulos são oferecidos aos estudantes e,
por conseguinte, mais ligações neurais se formam e se fortalecem em decorrência desse
processo.
Sem dúvida, o maior equívoco da educação atual é considerar um grupo de
estudantes um conjunto homogêneo, com as mesmas capacidades de aprendizagem e os
mesmos perfis. Essa teoria cai por terra quando avaliamos a individualidade de cada
estudante. Por exemplo, um estudante com dislexia de leitura, um distúrbio de
aprendizagem caracterizado pela dificuldade de leitura, não terá o mesmo desempenho
quando confrontado com métodos que enfatizam a leitura de textos.
No entanto, é muito comum nesses casos, o estudante desenvolver aptidões para
a soluções de problemas complexos envolvendo, por exemplo, a lógica matemática.
Portanto, um aprendizado apoiado em múltiplos estímulos dará a este estudante a
oportunidade de desenvolver seu potencial de aprendizado com base no recurso que

322
melhor o atenda. O primeiro efeito positivo produzido por essa abordagem está no
acréscimo motivacional no quesito aprender.
Se lançarmos um olhar rápido na história, vamos encontrar inúmeros exemplos
que demonstram esse conceito7273, mesmo que para alguns estudiosos haja dúvidas sobre
alguns nomes. Albert Einstein (Físico), Thomas Edison (Inventor), Leonardo da Vinci
(Pintor, Inventor. Escultor, Engenheiro, transitava em diferentes áreas do conhecimento
humano com maestria), Walt Disney (Escritor) e Van Gogh (Pintor) são exemplo ditos
como portadores do distúrbio de aprendizado, mas que no entanto, desenvolveram seus
potenciais e os tornaram expoentes em suas áreas de conhecimento.
Mas afinal, o que o AIA podem oferecer aos estudantes, a fim de atender ao
quesito múltiplos estímulos? Para responder essa questão é necessário avaliar as formas
de estímulos que permitem ao estudante reter o conhecimento, por intermédio da criação
de diferentes conexões neurais ou sinapses, criadas pelo cérebro durante o processo de
aprendizado. Cada estímulo irá ativar uma conexão neural, que será mais ou menos
permanente, dependendo do estímulo (visual, auditivo, tátil e olfativo) e da capacidade
de retenção individual, figura 8.15.

Figura 8.15: Múltiplos estímulos.

O princípio do AIA é oferecer diferentes estímulos para tratar de uma mesma


temática. Os estímulos podem ser proporcionados por diferentes tecnologias, que
combinadas venham a atingir os estudantes de maneira diversa. Mas como criar um
ambiente onde se pode combinar esses recursos?

72 Fonte: https://www.edubloxsa.co.za/famous-people-who-were-probably-not-dyslexic/
73 Fonre: https://dyslexiclibrary.com/tag/vincent-van-gogh/

323
Os ambientes imersivos, interativos e colaborativos têm se mostrado úteis para
este fim. Tem sido uma infraestrutura muito utilizada pelas empresas, em diferentes áreas
e que agora começa a despertar o interesse da comunidade educacional. As CAVEs são
um bom exemplo disso, figura 8.16.

(a) (b)
Figura 8. 16: CAVE Iglu para simulação de refino de óleo 74 ; (b) CAVE cilíndrica com painéis de
projeção ativos75

As CAVEs possuem o potencial de combinar diferentes abordagem para tratar de


um dado conceito e ao mesmo tempo, oferecer a contextualização ou ambientação
temática. Outro aspecto relevante está na conectividade, esta permite a interação a
distância e o acesso à ambientes no qual o estudante teria acesso restrito a eventos
controlados.
Por exemplo, permitir que um grupo de estudantes esteja em um centro cirúrgico,
acompanhando um procedimento, sem as restrições de número de participantes e os
cuidados com a assepsia exigidos nesses eventos, figura 8.17. Essa prática permite que
haja uma maior interação entre o grupo, o que não seria possível no centro cirúrgico.

Figura 8.17: Ambiente imersivo 3600, em centro cirúrgico, para simulação de procedimento de
laparoscopia76.

74 https://phys.org/news/2015-09-immersive-3d-unveiled-potential-chemical.html
75 Fonte: https://www.hardwarezone.com.sg/feature-meet-21st-century-microscope-peek-monash-cave2-
immersive-visualization-facility-powered-nvid
76 Fonte: Highly Immersive Virtual Reality Laparoscopy Simulation: Development and Future Aspects -
Scientific Figure on ResearchGate. Available from: https://www.researchgate.net/figure/Screenshot-of-

324
A figura 8.18 apresenta a mostra imersiva dos trabalhos de Van Gogh, um
exemplo de como o processo de imersão pode ser impactante e decisivo para a
assimilação das técnicas e características na produção de um trabalho artístico.

Figura 8.18: Mostra das obras de Van Gogh em ambiente imersivo, Montreal, Canadá77

A combinação de tecnologias de interatividade e de imersão estereoscópica,


proporcionando múltiplos estímulos que podem igualmente motivar os estudantes a
participar ativamente das experiências de aprendizado.
A figura 8.19 mostra o uso da mesa interativa associada à projeção estereoscópica
ativa, para o estudo da entomologia na PUCPR. Esse recurso permite, não somete, ver o
inseto em dimensões elevadas, com riqueza de detalhes só observáveis com o uso de uma
lupa, mas também seu abitar. Outro aspecto a ser mencionado, no uso do recurso digital
para a manipulação do espécime, está na conservação do espécime de estudo, dada a sua
fragilidade.

the-360-highly-immersive-virtual-reality-IVR-operating-room-OR-A_fig4_321149875 [accessed 26 Jul,


2020]
77 Fonte: https://dailyhive.com/montreal/montreal-van-gogh-ending-march-2020

325
Figura 8.19: Mesa interativa com projeção estereoscópica ativa para estudo da entomologia desenvolvida
pelo CIIM - Centro de Inovação em Imagens Médicas da PUCPR e apresentada no evento Oxinovação78.

A figura 8.20, mostra o uso da pirâmide holográfica no estudo de peças anatômicas


reais, digitalizadas pelo scanner F2S2, desenvolvido pelo CIIM, descrito anteriormente.
A interatividade, por meio de uma tela de comandos touchscreen e a visualização
volumétrica dinâmica, em uma resolução de até 4k projetada pela pirâmide, sem a
necessidade do uso de óculos, faz desse um recurso de aprendizado multissensorial
interessante para várias áreas de aplicação.

Figura 8.20: Console holográfica desenvolvido pelo CIIM - Centro de Inovação em Imagens Médicas
da PUCPR e apresentada no evento Planeta PUC79.

A figura 8.21 mostra o uso do Domo como recurso imersivo de múltiplos


estímulos, que agrega valores tais como colaboração, interatividade e a própria imersão
com ou sem estereoscopia. Assim como as CAVEs os Domos possuem o benefício da
imersão em grupos, o que propicia a sinergia, interatividade e as atividades colaborativas.

Figura 8.21: Uso do domo da Digital Arena da PUCPR em atividades colaborativas e atividades com
imersão80.

78 Fonte: Evento Oxinovação 2020 promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
79 Fonte: Evento Planeta PUC 2019 promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná
80 Fonte: Digital Arena da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR

326
O uso dos ambientes imersivos de aprendizagem é sem dúvida um passo
importante na direção das mudanças exigidas pelo avanço da sociedade moderna. A
redução das distâncias provocada pelos meios de comunicação, a tecnologia de ponta
cada vez mais presenta na sociedade e o conhecimento cada vez mais profundo dos
mecanismos de aprendizado do ser humana e de como ele interage com o meio, à luz da
neurociência, são indicativos importante da necessidade premente de se pensar em novos
paradigmas educacionais.
Pensar o indivíduo como um ser singular, que necessita de uma abordagem
educacional apropriada e que atenda às suas peculiaridades de aprendizado, é o caminho
para desenvolver o seu potencial.

327
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The_Ethnological_of_Primitive_Societies_Magic_Religions_Gods_and_Myth

81
No caso de publicações estrangeiras optou-se por utilizar as referências como elas preferem ser citadas
no original, tendo em vista que isso facilita sua localização. Portanto, para essas fontes, optou-se pelo não
emprego das normas brasileiras para referências.

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