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NEUROPSICOPEDAGOGIA CLÍNICA

E O NEUROPSICOPEDAGOGO
UNIDADE I
O CAMPO DA NEUROCIÊNCIA
Elaboração
Luciana Raposo dos Santos Fernandes

Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................. 4

UNIDADE I
O CAMPO DA NEUROCIÊNCIA......................................................................................................................................................... 7

CAPÍTULO 1
INFLUÊNCIAS NEUROLÓGICAS, BIOFISIOLÓGICAS E PSICOLÓGICAS NO DESENVOLVIMENTO
HUMANO E ALGUMAS ABORDAGENS TEÓRICAS............................................................................................................. 8

CAPÍTULO 2
ENSAIO SOBRE A NEUROCIÊNCIA E A EDUCAÇÃO....................................................................................................... 15

CAPÍTULO 3
A NEUROLOGIA: EDUCAÇÃO COGNITIVA......................................................................................................................... 20

REFERÊNCIAS................................................................................................................................................31
INTRODUÇÃO

A sociedade e o ser humano vivem em transformação e descobrindo novas formas


de anomalias, problemas e dificuldades, principalmente na área cognitiva, o que
faz com que surjam novas tecnologias, metodologias e até ciências. Este é o caso da
neurociência que, por exemplo, invadiu nossas vidas, em virtude da relação direta
com o cotidiano e por apresentar uma série de informações úteis para nossa vida.
Isso acontece porque sua proposta é mostrar à sociedade, em geral, que cuidar de
doenças, criar novos medicamentos e terapias, é apenas uma porção pequena do que é a
ciência.

Nesse contexto, depois da psicopedagogia, devido à necessidade de um conhecimento


mais aprofundado na parte neurológica e psíquica tanto da criança quanto do adolescente,
surgiu a neuropsicopedagogia, que se instalou de forma definitiva. Bem antes disso, no
entanto, já havia um conjunto de conhecimento que foi e é gerado sobre nós mesmos e
que traz uma série de indagações sobre quem nós somos; por que insistimos em nossos
erros; por que preferimos chocolate a morango, gatos a cachorros etc.; enfim, por que
nossa vida tem esses detalhes tão ricos.

Portanto, vamos desvendar os caminhos da neurociência e, acima de tudo, da neurociência


do bem-estar. O ser humano passou décadas se preocupando em entender o mal
funcionamento do cérebro, o que é extremamente importante, mas, atualmente, nossa
atenção também está voltada para o estudo do cérebro saudável, que tem satisfação,
capacidades, habilidades interessantes e que vive em sociedade de uma maneira prazerosa
e gratificante.

Nesse contexto, iremos também abordar a neuropsicopedagogia, a qual veio complementar


o estudo do desenvolvimento humano e contribuir com o bem-estar e a qualidade de
vida do cérebro; mostraremos também o papel exercido pelo neuropsicopedagogo,
profissional que tem a capacidade de auxiliar cada indivíduo de acordo com as necessidades
apresentadas.

Ouvimos, por exemplo, professores comentarem ou relatarem aos pais ou responsáveis


as dificuldades que determinados educandos encontram no processo de aprendizagem.
É natural que crianças e jovens apresentem essas dificuldades. Afinal, lidamos com
a neurodiversidade e devemos nos lembrar de que cerca de 40% dos alunos podem
apresentar dificuldades, incluindo transtornos e distúrbios de aprendizagem. Portanto,
cabe ao neuropsicopedagogo tanto atender a essa demanda, indo até a sala de aula
conversar com o professor e estabelecer uma troca de informações necessárias para o
bom desenvolvimento do trabalho docente, quanto ir à clínica.
Introdução

Objetivos
» Proporcionar informações sobre conceitos de ciências neurológicas, psicopedagógicas,
além da educação especial, deficiência intelectual e transtornos globais do
desenvolvimento.

» Apresentar recursos e técnicas para que os profissionais estejam aptos a lidar com
o desenvolvimento, o comportamento e a aprendizagem.

» Oferecer complementação à formação inicial aos profissionais, perante as crescentes


dificuldades de aprendizagem encontradas em crianças e adolescentes em escolas
tanto públicas quanto particulares e em outras instituições que estão envolvidas
com os processos de ensino aprendizagem, a partir dos aspectos neurológicos.

» Formar especialistas em neurológia para atuar nos enfoques clínico e institucional


com base no processo de aprendizagem.

» Elaborar pareceres de encaminhamento, no intento de auxiliar a compreensão do


processo de aprender na sua complexidade.

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O CAMPO DA
NEUROCIÊNCIA
UNIDADE I

Conhecer em amplitude e profundidade a ciência da psicomotricidade e dominar o campo


de conhecimentos teóricos e práticos proporcionados por ela é passo determinante
para trabalhar com o processo de aprendizagem das crianças. Por isso, vamos fornecer
um arcabouço teórico para o entendimento da evolução e do desenvolvimento do ser
humano, para que os profissionais envolvidos na área da educação possam conhecer
melhor os aprendizes, uma vez que, à proporção que crescem e amadurecem fisicamente,
se desenvolvem também do ponto de vista ontogênico e psicossocial.

Ao nos aprofundarmos na esfera de atuação da psicomotricidade, é possível materializar um


processo instrutivo mais eficiente e eficaz ao explorarmos adequadamente o movimento,
que constitui a pedra angular da psicomotricidade. Afinal, estudos e pesquisas das últimas
décadas têm nos mostrado que o desenvolvimento motor da criança está intimamente
relacionado com as dificuldades de aprendizagem, daí a importância do aprofundamento
dessa parte teórica de bases biológicas. Nesse âmbito, as causas das dificuldades de
alguns alunos decorrem, muitas vezes, de questões relacionadas ao desenvolvimento
cognitivo e psicomotor. Isso enfatiza a necessidade da educação psicomotora baseada no
movimento, que assegura que muitos dos problemas estudantis, detectados e tratados
posteriormente pela reeducação, não teriam ocorrido se a escola desse a devida atenção
à educação psicomotora, tal como a leitura, a escrita e a aritmética.

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CAPÍTULO 1
INFLUÊNCIAS NEUROLÓGICAS, BIOFISIOLÓGICAS E
PSICOLÓGICAS NO DESENVOLVIMENTO HUMANO E
ALGUMAS ABORDAGENS TEÓRICAS

A corporeidade e a motricidade são linguagens de uma só fala, porque a motricidade é


o vetor da identidade corporal. Consequentemente, corpo e movimento humanos são
muito mais que um ato mecânico de deslocamento no espaço, tanto que um está contido
no outro, como comprova a análise dos movimentos que o homem realiza ao longo do
tempo.

Neste capítulo, veremos as influências da mãe no período pré-natal, o desenvolvimento


perinatal e a primeira aprendizagem da criança. Analisaremos também as influências
biológicas, fisiológicas, neurológicas e psicológicas na motricidade humana, desde a
concepção, o processo de crescimento até o desenvolvimento do ser humano (ontogenia),
por meio de três saltos qualitativos que acontecem dentro do útero materno: a fase
zigótica, a fase embrionária e a fase fetal.

Depois do processo do parto, destacaremos quatro períodos ou faixas etárias mais


significativas do crescimento, da maturidade e do desenvolvimento ontogênico e
psicossocial: o período neonatal (de 0 a 3 meses), o período lactente (de 3 meses e um
dia aos 12 meses), o período da primeira infância (de 12 meses e um dia até os 36 meses)
e o período pré-escolar (de 3 anos e um dia até os 6 anos). Nesse espaços temporais de
desenvolvimento, o ser humano internaliza conhecimentos altamente significativos para
a vida, enquanto estrutura e desenvolve um sistema de habilidades imprescindíveis para
a exteriorização dos cinco fenômenos-chave que representam o processo de crescimento,
maturidade e desenvolvimento psicomotor, a saber:

Figura 1. Há cinco fenômenos-chaves que representam o processo de crescimento, maturidade e


desenvolvimento psicomotor.

Fonte: https://lovevery.com/community/blog/child-development/why-is-my-baby-crawling-in-their-sleep/.

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» Aprender a se movimentar para obter e alcançar, por si só, um fim determinado.

» Aprender a falar para se comunicar autonomamente com os outros, começando a


exercitar os processos de decodificação e codificação linguística.

» Aprender a ler para independentemente internalizar as mensagens que enriquecerão


seu conhecimento e seu saber.

» Aprender a escrever (demonstrando o domínio dos símbolos linguísticos) para


poder criar e enviar mensagens comunicativas por meio da linguagem escrita.

» Aprender a calcular para começar a manipular e explorar a linguagem dos números


dentro das exigências perceptivas e lógicas do espaço e do tempo.

Considerando que o núcleo central da psicomotricidade é o movimento e o ser humano é


o principal elemento da natureza, na qual se inter-relacionam os movimentos biológico,
fisiológico, psicológico e social, sobressai-se ainda a dialética, que é a ciência que ressalta
o papel das contradições como fontes do desenvolvimento. Se a criança não começa a
agir e/ou reagir (umas vezes sozinha, estimulada por alguma coisa que lhe chama a
atenção; outras, estimulada por crianças ou adultos à sua volta, eliminando assim a
contradição entre o desconhecido e o conhecido do ponto de vista motriz), o processo de
crescimento, maturidade e desenvolvimento tanto ontogênico (que é bioneurofisiológico)
quanto psicossocial (que é eminentemente afetivo, cognitivo, motivacional e volitivo),
em inter-relação dialética, jamais acontece de forma efetiva.

Portanto, a dialética concebe uma concatenação histórica em cada um dos fenômenos que
estruturam a realidade: tudo se dá a partir dos fatos mais simples até os mais complexos;
e todo o novo e superior começa a se estruturar a partir do bom, que todo o velho tem.
É por isso que o movimento da criança, que representa sua primeira aprendizagem,
começa a partir da realização das mudanças de posição mais simples, no próprio berço,
até se sentar autonomamente, engatinhar, levantar-se e andar, exteriorizando assim as
manifestações de sua independência.

Nesse contexto, o caminho da neuropsicopedagogia passa necessariamente por algumas


análises preliminares que envolvem o desenvolvimento ontogênico humano e os saltos
qualitativos que acontecem à medida que o ser humano cresce, matura e se desenvolve.
Portanto, é imprescindível começar o estudo a partir da essência do desenvolvimento
ontogenético humano, pois a aprendizagem, em qualquer uma de suas manifestações,
está sustentada nas peculiaridades biofisiológicas do sistema nervoso de quem aprende.

Ontogênico vem de ontogenia que é uma série de transformações sofridas pelo


indivíduo desde a fecundação do ovo até o ser perfeito.

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Desenvolvimento ontogênico do ser humano


Ele começa dentro do útero materno e, depois de executada a concepção, o novo ser
passa por três momentos-chave em seu período evolutivo:

I. a fase do zigoto (simples, mas de notada importância, porque abre o caminho


ontoevolutivo de todo ser humano);

II. a fase do embrião (superior ao zigoto), no qual aparecem as três capas ou estruturas
biofisiológicas – a endoderme (a mais interna), a mesoderme (a capa média) e a
ectoderme (a capa externa) –, a partir das quais se estruturam todos os órgãos e
sistemas do corpo humano; e

III. a fase fetal, na qual todo ser humano em evolução intrauterina adota a estrutura
morfológica e fisiológica típica da espécie (STOLTZ, 2011; TARRAU, 2007).

As células embrionárias se diferenciam em três grandes grupos:

1. As células somáticas, que darão origem a todos os órgãos e sistemas que estruturam
o corpo (com exceção do sistema reprodutor e do sistema nervoso), especializando-se
posteriormente para formar cada uma das partes específicas: músculos, ossos,
tendões, ligamentos, artérias, veias, vasos capilares, coração, pulmões, brônquios,
bronquíolos, traqueia, fossas nasais, rins, ureteres, bexiga, uretra, fígado, vesícula,
pâncreas, suprarrenais, estômago, intestinos, ânus, boca, dentes, pele, unhas.
As células somáticas têm funções especiais que garantem e asseguram a materialização
de todo o processo metabólico do organismo.

2. As células nervosas, que estruturarão toda a massa encefálica com seus órgãos mais
significativos: cérebro, cerebelo, corpo caloso, bulbo, medula, nervos cranianos,
nervos periféricos, analisadores ou órgãos dos sentidos.

3. As células sexuais, cuja responsabilidade é a de determinar o gênero sexual de


cada indivíduo e garantir a perpetuação da espécie humana, após o processo de
crescimento, maturidade e desenvolvimento genital e hormonal.

O desenvolvimento ontogênico intrauterino (biofisio-neurocortical-motriz) é marcado


por três momentos-chave: o germinal ou zigótico (da concepção até a 2ª semana),
o embrionário (da 2ª semana até a 8ª ou 12ª aproximadamente) e o fetal (até o
nascimento). Esses momentos são direcionados pelo princípio reitor que organiza
biofisio-neurocorticalmente o novo ser, que continua seu desafio pela vida; pelos
princípios céfalo-caudal e próximo-distal, assegurando-se, desta forma, a formação
do eixo central a partir da região cefálica – que se estende até a região caudal.
Isso torna o recém-nascido humano dependente quase absoluto de suas mães, pelo fato

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de que a maturidade de nossas extremidades, em especial, das inferiores, é a última


que acontece (TARRAU, 2007; TELES, 1983).

Nesse processo de crescimento, maturidade e desenvolvimento intrauterino, a evolução


fetal e a herança paterna-materna não bastam para garantir um desenvolvimento
positivo. Existem outros fatores que podem impedir uma evolução intrauterina
eficaz e eficiente, restringidos basicamente aos processos metabólicos da mãe, que
é a encarregada de oxigenar, nutrir e fazer a eliminação das substâncias tóxicas do
feto que se desenvolve nas suas entranhas, nas quais as características estruturais e
bioquímicas da placenta são determinantes, porque é ela que serve de intermediária
entre o metabolismo materno e o metabolismo do novo ser intrauterino que cresce,
matura e se desenvolve (VAYER, 1982).

Não é somente isso. Ainda há muitos fatos que vão influenciar na estrutura orgânica,
bioquímica, neurocortical e fisiológica da futura criança. Note que até a posição que o
feto adota no útero materno influencia, devido à pressão nas extremidades dos ossos
e na própria ossificação, aspecto que serve como um argumento a mais para ressaltar
a importância do processo evolutivo que acontece nos seres humanos enquanto se
desenvolvem no útero.

Se todos esses fenômenos biológicos, fisiológicos, nervosos, corticais e motrizes acontecem


dentro das exigências vitais correspondentes enquanto durar a gravidez, estão criadas
as condições intrauterinas necessárias para que o novo ser, que está se desenvolvendo,
possa nascer sem nenhum problema somático, neurofisiológico ou sexual que possa
influenciar seu futuro desenvolvimento psicossocial. Porém não podemos nos esquecer
do parto, que também é portador de uma responsabilidade altamente significativa na
influência positiva do desenvolvimento neurocórtico-psicossocial futuro da criança
que luta e enfrenta o desafio de nascer. Se o parto é natural e acontece em seu tempo
terminal normal (nem antes, nem depois), estarão criadas as condições satisfatórias
para que a criança possa ter o processo de crescimento, maturidade e desenvolvimento
biofisio-psicossocial satisfatório, e sua psicomotricidade poderá se desenvolver no tempo
requerido e de forma adequada.

As contrações uterinas agudas finais, típicas de um parto natural, que ocorrem depois
da ruptura dos âmnios, assim como a saída apertada do feto através da abertura pélvica
da mãe, são variáveis determinantes que repercutem sobre a saúde da criança, pois
contribuem para a limpeza do trato respiratório, no qual podem existir substâncias
tóxicas contidas no líquido amniótico (produto do próprio metabolismo do feto), que,
no útero materno, entra e sai dos pulmões do feto, preparando os músculos respiratórios
para a sua função principal futura: a ventilação pulmonar, determinante no processo de
crescimento, maturidade e desenvolvimento psicomotriz do ser humano.

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Depois do parto, a evolução ontogênica da criança continua, com crescimento,


maturidade e desenvolvimento biofisiológico. Entre os 4 e 6 anos, um fato anuncia
que esse desenvolvimento, inclusive ontogênico, ocorre de forma plena: as crianças
começam a trocar a dentição de leite por dentes permanentes, que a acompanharão por
toda a sua vida (desde que tenham uma adequada assepsia bucal e não sejam afetadas
por um acidente ortodôntico). Já entre os 11 e 14 anos, acontece um dos fenômenos
mais significativos dentro do desenvolvimento ontogênico: a aparição dos caracteres
sexuais secundários de cada sexo e, o mais importante desse fenômeno, a aparição
dos caracteres sexuais primários. Portanto, o homem começa a ejacular e a mulher a
ovular; tornando-se ambos aptos, mas ainda imaturos, para a reprodução. Esse fato é
extremamente importante porque, a partir desse momento, os seres humanos púberes
(ou adolescentes) já adquirem um soma muito similar ao soma típico dos seres humanos
adultos, embora não tenham terminado o próprio desenvolvimento ontogênico.

Atualmente, devido aos aportes da cibernética e, em especial, da neurociência, especialistas


têm à sua disposição o ultrassom, a tomografia computadorizada e a ressonância magnética.
Cientificamente, eles já sabem que, nos primeiros cinco anos de vida do ser humano,
o cérebro alcança 95% de seu volume (o que demonstra um processo de crescimento
e desenvolvimento altamente significativo nesse período de vida). Por sua vez, os 5%
restantes demoram outros 30 anos para fazer o cérebro chegar a seu completo volume
e adequada maturidade. Por essa razão, a aprendizagem formal da psicomotricidade e
suas exigências deverá acontecer nos primeiros 6 anos de uma criança, porque é nesse
período que o sistema nervoso possui melhores possibilidades para trabalhar, devido
ao grau de crescimento, maturidade e desenvolvimento que ele tem alcançado (VAYER,
1982; 1988; RELVAS 2010b).

Pesquisas demonstram que até os 35 anos a pessoa está no período ainda jovem do
ponto de vista cerebral, somático e sexual. Esta categoria evolutiva (juventude) está
determinada basicamente pelo processo de maturidade. Então, enquanto existir um órgão
em processo de maturidade, a pessoa é jovem biofisiologicamente. Consequentemente,
tudo o que for feito em matéria de aprendizagem na juventude é desenvolvido com
menos dificuldade nesta fase, desde que estejam bem estruturados os sistemas cognitivo,
emocional e motivacional na pessoa que está querendo aprender. Além disso, nos
primeiros 35 anos de vida, todos os processos psicomotores que ela manifeste deverão
ter muito mais qualidade que os processos psicomotores materializados por uma pessoa
com mais de 35 anos.

Sabemos que análises permitem considerar que o desenvolvimento ontogênico (analisado


através de uma concepção mais reflexiva do conceito) ocorre até o término do processo
de maturidade do cérebro, que constitui o regente principal e a usina básica na qual

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atuam cerca de 100 bilhões de neurônios, que se inter-relacionam por meio de mais
de 100 trilhões de circuitos que permitem estruturar, desenvolver e manifestar as
peculiaridades dos processos psíquicos que caracterizam as peculiaridades da cognição,
da afetividade, da motivação e da personalidade. Entretanto, essa maturidade cerebral
não está concluída até os 35 anos de idade (SCOZ, 2002).

Outros saltos qualitativos que caracterizam o desenvolvimento ontogênico do ser humano


são possíveis apenas com e por meio do movimento. Observe:

1. concepção-fertilização do óvulo pelo espermatozoide;

2. aparição do zigoto;

3. surgimento do embrião a partir dos aportes novos e superiores do zigoto;

4. presença do feto, a partir dos aportes novos e superiores do embrião;

5. parto;

6. fato de a criança ajoelhar-se e começar a engatinhar, o que marca a primeira


manifestação de independência autônoma dela;

7. fato de a criança sozinha ficar de pé equilibrada e começar a dar os seus primeiros


passos até que se consolide o processo de andar;

8. manifestação da mudança dos dentes de leite pelos dentes permanentes;

9. manifestação da puberdade ou aparição dos caracteres sexuais secundários e


primários.

Já depois dos 35 anos, o ser humano entra em seu período ótimo de fertilização, no que
se refere à matéria de aprendizagem especializada, influenciado por dois fenômenos
psicossociais:

1. existência de verdadeiros interesses cognitivos.

2. materialização de processos afetivo-motivacionais direcionados para o processo


de aprendizagem, basicamente, quando se tratar de operações e ações motrizes,
que requerem esforços fisiológicos e psíquicos (precisamente, não existe idade que
resista ao interesse para o aprendizado).

Portanto, as ideias apresentadas até aqui nos levam a afirmar que, quando o ser humano
tem um processo de crescimento, maturidade e desenvolvimento ontogênico satisfatório,
são criadas as condições bioneurofisiológicas para aprender com mais eficiência e eficácia,
desde que os interesses cognitivos e a motivação afetiva sejam satisfatórios, estejam
bem estruturados na consciência do indivíduo, independentemente da faixa etária

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dele. Porém, se o processo ontogênico apresenta deficiências ou falhas genéticas, ou


quando acontece um problema neurofisiológico após o nascimento, se a pessoa afetada
tem interesses cognitivos bem definidos, com um pouco mais de esforço, o processo
de aprendizagem pode ser desenvolvido satisfatoriamente em correspondência com a
incidência das magnitudes das falhas genéticas ou dos problemas neurofisiológicos que
se apresentarem após o parto (TARRAU, 2007; REED, 2004).

No entanto, sem a aprendizagem motriz, ninguém aprende a ler satisfatoriamente,


porque, para tanto, é necessário estruturar e desenvolver a percepção temporal (uma
letra antes ou depois da outra, para integrar as sílabas; uma sílaba antes ou depois da
outra, para integrar as palavras; uma palavra antes ou depois da outra para integrar as
frases). Do mesmo modo, é necessária a percepção espacial (as letras têm uma parte
superior e uma inferior; as linhas têm um princípio e um fim; os parágrafos têm um
começo e um ponto-final). Também é imprescindível a influência da lateralidade: as
letras, os símbolos têm uma parte direita e outra esquerda; uma parte superior e outra
inferior; o movimento dos olhos no sentido decodificador se realiza da esquerda para
a direita e depois retorna ao começo da seguinte linha. Sem uma adequada orientação
espaço-temporal, ninguém aprende a ler com a fluidez adequada.

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CAPÍTULO 2
ENSAIO SOBRE A NEUROCIÊNCIA E A EDUCAÇÃO

A neuropsicopedagogia é um campo de estudo voltado para as relações entre o cérebro,


a cognição e o comportamento. Trata-se, portanto, de um campo científico que engloba
diversas áreas da neurociência, como a neuroanatomia, a neurofisiologia, a neuroquímica
e a neurofarmacologia, entre outras. No âmbito da atuação profissional do psicólogo, a
neuropsicopedagogia exige um vasto conhecimento, pois engloba conceitos e técnicas
da psicometria, da psicologia clínica, da psicologia experimental, da psicopatologia e da
psicologia cognitiva. Na prática clínica, esse profissional é procurado, principalmente,
para avaliar e/ou reabilitar alterações cognitivas e comportamentais resultantes de
lesões cerebrais.

Figura 2. O propósito da avaliação neuropsicopedagógica é estabelecer relação entre atividades


comportamentais e funcionamento cerebral.

Fonte: https://neuropsych4kids.com/about/.

Já a avaliação neuropsicopedagógica é conduzida por meio da aplicação de observação e


ferramentas que procuram descrever a habilidade cognitiva do indivíduo, no intento de
compará-la com padrões pré-estabelecidos de normalidade. De modo geral, o propósito
da avaliação com o neuropsicopedagogo clínico é estabelecer relação entre atividades
comportamentais e funcionamento cerebral. Por isso, são testadas funções cognitivas, tais
como: memória, atenção, linguagem, funções executivas de raciocínio, habilidades motoras
e visuoespaciais, bem como alterações emocionais e de comportamento. No entanto,
para que o neuropsicopedagogo possa alcançar o objetivo da avaliação, não basta aplicar
e pontuar quesitos, pois é preciso conhecer as regiões cerebrais envolvidas nos aspectos
comportamentais e nas funções cognitivas, além de também ter noções de neuropatologia
para não incorrer em suspeitas diagnósticas incorretas e sugestões de tratamentos
desnecessários (PORTO, 2009; PURVES, 2005; SÁNCHEZ-CANO, 2008). Portanto, ao
enfatizarmos a avaliação, o faremos de forma ampla, pois o neuropsicopedagogo pode

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voltar seu olhar para crianças, adultos e idosos, o que exige dele a compreensão tanto
das principais desordens que levam à busca pela avaliação neuropsicopedagógica
em diferentes fases do desenvolvimento, quanto dos instrumentos necessários para
contemplar e discriminar a utilização deles.

Considerando que o cérebro se desenvolveu durante a evolução com a propriedade de


aprender, inclusive comportamentos diferentes, temos de nos conscientizar que adquirir
novas condutas melhora a chance de adaptação a um determinado contexto e, ao se
adaptar melhor, é possível sobreviver. Na verdade, os humanos aprendem determinadas
coisas para poder ter chances de sobreviver, para viver melhor, para resolver os problemas
que aparecerem. Logo, a aprendizagem precisa ter essa meta.

O aluno, por exemplo, fica motivado à medida que seu professor consegue dar significado
para aquilo que está querendo ensinar. Quando isso acontece, o próprio aluno acessa
pela internet um universo de conhecimentos, principalmente os mais úteis ao dia a
dia, extrapolando o que a própria escola propicia, o que estimula o cérebro a funcionar
com a intenção de ajudar tanto a resolver problemas quanto de se adaptar melhor ao
ambiente. Mas como nem sempre o professor consegue obter essa motivação, ele tem
de descobrir uma forma de o aluno compreender e dar significado para aquilo que está
sendo apresentando. Como?

A neurociência nos faz entender do funcionamento cerebral. Portanto, ela não traz uma
educação nova, um novo jeito de aprender, pois o nosso cérebro aprende da mesma forma
que aprendia anos atrás. Consequentemente, à medida que compreendemos melhor
algumas teorias da educação, como as de Piaget, Vygotsky, Paulo Freire, Wallon, entre
outros pensadores, percebemos que todas têm respaldo da neurociência.

Quando um aluno da graduação em pedagogia, por exemplo, tem a possibilidade


de entender as bases do funcionamento cerebral, ao ler os teóricos da educação, ele
poderá fomentar um diálogo entre os grandes educadores e as bases neuropsicológicas
ou neurobiológicas da aprendizagem.

Então, quando Paulo Freire discutia a questão da aprendizagem significativa, aquilo que
dá sentido, obviamente isso é profícuo ao processo de aprendizagem. Porém não é só
isso que é importante, mas corrobora com a legitimidade dessa importância. Temos de
pensar que existem alguns conteúdos que são muito complexos para uma aprendizagem
sem nenhuma ajuda. Por exemplo, quando falamos do construtivismo, uma metodologia
mais exploratória, na qual o educando vai percebendo o ambiente e a partir de então
constrói seu conhecimento, devemos ficar atentos ao fato de que existem alguns conteúdos
que requerem uma ajuda mais formal para que sejam aprendidos; logo, eles precisam
de mediação (LENT, 2002, 2010; LIEURY, 1997).

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o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

Hoje, vivemos uma época em que várias áreas do conhecimento precisam dialogar entre
elas. Não podemos cair no erro de achar que a neurociência vai desbancar, por exemplo,
teorias da filosofia, da educação, do direito, da economia… Mas, à medida que essas
áreas estudam ou abordam o comportamento humano, existem conhecimentos sobre
o comportamento humano que podem fazer algumas modificações em outras áreas do
conhecimento, que são mais voltadas para a área de ciências humanas. Entretanto, na verdade,
quando estudamos algo humano estamos estudando o comportamento (LIDEN, 1993).

Ética em neurociência e neurociência da ética


Atualmente, o que faz um indivíduo ser ético? Existem pessoas ótimas, que se comportam
adequadamente e têm princípios éticos, mas se sofrem um traumatismo craniano, passam
a se comportar de forma inadequada. Ou seja, não seguem mais os princípios éticos que
seguiam. Isso acontece porque há áreas cerebrais responsáveis pelo julgamento moral,
que levam em consideração o valor das coisas, que fazem com que as pessoas sejam
capazes de tomar decisões, ou melhor, influenciam as decisões que o indivíduo toma.
Todas essas características do funcionamento cerebral acabam tendo implicação no que
chamamos de ética. Em direito, por exemplo, sabemos que pessoas com transtornos
mentais não têm uma reflexão exata sobre a dimensão de um ato criminoso que ela
praticou. Esse indivíduo é considerado criminoso ou não?

Para responder a essa questão, devem ser colocadas em uma mesa de discussão
especialistas de várias áreas do conhecimento, com o fim de esclarecer e até adotar novos
posicionamentos. Percebemos, então, que a neurociência não veio para determinar o
funcionamento das outras áreas. De qualquer maneira, a forma como nos comportamos
está ligada a uma rede de células nervosas que se estruturou com base em nossa genética,
mas que é modificável dentro de determinados limites pela interação com o ambiente. É
necessário saber tanto que essa rede tem algumas regras de funcionamento quanto que as
conexões entre as células nervosas podem ser reforçadas, o que significa que o indivíduo
terá memórias sobre as experiências que vivenciou, sobre determinados conteúdos, mas
que essas conexões também podem ser desfeitas e desbastadas (MACHADO, 2006) por
meio dos esquecimentos.

Aquilo que memorizamos e que mantemos como comportamentos que levamos ao


longo da vida são resultados de uma memória baseada nas entradas que ocorreram,
nos estímulos que foram dados e que permanecem mantendo as redes neurais em
funcionamento. Se, por algum motivo, essas redes deixam de ser ativadas, perde-se
determinado comportamento – ou boa parte dele (McCRONE, 2002; OLIVEIRA, 2003).

Outra questão muito importante diz respeito à organização que o cérebro tem e que
contribui nas interações com os ambientes ao não fazer julgamento de valor. O que

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UNIDADE I | o Campo da neurociÊncia

queremos dizer com isso? O cérebro se reorganiza com estímulos que são bons ou
ruins. Logo, é possível ajudar a pessoa a desenvolver comportamentos para o bem
ou para o mal. Consequentemente, toda a área de conhecimento que trabalha com
interação social pode se beneficiar do conhecimento advindo das bases neurobiológicas
ou do funcionamento cerebral. Afinal, ao trabalharmos o indivíduo na sociologia, na
antropologia, na educação, precisamos nos lembrar de que estamos trabalhando com
um ser que tem uma estrutura orgânica por detrás dos comportamentos. Portanto, os
comportamentos não ocorrem em outras dimensões (até aonde a ciência sabe) que não
sejam no equipamento neural que o ser humano tem e que se difere dos processadores
usados em computadores, porque ela tem dinamismo e se modifica cotidianamente.

Note que a pessoa que deseja aprender algo precisa dedicar energia e atenção para
aquilo que busca. Outras comentam que é muito difícil prestar atenção em duas coisas
ao mesmo tempo – e realmente é! Até é possível distribuir a atenção, mas sempre parte
das informações é perdida. Quando, por exemplo, alguém dirige e fala ao celular, devido à
alternância, alguns detalhes do trânsito são perdidos, e isso pode justificar certos acidentes
causados; e alguns detalhes da conversa não são registrados, porque o cérebro processa
de pior forma ou de maneira não tão eficiente cada um desses estímulos simultâneos
(LEITE, 1991). No caso do aluno, se ele está assistindo a uma aula e seu celular vibra,
a distração ocasionada compromete as informações que ele recebe naquele momento.
Logo, prestar atenção é uma regra e, para tanto, é necessário fazer uma opção.

Além disso, não existe aprendizagem quando não há reevocação da experiência que já
se teve. O professor, por exemplo, está explicando algumas questões sobre neurociência,
mas o aluno não presta atenção, não pensa nem lê sobre o assunto, não conversa ou busca
novas informações, por melhor que seja a aula, nada será registrado nem transformado em
memória. Portanto, é preciso entender que há gasto de energia, de tempo e de dedicação
para aprender. Se não há interesse em obter determinado conhecimento, é necessário
repensar a opção. Apesar disso, há uma grande diferença entre o aprendiz que está na
educação básica e aquele que já ingressou no Ensino Superior, por causa da maturação
neural, das escolhas feitas e das expectativas. Assim, espera-se que a aluno do curso
superior seja motivado a se engajar em um curso, pois ele possui interesse em obter
um conhecimento que o auxilie a se tornar um profissional mais habilitado, com mais
competências para determinadas tarefas. Ou seja, o estudante universitário precisa se
orgulhar em ser melhor do que ele era anteriormente. E ele precisa ter isso como meta.
Não basta apenas passar em uma disciplina ou se graduar. Esse aluno precisa, ao se
formar, dizer “eu sou muito melhor, eu sei muito mais, eu sou muito mais competente
e consigo resolver muito mais questões do que eu conseguia anteriormente”. Como essa
é a aprendizagem consolidada, não há dúvidas em relação ao que foi aprendido pelo
indivíduo (FIALHO, 2001; FONSECA, 1995, 2009; FIORI, 2008). Note que nem todas

18
o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

as pessoas têm necessariamente esse objetivo. Elas podem ter outras metas na vida, o
que demanda uma reflexão sobre as opções que precisam ser feitas.

Sobre a educação básica


Ela é uma responsabilidade das pessoas envolvidas formalmente com o processo, dos
pais e do governo, que precisam dar condições aos infantes de terem habilidades (skills)
suficientes para que possam se transformar em cidadãos que exercem seus direitos,
cumprem com seus deveres e para que tenham uma interação social de qualidade.
Em uma cultura, por exemplo, onde haja escrita, possibilitar que o indivíduo possa
aprender a ler e a escrever traz vantagens de adaptação e sobrevivência. A criança ou o
adolescente tem de dar importância à educação, o que só ocorre quando há envolvimento
da família e estímulo da comunidade à qual esse indivíduo pertence e da sociedade
como um todo, no sentido de valorizar o esforço que esses alunos empregam na escola.
No cotidiano, é importante um pai, cujo filho está na fase de alfabetização, perguntar
o que ele aprendeu naquele dia ou pegar o livro para que a criança lhe mostre o que foi
visto, em um movimento sem tom de julgamento nem críticas nas realizações do filho.
Não pode também ser uma obrigação. Ao contrário, deve ser um momento de troca
e de valorização do conhecimento: “você já consegue ler o cardápio do restaurante.
Sabe o que está escrito e já pode fazer suas próprias escolhas. Isso aí! Parabéns, filho!”.
Dessa forma, o aprendiz entende que o fato de estar aprendendo coisas novas o está tornando
uma pessoa de maior inclusão na sociedade e com maior possibilidade de escolhas.

Note que o cérebro que aprende é aquele que deve estar funcionando. Então, em uma
sala de aula, é muito estranho que só o professor fale. Deveria ser exatamente o contrário,
quem está ali para aprender é quem mais deveria estar funcionando em uma sala de
aula. O professor deveria ser um orientador.

Neurociência e Educação – O livro de Ramon M. Consenza e Leonor B. Guerra traz


um vasto material com as bases neurobiológicas da aprendizagem, que teve como
alicerce a experiência que os autores tiveram com os professores. Seu conteúdo,
além de mostrar como o cérebro é responsável pela forma como processamos as
informações, armazenamos o conhecimento e selecionamos nosso comportamento,
também explica que, quando compreendemos seu funcionamento, seu potencial e
as melhores estratégias de favorecer seu pleno desenvolvimento, o trabalho tanto
dos profissionais da saúde mental como da educação torna-se mais facilitado.
Publicado pela Editora Artmed.

19
CAPÍTULO 3
A NEUROLOGIA: EDUCAÇÃO COGNITIVA

Sabemos que o sistema nervoso é o responsável pela interação do indivíduo com o


ambiente; então, todos os estímulos sensoriais recebidos são processados pelo cérebro, e
esse processamento gera uma determinada resposta comportamental. Se uma criança se
encontra em um meio no qual recebe carinho, conforto, empatia, afeto, segurança, acesso
a livros e ao lúdico e os pais valorizam o que a escola ensina, provavelmente, ela terá
uma aprendizagem satisfatória. Por outro lado, se outra criança, na mesma faixa etária
e com o mesmo cérebro (ou bases bioneurológicas), estiver inserida em um local onde
há violência, despreocupação com sua alimentação (no Brasil há 5 milhões de pessoas
que passam fome), não existe um ambiente familiar adequado, não há oportunidades
e/ou incentivos para sua aprendizagem escolar (se ela frequenta uma escola, temos de
lidar com todas as hipóteses), apesar de não apresentar nenhum problema cerebral, ela
sentirá dificuldades de aprendizagem em função do meio ambiente de onde provêm os
estímulos e ocorrem as interações (ambos de má qualidade) recebidos.

Figura 3. De acordo com a neurociência, para aprender, é necessária a reorganização entre as


conexões cerebrais, que são chamadas de sinapses.

Fonte: https://specialneedsprojecteec424.weebly.com/dyslexia.html.

Hoje, graças à neurociência, sabemos que, para aprender, é necessária a reorganização


entre as conexões cerebrais, que são chamadas de sinapses. Na reformatação dessas
sinapses, ocorrem reações químicas que não acontecem de uma hora para outra e, muito
menos, da noite para o dia. Então, para aprender, é essencial haver a reexposição aos
estímulos, aos contextos, às habilidades e aos conteúdos. Além disso, quando queremos
que uma criança adquira conhecimento, é preciso possibilitar o sono a ela, pois é durante
esse processo que acontece a consolidação das memórias e o aprendizado, que ainda
precisa ser motivado.

Como foi mencionado no capítulo anterior, nós aprendemos para ter bem-estar e
poder viver melhor em termos pessoais, emocionais, sociais e profissionais. Portanto,

20
o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

na escola, a criança não vai aprender geografia, matemática e português só porque o


professor vai aplicar uma avaliação, mas porque o conteúdo é importante para a vida dela.
Desse modo, o entendimento de que só se aprende quando houver motivação traz um
desafio muito grande para o educador, pois ele tem de apresentar criatividade que apenas é
estimulada pela convicção dele em relação àquilo que vai ensinar. É assim que o educador
compreende que um determinado conteúdo é importante e significativo para a criança,
pois ninguém aprende se não for por prazer ou por bem-estar. Consequentemente, se
muitas constatações da neurociência vieram fundamentar as práticas que os professores
já utilizavam, outras o fazem refletir sobre algumas práticas que funcionam para alguns
e não funcionam para outros.

O contexto familiar
As dificuldades de aprendizagem podem ser mais bem compreendidas se o contexto
familiar for analisado. Se a criança, por exemplo, está dormindo mal por ter uma
obstrução respiratória, ela também pode ter dificuldades de aprendizagem, devido à
exposição a uma diversidade de estímulos tão grande que a impede de focar sua atenção
no que tem real necessidade de aprender (PAÍN, 1992; RELVAS, 2010a; SILVA, 1995;
SISTO, 2001). Assim, a neurociência, que tem como subárea a neuropsicopedagogia
clínica, começa a explicar porque é tão importante o indivíduo ter atenção para aprender,
enquanto também ajuda na constatação de problemas relacionados ao cérebro. Apesar
desse aspecto, a maior parte das dificuldades de aprendizagem não está relacionada
com problemas cerebrais, mas, sim, com a prática pedagógica, o ambiente familiar, a
estimulação que a criança tem ou teve durante a vida… Ou seja, aos elementos externos.
Apenas um pequeno percentual está relacionado a diferenças que o cérebro da criança
tem. Inclusive, diferenças que são pequenas e que não são tão bem caracterizadas, como
síndromes, autismo, Síndrome de Down, Síndrome de Williams etc. Há crianças disléxicas
que têm dificuldades para aquisição da leitura e da escrita; que apresentam discalculias
e, em consequência, dificuldades com a matemática; que podem ter um déficit de atenção
– que, quando bem diagnosticado, é possível estabelecer intervenções terapêuticas e
medicamentosas e melhorar muito o desempenho escolar delas (PIAGET,1978).

Note que o neuropsicopedagogo pode tanto ajudar nos casos fisiológicos quanto atuar
colaborando nos casos em que a criança tem alguma diferença na constituição do sistema
nervoso. Quando a criança, por exemplo, não apresenta nenhum problema cerebral,
o profissional pode modificar os elementos que contribuem para a aprendizagem.
Para tanto, é imprescindível que o especialista conheça o funcionamento cerebral,
respeitando algumas regras que o cérebro tem, pois ao entendê-lo, torna-se possível
compreender o que são os comportamentos, como são organizados e como podemos
construir os novos comportamentos.

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UNIDADE I | o Campo da neurociÊncia

Portanto, o processo educacional faz parte dessa atuação quando visa à construção de
comportamentos e mudanças de hábitos, atitudes e habilidades dos seres humanos.
No entanto, precisamos eliminar os mitos, como o que diz que usamos apenas 10% do
cérebro. Na verdade, se ninguém sabe como quantificar a potencialidade do cérebro
(RELVAS, 2009), também é impossível dizer quanto dele usamos! Outro mito que
deve ser descartado frisa que todos temos muitas limitações, o que é uma inverdade,
pois o cérebro é plástico e permite ao ser humano aprender muitas coisas, inclusive
simultaneamente.

O destaque da neuroeducação
Como a neurociência vem se desenvolvendo muito nos últimos anos, o que nos permite
conhecer como as pessoas memorizam, como orientam a atenção, como percebem
as questões, a neuroeducação surge como uma nova área do conhecimento, com o
objetivo de melhorar as práticas e os métodos de ensino, e, assim, contribuir com
o desenvolvimento do indivíduo. Esse conhecimento é extremamente útil quando
o profissional planeja a intervenção adequada, para a avaliação e a construção do
planejamento ao atendimento da demanda de seu atendido. Como cada ser humano possui
suas dificuldades e potencialidades, o profissional deve manter um olhar genuinamente
empático em relação ao problema com a qual lidará. Portanto, tanto os profissionais
da equipe multidisciplinar quanto os professores da educação infantil (do berçário até
o final do segundo ciclo, quando a criança se encontra com 5 anos de idade) devem
ter acesso ao conhecimento necessário para ajudar a criança em seu desenvolvimento
neurológico, conhecer a melhor intervenção e qual prática pedagógica utilizar para
melhor estimular o cérebro infantil.

Constatamos, então, que a capacitação sobre o processo de desenvolvimento neurológico


muda o olhar e a atuação dos profissionais adiante da demanda de cada atendido.
A partir do momento que se obtém o conhecimento adequado, as intervenções ganham
um novo direcionamento. Até então, o profissional atuava de forma errada? Essa é uma
questão para reflexão, pois, muitas vezes, no movimento de auxiliar a ansiedade, ele
errava sim, devido à boa vontade e aos constructos embasados em pesquisas abalizadas,
que não traziam os benefícios esperados e talvez interferissem até negativamente no
processo de desenvolvimento. Desse modo, manter-se atualizado para o que quer que
seja, por meio de especializações, congressos, leitura de artigos científicos atuais, busca
por livros direcionados à temática, são algumas das atitudes a serem tomadas.

O aprender e o ensinar hoje são autônomos. Respiramos um momento de muita


liberdade e do verdadeiro cuidado perante a obtenção do saber. Estamos educando
para a autonomia e fazendo parte desse movimento. Então, grupos de profissionais que

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o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

debatem o tema e analisam casos clínicos tomam medidas extremamente positivas e


possíveis. Devemos presar pela junção entre a teoria e a prática, pois uma complementa a
outra. Consequentemente, após a formação, o profissional deve ampliar seus horizontes,
para se destacar tanto no mercado de trabalho quanto nos resultados alcançados com
seus atendidos.

Alguns profissionais não percebem detalhes, como a postura, o tom da voz, o não
julgamento ao passar uma instrução de atividade etc. Ele pode dar, por exemplo,
uma instrução de costas para o aprendente ou usar a voz muito alta. Essas questões
são inconscientes, mas, quando o docente foca na praxis com o conhecimento
adequado, os padrões comportamentais dele vão se diluindo, enquanto estratégias
funcionais são implementadas.

Novo olhar da neurociência sobre as relações


e a educação cognitiva
Na prática, a neurociência mostra a importância do processamento auditivo e a aplicação
concreta das atividades com consciência fonológica. Portanto, desde a tenra idade,
passando por crianças, adolescentes, adultos e idosos, podemos ver a atuação da
neurociência na vida cotidiana. No entanto, devemos nos policiar em relação à expressão
neuroeducação, pois pode parecer para o público em geral que a neurociência veio trazer
uma nova educação. Na verdade, ambas são áreas do conhecimento que têm naturezas
distintas. Portanto, o que a neurociência faz é trazer contribuições para o entendimento
de processos de educação. Desse modo, precisamos esclarecer que essa curiosidade das
pessoas em relação ao termo abre um nicho baseado em um marketing de vendas de
uma nova ideia, quando, na verdade, o que é novo é esse diálogo, ou seja, as pessoas que
conhecem o sistema nervoso começam a trocar ideias com os profissionais da educação, e
isso é altamente fomentado em seminários voltados às neurociências (AJURIAGUERRA,
1985; ANNUNCIATO, 1994).

No início do século XX, o interesse em explicar as funções mais complexas foi crescente,
e a noção de que as diversas áreas cerebrais estavam interligadas ganhou espaço. Em
1940, Walter Hess defendeu a ideia de que o número de estruturas cerebrais envolvidas
para a realização de uma atividade seria proporcional à sua complexidade. James Papez e
Paul McLean ampliaram o conhecimento sobre o sistema límbico, explicando a existência
de um conjunto de estruturas cerebrais interconectadas, no qual eram processados os
conteúdos emocionais. Nesse mesmo período, o médico William Scoville descreveu o
caso clínico do paciente H. M. (paciente epilético que, após uma cirurgia para remover
seu hipocampo e suas amígdalas, tornou-se incapaz de aprender novas informações), que
ficou amplamente conhecido na literatura como uma das primeiras evidências de que

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UNIDADE I | o Campo da neurociÊncia

os processos de memória e aprendizagem dependem de diversificadas áreas cerebrais


e de suas conexões (CAPOVILLA, 2003).

A partir de estudos de casos, como o de H. M., conduzidos, principalmente, durante o


período da Segunda Guerra, com indivíduos que sofreram lesões cerebrais, os processos
mentais passaram a ser explicados como dependentes da integridade de centros nervosos
e de suas conexões, não mais, simplesmente, como resultado do funcionamento de áreas
cerebrais específicas. Contribuíram também, para os avanços sobre a compreensão
do funcionamento cerebral, os estudos histológicos de Camilo Golgi e Santiago Cajal.
Golgi desenhou o famoso método de coloração por prata, técnica que permitiu a
identificação de toda a estrutura da célula nervosa (corpo celular, dentritos e axônios).
Em 1890, o neuroanatomista Cajal, utilizando o método de coloração de Golgi, mostrou
que estava incorreta a ideia de que o cérebro era uma massa contínua e demonstrou que
o tecido neural era composto de um emaranhado de células. A partir daí, ele estabeleceu
que cada célula nervosa é única, distinta e individual. Depois, o cientista Sherrington, que
estudou reações, relatou que as células nervosas (neurônios) respondem a estímulos e são
conectadas por sinapses. Apesar dessas descobertas, as tendências localizacionistas ainda
prevaleceram no início do século XX, com importantes descobertas que as validaram,
como a diferenciação de funções entre os dois hemisférios cerebrais. Contudo, as
controvérsias da época sobre a localização de regiões específicas para a execução das
chamadas funções superiores, tais como memória e pensamento, diminuíram as certezas
sobre as hipóteses localizacionistas.

Tabela 1. Características de cada hemisfério cerebral.

Hemisfério esquerdo Hemisfério direito


Verbal: usa palavras para nomear, descrever e definir. Não verbal: percepção das coisas com uma relação mínima
Analítico: decifra as coisas de maneira sequencial e por partes com palavras.
(utiliza um símbolo no lugar de outra coisa. O sinal +, por exemplo, Sintético: uni coisas para formar totalidades, relacionando-as
representa a soma). tais como estão nesse momento.
Abstrato: extrai uma porção pequena de informação e a utiliza Analógico: encontra um símile entre diferentes ordens e tem
para representar a totalidade do assunto. compreensão das relações metafóricas.
Temporal: mantém a noção de tempo e a sequência dos fatos Atemporal: sem sentido de tempo.
(faz uma coisa e, em seguida, outra etc.). Não racional: não requer uma base de informações nem fatos
Racional: extrai conclusões baseadas na razão e nos dados. reais; aceita a suspensão do juízo.
Digital: utiliza números. Espacial: vê as coisas relacionadas a outras e como as partes se
Lógico: extrai conclusões baseadas na ordem lógica (caso de um unem para formar um todo.
teorema matemático ou uma argumentação). Intuitivo: realiza saltos de reconhecimento, em geral sobre
Linear: pensa em termos vinculados a ideias (um pensamento padrões incompletos, intuições, sentimentos e imagens visuais.
segue o outro e, em geral, convergem em uma conclusão). Holístico: percebe e, ao mesmo tempo, concebe padrões gerais
bem como estruturas que muitas vezes levam a conclusões
divergentes.
Fonte: Adaptado de Relvas (2010).

24
o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

Esse campo fértil de contradições contribuiu para ideias como a de Constantin Von
Monakow, que defendia que a diásquise (dano em uma das regiões encefálicas gera prejuízo
em outras regiões) influenciava muitas pesquisas de tendência holística. A discussão
entre localizacionistas e holistas só tomou novos rumos a partir das descobertas de Lev
Vygotsky (1896-1934), que argumentava que a organização cerebral ocorria a partir de
uma inter-relação complexa entre suas partes e que seria responsável pelo funcionamento
do todo. Influenciado pelo psicólogo soviético Alexander Luria (1902-1977), que, a
partir do estudo com pacientes acometidos por lesão cerebral, desenvolveu um novo
conceito de função, Vygotsky desenvolveu estudos que mostraram que o funcionamento
mental variava entre os diferentes estágios do desenvolvimento humano e, ainda hoje,
as ideias dele destacam-se entre as mais importantes dos expoentes da psicologia da
aprendizagem. Graças a ele, as premissas localizacionistas deram lugar à proposta de
funcionamento interligado das áreas cerebrais que predomina na neuropsicopedagogia.

Note que Luria atuou junto a Vygotsky focalizando, inicialmente, no estudo da afasia e
na relação da linguagem com outros processos mentais, visando o desenvolvimento de
técnicas de reabilitação. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, Luria também
desenvolveu pesquisas no Hospital do Exército e focou na descoberta de métodos de
reabilitação de deficiências em pacientes com lesões cerebrais. Para tanto, elaborou
baterias completas para avaliação neuropsicológica que foram amplamente utilizadas em
meados do século XX e continuam a influenciar a forma como os testes são elaborados e
utilizados na avaliação neurológica, tanto que a primeira versão dos testes de Luria deu
origem a diversas outras baterias neuropsicológicas, como a Luria-Nebraska e o teste
de Barcelona, que consistem em avaliações amplas dos diversos domínios cognitivos.
Esses testes ainda são úteis, mas dividem espaço com uma infinidade de testes
neuropsicológicos que vêm sendo elaborados com o intuito de se tornarem cada vez
mais específicos. Além disso, na abordagem neuropsicológica de Luria, o funcionamento
cerebral é explicado com a coparticipação dos dois sistemas funcionais do cérebro.

Objetivos centrais da neurociência


1. Localizar as lesões cerebrais responsáveis pelos distúrbios do comportamento para
um diagnóstico preciso.

2. Explicar o funcionamento das atividades psicológicas superiores relacionadas com


as partes do cérebro.

Uma das grandes preocupações que o professor/educador tem em sala de aula é


como fazer o aluno aprender e as neurociências vêm contribuindo nesse processo,
proporcionado uma nova competência a eles, ao se aliar à educação. Portanto, conhecer

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UNIDADE I | o Campo da neurociÊncia

a biologia cerebral, nas dimensões cognitivas, afetivas, emocionais e motoras, faz-se


importante na construção da educação em pleno século XXI. Nesse contexto, a
psicoeducação visa deixar o atendido, que possui condições cognitivas para compreender
a questão, informado sobre sua dificuldade ou seu transtorno e mostrar como será
feito o trabalho com ele.

Para exemplificar essa condição, vamos abordar o atendimento a pessoas com Transtorno
do Espectro Autista (TEA). Enquanto a Organização das Nações Unidas (ONU) calculava
que, no começo de 2010, havia cerca de 70 milhões de pessoas com TEA em todo o
mundo, em março de 2021, segundo estimativas do Ministério da Saúde, o TEA atingia
mais de 2 milhões de pessoas no Brasil, número que pode ser bem maior se levarmos
em consideração que não existe um exame que identifique o autismo. Por sua vez,
dados do Center of Deseases Control and Prevention (CDC), órgão ligado ao governo
dos Estados Unidos, indicam um caso de autismo a cada 110 pessoas. Portanto, é
possível considerar que haja mais de 300 mil ocorrências somente no estado de São
Paulo. Notamos, então, que, apesar de numerosos, milhões de brasileiros autistas ainda
sofrem para encontrar tratamento adequado, principalmente, porque as causas do TEA
ainda são desconhecidas, embora as pesquisas na área sejam cada vez mais intensas e já
apontem para uma combinação de fatores que levam ao transtorno. Em consequência,
os profissionais que atendem essa demanda precisam estar atentos aos dados da
Avaliação Comportamental do Transtorno do Espectro Autista, pois este é diagnosticado
por meio da observação do comportamento, associado a antecedentes familiares,
informações do pré-natal e aplicação de escalas de comportamento vinculadas a Terapia
Cognitivo-Comportamental (TCC).

Considerando que o transtorno é uma condição neurobiológica que, geralmente, aparece


nos três primeiros anos de vida e afeta as habilidades de comunicação, a interação social,
e mostra a presença de comportamentos repetitivos e/ou interesses restritos, com base
na revisão da literatura científica, podemos destacar que o autismo:

» é uma condição própria da espécie humana, podendo ocorrer em qualquer raça,


país ou classe social;

» acomete mais meninos que meninas;

» nos manuais diagnósticos, é uma síndrome comportamental que se faz presente


antes dos 3 anos de idade e que engloba comprometimentos nas áreas relacionadas à
comunicação verbal ou não verbal, nas relações interpessoais, em ações simbólicas,
no comportamento geral e no distúrbio do desenvolvimento neuropsicológico;

» geralmente vem associado a outro transtorno ou síndrome;

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o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

» apresenta múltiplas causas, havendo uma forte tendência em ressaltar fatores


genéticos e ambientais.

» não apresenta homogeneidade no quadro comportamental.

Como esses são apenas alguns sinais para alavancarmos o conhecimento a respeito do
TEA, a diferença entre os autistas traz relevância ao estudo do transtorno e dificuldades
de diagnosticá-lo. Portanto, o profissional tem por obrigação ética discutir o prognóstico
com os responsáveis, independentemente de dor, ansiedade e medo que a situação
venha a gerar. Consequentemente, ele precisa saber informar e esclarecer com muita
paciência aos pais que os progressos, mediante o grau de autismo apresentado pelo(s)
filho(s), podem parecer imperceptíveis ou discretos, mas são de suma importância para
o desenvolvimento da autonomia e do comportamento funcional do indivíduo com TEA.

De acordo com dados do Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB), ONG fundada, em
2005, por pais de pessoas com TEA (influenciado pelo movimento Aspies for Freedom,
organização norte-americana que luta pelos direitos civis dos autistas, fundada em junho
de 2004,), é comum e esperado que surjam questões ligadas à ansiedade dos pais perante
a condição do(s) filho(s) – aqui devemos abrir um parêntese a respeito de pais que
têm mais de um filho autista, pois, na realidade, isso não é raro e gera maior tensão na
relação tanto entre os cônjuges quanto entre os filhos. Sendo assim, também é importante
informar aos responsáveis que, ao fazer um diagnóstico do desenvolvimento atípico de
uma criança, os sintomas apresentam-se de forma intermitente, e, por isso, nem todos se
apresentarão na entrevista inicial. Logo, é essencial que os responsáveis estejam cientes
de que, para obter uma visão geral da criança e constatar a amplitude do distúrbio, é
preciso coletar dados em diferentes contextos. Além disso, a família pode caminhar para
a disfuncionalidade com maior facilidade se não conseguir lidar de forma proativa com o
autismo e os comportamentos que vêm em decorrência dele. Diante dessa situação, pode
haver necessidade de Treino de Pais (TP), de sessões psicoterapêuticas individuais, de casal
e familiar, bem como de grupos de apoio a pais como alternativa de troca de vivências.

A neuropsicopedagogia clínica, o neuropsicopedagogo


e as demandas atuais
Compreender as nuances do universo particular dos transtornos faz parte da função do
neuropsicopedagogo, o qual irá avaliar a criança com TEA e trazer benefícios a ela com
o uso das ferramentas adequadas a essa condição de neurodiversidade, bem como às
respectivas famílias. Essa situação é rotineira com crianças que possuem o transtorno
do déficit de atenção com hiperatividade (TDHA). Elas crescem, passam por mudanças
corporais e envelhecem. Portanto, há necessidade de uma visão realista acerca da condição

27
UNIDADE I | o Campo da neurociÊncia

delas, o que inclui orientar a família e desenvolver um trabalho de excelência tanto com
o atendido quanto com o núcleo familiar dele, com base na neurociência e na psicologia
cognitiva, por meio de uma equipe multidisciplinar, formada por vários especialistas,
como psicólogo, neurologista, neuropsicopedagogo, psicopedagogo, terapeuta ocupacional,
fonoaudiólogo, psiquiatra, nutricionista, entre outros profissionais, que trabalharão
em benefício da criança ou de qualquer indivíduo que venha a apresentar dificuldade.

Note que, entre outros aspectos, em ambos os casos, o trabalho do neuropsicopedagogo


é realizar a observação, a identificação e a análise do ambiente escolar relacionado ao
desenvolvimento humano, bem como das áreas motora, cognitiva e comportamental
do indivíduo. Já na clínica, ele pode fazer avaliação, intervenção e acompanhamento
contínuo da pessoa que venha a apresentar qualquer dificuldade de aprendizagem,
transtorno, síndrome ou altas habilidades que lhe trazem grande prejuízo. Ele também
realiza estratégias que viabilizam o desenvolvimento do ensino e aprendizagem da
criança, utilizando protocolos e instrumentos de avaliação devidamente validados e,
quando há necessidade, faz o encaminhamento para outros especialistas que compõem
a equipe multidisciplinar. No entanto, para que as estratégias do neuropsicopedagogo
sejam eficazes, pais ou responsáveis, bem como a escola, devem manter um diálogo
aberto e alinhado sobre a situação do filho/aluno.

Retomando a psicoeducação
Knapp (2004) alega que essa técnica, quando bem empregada, melhora a motivação
para a mudança e estimula a participação proativa do paciente na recuperação – em
casos onde cabe este termo, pois, no caso do TEA, sabemos que ainda não existe uma
perspectiva de cura. Portanto, podemos dizer que a psicoeducação ajuda o atendido a
eliminar o aspecto distorcido que atribui a si mesmo, tanto por não ser capaz de resolver
algum problema quanto por se culpar pela queixa que o trouxe ao consultório, mesmo
quando apresenta um quadro de negação. Isso pode ser feito por intermédio de folhetos
explicativos, artigos de revistas, livros, páginas de internet, apresentação em flip-chart,
ou com qualquer outro material que possa transmitir informações adequadas ao atendido,
à família e à escola. Ainda de acordo com Knapp (2004), a ressignificação utilizada
na educação cognitiva é semelhante à reatribuição. Portanto, seu objetivo principal é
ajudar o atendido a produzir uma resposta racional aos eventos, ou seja, uma versão
mais lógica, realista e mais adaptativa do pensamento.

Sobre a técnica da reatribuição


Com a técnica de reatribuição, o neuropsicopedagogo clínico ajuda seu atendido a
flexibilizar seu julgamento por meio da identificação de outros fatores que contribuem

28
o Campo da neurociÊncia | UNIDADE I

para o resultado final ou pelo reconhecimento de diferentes critérios usados para avaliar
a responsabilidade pessoal e a de terceiros. Cordioli (2008) mostra que essa técnica é
usada quando o paciente apresenta um padrão de autoatribuição de responsabilidades
irreais em relação a vários resultados negativos. Por sua vez, Knapp (2004) afirma que essa
técnica deve ser utilizada com pacientes que se consideram culpados por determinadas
situações ou, de forma oposta, colocam toda a culpa em terceiros. Logo, o objetivo do
profissional é levá-los a considerar todos os possíveis fatores e indivíduos envolvidos na
situação, bem como as circunstâncias, no intento de fazê-los fomentar a ponderação a
um nível mensurável de responsabilidade respectiva aos fatores e aos indivíduos.

Caso clínico
E.C., com 74 anos, foi facilmente diagnosticado com Alzheimer – uma lenta e fatal doença
do cérebro –,pelo psiquiatra, que, diante da situação do paciente, o encaminhou para
uma equipe multidisciplinar. Até então, E.C. era um homem ativo. Nascido no interior
do estado de Minas Gerais, desde cedo, como filho mais velho, começou a trabalhar na
lavoura com o pai. Ao entrar para o quartel, mudou-se para o Rio de Janeiro. Ao sair
do serviço militar, foi trabalhar como cobrador de ônibus. Sempre falante e atencioso,
com o tempo, foi admitido como motorista de uma empresa e, assim, permaneceu por
anos, até integrar no Sindicato dos Rodoviários do Rio.

Casado há 47 anos, tinha três filhos e quatro netos. Tudo caminhava bem, mas sua
esposa, que era técnica em enfermagem, notou lapsos de memória, respostas agressivas,
comportamentos que destoavam da forma como seu marido sempre havia agido. Idas a
médicos e baterias de exames propiciaram o diagnóstico, e os filhos foram informados.
E.C. continuou em seu serviço, porém com uma carga de exigência bem menor, por
causa da idade e por sua situação de saúde, aliada a um progressivo declínio em suas
funções cognitivas, tanto que o sindicato optou por colocar um ajudante junto a ele.

Esse fato desencadeou um quadro depressivo em E.C., que afetou sua relação tanto
conjugal quanto com os filhos, bem como a social. Ele passava os dias deitado na cama
ou no sofá, de acordo com o relato de sua esposa. O jogo de baralho com os colegas foi
abandonado. No trabalho, as reclamações que fazia eram inúmeras, afinal, ele sempre
atuou sozinho e agora tinha outra pessoa em sua sala, interferindo, metendo-se no
trabalho e fazendo tudo errado. Reclamações, mudança no linguajar, falta de paciência
com a esposa, que sempre o acolheu, amou e apoiou, mas que, de uma hora para outra,
passou a ser a mulher que ele aturou por 40 anos, indicaram que personalidade dele
estava sofrendo as interferências da patologia.

A memória mais recente também começou a apresentar falhas. A higiene, que era
impecável, passou a ser um problema, pois E.C. chegava a evacuar na roupa e se recusava

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UNIDADE I | o Campo da neurociÊncia

a tomar banho. Por outro, ele se lembrava da roupa que sua esposa usava no primeiro
dia em que a viu pela primeira vez. Narrava com riqueza de detalhes como foi o primeiro
encontro, o início do namoro. Mas não sabia informar o que havia ingerido no café da
manhã. Consequentemente, a intervenção terapêutica era essencial para promover a
qualidade de vida dele – e das demais pessoas com Alzheimer –, pois, só por meio do
tratamento, o processo de evolução da doença pode ser retardado, conforme o estágio
apresentado pelo paciente.

No caso atendido havia um diferencial: a esposa era da área de saúde e altamente


ativa, pois frequentava cursos, lia, especializava-se e ainda convivia com pacientes que
apresentavam os mesmos sintomas de seu marido. Desse modo, o diagnóstico não foi
uma surpresa para ela. Mas os filhos e outros familiares não imaginavam o que seria
Alzheimer. Para eles, era apenas de um problema em função da idade. Como é comum
que, ao notar os sintomas do Alzheimer, o próprio indivíduo faça o possível para esconder
a doença por se sentir envergonhado, a família precisa estar atenta e, caso perceba algo
que foge/destoa do comportamento usual, leve a pessoa à unidade de saúde, mesmo
que ela não tenha um geriatra ou um neurologista.

O neuropsicopedagogo clínico diante do Alzheimer


Por meio de conhecimentos neuropsicopedagógicos, o profissional entende tanto o
desenvolvimento da patologia no cérebro do indivíduo quanto o processo de perda de
habilidades e autonomia. Desse modo, ele cria estratégias que proporcionam melhoras
nas perspectivas educacionais do atendido. Contudo, como a doença é degenerativa,
a estimulação intensa é essencial e exige atividades diferenciadas, assuntos novos,
atendimentos em ambiente naturalístico, mas sempre respeitando o ritmo de cada
pessoa atendida. Assim, ao reorganizar as sinapses, o neuropsicopedagogo clínico pode
estimular áreas do cérebro do atendido que ainda não foram atingidas pela patologia,
devido à plasticidade cerebral e à forma como ela pode alterar o funcionamento desse
cérebro.

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Fonte das imagens


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