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O que é o jogo psicomotor livre

Susana Veloso Cabral

O jogo psicomotor livre se estabelece na relação psicomotora, na terapia psicocorporal.

Ele pode ter um nível de representatividade, de acordo com a semiótica de Peirce, que é da
primeiridade ou secundidade, ou seja, nele aparecem ícones e índices. Trata-se, então, do jogo
que é de expressividade psicomotora.

O que significa essa expressividade? São jogos funcionais, ou mesmo jogos de regras, que
revelam todo o mundo interno psico-afetivo. Isto porque, mesmo brincando com uma simples
bola, a força, o tônus, toda a possibilidade tônico-emocional, já são expressivos de algo do
sujeito. Pode se tratar, por exemplo, de uma descarga agressiva, ou então, pode ser algo da
conquista, da luta em busca do poder.

Um exemplo de jogo de ataque agressivo surge num jogo icônico indicial, com conteúdo de
afirmação do poder masculino sobre o feminino e ocorre entre uma dupla. O menino segura
um enorme rolo de plástico, cheio de ar, e com ele bate na menina que quer brincar com ele e
pegar o rolo, mas fica temerosa e grita “ai”, sendo necessário o limite: “Com cuidado! Não vale
machucar!” O jogo prossegue até que a menina, com medo, se refugia junto à terapeuta, que a
acolhe e pontua “socorro”, enquanto ela apela por sua proteção.

Outro exemplo é de um jogo de regras, também com uma dupla, que revela insegurança e
medo. É uma brincadeira comum de “cabra cega” em que a terapeuta, de olhos vendados,
“pega” a menininha que diz: “não quero ir não”. Há a expressão do seu temor e a pontuação
do vivido: “É! Dá susto, a gente fica bem assustada de ficar sem ver”. Compreendida e aceita a
criança resolve se arriscar e põe a máscara. A terapeuta facilita ser pega, falando, batendo
palmas, para que a criança logo a capture e não entre em ansiedade.

Já no nível da terceiridade de Peirce surgem os jogos simbólicos.

O jogo é primeiro de dramatização pré-consciente. É, por exemplo, o jogo do “peão


boiadeiro”, montado em seu cavalo. O jogo é pontuado: “arranjou um cavalo para você” e o
menino arranja um laço com o qual faz menção de laçar algo e, pulando sobre o rolo/cavalo,
finge cavalgar, mas, desajeitado, acaba caindo no chão. A pontuação é dada: “socorro! Caiu do
cavalo”! E o menino prossegue em seu jogo, importante, pois ele viera da fazenda para a
cidade, perdendo o contato com o pai fazendeiro, que só passou a ver nos finais de semana.

Já no nível da terceiridade, realmente simbólico, acontece de duas maneiras.

Primeiro, como uma criação/surpresa. O sujeito está brincando e, de repente, na cena que ele
cria surgem fantasmas que vão revelar o seu mundo interno. Trata-se, ainda, de um nível
simbólico, não há ainda um mergulho no mundo fantasmático.

É o caso de um menino que junta canetinhas, de pincel atômico, e faz para si uma espada que
é nomeada pela terapeuta. Enquanto isso, a menina chuta o rolo de plástico em cima da
terapeuta que o segura e devolve à criança num jogo agressivo. Logo, ele diz que vai cortar a
terapeuta e quando esta, em parceira simbólica, finge morrer, o menino logo grita “É de
mentira”!

Nesse determinado momento esse jogo acaba mergulhando em todo o vivido do sujeito e ele
até perde um pouco a noção do Ego, que sempre fica vigilante, enquanto se brinca.

Aí, então, há um jogo fantasmático. Não é mais um jogo simbólico num nível em que a
realidade ainda é controlada pelo sujeito. No nível fantasmático o sujeito perde a distinção
entre o imaginário e a realidade. É algo muito peculiar seu, que exprime a história desejante
daquele sujeito e que vai se revelar no jogo.

No caso desse menino a “morte” dramatizada no jogo o leva a gritar várias vezes: “É de
mentira!” Ou seja, é imaginário não é real. E a terapeuta se levanta e pontua quando vê sua
ansiedade: “É só de mentira, um pouquinho”? E volta ao jogo agressivo com a menina,
enquanto o menino até se afasta de cena.

Entretanto, ocorre que a menina chuta o rolo sobre a terapeuta e grita “BUM”! Como uma
bomba de ataque. A terapeuta volta a fingir de morta e o menino com o aumento de sua
angústia fantasmática de morte (um seu sintoma era a fobia de soldados e exércitos) volta a
gritar: “É de mentira”! E se aproxima para falar mais alto: “É de mentira”!

A terapeuta interage dizendo que quem me matou foi a menina, ela que resolve.

As duas crianças estão num nível simbólico diferente. Enquanto a menina ri de sua façanha
sem entrar no fantasmático, o menino aumenta seus gritos e diz que a terapeuta é “cega” e
que “ela não escuta”.

A intervenção da terapeuta é com a menina: “Ele quer que eu viva e você”? A menina
responde: “Não”! A terapeuta volta a “morrer” e se estabelece um jogo entre a dupla.

A menina diz “não” como resposta a se a terapeuta deve viver e o menino diz “sim”. Os dois
gritam as suas respostas até que o menino se angustia mais e, mobilizado com seu fantasma,
se aproxima e faz gestos de borrifar água no rosto da terapeuta, num ato simbólico defensivo,
para reanimá-la.

A terapeuta “desperta” e pontua: “Acho que vou ter que viver mesmo!” E “acorda” da morte
simbólica.

Essas cenas foram registradas em vídeo por alunos da formação do Centro de Relação
Psicomotora, com autorização dos pais, na década de 90.

Agradeço a meus clientes a oportunidade de poder ilustrar, com suas vivências, a teoria sobre
os níveis do jogo psicomotor na relação psicoterapêutica.

BIBLIOGRAFIA:

CABRAL, S. V. O animador e o jogo psicomotor simbólico, Jornal do Psicólogo do


Conselho Regional de Psicologia, abr. 1995.
CABRAL, Suzana V., Psicomotricidade Relacional: prática clínica e escolar. Rio de
Janeiro: Revinter, 2000.
PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva,1977.

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