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Instituto Politécnico de Portalegre

Escola Superior de Educação e Ciências Sociais


Análise a capítulo de livro

“A Guardadora de Gansos” à luz do olhar psicanalítico


de Bruno Bettelheim a partir do livro “A Psicanálise
dos Contos de Fadas”

Professor Doutor Luís Cardoso


Discente Mafalda da Cruz Machado

Novembro, 2023
“A Guardadora de Gansos” à luz do olhar psicanalítico de Bruno Bettelheim a partir
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do livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”

Livro Capítulo
A Psicanálise dos Contos de Fadas (5ª A Guardadora de Gansos – realização da
edição) autonomia

Análise psicanalítica do conto “A Guardadora de Gansos”

“Era uma vez uma velha rainha, cujo marido havia falecido muitos anos antes, que
tinha uma linda filha… Quando chegou a altura de ela se casar, a jovem teve de viajar
para um país estrangeiro” (Bettelheim, 2018, p. 212). Assim começa o conto intitulado
“A Guardadora de Gansos” dos irmãos Grimm e que aborda a obtenção de autonomia
relativamente aos nossos pais. Esta é uma história com pouco relevo literário, mas
realmente importante de acordo com a perspetiva de Bettelheim pela forma como a
desconstrói psicanaliticamente.

Na sua análise, faz uma passagem pelo conteúdo do conto e, posteriormente,


analisa-o mediante os acontecimentos determinantes que conduziram ao desfecho da
história. Sabemos que os contos tradicionais têm um desfecho feliz, apesar das
dificuldades e obstáculos pelos quais as personagens têm de passar. Estas histórias, na sua
generalidade, são uma lição a retirar para a própria vida. É precisamente nas dificuldades
descritas neste conto que Bettelheim as relaciona com as questões da autonomia e
autorrealização.

A personagem central da história é uma menina que está a atravessar uma fase de
mudança e ao longo da narrativa é colocada à prova a partir da interação com outras
personagens que se tornam essenciais para o seu desenvolvimento – a Mãe, o cavalo
chamado Falada, o Rapaz que a ajudava a guardar os gansos, a sua Aia e o Rei. Cada
uma delas representa um papel importante na condução da personagem da menina.

Os focos principais que identifiquei da sua análise são:

o Problema da sucessão de gerações


O problema da sucessão de gerações é abordado na análise do autor sendo
o ponto de partida para a compreensão da atitude da mãe da menina ao mandá-la
para longe para se casar com um príncipe, isto é, para “(…) estabelecer uma vida
sua, independente (…)” (Bettelheim, 2018, p. 214) e afastada do olhar da mãe.
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o Usurpação do lugar da heroína (menina) por uma embusteira (aia) –


Complexo de Édipo
Este é considerado o tema principal do conto, uma vez que adquire um
“significado edipiano” (Bettelheim, 2018, p. 215).
Neste conto em particular, a heroína dá corpo simbólico a duas facetas
opostas da revelação edipiana. “No primeiro estádio, a criança crê que o pai é um
usurpador que pretende injustamente assumir o lugar do filho na afeição da mãe,
que de faceto preferiria tê-lo, ao filho, como parceiro marital” (Bettelheim, 2018).
Esta história revela que a criança (a menina) está a sair do primeiro estádio,
entrando no estádio superior seguinte, quando esta adota uma visão mais correta
da verdadeira situação. Isto significa que à medida que se vai adquirindo mais
maturidade, a criança começa a perceber que “(…) é ela própria que deseja ser a
usurpadora, tomando o lugar do pai ou da mãe, conforme o sexo da mesma
criança” (Bettelheim, 2018, p. 216).
Neste sentido, a mensagem que esta história nos transmite acerca da
compreensão do complexo de Édipo, é que é “melhor aceitarmos o nosso lugar,
como uma criança, do que tentarmos tomar o do pai ou da mãe, por mais que o
desejemos fazer” (Bettelheim, 2018, p. 216). Ainda para mais, o autor refere que
esta história toca às crianças porque, “a um nível pré-consciente, elas
compreendem que o conto trata de problemas edipianos que são muito seus”
(Bettelheim, 2018).
Embora sendo um conto com menos protagonismo, Bettelheim considera
que existe de facto uma identificação com ela por parte das crianças, pela forma
como retrata o conceito edipiano e como é que este vai sendo construído ao longo
da narrativa.

o O problema da imaturidade
Este problema é retratado quer na personagem da mãe quer na personagem
da menina. No caso da primeira, a mãe mostra-se “(…) completamente
desamparada (…)” (Bettelheim, 2018, p. 216) para assegurar e acompanhar o
desenvolvimento da filha. Esta situação, reflete de forma psicanalítica o papel
preponderante da criança no que concerne ao seu próprio desenvolvimento – ela
terá de ultrapassar dificuldades e desafios por ela própria enquanto a mãe se
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encontra distante fisicamente não podendo interferir. Embora lhe tenha dado um
lenço com três gotas do seu próprio sangue, como forma de proteção e realização,
não foi suficiente, uma vez que o lenço acabou por cair ao rio.
Desta forma, o simbolismo do lenço mostra a inutilidade dos bens materiais que
os pais dão aos filhos, uma vez que não os vão afastar de problemas.

o Realização da maturidade sexual


A realização da maturidade sexual é marcada com o lenço com três gotas
de sangue. Esta atitude, à luz da psicanálise é de tal forma relevante para a
compreensão destas problemáticas que, numa das versões deste conto encontradas
na Lorena, intitula-se de “O Pano com as Três Gotas de Sangue”, colocando toda
a importância neste objetivo simbólico para o desenrolar da história.
Este pano realça que a mãe está preparada para aceitar que a filha se torne
sexualmente ativa. No entanto, rapidamente a menina perde o lenço e esta perda
revela a falta de maturidade, não estando ainda preparada para assumir tal
compromisso de independência (o que se vem a concretizar com o desenrolar da
história). A perda do lenço é descrita como uma “escorregadela freudiana”
(Bettelheim, 2018, p. 217), uma vez que determina o rumo que a personagem, que
em vez de se casar com o Príncipe e ter uma vida imaculada, encarna o papel de
“Guardadora de Patos” que é comandada por um Rapaz que a auxilia nessa tarefa.
A mensagem que Bettelheim revela “escondida” neste ponto é que “se nos
agarrarmos à nossa imaturidade, quando for a altura de sermos adultos isso traz-
nos uma tragédia a nós e aos que nos são caros” (Bettelheim, 2018, p. 218). A
personagem que revela, ainda que de forma implícita esta mensagem, é o cavalo
da menina que foi mandado matar pela Aia aquando da usurpação do lugar da
heroína da história. O cavalo faz crer que não devemos aceitar passivamente o que
nos acontece e que devemos agir perante os acontecimentos que nos rebaixam.
Isto porque o cavalo foi morto, sendo uma consequência fatal da passividade da
menina perante a situação.
Por outro lado, a história mostra-nos que “se nos mantivermos verdadeiros
para connosco e para os nossos valores, então, por mais desesperadas que as coisas
passam parecer em dado momento, o desfecho será sempre feliz” (Bettelheim,
2018, p. 218).
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o Lidar com o fracasso


Esta história revela que, perante as dificuldades e adversidades da vida, a
criança “não receia somente o fracasso em si, ainda que isso faz parte da sua
angústia” (…) mas sim, “(…) as desvantagens que o fracasso realisticamente traz
consigo” (Bettelheim, 2018, p. 219). Este medo revela-se na crença de que se a
criança fracassar será rejeitada e abandonada.
No entanto, o desfecho feliz da história vem desmitificar este receio
inconsciente que surge nesta fase da vida. Desta forma, a angústia da criança é
solucionada quando o bem prevalece sobre o mal, deixando de existir uma ameaça
iminente.
Caso o desfecho da narrativa fosse o inverso, isso seria a concretização do
imaginário da criança: o abandono, a falta de proteção dos outros e a aceitação do
mal. No entanto, fazendo parte do inconsciente da criança, a mensagem presente
na história é de que “(…) as intenções malévolas constituem a destruição da
própria pessoa” (Bettelheim, 2018, p. 220). Isto porque, simbolicamente, a morte
da Aia, foi ela própria que o ditou com a sentença que atribuiu à heroína, dando
vida ao ditado “o feitiço vira-se contra o feiticeiro”. Isto revela que os “poderes
benevolentes ou a sorte” (p. 220), significam libertação e, neste caso, a
concretização do bem.

o Concretização da independência da menina


No seguimento do ponto anterior, a personagem principal desenvolve a sua
própria personalidade através da independência e ultrapassagem das adversidades.
“A heroína transfere primeiro a sua dependência da mãe para a aia e faz o que lhe
dizem para fazer” (p. 221), deixando a sua própria vontade de lado. A atitude de
passividade da menina reflete a incapacidade que a criança tem em expressar a
sua própria vontade para resolver problemas. Outro acontecimento relevante neste
processo, é o do rapaz que a ajuda a guardar os patos, que quis apoderar-se do seu
cabelo de ouro (mais uma vez, a questão da usurpação) em que a atitude de defesa
da menina face a esta “violação” marca o início da sua independência, quando
finalmente se revolta contra o que lhe acontece, confessando ao Rei toda a verdade
sobre a sua história.
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Neste sentido, esta atitude mostra, finalmente, o alcance da autonomia e


da autorrealização da personagem principal, simplesmente porque falou a
verdade.

Estes pontos são essenciais para a compreensão do conto “A Guardadora de


Gansos” sob uma perspetiva psicanalítica. Bruno Bettelheim, influenciado por Freud,
desconstrói os contos de fadas e atribui-lhes um simbolismo importante que, de certa
forma, mostra a importância inequívoca destas narrativas como auxiliares no
desenvolvimento emocional das crianças.

Atingir a autonomia é mais complexo do que parece e este capítulo dedicado ao


conto em análise revela-nos essa complexidade. É necessário passarmos por várias fases,
umas mais desafiantes que outras, para a podermos atingir.

Referências

Bettelheim, B. (2018). A Guardadora de Gansos - realização da autonomia . Em B.


Bettelheim, A Psicanálise dos Contos de Fadas (C. H. Silva, Trad., 5ª ed., pp.
212-222). Lisboa: Bertrand Editora.

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