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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

Trabalho final realizado no âmbito da unidade curricular de Debates Teóricos

Contemporâneos I para o Mestrado de Sociologia da Faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra.

Docentes:

Professor Doutor António Casimiro Ferreira

Professor Doutor João Arriscado Nunes

Professor Doutor Raul Khumar

Discente:

Mafalda da Cruz Machado – 2015242036

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

Considerações Iniciais

Entende-se por Sociedade Complexa uma realidade em que as relações


sociais terão alcançado tal densidade, que escapam a todo o controlo e a toda a
representação sistemática (Mongardini, 2007). Podemos afirmar que vivemos em
sociedades complexas. Somos vítimas da nossa própria condição social e o meio em
que vivemos e os acessos (facilitados) a qualquer tipo de informação fazem de nós
seres dependentes da sociedade em que vivemos.

Os interstícios da organização sistemática da sociedade ampliaram-se de tal


forma, que é extremamente difícil imprimir uma direção da vida coletiva ou atribuir-
lhe um sentido definido (Mongardini, 2007). Não é possível caraterizar ou definir as
sociedades contemporâneas. Estas são de tal modo heterogéneas e diversificadas,
que para um investigador social se torna impossível definir ou caraterizar na sua
totalidade e objetividade o que se entende por “sociedade complexa”.

O que me proponho fazer é refletir sobre o modo como as sociedades


contemporâneas têm vindo a evoluir e quais as consequências, maioritariamente
negativas, provenientes dessa mesma evolução para os indivíduos enquanto seres
sociais.

Palavras-chave: medo; ressentimento; sociedades complexas; incerteza.

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

As Sociedades Complexas – o Medo

1. A ausência de cultura

A multiplicidade dos processos sociais, a sua aceleração e diferenciação dos


centros de poder social não permitem uma visão unitária nem a possibilidade de
definir uma direção política de governo (Mongardini, 2007).

Esta época da modernidade é abordada por vários autores, que lhe atribuem
diferentes caraterizações como é o caso de Giddens, que se refere a ela como
tardomoderna ou de radicalização da modernidade, no caso de Ulrich Beck, que a
apelida de modernidade reflexiva, e Zygmunt Bauman que fala em pós-modernidade.
Esta, que se carateriza como uma ausência de cultura, ou seja, como uma
encruzilhada de culturas diversas, cada uma com símbolos e valores próprios, que
busca inutilmente um denominador comum próprio (Mongardini, 2007).

Mongardini, ao citar estes autores e as suas respetivas caraterizações das


sociedades modernas, pretende dar a conhecer as diferentes interpretações que
estas podem ter para cada investigador social. No entanto, estas abordagens têm
algo em comum – todas refletem a irracionalidade que esta época representa e,
também, o vazio que ela transporta consigo. Como Bauman refere, estamos perante
uma ausência de cultura, que se traduz num cruzamento infindável de culturas e
todas elas impossíveis de caraterizar ou de descrever como sendo únicas e
portadoras de sentido.

No entanto, a impossibilidade de o indivíduo contemporâneo encontrar as


suas referências numa determinada cultura aumenta muito a pressão da realidade,
impede-o de parecer um ser individual e suscita medos que a estrutura homogénea
da cultura orientada segundo certos valores conseguiu exorcizar em grande medida
(Mongardini, 2007). Por outro lado, essa perda de cultura e a necessidade de
enfrentar os vários medos aumentam a concentração de violência nas instituições,
que excede a defesa legal e prejudica a dignidade do ser humano enquanto portador
de direitos numa sociedade.

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

Questões como a violência e a repressão praticadas pelas instituições de


Governo são sensíveis e difíceis de abordar, na ótica de quem procura uma
justificação clara e coesa sobre as sociedades complexas. Falamos de instituições
“legais” que exercem modos de regulação repressivos e desumanos, provocando o
medo e calando as vozes mais “pequenas”, como é o caso do povo, para se fazer
sobressair numa tentativa (falhada) de manter a ordem social nas sociedades
contemporâneas. Neste ponto, é impossível não falar daquilo a que eu chamo de
politização do medo, isto é, quando se fala de medo nas sociedades complexas, fala-
se de algo ou alguém que exerce este sentimento noutro alguém. Falamos do Estado,
as instituições governamentais, de entidades que têm legitimidade para exercer
poder sobre os outros – neste caso, os cidadãos – indefesos e sem qualquer margem
de saída.

No sentido de fundamentar a minha tese, recorro a Horkheimer, que se refere


às causas concretas da irritabilidade do homem moderno – “deve ser procurado na
enorme e crescente pressão que nos força a estar sempre sob a guarda de outrem. O
medo presente em todas estas situações é um medo justificado e realista, inspirado em
males reais (…) É possível que esse medo não tenha atormentado os homens em todos
os momentos. Neste caso, não precisaremos de uma explicação psicológica do papel
que representa a alma no homem moderno?” (Mongardini, 2007).

Deixamo-nos consumir por esta falta de cultura, pela existência de tantas


outras, que é impossível distinguir qual a nossa. Estamos a perder gradualmente a
nossa identidade e, ao mesmo tempo, a ser “usados” pelas instituições que dissipam
o medo e não nos deixam ser livres.

2. Legitimação do medo

Se a racionalidade supõe simplicidade para resolver a distância que separa a


realidade das nossas capacidades cognitivas, a complexidade constitui uma
situação de alarme antecipado que reproduz uma situação primitiva do homem.
A sociedade é complexa porque já não existe uma sociedade, e “complexo”
significa “não controlável”, aquilo que já não se adapta à nossa representação de

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

“ordem social”, aquilo que nos dá sentido “da razão mínima e da destruição
máxima” e que constitui um grande multiplicador dos medos derivadas do
excesso de domínio, reapropriação e representação da realidade (Mongardini,
2007).

É precisamente neste ponto que irei abordar a importância de dois fatores


para a legitimação do medo – os meios de comunicação e a ciência. Mongardini
refere-se aos meios de comunicação como tendo a capacidade redutora e
simplificadora do social, do qual discordo. Isto porque os meios de comunicação
social têm, sim, a capacidade de transformar e deformar a realidade em que
vivemos. Têm poder e legitimidade de tal modo, que nos fazem crer em falsos
moralismos e são, sem dúvida, um dos principais agentes de disseminação do
medo nas sociedades contemporâneas. No caso da ciência, o autor refere que se
espera que esta domine a Natureza. Entendo por esta definição que qualquer
crença em algo não palpável ou sem justificação aparente por parte da ciência
seja reduzida a algo inconcebível. Não concordo pelo simples facto de que por
mais que a ciência trabalhe em prol de “tudo ter uma justificação”, há valores e
crenças que não se podem medir nem calcular no sentido de as tornar objetivas.
No entanto, a ciência atua como um dos principais meios de legitimação do medo,
no sentido em que lhe é atribuída essa mesma legitimidade que permite a
evolução desmedida da realidade em que vivemos. Exemplo disso é a série
televisiva da Netflix – Black Mirror – que retrata aquilo que poderá vir a ser a
sociedade num futuro próximo. O medo e a incerteza andam de “mãos dadas”
com a evolução científica e tecnológica que, em cada episódio, ganham novas
dimensões e significados. Segundo Mongardini, “a ciência, que deveria proteger-
nos do medo, dá-nos medo” (Mongardini, 2007, p. 83).

O indivíduo contemporâneo desenvolve um programa de vida mínimo e não


reflexivo, que oscila entre o egoísmo individualista da razão calculadora e da
imersão nos fenómenos de massa. Protegemo-nos dos grandes problemas da
humanidade com indiferença ou com um comportamento fatalista ou primitivo.
Isto faz com que os detentores de poder ajam consoante os seus próprios
interesses e mentiras, que nós, enquanto indivíduos, permitimos que assim seja.

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

Atendendo à objetivação daquilo que as estatísticas revelam o que é o medo


nas sociedades complexas atuais, entende-se a criminalidade, a imigração, a
delinquência comum e as drogas. Mas não esquecendo que o terrorismo e o
fundamentalismo são problemas sociais que colocam em crise o processo de
racionalização da modernidade tardia.

3. A incerteza como reflexão do medo

Quando se perdem as certezas e os significados e faltam as verdades


universalmente fundamentadas e aceites, a sociedade baseia a sua existência na
mudança. Os medos que nos fazem retrair e perder a nossa liberdade não
mudaram; apenas se vivem de outro modo. Modo esse, capaz de nos levar por
caminhos desconhecidos.

Muitas são as expressões associadas ao medo e à maneira como devemos


reagir quando o enfrentamos – “Não chores, não tenhas medo, tens que ser um
homem”. Um homem “de verdade” não deveria manifestar medo ou insegurança.
Isto porque chorar e ser-se inseguro, é “coisa de mulheres”. No entanto, nos dias
que correm, Mongardini defende que esse paradigma se tem vindo a alterar.
Hoje, o homem tem vindo a perder certeza e caráter, por isso, consegue descobrir
quais são os seus temores e afrontações. Descobre a sua feminidade como a
mulher descobre a sua masculinidade. Serve esta teoria para defender a
evolução da mentalidade humana como sendo única. Não havendo divisões de
género que ditem quem te de ser o quê.

Mas como é que esta teoria se relaciona com o medo? Pela maneira como este
é enfrentado.

As decisões políticas onde a justificação de motivos coloca a par e passo a


urgência e excecionalidade das respostas a dar à crise, com a aceitação dos
indivíduos tendo por base a crença partilhada da responsabilidade coletiva,
envolve a experiência subjetiva do ressentimento e do medo (Ferreira, 2016, p.
258). A identificação da pertinência das emoções na vida social e na teoria
sociológica assenta no seu entendimento enquanto efeito e causa social e

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

enquanto elemento explicativo e significativo para a constituição de relações,


instituições e processos sociais (Barbalet, 2001, p. 22-23 apud Ferreira, 2016, p.
259).

A sociologia das emoções reconhece que o comportamento e as interações


humanas são constrangidos pela posição ocupada pelos indivíduos nas
estruturas sociais orientadas pela cultura e pelo sistema simbólico-cultural.

Certamente que a sociologia as emoções é capaz de explicar o porquê de


estarmos cada vez mais a ser consumidos por esta ausência ou excesso de
cultura, como que queiram chamar. Capaz ainda de explicar que as emoções de
cada um possam assumir um caráter transversal na sociedade, afetando de
forma diferenciada os vários grupos sociais, envolvendo o ressentimento, a
incerteza e o medo como sentimentos presentes e constantes entre os grupos
sociais mais vulneráveis. Nesta perspetiva, de António Ferreira, não se trata de
avaliar como cada género reage ou deve enfrentar o medo, mas sim como o medo
e a incerteza se tornam presentes nas camadas sociais mais desfavorecidas.

Considerações Finais

Proponho-me deixar em aberto a questão do medo e do ressentimento nas


sociedades complexas. Não há investigador social que consiga definir na sua totalidade o
que são este tipo de sociedades nem como o medo a incerteza se apoderam delas. Há, de
facto, inúmeras teorias – a política como dissipação do medo; o terrorismo; fascismo;
populismo, entre tantas outras.

Há teorias sociológicas que nos remetem para a existência de uma Sociedade


de Risco. No entanto, terá existido alguma sociedade que não o fosse? A diferença é
que a nossa enfatiza o reflexo do medo e da incerteza. O risco está associado ao
temor. Nos dias de hoje, somos nós, seres sociais dotados de sentido, que colocamos
a sociedade em risco. Criamos os nossos próprios riscos. Criamos a sociedade em
que vivemos.

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

Na perspetiva de Beck, a sociedade de risco é uma época social em que a


solidariedade nasce do medo e se converte em força política. É possível afirmar que
o maior risco que corremos provém da política e das suas vertentes.

Para rematar, quero referir que o importante não são os riscos que corremos,
mas sim, o medo que estes produzem e como se difundem.

Bibliografia

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O Medo e a Incerteza nas Sociedades Complexas

Ferreira, A. C. (2016). Legitimidade, ressentimento e medo. Em A. C. Ferreira, Política e


Sociedade - Teoria social em tempo de austeridade (pp. 247-275). Porto: Vida
Económica.

Mongardini, C. (2007). Carlos Monjardino - Miedo y sociedad. Em C. Mongardini, Carlo


Monjardino Miedo y sociedad (pp. 79-115). Madrid: Alianza editorial.

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