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A adolescência que entra em conflito com a lei: a busca por um dispositivo

analítico que escute o silenciamento da delinquência


Pâmela Esteves
Vivemos tempos sombrios, afirmava Hannah Arendt nos anos 1940, quando se
referiu às crises da modernidade: a crise da autoridade, a crise da política e a crise da
educação. Talvez, a filósofa alemã não estivesse se referindo somente às origens e
consequências do totalitarismo, mas também ao processo de desestruturação do mundo
moderno que resultou no fortalecimento das intolerâncias (Honneth, 2001) e no uso da
violência como forma de poder e destruição do outro (Foucault, 2005).

O contexto da referência arendtiana remonta o pós-guerra e as denúncias de


graves violações jamais imaginadas até aqueles anos. Hoje, duas décadas completadas de
um novo século, o diagnóstico de Arendt continua bastante satisfatório. Ainda vivemos
tempos sombrios, marcados pela mercantilização dos desejos, por graves cenários de
vulnerabilidade social; ideologias extremistas e negacionistas quanto aos avanços
científicos; ameaças geopolíticas globais; crimes ambientais; endurecimento de discursos
de ódio que fundamentam uma cultura de medo, insegurança e ansiedade.

O extremo da violência dos regimes totalitaristas que levaram Arendt a afirmar


uma sociedade sombria ainda persiste com outras roupagens. O que seriam essas outras
roupagens? De um ponto de vista sociológico essas outras roupagens podem ser pensadas
como o mal-estar contemporâneo que experimenta novas formas de dominação não mais
exclusivas de estruturas de poder autoritárias, mas também de formas microfísicas de
poder (Foucault), fundamentadas em construções discursivas que se alimentam da
mercantilização da vida. Essas violências extremas não mais são diretas e localizadas em
figuras específicas. Trata-se de discursos destruidores de simbologias culturais e
societárias fundamentais que dificultam o fortalecimento das subjetividades
contemporâneas. O resultado de tudo isso tende a configurar uma miséria simbólica
localizada na ausência de referenciais identificatórios que garantam subjetividades
fortalecidas.

Nossos atuais tempos sombrios são vazios, esmaecidos, acelerados, líquidos e


solitários. Nossas simbologias são descontruídas antes mesmo de se tornarem referencias.
Esse social adoecido tem um papel estruturante nas diversas formas de violências
psíquicas presentes na clínica contemporânea (Birman, 2010). Os sofrimentos vividos
que chegam como sintomas nos mostram vidas psíquicas incapazes de representar suas
experiências através dos mecanismos que possuem. No fracasso das defesas psíquicas os
sujeitos contemporâneos cada vez mais convocam o corpo, seja de modo psicossomático
e/ou nas diversas formas de acting out e passagem ao ato.

No sujeito adolescente, objeto de estudo desse artigo, a linguagem do ato e o


registro no corpo são recorrentes. O corpo se transforma em um espaço de testemunho e
tatuagem das diversas angústias vividas, dos conflitos psíquicos irrepresentáveis que
coadunam o trauma da diferença sexual, da morte e das perdas objetais. “O adolescente
é um sujeito em estado-limite contra o conflito obrigatório da perda de objeto”. (Houssir,
2018).

É com o objetivo de avançar na compreensão das angústias inerentes à travessia


do adolescer que esse artigo explora o tema da delinquência na adolescência. Busca-se,
durante o percurso argumentativo, refletir sobre a delinquência enquanto uma conduta
extrema de violação da lei e nesse sentido, esse texto é uma primeira tentativa de
compreender a realidade vivenciada pelos adolescentes que entram em conflito com a lei
e cumprem medidas socioeducativas no Centro de Socioeducação Ilha do Governador,
unidade que pertence ao Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio
de Janeiro – DEGASE/RJ.

O interesse em investigar quem são esses adolescentes, suas histórias de vida e o


processo que os levou a uma medida socioeducativa pautada na restrição provisória de
liberdade, é, aqui, apresentado, através da combinação de três olhares: (1) um olhar
psicanalítico que se insere na perspectiva de pensar um dispositivo analítico capaz escutar
o ato de transgressão da lei dentro do contexto de constituição subjetiva desse sujeito
adolescente; (2) um olhar sociológico que se situa na investigação das fragilidades
contemporâneas diretamente relacionadas aos tempos sombrios que vivenciamos,
assinalados, sobretudo, na miséria social e simbólica que marcam nossos dias; (3) um
olhar educacional que aposta no processo socioeducativo como caminho promissor e
transformador na construção de laços sociais efetivos e subjetividades fortalecidas.

Para dar conta dos objetivos listados o texto está dividido em duas partes
encadeadas. A primeira parte compreende uma reflexão sociológica sobre o
contemporâneo sombrio que estamos experimentando e, apresenta ainda, as fragilidades
subjetivas dos sujeitos adolescentes na tentativa de dar conta do inescapável traumático
da travessia do adolescer. Essa primeira parte do texto tem o objetivo de compreender o
processo de travessia do sujeito adolescente como inerentemente traumático, e que no
atual contexto de simbolismos sociais precários e referências discursivas de
mercantilização de todas as formas de desejar, temos um cenário de miséria simbólica
que dificulta ainda mais a elaboração de respostas subjetivas capazes de dar conta do
traumático que significa adolescer. A segunda parte analisa alguns apontamentos sobre
um grupo de sujeitos adolescentes que entram em conflito com a lei, transgredindo-a em
atos de delinquência que resultam na perda provisória da liberdade e no cumprimento de
medidas socioeducativas. Ainda nesta segunda parte o tema da delinquência é investigado
a luz do olhar psicanalítico apontando a necessidade de elaboração de um dispositivo de
escuta que rompa com os marcadores sociais de exclusão e que seja capaz de possibilitar
a construção de laços sociais e fortalecimentos subjetivos.

1- A travessia do adolescer na contemporaneidade sombria, fragilizada e esmaecida

Como fortalecer subjetividades fragilizadas em uma sociedade que mercantilizou


todas as esferas da vida, desde as relações de afeto até a criação de uma imensa indústria
cultural?

O “homem sem vínculos” de Bauman e o “esmaecimento dos afetos” de Jameson


explicitam com expressividade as subjetividades fragilizadas de nossa época e também
destacam as principais características sociais do mal-estar que vivenciamos. O tempo de
duração de um produto está na satisfação que esse nos oferece, sendo logo descartado e
substituído por outro. É essa mesma lógica que habita os relacionamentos
contemporâneos, nós mercantilizamos os nossos sentimentos e nossos desejos. Viver sem
vínculos é exatamente isso, é descartar a pessoa assim que ela não mais oferece satisfação
e substituí-la o mais rápido possível. Quanto mais efêmero for um relacionamento menor
serão as chances de sofrer, menor será o medo e a incerteza, por outro lado, maior será o
mal-estar.

Esmaecer os afetos tem o mesmo sentido. Trata-se de desbotar o sentimento, tirar


sua cor, sua textura, seu significado e transformá-lo em uma mercadoria a ser vendida na
indústria cultural de bens simbólicos. Como uma mercadoria o afeto pode ser descartado
assim que tiver totalmente esmaecido, ou seja, assim que perder seu valor para outro tipo
de afeto-mercadoria esteticamente mais inovador. A cada compra de um afeto novo o
sujeito se diverte e encobre a angústia através do fetiche da mercadoria. O problema se
dá no momento da reflexão, quando os inúmeros afetos comprados e descartados se
tornam esmaecidos e o sujeito se vê subitamente surpreendido pelo sentimento de solidão,
nesse momento a angústia transborda para o corpo denunciando uma falta a ser.

Aprendemos com Freud que a energia requerida para o trabalho da civilização é


basicamente Eros, portanto, extraída da sexualidade. A renúncia da energia pulsional
destrutiva (selvagem), renúncia essa que é necessária para que haja civilização, tende a
aumentar a infelicidade através de uma intensificação do sentimento de culpa, podendo
levá-lo a atingir proporções difíceis de serem toleradas pelo indivíduo. Dessa forma, a
questão que fica é como os seres humanos administram/canalizam o sofrimento derivado
da privação das pulsões?

Segundo Freud, nós seres humanos descobrimos o amor sexual (formação de


famílias/culturas/civilizações) e o amor inibido (formação de amizades) como fontes de
prazeres intensos. Essa descoberta nos leva a perseguir e desejar esse amor, a buscar
incessantemente a completude, o fazer UM. Logo, o amor que nos leva a felicidade é um
projeto imposto pelo princípio do prazer, um projeto inseguro que nos deixa vulneráveis
e que pode se transformar em outras fontes de sofrimento.

Talvez, esse paradoxo tenha contribuído para o desgaste do moderno projeto


iluminista e como resultado desse processo nosso atual mundo pós-moderno se apresenta
permeado de subjetividades fragilizadas. Do ponto de vista dos estudos do campo
psicanalítico uma indagação interessante que pode ser complementada pelos estudos da
Sociologia é se o nosso mal-estar atual carrega alguma continuidade com o mal-estar
apresentado de Freud? Nesse artigo entendemos que sim e não. Sim, se pensarmos que o
mal-estar de Freud é estrutural, está na origem/necessidade do projeto civilizacional. Não
porque, o mal-estar atual é um sintoma jamais vivenciado pelas comunidades culturais
anteriores ao sistema capitalista de produção. Se na perspectiva subjetiva do sujeito
freudiano a liberdade pulsional fundamentada no princípio de prazer foi negada e
substituída pela administração do prazer em nome da segurança inaugurada pelo princípio
da realidade, nos dias de hoje, a liberdade, a partir de uma perspectiva da subjetividade
que compõem nossa sociedade, “o indivíduo já ganhou toda liberdade com que poderia
sonhar e que seria razoável esperar; as instituições sociais estão mais que dispostas a
deixar à iniciativa individual o cuidado com as definições e identidades, e os princípios
universais contra os quais se rebelar estão em falta”. (Bauman, 2006, p.64)
Contudo, quando centramos nossos esforços investigativos no sujeito adolescente,
os sintomas de uma subjetividade fragilizada são ainda mais expressivos. Há uma
preocupação estrutural com o infantil nos estudos psicanalíticos e isso além de
fundamental é compreensível a partir das premissas nas quais a Psicanálise se fundamenta
epistemologicamente e mestapsicilogicamente. Todavia, para além dos estudos sobre o
sujeito infantil é preciso também investigar como o sujeito adolescente passa pela
travessia do adolescer nessa sociedade contemporânea onde o Outro é desbussolado
(Reis, 2018), perdido, desnorteado, descentrado (Hall, 1999), atravessado por afetos
esmaecidos (Jameson, 2004), tem dificuldade em acreditar em relações duradouras e que
por isso aposta na efemeridade do desejo. Esse sujeito adolescente retira seus significantes
que estruturam sua cadeia de subjetivação desse Outro que é tão quanto subjetivamente
fragilizado pelo contexto social e barrado na falta a ser de sua dimensão desejante.

No nosso atual mundo contemporâneo a adolescência muitas vezes rouba a cena


por conta da emergência de quadros patológicos de intensa gravidade social. Assistimos
atônitos muitos casos permeados de violências psíquicas que se inscrevem no corpo de
um modo tão doloroso que nos falta representação simbólica para significar. Cardoso
(2006), assinala que a adolescência contemporânea é marcada por uma experiência de
ruptura e transformação que não cessa de nos interrogar como analistas e pesquisadores.
O que nos questiona o tempo todo se inscreve na complexidade inerente ao processo de
adolescer ao qual incidem exigências de rupturas que são vivenciadas como perdas, para
as quais, em diversos casos a dor psíquica emerge diante da fragilidade narcísica e da
ausência de representações simbólicas sólidas que permitam a elaboração das perdas.

Mesmo compreendendo a adolescência como um momento de potenciais


descobertas e construções criativas, há, ainda, o outro lado, da destrutividade, que se
manifesta na insistência ao excesso e na abertura demasiada ao risco, como atos de
respostas ao pulsional em ebulição diante do desamparo psíquico constitutivo do
adolescer. Tudo isso exige muito esforço do aparelho psíquico, e em muitas situações o
transbordamento pulsional pode se configurar numa resposta subjetiva impeditiva à
ligação, à capacidade de simbolização e representação das experiências. É como nos
ensinou Benjamim (1993) as experiências quando não representadas em narrativas se
tornam adereços empobrecidos, carentes de simbolização psíquica e social.

Nossa adolescência contemporânea também responde aos nossos cenários de


liquidez e esmaecimento de afetos com um certo empobrecimento criativo diante das
demandas colocadas. Costa (2006), ressalta que os jovens do mundo globalizado não
estão desorientados em significar suas experiências subjetivas, mas que o processo é ainda
mais complexo e obtuso, uma vez que ser jovem se traduz em uma gramática moral do
espetáculo marcada pela necessidade da exibição ao risco, ao excesso e à estética corporal
permanentemente jovial que aniquilam projetos criativos e narrativas singulares. Dessa
forma, a complexidade não está em não saber para onde ir, mas na construção de
caminhos alternativos à superficialidade que demarca uma mercantilização da vida como
um destino pulsional.

Soma-se a isso o enfraquecimento da autoridade como uma marca do adolescer


contemporâneo que ainda em 1960 foi salientado por Hannah Arendt. Corroborando as
descobertas de Arendt, Costa (2006), faz uma relação entre a intensificação dos
fenômenos de violência na juventude e o enfraquecimento da autoridade. Para o autor
quando determinadas referenciais axiológicas são enfraquecidas o resultado é o
desrespeito e a indiferença diante do outro.

Diante da impossibilidade e do risco de vulnerabilidade que caracteriza amar o


próximo, nossa civilização transformou a necessidade de Eros na categoria política do
respeito. Contudo, “para que haja respeito é preciso que haja idealização, ou no mínimo
considerações pelos predicados morais e sociais daqueles que nos são oferecidos como
modelos de vida” (Costa, 2006, p.21). Logo, o enfraquecimento da autoridade na
contemporaneidade está relacionado a perda da exemplariedade, das referências morais e
institucionais que viabilizam a prática da alteridade na estruturação dos laços sociais.
Nossos adultos, nossos professores, nossos políticos e nossas instituições protetoras são
responsáveis em transmitir os valores que circunscrevem o respeito e a tolerância, se não
o fazem, as crianças e os adolescentes são deixados à deriva do ponto de vista das
identificações.

O que resta? Restam respostas subjetivas marcadas pelo risco, desemparo,


desrespeitosas, violentas, desesperadas e intrinsicamente dolorosas. Nas palavras de
Costa (2006, p.22).

O futuro dos adolescentes não pode ser entregue a eles próprios. Eles
atravessam um período na vida no qual devem ser assistidos pelos mais
velhos, em especial, por aqueles que o puseram no mundo. Depositar
nas mãos de garotos e garotas o fardo de decidir quais os rumos morais
ou sociais devem tomar, é um sintoma da imobilidade e do sentimento
de superfluidade correntes nos adultos de hoje.
Quadros de referência que afirmem o respeito como um valor e como uma atitude
são fundamentais para amenizar o desamparo constitutivo e traumático que assinalam a
travessia do adolescer. O que temos no nosso mundo contemporâneo é o oposto disso,
fundamentalmente, quando nos voltamos para análise das instituições protetoras como a
família e escola. Diante dessas circunstâncias contemporâneas de transformações
axiológicas, institucionais e autoridades precárias, nossas crianças e adolescentes estão
deixadas à deriva. O que significa ser deixado à deriva? Nesse contexto à deriva faz
metáfora para o desamparo que pode ser representado pelo sentimento de abandono
(Birman, 2006).

Birman (2006) nos adverte para as consequências psíquicas e sociais para o sujeito
adolescente que retira seus significantes desses Outros tão igualmente fragilizados. Tais
consequências nos direcionam, enquanto sociedade e subjetividades, para a precariedade
do laço social, fragilidade das subjetividades e infantilização e prolongamento do
adolescer.

Nesse contexto, os jovens ficam inapelavelmente entregues a cultura da


televisão, [dos jogos e das redes sociais], que acabam por ter muito mais
efeito sobre eles do que os discursos escolar e parental. A exposição
precoce à sexualidade e à violência se incrementa e se dissemina,
provocando, em contrapartida, modalidades novas de sexuação e o
engendramento da agressividade. Estas seriam, com efeito, os únicos
meios que os jovens encontram para suprir a carência de cuidados e a
solidão de suas existências. (Birman, 2006, p.38)
Todavia, ainda que, na maioria dos casos, os seios familiares e escolares não mais
proporcionem uma rede segura de proteção e amparo às angústias do adolescer, assistimos
nas primeiras décadas do século XX, um processo de alteração das temporalidades
expresso na precocidade da infância e no prolongamento da adolescência. Além dos
impeditivos socioeconômicos, a clínica da adolescência contemporânea nos demonstra
amplos casos de fragilidades egóicas, narcisismos esburacados por ligações violentas,
uma intensa recusa à alteridade, ampla variedade de situações de inanição, além das
manifestações patológicas dos estados-limites e das passagens ao ato.

Vivemos um entrelaçamento desse caótico cenário social (o estatuto de ser


adolescente é tributário do olhar social) e psíquico, onde “identidade e identificações são
postas em jogo novamente, com o jovem sujeito procurando manter sua identidade e, ao
mesmo tempo, exercer um remanejamento identificatório. O trabalho psíquico necessário
implica uma importante pressão narcísica” (Emmanuelli, 2006, p. 24). Essa pressão
narcísica que o adolescente vivencia é em grande parte depositária das transformações
corporais da puberdade que colocam em suspenso os limites do corpo orgânico e
produzem um certo estranhamento diante das modificações sensoriais, sexuais e
biológicas que são impostas ao psiquismo. Tudo isso aciona no sujeito adolescente um
sentimento de indeterminação acerca da continuidade de si mesmo. É justamente essa
indeterminação que exige do psiquismo um árduo e por vezes traumático trabalho de
integração narcísica, buscando um eu ideal que proporcione um reajustamento da imagem
constituída até então ao corpo modificado.

Após contextualizar e refletir sobre alguns elementos que singularizam a


adolescência no contemporâneo, nosso percurso segue investigando de modo mais
profundo a violência psíquica constitutiva da travessia do adolescer. Adolescer, como
vimos, é um processo que exige do sujeito fazer a transição da infância para vida adulta.
Aqui, entendemos essa transição como uma “situação fronteiriça”, o que significa refletir
a adolescência momento de contorno, ou seja, como um espaço precariamente dividido
entre uma dimensão interna e outra dimensão externa. Cada um desses espaços é
demarcado por limites pouco precisos, o que os torna fronteiras ambivalentes,
circunscritas à complexa relação entre o corpo e o psiquismo e as relações entre o eu e o
outro.

Dessa forma, a violência psíquica que acomete o adolescer se apresenta como uma
agressão tanto narcísica quanto alteritária, na medida em que o sujeito adolescente se vê
diante de representações infantis insuficientes para satisfazer e simbolizar as irrupções
pulsionais eróticas da puberdade. “O adolescente, quando ultrapassado pela intensidade
das suas próprias sensações, corre o risco de perder a capacidade de se distinguir do outro,
de diferenciar o dentro e o fora. Isso se estende ao registro interno, nível das relações
entre as diferentes instâncias psíquicas e das fronteiras egóicas” (Cardoso, 2010).

O adolescente assiste às transformações impostas ao seu corpo e ao seu psiquismo


como um estrangeiro que não sabe para onde está indo e o que irá encontrar. Suas
representações psíquicas ainda estão presas à infância, à proteção familiar, à dependência
de que o outro resolva os problemas e o proteja de tudo de ruim que possa acontecer. Por
isso a dimensão traumática é inerente à travessia do adolescer que inaugura um S, entre
o esforço de preservar suas precárias bases narcísicas diante do pulsional latente, o desejo
de ser reconhecido pelo outro, e ainda, a necessidade de conhecer o desejo do outro para
então ser aceito, e deixar de ser estrangeiro.

Todo esse trabalho exige grande esforço do psiquismo para equilibrar as forças
pulsionais irruptivas e as defesas egóicas que o sujeito dispõem. O psiquismo é imerso
em um conflito que irá consolidar a subjetividade. Esse conflito envolve, além do caráter
fronteiriço inerente à travessia do adolescer, a elaboração das escolhas e renúncias que
apontam para perdas e lutos derivados destas, a impotente passividade diante de todo o
processo e a limitação dos mecanismos de defesa disponíveis, que em muitos casos
direcionam respostas subjetivas marcadas pela violência psíquica.

A situação fronteiriça na qual se encontra o sujeito adolescente consiste em uma


experiência ambivalente de proteger a constituição narcísica iniciada na infância, e ao
mesmo tempo, ser invadido pelas demandas alteritárias de constituição de laços sociais
que possibilitem novas configurações objetais desejantes. Logo, a fronteira é um lugar de
proteção e aventura; de dependência e autonomia; de desamparo e criação; dos frágeis
limites entre o dentro (psiquismo e o ego) e o fora (corpo e a alteridade).

O que está em jogo para o sujeito adolescente é como ultrapassar a fronteira e


chegar à vida adulta. Não há respostas prontas a serem seguidas, pois a subjetividade é
um processo de construção singular que envolve o psíquico e o social. Um dos elementos
constitutivamente traumático que circunscreve essa fronteira é a angústia de separação
que é compreendida como ameaça de perda dos objetos de amor que estruturam o
psiquismo desse sujeito. Para além do medo de perder o afeto dos pais levando a
desintegração do triangulo edípico, há, ainda, a ameaça de perda das memórias infantis,
dos brinquedos, dos jogos, da tia da escola, dos passeios lúdicos, da potencialidade
imaginativa e de tudo aquilo que foi constitutivo até então, fundamentalmente do corpo
não hormonizado pelas pulsões pubertárias.

Porém, mesmo que comporte uma face potencialmente traumática, a


separação tem caráter estruturante. É a singularidade da história
psíquica de cada sujeito e de suas vicissitudes que revelará, a posteriori,
as aberturas e impasses desse processo de elaboração de perdas e
rupturas, inevitáveis na adolescência. Nelas confluem aspectos
narcísicos e objetais, na confluência também do mesmo e do diferente
e, de modo complementar, do íntimo (familiar) e do estrangeiro. No
interior do sujeito adolescente há intensa confusão entre separação e
perda. E isso tampouco pode ser desvinculado da reviravolta que a
puberdade inaugura, no plano da sexualidade, nesse corpo já desde
sempre ocupado e desviado pela emergência da pulsão, motor da vida
subjetiva. (Cardoso, 2014, p.65)
O que o adolescente não consegue simbolizar devido suas insuficientes
representações é o caráter estruturante da separação. Na verdade, o que ocorre é o oposto,
o sujeito adolescente “revive a retomada violenta da angústia arcaica de separação”
(Cardoso, 2014, p. 66). A experiência inicial de desamparo originário é retomada e com
ela ocorre o retorno do recalcado edípico e sua ressignificação. O adolescente revive a
ausência da pessoa amada como ameaça de perda de objeto no processo de separação das
múltiplas rupturas que incidem sobre si.

Diante de todas as fragilidades inerentes à travessia do adolescer que destacamos


até aqui, nos interessa refletir sobre como os adolescentes nos tempos sombrios
contemporâneos respondem a esses conflitos, que exigem tantos remanejamentos do
psiquismo e que correspondem à experiências constitutivamente traumáticas produtoras
de violências psíquicas? As condutas de risco, caracterizadas pelo ato de se colocar em
algum tipo de perigo, estão cada vez mais recorrente entre os adolescentes. Isso nos
sinaliza que o risco pode estar se tornando uma resposta subjetiva tanto ao traumático
inerente quanto ao contemporâneo sombrio que vivemos.

2- A adolescência que entra em conflito com a lei: a busca por um dispositivo


analítico que escute a delinquência

Dentre as diversas condutas de risco acionadas pelos adolescentes, como resposta


subjetiva diante do próprio traumático da travessia do adolescer, estão os atos delituosos.
A delinquência, conceito sociojurídico que engloba os atos de resistência, desobediência
e violação da lei é, além de um comportamento recorrente entre os jovens, é um recurso
social, uma forma específica de demanda que muitos adolescentes direcionam ao
ambiente social. Na literatura psicanalítica a delinquência já foi interpretada como uma
neurose grave, nos dias atuais tem sido relacionada aos estados-limites, e dependendo do
caso, podemos ainda compreendê-la como uma figura do extremo no sentido de um
esgotamento radical do psiquismo.

O que nos chama atenção nos atos delituosos não é tão-somente a violência
empregada, ou o risco acentuado à integridade física e psíquica, e nem tampouco a ruptura
com as leis e regras sociais, mas sim, nos atentamos aqui para a própria linguagem
expressada através do ato delinquente, que é própria das regressões narcísicas inerentes à
adolescência. Dito de outra maneira, o ato delinquente, seja dirigir embriagado, assaltar,
roubar, traficar drogas, entre outros, funciona como uma espécie de continuidade das
atividades fantasiosas que alimentam os ideais narcísicos e sustentam desejos
onipotentes.

A fragilidade narcísica constitutiva da adolescência é fortalecida também pela


imagem que o delito simboliza. O sujeito delinquente é socialmente visto como
destemido, perigoso, dominador, e essas representações assumem um status de defesa
contra à dependência do objeto, além de possibilitar um prazer de gozo semelhante às
fantasias incestuosas, já que o delito também enuncia a transposição do proibido, do
impossível de ser realizado. O medo diante do sofrimento interior, diante da angústia de
várias experiências pulsionais excessivas abre espaço para exteriorização através da
dissimulação, da agressividade e mesmo dos atos violentos. Trata-se de uma violência
psíquica que encontra no ato delinquente um caminho de extirpação.

Diferente de outras formas de atuação, a linguagem do ato transgressivo que


marca a delinquência tem uma ação aposteriori, já que é constituído de significantes.
Somente após o ato que o psiquismo é capaz de iniciar uma reapropriação e certa
rememoração dos conflitos infantis, para a partir daí confrontar com os sofrimentos
atuais. Isso que torna o ato um recurso, como Freud já sinalizava. Ao atuar transgredindo
o ambiente normatizado, o adolescente se vê diante dos proibidos que produziram os
conflitos não compreendidos e muitas vezes irrepresentáveis da infância. Nesse processo,
durante esse se reapropriar, o psiquismo é capaz de elaborar e mobilizar defesas que
tornem menos traumáticas os encontros internos e externos. “O ato representa o esforço
desdobrado pelo adolescente para interiorizar o acontecimento que ao mesmo tempo é
fonte de sentido e portador dos tropeços de sua história infantil” (Houssier, 2002. P.65).

O sujeito adolescente necessita da experiência de confrontação para se sentir vivo,


ativo, dominador da sua própria subjetividade. O ato possibilita exatamente esse suporte
justamente por representar os conflitos psíquicos que são demasiadamente traumáticos
para serem colocados em palavras. O ato é assim uma linguagem que encontra na
exterioridade uma forma de cicatrizar as possíveis falhas narcísicas. Mas o ato apresenta
simbologias diferentes no funcionamento do psiquismo dependendo de sua formação e
intencionalidade. A partir da escuta clínica de adolescentes e jovens é possível identificar
quatro tipos de recurso ao ato: 1- ato agressivo; 2- ato violento; 3- ato delinquente e 4-
ato antissocial. Winnicott (1997) compreendeu o primeiro e o último como pedidos de
ajuda de crianças e adolescentes ao ambiente. Freud também se preocupou com o ato
enquanto um recurso de linguagem, constituído pela dimensão significante e orientado
por coordenadas simbólicas. Em seus escritos sobre as psicopatologias da vida cotidiana
ele apresentou atos de lembranças corriqueiras como manifestações originadas no
inconsciente. A compreensão dessas tipologias é fundamental principalmente para não
correr o risco de patologizar o social e/ou reduzir o psíquico a uma patologia social.

O ato violento está fundamentado na intencionalidade racionalizada e consciente


de causar dor e sofrimento, diferente do ato agressivo, que não se constituí
exclusivamente pela via da destrutividade e da violência. A agressividade é um traço da
pulsão de morte que coexiste com os desejos e anseios dos seres humanos pela paz.
Quando Freud respondeu Einstein sobre o porquê da guerra ele acentuou que a
agressividade é constitutiva da natureza humana, mas também enfatizou que o projeto
civilizacional se fundou na busca pela renúncia do lado destrutivo da agressividade. Nesse
sentido, o ato agressivo opera somente quando há uma dimensão alteritária, no momento
em que o sujeito reconhece o objeto ao qual ele endereça a agressividade, ou, seja o outro
é investido de algum valor. Essa dimensão não está presente no ato violento, onde o outro
é desqualificado e anulado enquanto sujeito. Na violência não há laço social.

A partir dessas diferenciações, é possível compreender os atos de delinquência


caracterizados pela violação da lei, como atos agressivos. Isso significa afirmar que esses
atos são fundamentados no reconhecimento e no endereçamento de mensagens ao
ambiente externo. Esses atos quando não acolhidos, escutados, minimamente olhados,
tendem a se transformar em defesas cristalizadas na forma de ganhos secundários, no
sentido de possibilitar, ao sujeito, um gozo fornecido pelo social. Quando as condutas de
risco chegam à clínica enquanto sintomas e/ou demandas de análise, percebe-se na
narrativa dos adolescentes uma identificação prazerosa em ser visto como perigoso,
destemido, traficante, esperto...

É esse ganho secundário que localiza o sujeito em um lugar, em uma identidade,


que o possibilita não fazer um apelo pela retirada (Houssir, 2008), e que o coloca em uma
compulsão de repetição das mais variadas formas de condutas de risco. Todavia, o ganho
secundário consequente do ato agressivo não caracterizaria a delinquência enquanto um
extremo. O que torna um ato delinquente extremo não é seu potencial de agressividade,
mas sim seu poder violento de destrutividade, ou seja, quando o ego de um sujeito
adolescente é invadido por um excesso pulsional violento e destrutivo que não encontra
defesas narcísicas sólidas e o psiquismo falha no recalcamento. Nessas configurações
subjetivas o ato violento exterioriza destruindo e anulando o outro. Nesse cenário a
violência ultrapassa todas as tentativas de ligação constitutivas da agressividade.

Contudo, diante dos tempos sombrios assinalados por Arendt, ousamos afirmar
que as nossas sociedades estão tão adoecidas e fragilizadas quanto os nossos adolescentes.
Há uma indeterminação no social, tanto nas instituições quanto nos indivíduos que
sinaliza uma certa incapacidade em estabelecer suportes para que os adolescentes possam
dar entrada para a vida. Enquanto sociedade estamos fracassando em garantir aos sujeitos
adolescentes caminhos que apontem uma finalidade da existência para além da
mercantilização dos desejos e dos afetos. Também fracassamos em garantir que as
angústias vividas possam ser reconhecidas, escutadas e respondidas com base em
referências sólidas nas quais os adolescentes possam se identificar.

Talvez, nosso fracasso societário possa ser qualitativamente analisado a partir da


investigação da trajetória de adolescentes que aderem à condutas de riscos,
especificamente à atos de delinquência através da violação da lei. Esse grupo, quando
apreendido pelas instituições de controle social e/ou pelas redes de apoio, dependendo da
gravidade dos atos infracionais cometidos, são condicionados ao cumprimento de
medidas socioeducativas. No Estado do Rio de Janeiro, o Degase1 é o departamento
responsável pela aplicação de tais medidas, que podem ser de privação e restrição de
liberdade, seguindo assim quatro modalidades: internação em regime fechado, internação
em regime de semiliberdade e liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade.
Dentre os adolescentes que são efetivamente internados, o tráfico de drogas é o ato
infracional mais cometido, seguido do roubo majorado e do porte ilegal de armas.

Não há consenso entre os pesquisadores especializados sobre quais seriam as


melhores ações e políticas públicas capazes de impedir e interromper a trajetória
delinquente iniciada pelos adolescentes que entram em conflito com a lei. Contudo, é
importante ressaltar que as medidas socioeducativas constituem o último recurso, e só são
aplicadas quando esgotadas todas as demais formas de proteção e promoção de direitos.

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O Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão vinculado à Secretaria de Estado de
Educação, é o responsável pela execução de medidas socioeducativas em meio fechado. Seu papel é
promover a socioeducação dos adolescentes, de acordo com as diretrizes e normas previstas no ECA e na
Lei nº 12.594/2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Em 2018,
o Degase atendia 1.423 adolescentes cumprindo medidas de privação de liberdade, aproximadamente 8%
dos adolescentes internados no país — atrás apenas de São Paulo (CNMP, 2019). Esse volume implica
que o Degase, que contava com 889 vagas no ano mencionado, operava com uma taxa de ocupação de
160% — acima da média nacional de 112%
Mesmo sendo um último recurso, o número de adolescentes apreendidos por praticar atos
infracionais delinquentes no estado do Rio de Janeiro de 2003 a 2019 aumentou 68%,
sendo 6 mil adolescentes somente em 2019 (ISP, 2020). Em São Paulo, o Instituto Sou
da Paz entrevistou uma amostra aleatória de 324 adolescentes da Fundação Casa e
encontrou que 66% dos entrevistados já tinham recebido pelo menos uma medida
socioeducativa antes da atual internação, seja outra internação, semiliberdade, liberdade
assistida (LA) ou prestação de serviços à comunidade (PSC), e 33% eram reincidentes
em internação. Dentre os reincidentes em internação, aproximadamente metade foi
apreendida novamente em até 6 meses após a última saída da Fundação Casa (Instituto
Sou da Paz, 2018).

O que esses dados estáticos nos sugerem? Do ponto de vista sociológico, por trás
desses inúmeros estão sujeitos excluídos socialmente do convívio social, corpos
marcados pela desigualdade social e étnica estruturais da sociedade brasileira. Além
disso, esses números sugerem também que as medidas socioeducativas, da maneira que
estão sendo implementadas, não estão sendo tão efetivas para interromper o
comportamento delinquente primário e reincidente de adolescentes. Antes de buscar
compreender os motivos que tornam as medidas socioeducativas indeficientes é
fundamental conhecer seu processo de implementação.

O sistema socioeducativo que no estado do Rio de Janeiro é de responsabilidade


do Degase é composto por diversos atores que respondem pela garantia da justiça e da
proteção dos direitos do adolescente inscritos no Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA. No momento em que um adolescente comete um ato infracional, ou seja, quando
entra em conflito de violação da legislação brasileira, várias instituições e atores sociais
entram em cena para avaliar a conduta do adolescente e que medida socieoeducativa
melhor se aplica à situação do conflito. A partir daí inicia-se então um caminho
investigativo e processual que, na maioria dos casos, envolvem a Polícia Militar, a
família, a escola e o Conselho Tutelar. A PM é a instituição de controle social responsável
pelo policiamento ostensivo das ruas e atendimento emergencial pelo 190, por esse
motivo o primeiro contato do adolescente que comete ato infrancional tende a ser com a
Polícia Militar. Quando o adolescente é pego em flagrante (Art. 302 do Código de
Processo Penal) a PM o encaminha para Polícia Civil para que tenha início o processo
investigativo. Uma vez recebida a notícia de fato, a autoridade policial é responsável por
lavrar o Registro de Ocorrência (RO) e encaminhar o adolescente à próxima etapa. Na
hipótese de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à
pessoa, a autoridade policial deverá lavrar o Auto de Apreensão de Adolescente por
Prática de Ato Infracional (AAAPAI) e realizar os procedimentos de investigação
previstos no Art. 173 do ECA.

Nas demais situações de atos infracionais considerados leves, a lavratura do


AAAPAI poderá ser substituída por um boletim de ocorrência circunstanciado. Em ambos
os casos e, também, nos casos de cumprimento de mandado de busca e apreensão, é
lavrada a Guia de Apreensão de Adolescente Infrator (GAAI). A Polícia Civil intima o
comparecimento à delegacia de um responsável do adolescente, e só após essa medida
que o adolescente é liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e
responsabilidade de sua apresentação ao Ministério Público, no mesmo dia ou no primeiro
dia útil imediato (Art. 174 do ECA). Excepcionalmente, quando o ato infracional for
grave e apresentar repercussão social, a apreensão poderá ser mantida em regime fechado
para garantir a segurança do próprio adolescente, das possíveis vítimas e da manutenção
da ordem pública.

Quando o ato infracional cometido não se configura como flagrante, mas


apresenta indícios de participação de adolescente, o delegado da Polícia Civil instaurará
procedimento investigatório via Auto de Investigação de Ato Infracional (AIAI) e o
adolescente permanece em liberdade durante as investigações. Ao final do procedimento,
a autoridade policial encaminhará ao representante do Ministério Público o relatório das
investigações e demais documentos. O adolescente poderá, então, ser notificado para se
apresentar para a oitiva informal no Ministério Público. Após ocorrer a oitiva, o ECA
determina que o representante do MP possa promover arquivamento, conceder remissão,
ou representar à autoridade judiciária. No primeiro caso, o MP entende que não há justa
causa para aplicação da ação socioeducativa. A decisão de arquivamento, uma vez
homologada, encerra o procedimento e não há aplicação de medida socioeducativa, mas
o adolescente ainda pode solicitar medida protetiva, se for o caso. A remissão, por sua
vez, é concedida quando o MP verifica indícios de autoria e de materialidade, mas entende
que não é necessário oferecer representação devido às condições biopsicossociais do
adolescente, entendendo que o fato não representa risco para o adolescente ou para a
sociedade, e que a probabilidade de reiteração é baixa. Nesse caso, também, há exclusão
do processo, mas é possível a aplicação de medida socioeducativa em meio aberto
dependendo das consequências do ato infracional cometido. E no caso em que o MP
decida não promover o arquivamento, nem conceder a remissão, o próprio Ministério
Público deve oferecer representação à autoridade judiciária propondo a instauração de
procedimento para aplicação da medida socioeducativa que entender mais adequada (Art.
182 do ECA).

Em linhas gerais esse é o tramite investigativo-processual. Na situação de não


arquivamento o caso é judicializado e aí o Degase entra em cena através da aplicação das
medidas socioeducativas. O MP Caso o MP solicita a audiência de apresentação do
adolescente, decidindo, desde logo, sobre a decretação da internação provisória, se houver
necessidade (Art. 184 do ECA). Caso o juiz decrete internação provisória, o adolescente
será encaminhado a uma unidade do Degase e o juiz deverá concluir o procedimento no
prazo máximo de 45 dias (Art. 183 do ECA).

De acordo com o Art. 108 do ECA, a decisão pela internação provisória deve ser
fundamentada em indícios suficientes de autoria, materialidade, e necessidade da medida.
Caso contrário, o adolescente será entregue pelo MP aos pais ou responsáveis e
responderá em liberdade. Não sendo localizados seus pais ou responsáveis, ele será
encaminhado ao acolhimento institucional do Conselho Tutelar. Na audiência de
apresentação, o juiz procede à oitiva do adolescente e de seus pais e/ou responsáveis
legais, podendo ainda solicitar a opinião de um profissional qualificado; há também a
participação do Promotor de Justiça e do advogado ou defensor público constituído para
defesa do adolescente. Após audiência de apresentação, o juiz pode conceder a remissão
(Art. 186 §1º do ECA), nesse caso como forma de extinção ou suspensão do processo,
com a possibilidade de aplicação de medida socioeducativa em meio aberto.

Há uma série de explicações para ineficiência dos objetivos esperados das


medidas socioeducativas. As questões macrossociais como as desigualdades sociais,
étnicas, regionais e educacionais apresentam condições materiais que determinam a
exclusão de muitos adolescentes pobres, pretos e periféricos. Além das explicações
socioeconômicas, o próprio sistema de identificação e informação dos adolescentes
(SIIAD) que já cometeram atos infracionais não está vinculado a outros bancos de dados
fundamentais como o TJRJ e do Conselho Tutelar. Isso dificulta o recolhimento de
informações completas e o acompanhamento de toda trajetória de adolescentes em
conflito com a lei.
O que nos interessa nesse contexto apresentado da adolescência delinquente que
se coloca em risco ao entrar em conflito com a lei, é justamente o momento em que esse
sujeito adolescente foi enquadrado pelo sistema judicial, e enviado para uma unidade do
Degase para cumprir uma medida socioeducativa de restrição da liberdade. Esses meninos
e meninas que são internados, que perdem o direito de liberdade civil e convívio familiar,
e que são vistos como ameaças a si mesmos e ao corpo social. São esses sujeitos que
precisam ser escutados, inclusive para possibilitar que também possam se escutar.

Escutar a delinquência também deve ser uma função da Psicanálise. Tanto Freud,
quanto Ferenczi e mesmo Lacan advertiram para a função social da clínica psicanalítica,
no sentido de libertação das pessoas, de ir ao corpo social, ouvir aquelas e aqueles que
não podem pagar, que estão excluídos dos direitos básicos e condenados a sofrerem
sozinhos. Para esses meninos e meninas internados no Degase a Psicanálise precisa
oferecer uma disponibilidade de escuta aberta, um dispositivo analítico não-processual
que esteja disposto a se adaptar aos sujeitos que estão sendo escutados, e não assumir uma
dimensão colonizadora de levar um corpo teórico/conceitual e uma rigidez de práticas
enquadrantes.

Os estudos sobre os dispositivos analíticos voltados para escutar sujeitos


silenciados nos apresentam vários arranjos possíveis que vão desde as clínicas públicas
inauguradas por Freud, até as iniciativas dos dispositivos grupais, dos coletivos
psicanalíticos, das clínicas políticas e das chamadas clínicas radicais. Nesse texto não há
pretensão de afirmar um dispositivo ideal para escutar a delinquência dos adolescentes
internados no Degase, mas sim o objetivo de defender que estes sujeitos sejam escutados.
E essa escuta precisa estar atenta que estes sujeitos enfrentam não somente o desamparo
social que é constitutivo de todas a subjetividade humana, mas enfrentam também um
desamparo discursivo, na medida em que são silenciados em suas possibilidades de
existência psíquica e social.

Esse silenciamento é sim um primeiro entrave, já que a esses sujeitos falar de si,
na grande maioria dos casos, nunca foi possibilitado. Trata-se então de oferecer uma
escuta que convoque o adolescente a se autorizar como sujeito da sua própria história, e
isso implica escutar as feridas que os marcadores sociais de exclusão (gênero, a
sexualidade, a raça...) imputam ao psiquismo. “Podemos detectar o limite do sujeito para
o laço social quando o discurso social despotencializa seu lugar”. Mas é preciso atravessar
esses marcadores, deslegitimar seu potencial enquanto identificador de sofrimento e
exclusão. Isso precisa estar na base de um dispositivo analítico que escute a delinquência,
justamente porque são esses marcadores que funcionam como estratégias discursivas de
dominação, que fixam o sujeito em uma conduta de servidão e submissão ao que o corpo
social os impõem. A delinquência é, em si mesma, um desses marcadores. Ser delinquente
já indica ser silenciado, não ter o direito de ser escutado, ser rotulado como criminoso e
marginal.

Esse artigo buscou explorar a temática da delinquência na adolescência


contemporânea. Diante da complexidade dessa questão o percurso trilhado contemplou
uma breve consideração acerca dos elementos constitutivamente traumáticos da travessia
do adolescer. Após essas considerações, o texto caminhou apresentado alguns
apontamentos sujeitos adolescentes que entram em conflito com a lei, transgredindo-a em
atos de delinquência que resultam na perda provisória da liberdade e no cumprimento de
medidas socioeducativas. Defendeu-se a necessidade de elaboração de um dispositivo de
escuta que convoque os sujeitos delinquentes para além dos marcadores sociais que os
aprisionam silenciados.

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