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Para dar conta dos objetivos listados o texto está dividido em duas partes
encadeadas. A primeira parte compreende uma reflexão sociológica sobre o
contemporâneo sombrio que estamos experimentando e, apresenta ainda, as fragilidades
subjetivas dos sujeitos adolescentes na tentativa de dar conta do inescapável traumático
da travessia do adolescer. Essa primeira parte do texto tem o objetivo de compreender o
processo de travessia do sujeito adolescente como inerentemente traumático, e que no
atual contexto de simbolismos sociais precários e referências discursivas de
mercantilização de todas as formas de desejar, temos um cenário de miséria simbólica
que dificulta ainda mais a elaboração de respostas subjetivas capazes de dar conta do
traumático que significa adolescer. A segunda parte analisa alguns apontamentos sobre
um grupo de sujeitos adolescentes que entram em conflito com a lei, transgredindo-a em
atos de delinquência que resultam na perda provisória da liberdade e no cumprimento de
medidas socioeducativas. Ainda nesta segunda parte o tema da delinquência é investigado
a luz do olhar psicanalítico apontando a necessidade de elaboração de um dispositivo de
escuta que rompa com os marcadores sociais de exclusão e que seja capaz de possibilitar
a construção de laços sociais e fortalecimentos subjetivos.
O futuro dos adolescentes não pode ser entregue a eles próprios. Eles
atravessam um período na vida no qual devem ser assistidos pelos mais
velhos, em especial, por aqueles que o puseram no mundo. Depositar
nas mãos de garotos e garotas o fardo de decidir quais os rumos morais
ou sociais devem tomar, é um sintoma da imobilidade e do sentimento
de superfluidade correntes nos adultos de hoje.
Quadros de referência que afirmem o respeito como um valor e como uma atitude
são fundamentais para amenizar o desamparo constitutivo e traumático que assinalam a
travessia do adolescer. O que temos no nosso mundo contemporâneo é o oposto disso,
fundamentalmente, quando nos voltamos para análise das instituições protetoras como a
família e escola. Diante dessas circunstâncias contemporâneas de transformações
axiológicas, institucionais e autoridades precárias, nossas crianças e adolescentes estão
deixadas à deriva. O que significa ser deixado à deriva? Nesse contexto à deriva faz
metáfora para o desamparo que pode ser representado pelo sentimento de abandono
(Birman, 2006).
Birman (2006) nos adverte para as consequências psíquicas e sociais para o sujeito
adolescente que retira seus significantes desses Outros tão igualmente fragilizados. Tais
consequências nos direcionam, enquanto sociedade e subjetividades, para a precariedade
do laço social, fragilidade das subjetividades e infantilização e prolongamento do
adolescer.
Dessa forma, a violência psíquica que acomete o adolescer se apresenta como uma
agressão tanto narcísica quanto alteritária, na medida em que o sujeito adolescente se vê
diante de representações infantis insuficientes para satisfazer e simbolizar as irrupções
pulsionais eróticas da puberdade. “O adolescente, quando ultrapassado pela intensidade
das suas próprias sensações, corre o risco de perder a capacidade de se distinguir do outro,
de diferenciar o dentro e o fora. Isso se estende ao registro interno, nível das relações
entre as diferentes instâncias psíquicas e das fronteiras egóicas” (Cardoso, 2010).
Todo esse trabalho exige grande esforço do psiquismo para equilibrar as forças
pulsionais irruptivas e as defesas egóicas que o sujeito dispõem. O psiquismo é imerso
em um conflito que irá consolidar a subjetividade. Esse conflito envolve, além do caráter
fronteiriço inerente à travessia do adolescer, a elaboração das escolhas e renúncias que
apontam para perdas e lutos derivados destas, a impotente passividade diante de todo o
processo e a limitação dos mecanismos de defesa disponíveis, que em muitos casos
direcionam respostas subjetivas marcadas pela violência psíquica.
O que nos chama atenção nos atos delituosos não é tão-somente a violência
empregada, ou o risco acentuado à integridade física e psíquica, e nem tampouco a ruptura
com as leis e regras sociais, mas sim, nos atentamos aqui para a própria linguagem
expressada através do ato delinquente, que é própria das regressões narcísicas inerentes à
adolescência. Dito de outra maneira, o ato delinquente, seja dirigir embriagado, assaltar,
roubar, traficar drogas, entre outros, funciona como uma espécie de continuidade das
atividades fantasiosas que alimentam os ideais narcísicos e sustentam desejos
onipotentes.
Contudo, diante dos tempos sombrios assinalados por Arendt, ousamos afirmar
que as nossas sociedades estão tão adoecidas e fragilizadas quanto os nossos adolescentes.
Há uma indeterminação no social, tanto nas instituições quanto nos indivíduos que
sinaliza uma certa incapacidade em estabelecer suportes para que os adolescentes possam
dar entrada para a vida. Enquanto sociedade estamos fracassando em garantir aos sujeitos
adolescentes caminhos que apontem uma finalidade da existência para além da
mercantilização dos desejos e dos afetos. Também fracassamos em garantir que as
angústias vividas possam ser reconhecidas, escutadas e respondidas com base em
referências sólidas nas quais os adolescentes possam se identificar.
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O Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase), órgão vinculado à Secretaria de Estado de
Educação, é o responsável pela execução de medidas socioeducativas em meio fechado. Seu papel é
promover a socioeducação dos adolescentes, de acordo com as diretrizes e normas previstas no ECA e na
Lei nº 12.594/2012, que instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Em 2018,
o Degase atendia 1.423 adolescentes cumprindo medidas de privação de liberdade, aproximadamente 8%
dos adolescentes internados no país — atrás apenas de São Paulo (CNMP, 2019). Esse volume implica
que o Degase, que contava com 889 vagas no ano mencionado, operava com uma taxa de ocupação de
160% — acima da média nacional de 112%
Mesmo sendo um último recurso, o número de adolescentes apreendidos por praticar atos
infracionais delinquentes no estado do Rio de Janeiro de 2003 a 2019 aumentou 68%,
sendo 6 mil adolescentes somente em 2019 (ISP, 2020). Em São Paulo, o Instituto Sou
da Paz entrevistou uma amostra aleatória de 324 adolescentes da Fundação Casa e
encontrou que 66% dos entrevistados já tinham recebido pelo menos uma medida
socioeducativa antes da atual internação, seja outra internação, semiliberdade, liberdade
assistida (LA) ou prestação de serviços à comunidade (PSC), e 33% eram reincidentes
em internação. Dentre os reincidentes em internação, aproximadamente metade foi
apreendida novamente em até 6 meses após a última saída da Fundação Casa (Instituto
Sou da Paz, 2018).
O que esses dados estáticos nos sugerem? Do ponto de vista sociológico, por trás
desses inúmeros estão sujeitos excluídos socialmente do convívio social, corpos
marcados pela desigualdade social e étnica estruturais da sociedade brasileira. Além
disso, esses números sugerem também que as medidas socioeducativas, da maneira que
estão sendo implementadas, não estão sendo tão efetivas para interromper o
comportamento delinquente primário e reincidente de adolescentes. Antes de buscar
compreender os motivos que tornam as medidas socioeducativas indeficientes é
fundamental conhecer seu processo de implementação.
De acordo com o Art. 108 do ECA, a decisão pela internação provisória deve ser
fundamentada em indícios suficientes de autoria, materialidade, e necessidade da medida.
Caso contrário, o adolescente será entregue pelo MP aos pais ou responsáveis e
responderá em liberdade. Não sendo localizados seus pais ou responsáveis, ele será
encaminhado ao acolhimento institucional do Conselho Tutelar. Na audiência de
apresentação, o juiz procede à oitiva do adolescente e de seus pais e/ou responsáveis
legais, podendo ainda solicitar a opinião de um profissional qualificado; há também a
participação do Promotor de Justiça e do advogado ou defensor público constituído para
defesa do adolescente. Após audiência de apresentação, o juiz pode conceder a remissão
(Art. 186 §1º do ECA), nesse caso como forma de extinção ou suspensão do processo,
com a possibilidade de aplicação de medida socioeducativa em meio aberto.
Escutar a delinquência também deve ser uma função da Psicanálise. Tanto Freud,
quanto Ferenczi e mesmo Lacan advertiram para a função social da clínica psicanalítica,
no sentido de libertação das pessoas, de ir ao corpo social, ouvir aquelas e aqueles que
não podem pagar, que estão excluídos dos direitos básicos e condenados a sofrerem
sozinhos. Para esses meninos e meninas internados no Degase a Psicanálise precisa
oferecer uma disponibilidade de escuta aberta, um dispositivo analítico não-processual
que esteja disposto a se adaptar aos sujeitos que estão sendo escutados, e não assumir uma
dimensão colonizadora de levar um corpo teórico/conceitual e uma rigidez de práticas
enquadrantes.
Esse silenciamento é sim um primeiro entrave, já que a esses sujeitos falar de si,
na grande maioria dos casos, nunca foi possibilitado. Trata-se então de oferecer uma
escuta que convoque o adolescente a se autorizar como sujeito da sua própria história, e
isso implica escutar as feridas que os marcadores sociais de exclusão (gênero, a
sexualidade, a raça...) imputam ao psiquismo. “Podemos detectar o limite do sujeito para
o laço social quando o discurso social despotencializa seu lugar”. Mas é preciso atravessar
esses marcadores, deslegitimar seu potencial enquanto identificador de sofrimento e
exclusão. Isso precisa estar na base de um dispositivo analítico que escute a delinquência,
justamente porque são esses marcadores que funcionam como estratégias discursivas de
dominação, que fixam o sujeito em uma conduta de servidão e submissão ao que o corpo
social os impõem. A delinquência é, em si mesma, um desses marcadores. Ser delinquente
já indica ser silenciado, não ter o direito de ser escutado, ser rotulado como criminoso e
marginal.
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