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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

UC O Indivíduo na Teoria Social


Prof. Mauro Rovai
Discente: Camila Loures Barreira Mevis – 120.571

Resenha O declínio do homem público – Cap. 1 – Richard Sennett

Em O declínio do homem público Sennett apresenta o desequilíbrio que marca a


relação do homem com a vida pública e a vida privada nos tempos contemporâneos. O autor
defende que a vida pública se tornou, assim como se observou em Roma na época de sua
decadência, algo esvaziado de sentido, uma questão de obrigação moral, na qual os indivíduos
não investem paixão ou entusiasmo. Em consequência, tal esgarçamento do mundo público se
desdobra como característica do indivíduo contemporâneo.
O mundo público era composto por regras, convenções, máscaras e rituais que
demarcavam claramente suas fronteiras com o mundo privado, atribuindo-lhe sentido, pois,
era nele em que pessoas desconhecidas se enfrentavam sendo necessárias tais regras para se
relacionar. Com o advento das cidades cosmopolitas, o mundo público se transformou
paulatinamente num ambiente assustador do qual o indivíduo busca se proteger. O estranho e
a cidade passam a ser figuras ameaçadoras, e o âmbito público passa a representar o
impessoal, o perigo, a desordem, sendo entendido como moralmente inferior à esfera privada
e familiar, que representa segurança e estabilidade.
Neste contexto, ao tentar se proteger das ameaças da vida social, o indivíduo direciona
sua atenção para o eu. No âmbito da vida privada e na proteção do seio familiar, ele vai
buscar conhecer sobre sua própria psique, numa busca por sua autoidentidade, por seus
sentimentos e desejos mais autênticos. A psique, por sua vez, é tratada como algo muito frágil
e valioso, que deve ser protegida e isolada a fim de que se desenvolva e floresça. Isto faz com
que o eu se transforme em padrão de vida tanto para o mundo público quanto para o privado,
tratando-se agora de como o indivíduo se protege do meio social e não de como o enfrenta.
O autor considera que nesta busca romântica pela personalidade autêntica, o mundo
privado se converte em refúgio e no espaço onde o indivíduo acredita que está a felicidade, a
autenticidade, a verdade, ao passo que encara o público como um falseamento das relações.
Logo, o padrão de julgamento também se torna privado, de modo que o indivíduo julga e
aprecia os elementos da esfera pública a partir de seus sentimentos, gostos e desejos privados,
o que o leva a não tratar adequadamente dessas questões que requerem, para serem
devidamente compreendidas, códigos de tratamento impessoais.
No entanto, para Sennett, neste contexto o indivíduo se põe diante de uma armadilha,
pois, ao se voltar inteiramente à sua vida íntima e evitar o contato com o mundo social, menos
a psique será estimulada e mais difícil se tornará para este indivíduo sentir e exprimir seus
sentimentos. Isso porque a própria psique é um produto social e histórico. Assim, ao
empobrecer as relações sociais no âmbito público, as relações de intimidade na vida privada
são também empobrecidas e deformadas. Os problemas psíquicos que no século XIX eram
causados pela repressão social, se convertem em crises difusas de identidade, típicas do
transtorno narcisistas, nas quais os indivíduos não conseguem especificar suas queixas,
tornando-se um tormento constante e de difícil resolução, ainda que não seja um problema
agudo. Logo, o eu se transforma em fonte de sofrimento para o indivíduo e em obstáculo à
vida pública.
Sennett afirma que esta situação não se deu de forma abrupta, mas foi fruto de um
longo processo de imbricações históricas que se desenrolam desde a queda do Antigo Regime
até a formação de uma nova cultura urbana, secular e capitalista. Assim, trata-se de um
processo não apenas psicológico, mas também histórico, econômico e sociológico, ao passo
que a psique é também um produto histórico.
Nesta sociedade, portanto, a busca pela autorrealização é consequência da vida social
que impele as pessoas a mobilizarem energias narcisisticas. O eu introjetado em si mesmo a
partir do narcisismo se torna um empecilho para a satisfação das necessidades do próprio eu,
segundo o autor. Tais energias narcísicas penetram e deformam as relações humanas, pois as
estabelecem a partir do que estas representam para o eu, neste sentido, as relações se realizam
a partir dos padrões da troca mercantil. Esta maneira de viver as relações se torna repetitivo ao
ponto de obscurecer a percepção do indivíduo em relação às pessoas e aos acontecimentos, o
que é motivo de sofrimento para eu, pois ele se vê numa busca contínua pela experiencia ideal
que nunca se realiza porque ele é incapaz de sentir.
O autor exemplifica abordando a questão do amor físico e da arquitetura nas grandes
cidades. Afirma que o amor físico vem passando por uma redefinição que vai do erotismo,
que envolvia relacionamentos sociais, à sexualidade que se dá a partir da identidade pessoal,
indo de uma ação para um estado. Assim, o amor físico deixa de ser uma relação social e
passa a ser uma revelação do eu, de modo que, no imaginário atual, quanto menos me envolvo
na relação com o outro, mais me aproximo de uma expressão autêntica do eu, ou mais me
aproximo da experiência ideal. Novamente, ao negar a dimensão social da sexualidade, o
indivíduo se frustra numa busca interna por questões que estão alocadas na vida social.
Quanto à arquitetura, o autor afirma que há um abandono do espaço público, justamente
porque o espaço público está esvaziado e carece de sentido e isto é traduzido pelos arquitetos
ao pensarem os espaços urbanos. Enquanto edifícios são projetados para proporcionar
visibilidade e ao mesmo tempo isolamento social, espaços abertos são utilizados como
passagem e não como locais de uso público, tornando o espaço público uma derivação de
movimento e não de encontro ou convivência social.
O capitalismo industrial e a produção em massa de mercadorias homogeinizadas
também possuem implicações nesse processo de esvaziamento do domínio público. As
mercadorias passam a ser dotadas de qualidades humanas, de modo a serem associadas à
personalidade íntima, envoltas por um misticismo que provoca no indivíduo o desejo de
possuir para desvendar o objeto. Tais mercadorias envolvem a crença de que podem modificar
ou explicitar a personalidade do comprador. Assim, a mercadoria se soma às formas
destrutivas de narcisismo, nas quais o ser humano ganha valor de coisa e as coisas são
personificadas. Somado a isso, o secularismo que privilegia o imediato, o ato concreto, o real
e o em-si, reforça a personalidade como principal forma de expressão social.
Por fim, podemos dizer que para Sennett, a sociedade contemporânea vive o
desmantelamento do domínio público, que é invadido pelo âmbito privado, enfatizando
estados emocionais subjetivos e reduzindo a importância da ação objetiva, trazendo à cena
forças psicológicas destrutivas. A hipervalorização da esfera íntima faz com que a
personalidade se torne a mais importante forma de expressão social, mas a evitação das
relações sociais do âmbito público empobrece a vida íntima do indivíduo que busca
incessantemente a autorrealização por meio da expressão de sua autoidentidade, favorecendo
o adoecimento psíquico do mesmo. Assim, para o indivíduo contemporâneo o eu se
transfigura num pesado fardo.

SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Rio de Janeiro:


Editora Record, 2015. Edição digital.

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