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Texto 5 - Identidade - Resenha

(Bauman, Zygmunt, 1925 – Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/Zygunt Bauman;


tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Zahar, 2005).

Partindo da importância do atual debate público acerca da identidade, Zygmunt Bauman,


concedeu uma entrevista por e-mail ao italiano Benedetto Vecchi, diferentemente dos meios
convencionais. Sem a pressão do tempo e com pausas para reflexões e esclarecimentos, o
conteúdo foi tomando forma e transformou-se em um livro publicado pela editora Zahar no ano
de 2005. A obra é estruturada em formato de entrevista ping-pong (perguntas e respostas), com
característica de diálogo, tem apenas introdução e um capítulo, totalizando 105 páginas. Sempre
procurando estabelecer conexões com fenômenos sociais ao invés de estabelecer conceitos,
Bauman leva o leitor a refletir sobre o tema intangível da Identidade.
A introdução foi feita pelo entrevistador Vecchi, onde o mesmo ressalta a importância do
trabalho desenvolvido por Baumam e justifica que devido à distância entre ambos, o e-mail foi
o instrumento escolhido para o diálogo. Para Vecchi, é impossível definir as influências
intelectuais ou o alinhamento a determinada escola de pensamento do sociólogo. De acordo
com o entrevistador, a metodologia usada por Baumam para tratar tal assunto se dá através da
análise dos contextos social, cultural e político “em que um fenômeno particular existe, assim
como o próprio fenômeno” (p. 8), buscando mostrar a imensa conexão entre o objeto de
investigação e as demais manifestações da vida na sociedade humana. De fato, é essencial para
o sociólogo colher a “verdade” de todo estilo de vida e comportamento coletivo.
De origem polonesa, Baumam obteve sua participação no “outubro polonês” em 1956,
participando do influente partido reformista que desafiou lideranças de partidos. Tal
experiência marcou o sociólogo e o preparou para confrontos ideológicos futuros. Foi então,
que veio 1968 e o mesmo foi proibido de lecionar na Polônia, por apoiar o movimento dos
estudantes e professores universitários, que lutavam pelo fim do sistema unipartidário em nome
de “liberdade, igualdade e fraternidade”. Desde então, mudou-se, para Inglaterra e passou a
lecionar na Universidade de Leeds. Fato este que fez o sociólogo questionar sobre sua própria
identidade, concentrando sua atenção no fenômeno da globalização e analisando a identidade
não somente do ponto de vista econômico, mas, sobretudo, a vida cotidiana e os seus efeitos.
Durante esse período, publicou livros que se tornaram um panorama da globalização,
caracterizando uma grande transformação que afetaria as “estruturas estatais, as condições de
trabalho, as relações entre os estados, a subjetividade coletiva, a produção cultural, a vida
cotidiana, e as relações entre o eu e o outro” (p. 11). Alguns dos livros publicados foram;
Globalização: As consequências humanas (1998), Comunidade (2000), A sociedade
individualizada (2001), Modernidade Líquida (2000).
A ideia de identidade nasceu a partir da crise do pertencimento e do esforço que este
provocou. Emergiu como ficção e não como uma experiência humana, contou com muita
coerção para se consolidar e se tornar uma realidade. O Estado moderno, aproveitando esse
esforço, tornou um dever obrigatório a todas as pessoas que se encontravam no interior de sua
soberania territorial. Parafraseando Bauman, o “pertencer-por-nascimento” significa que um
acordo foi estabelecido para que o indivíduo pertencesse a uma nação que foi imaginada e
mediada por conceitos.
Tradicionalmente era atribuída aos indivíduos a definição de identidade a partir da raça,
país de nascimento e família, com o passar dos anos isso foi se destituindo ao tempo que a
construção da identidade foi sendo substituída por novos grupos que hoje em dia tendem a ser
eletronicamente mediados e onde se formaram as premissas sobre as quais a sociedade moderna
foi construída.
Segundo Bauman, a identidade exerce um papel fundamental hoje no mundo. Os
indivíduos passaram a criar a sua própria identidade e não mais a herdar. Não apenas partem do
zero, mas passam toda uma vida a redefinindo. O estilo de vida que é considerado bom pela
sociedade, os mais variados modelos de vida atrativa, que entram na “moda”, mudam muitas
vezes ao longo dos anos. A existência é dividida em episódios fragilmente conectados em um
mundo individualizado.
No mundo de individualizações as identidades são ambíguas e oscilam na maior parte do
tempo. Dentro desse ambiente líquido moderno as identidades são profundamente sentidas e
estão no cerne da atenção dos indivíduos. E como consequência, a sociedade moderna está
atravessando a fase da identidade sólida para uma identidade líquida e fluída. Entenda-se por
fluído, tudo aquilo que é diluído, que muda à medida que é influenciado por qualquer tipo de
força, com estruturas frágeis, o que é hoje já não é amanhã, um jogo sem regras, baseado na
livre e espontânea liberdade humana. Neste tipo de ambiente, tudo é imprevisível, não se sabe
ao certo o que esperar, se uma seca ou uma enchente. A identidade é composta de pedaços
como se fosse um quebra-cabeça e ela vai se encaixando uns nos outros, e para a grande
maioria não agir dessa forma seria apegar-se as regras, cuidar da coesão, não é uma atitude
muito agradável, a opção mais promissora parece ser, a de flutuar na onda das oportunidades
mutáveis e de curta duração.
Vivemos em uma era líquido-moderna, afirma Bauman, as relações interpessoais e tudo
que as acompanham amor, parecerias, compromissos, têm se transformado em objetos de
atração e apreensão, desejo e medo, tudo é instável, tudo é líquido. Mas nem tudo sempre foi
assim, houve um tempo em que amar significava compartilhar a vida, fundir duas biografias,
cada um com suas experiências e recordações. Mas como sabemos, no amor não há garantia de
satisfação plena, logo, os riscos passam a ser completamente calculados e reduzidos ao modo
consumista com breve tempo de duração, para trazer satisfação instantânea. As pessoas
passaram a tratar o amor como objeto, algo facilmente substituído na sociedade de consumo. E,
apesar desse modo reduzido de relacionar-se, Bauman conclui, que precisamos de
relacionamentos em que seja possível ser útil, relacionamentos em que seja possível se definir,
porque um relacionamento no ambiente líquido moderno, é carregado de perigo.
Nesse reembaralhamento, onde as formas básicas de relacionamento social estão
passando por uma mutação considera-se a internet um terreno fértil tanto para se construir uma
identidade quanto para assumir qualquer uma que seja do seu agrado, as identidades são feitas
para serem usadas e exibidas, não para ser armazenadas. As amizades e os engajamentos sociais
são feitos muito rapidamente, com a mesma velocidade que são construídos, são também
desfeitos. Andy Hargreaves escreve que, “estão cada vez mais substituindo as conversas
familiares e os relacionamentos sólidos” (p. 101). A tecnologia proporciona contatos facilitados
e por isso, “perde-se a habilidade de se engajar em interações espontâneas com pessoas reais”
(p. 101).
Identidade trata-se de um livro que na verdade é um conjunto de teorias sobre o mundo a
partir da globalização e das transformações que está impôs a sociedade. A visão de Bauman
também é uma construção social, não mais importante ou determinante que outras construções.
São muito pertinentes às colocações do autor sobre o tempo em que estamos vivendo.
Considero importante, ampliar os debates e os efeitos dessa modernidade líquida, citada pelo
sociólogo sobre a sociedade pós-moderna e o seu conjunto de pensamentos contemporâneos.
Bauman afirma diversas vezes, que assim como a vida, os relacionamentos e tudo que os
acompanha são líquidos, instável, e de pouca duração, com breve momento de satisfação, nada
é sólido e continuado. Mas, ao contrário do que pensa Bauman, nem tudo é líquido, as pessoas
são capazes de criar vínculos sólidos no cotidiano, manter relacionamentos duradouros e até
mesmo ser estáveis. Sem dúvida, a obra convida o leitor para conhecer outras produções do
sociólogo e tentar entender seu ponto de vista sobre o pensamento atual.

A identidade é um problema sociológico?

É a “identidade” um problema sociológico? Se sim, desde quando? Que variáveis e


dimensões sócio-históricas ocupam o núcleo das práticas e das políticas identitárias? Através de
um diálogo instigante com o jornalista italiano Benedetto Vecchi, o sociólogo polonês Zygmunt
Bauman responde a essas questões ampliando o espaço de discussão sobre o tema da
identidade, inserindo-o em sua teoria da era líquido-moderna. Neste novo arcabouço, categorias
estabelecidas como “pertencimento”, “comunidade”, “reconhecimento” e “nacionalidade” são
criticadas e analiticamente reposicionadas. Sob a influência de distintas chaves interpretativas
de cunho filosófico e literário, a análise acompanha a diluição das identidades individual e
coletiva no cenário fluido do mundo atual.
O caráter liquefeito da contemporaneidade, sua fluidez e volatilidade, segundo Bauman,
constitui o traço mais explícito da singularidade de nossa modernidade. Isso, entretanto, é
apenas a consequência de dois fatores que cruzados “liquefazem” e, por vezes, liquidam seus
próprios processos e atores sociais: i) o abandono de uma ilusão moderna estabelecida: “[a]
crença de que há um fim do caminho em que andamos, um telos alcançável da mudança
histórica, um Estado (sic) de perfeição a ser atingido amanhã” (BAUMAN, 2001, p. 37) e ii),
“a desregulamentação e a privatização das tarefas e deveres modernizantes” (idem, p. 38). É
este o paradoxal cenário da modernidade líquida: os atores sociais, individualmente situados,
além de experimentarem uma nova temporalidade, uma concepção de tempo e de futuro que os
impede de um delineamento minimamente inteligível de “projetos de vida”, são
responsabilizados politicamente por suas escolhas ou trajetórias e, portanto, por suas
consequências. Dentro desse quadro crítico, não é de surpreender que o tema da identidade seja
central. Como se identificar numa sociedade fluida e composta por múltiplas redes? Que opções
fazer se essas redes se fazem e se desfazem ao sabor da “trama global”?
Para responder a essas questões, dotado de imaginação sociológica e de uma clareza
notória, Bauman observa que não é possível recorrer aos autores clássicos indagando o que é ou
o quê constitui a “identidade”, isso porque eles próprios não elaboraram estas questões
enquanto tais. Além disso, explica ele, “esse súbito fascínio pela identidade, e não ela mesma, é
que atrairia a atenção dos clássicos da Sociologia” (BAUMAN, 2005a, p. 23). Entretanto, se os
clássicos não podem ajudar muito, o raciocínio do autor assume um tom de análise nitidamente
simmeliano. Bauman tece seu argumento por meio de eventos quase anedóticos da vida
cotidiana, dando carne e osso à dimensão psicossociológica e altamente patológica dos
processos contemporâneos de identificação.
Como observa Bauman “é realmente um dilema e um desafio para a sociologia – se você
lembrar de que, há apenas algumas décadas, a 'identidade' não estava nem perto do centro de
nosso debate” (idem, p. 22-23). Para entrar no problema teórico da identidade, o autor revê a
trajetória da noção partindo da concepção pré-moderna de 'identidade nacional', essa 'ficção'
que conseguiu incorporar, após um violento processo de investimento político e simbólico, a
'naturalidade' ao 'nascimento'.

“A aparência de 'naturalidade' era tudo, menos 'natural'. [...] [A] naturalidade, e assim
também a credibilidade do pertencimento declarado, só podia ser um produto final de
antigas batalhas postergadas. E a sua perpetuação não podia ser garantida a não ser
por meio de batalhas ainda por vir” (idem, p. 29).

Ali, a identidade não era senão a luta pela imposição da identidade – se se quiser, a
'identidade nacional' nasce com o silenciamento de outros discursos, locais e regionais.
O cenário líquido-moderno, porém, não apenas engloba a questão da “identidade
nacional” como a ultrapassa. Segundo o autor, processos como os de precarização dos padrões
de emprego e rotinas de trabalho e “terceirização internacionalizada”, junto ao retraimento das
funções sociais do Estado, produzem níveis patológicos de insegurança e ansiedade, bem como
uma desarticulação interna das demandas por políticas sociais. Estes níveis de insegurança, por
sua vez, produziriam formas sociais neocomunitárias cuja ideologia tem base racista e
xenófoba. É possível reconstruir o argumento em dois momentos principais: vê-se,
primeiramente, um núcleo mais ou menos rígido composto pela tríade trabalho-Estado-atores.
Num segundo momento, aparecem os efeitos perversos (insegurança e comunitarismo)
advindos de uma combinação específica entre as partes desse núcleo. No espaço desta resenha,
analisamos exclusivamente a primeira parte do raciocínio, apontando para o alcance da crítica
de Bauman no que diz respeito às respectivas dimensões daquela tríade.

Primeiro, o mundo do trabalho.

Inspirado pelas críticas de Richard Sennett à desregulamentação legal e cotidiana da


dinâmica laboral, Bauman afirma que o local de trabalho – “onde [antes] o status social
costumava ser definido” (idem, p. 36) - atualmente, além de inspirar pouca confiança, não deixa
espaço para a identificação e a solidariedade grupais devido a sua flexibilização. Neste sentido,
Bauman reproduz e reitera a seguinte idéia postulada por Sennett: “um local de trabalho
flexível provavelmente não seria o lugar onde alguém desejaria construir um ninho”
(SENNETT, 2002). Pode argumentar-se, porém, que o espaço e as condições de trabalho não
são, e tampouco foram historicamente, o espaço ideal para construir algo como um lar. Ao
enfatizar as novas formas de violência tipicamente líquidas - notadamente aquelas ligadas a
eufemização necessária à violência contra a subjetividade, como por exemplo “recursos
humanos” e “administração por objetivos” - Bauman esquece-se dos exercícios tradicionais
fortemente alienantes de violência laboral 1. Não há, portanto, uma exclusividade, quanto à
violência implicada e implícita na dinâmica produtiva da modernidade líquida. Tanto a citação
de Sennett, quanto a comparação (trabalho-casa) não estão à altura da complexidade da tese, na
medida em que o próprio Bauman percebe e reconhece como os problemas atuais de auto-
identificação ultrapassam, em muito, a esfera produtiva.

Em segundo lugar, o papel do Estado.

Talvez seja esse o ponto em que o autor dá, de fato, sua maior contribuição à teoria
social, ao apontar para um novo grupo de atores sociais sem direito à identificação. Numa
perspicaz operação intelectual que une Mary Douglas a Max Weber, o sociólogo polonês define
a função política do Estado penal contemporâneo: “Trancafiar pedófilos, varrer das ruas os
vagabundos, ociosos, mendigos e outros indesejáveis, e deter suspeitos de terrorismo antes que
se transformem em terroristas de fato” (BAUMAN, 2005a, p. 52). Em outra obra, Vidas
desperdiçadas, Bauman elabora uma definição mais concisa e sociológica postulando que “os
Estados-nações atuais [...] ainda afirmam sua prerrogativa essencial de soberania básica: o

1
Descrição exemplar das formas sólidas de violência laboral pode ser observada em Braverman (1977).
direito de excluir” (BAUMAN, 2005b, p. 45). Aqui, sua crítica dá ênfase aos processos de
privatização do espaço público, de criminalização global e, especialmente, de produção de 'lixo
humano' - um novo grupo de ‘“pessoas rejeitadas’ - não mais necessárias ao perfeito
funcionamento do ciclo econômico” (BAUMAN, 2005a, p. 47).

A terceira e última parte – os movimentos sociais

A terceira e última parte do argumento é também a mais controversa. Bauman critica os


denominados novos atores ou movimentos sociais afirmando que.

“não existe um lar óbvio a ser compartilhado pelos descontentes sociais [...] os
ressentimentos sociais estão órfãos [...] A guerra por justiça social foi portanto reduzida
a um excesso de batalhas por reconhecimento” (idem, p. 41-3, sem grifos no original).

O argumento do autor consiste em dizer que as “novas bandeiras” - leia-se “gênero, raça
e heranças coloniais” (idem, p. 42) - com “âncoras sociais próprias” ao mesmo tempo em que
se afundaram “numa proliferação de campos de batalha”, esqueceram-se da “miséria” vivida
pelo “lixo humano”. No entanto, é válido questionar: como esse “refugo humano” é produzido?
Estariam “gênero”, “raça” e, sobretudo, “imaginários pós-coloniais” como que fora dessa
produção coletiva? Porque a falta de um “lar óbvio” para as demandas sociais corresponderia à
“redução” de tais demandas? Embora o autor não forneça explicações - necessárias - à altura do
problema por ele formulado, ficam algumas pistas textuais para onde ele, indiretamente, aponta.
Bauman sugere que essas novas bandeiras estariam dificultando tanto lutar, quanto pensar uma
“solução universal e abrangente” (idem, p. 43). Como leitor declarado da obra de Pierre
Bourdieu, o autor poderia questionar a existência de qualquer “lar óbvio” (dóxico) e suspeitar
das “soluções universais” na medida em que, como se sabe, o “universal” não é senão a
universalização do particular - nesse sentido, o exemplo da “ficção” da “naturalidade”, essa
ficção tornada “na única realidade imaginável” (idem, p. 26), já havia sido destacada pelo
próprio Bauman.
Em certa medida, no que concerne à questão das “novas bandeiras”, a visão de Bauman
reproduz aquilo que Joan Scott chamou de “daltonismo racial”, fenômeno que encerra as
questões de raça na concepção de “negritude”, “da mesma forma como o gênero era [limitado
a] uma questão de mulheres e não de homens” (SCOTT, 2005, p. 25). O sociólogo polonês ao
falar da fragmentação das lutas sociais a vê como sintoma de um declínio - para utilizar a
expressão de Sennet - não restrito aos movimentos sociais, de caráter moral de “um mundo
esvaziado de valores que finge ser duradouro” (BAUMAN, 2005a, p. 59) e cuja esfera político-
pública é continuamente despolitizada porquanto particularizada: “O descontentamento social”,
diz ele, “dissolveu-se num número indefinido de ressentimentos de grupos ou categorias [...]
todas eram cegas, ou pelo menos desconfiadas ou francamente hostis, a reivindicações
semelhantes de exclusividade declaradas e ouvidas por outros” (idem, p. 42). Entretanto, como
observa Joan Scott, parece ocorrer precisamente o oposto, à medida que em parte das
sociedades democráticas ocidentais um número cada vez maior de atores sociais reivindica
reconhecimento propriamente político em âmbito “universal”, vale dizer, um reconhecimento
dentro do domínio, no sentido matemático e político do termo, público, social e legal. “A idéia
de que todos os indivíduos poderiam ser tratados igualmente inspirou aqueles que se
encontravam excluídos do acesso a algo que eles e suas sociedades consideravam um direito”
(SCOTT, 2005, p. 17; sem grifos no original). Ou seja, ao contrário da visão daltônica de
Bauman que não vê os movimentos sociais senão como meros “ressentimentos”, é precisamente
devido à e dentro da ideologia ocidental de traços universalizantes e universalizáveis que esses
“grupos ou categorias” pretendem inscrever-se. Assim, na medida em que tais grupos têm suas
identidades histórica e politicamente reconhecidas, de fato a esfera pública se fragmenta,
democratizando-se porque complexificada e heterogênea, exigindo então outras perspectivas de
análise.
Seguramente, esse processo não é simples. O próprio Bauman, apesar de em princípio
problematizar a questão em termos redutores por meio da fórmula unidade versus diferença –
“como alcançar a unidade (apesar da?) diferença e como preservar a diferença na (apesar da?)
unidade” (BAUMAN, 2005a, p. 48) - é muito claro quanto ao que está em jogo nessas “batalhas
por identidade”. Para o autor, elas são “misturas de demandas 'liberais' pela liberdade de
autodefinição e auto-afirmação” com “apelos 'comunitários' a uma 'totalidade maior do que a
soma das partes', bem como à prioridade sobre os impulsos destrutivos de cada uma das partes”
(idem, p. 84). Aqui, a idéia de mistura entre a natureza das distintas demandas político-
identitárias torna densa a compreensão daquilo que Scott denominou de “o enigma da
igualdade”. A compreensão da tensão entre as múltiplas identidades, para ambos, aponta
necessariamente para a profunda ambivalência que ocupa o cerne das estratégias de
reconhecimento: na medida mesma em que demandam reconhecimento identitário, ou seja,
igualdade legal e legítima, tais estratégias reproduzem diferença. “Os termos do protesto contra
a discriminação tanto recusam quanto aceitam as identidades de grupo sobre as quais a
discriminação está baseada” (SCOTT, 2005, p. 20). Bauman, por sua vez, é mais assertivo:

“As batalhas de identidade não podem realizar sua tarefa de identificação sem dividir
tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas intenções includentes se misturam com (ou
melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar” (BAUMAN, 2005a, p.
85). O cenário delineado pelo sociólogo polonês é liquidante.

No que concerne à identificação propriamente individual, o caráter fluido quer das


relações sociais, quer dos quadros de ação social constitui, segundo o autor, um dos eixos
centrais da patologização psíquica contemporânea. Por meio de exemplos tão inusitados quanto
o amor hiperbólico de Don Juan de Molière, a relação com animais de estimação na Londres de
hoje, ou as horas sem-fim ao celular, a análise de tom simmeliano enfatiza o abismo entre
cultura subjetiva e cultura objetiva, destacando os efeitos do 'consumismo' na subjetividade
liquidada. Também os casamentos e as relações interpessoais aparecem como quadros sociais
nada sólidos na análise. “A maioria de nós”, diz ele, “tem uma opinião ambígua sobre essa
novidade que é 'viver livre de vínculos' – de relacionamentos 'sem compromisso' [...]. Não
voltaríamos atrás, mas nos sentimos pouco à vontade onde estamos agora” (idem, p. 69). Talvez
não esteja nessa temática o ponto mais forte de Bauman como sociólogo pois ele próprio parece
não ultrapassar seu sentimento de estranheza com relação à fluidez dos laços líquido-amorosos
e suas altas taxas de separação ou divórcio. Neste sentido, é sintomática a formulação pela qual
sintetiza as dicas de “insensíveis especialistas” (idem, p. 73) em relacionamentos: “se você quer
'relacionar-se', mantenha distância. Se deseja obter satisfação com o convívio, não estabeleça
nem exija compromissos” (idem, p. 74). Ao que tudo indica, o sociólogo polonês vê essa
fluidez amorosa como uma contradição em termos. Entretanto, é possível observar que o
distanciamento e o autocontrole emocionais exigidos como pré-condição para o
estabelecimento de laços afetivos são um produto histórico da sociabilidade cortesã 2 herdado
pela sociedade burguesa. Historicamente, portanto, distanciamento e autocontrole não são uma
particularidade das formas líquidas de relação, nem sequer constituem qualquer forma de

2
Para uma análise da transformação histórica da coerção rumo a auto coerção, ver “Sobre a socio gênese do romantismo aristocrático
no processo de curialização” (ELIAS, 2001)
negação ou fechamento das possibilidades de construção amorosa, sejam elas pós-modernas ou
não.
No seu todo, muito além de matizar distintos componentes e dimensões centrais na
estruturação da identidade, o livro-diálogo oferece um lúcido e, sobretudo, crítico panorama da
sociedade capitalista atual. É dentro da liquefação dos processos e laços sociais que Bauman
entrelaça posições, trajetórias e estruturas sociais. Nesse emaranhado inseguro e imprevisível, a
identidade não é construída com relação a fins (“Eu quero ser”) nem tampouco com relação a
meios (“Eu posso ser”).

“Selecionar os meios necessários para conseguir uma identidade alternativa de sua


escolha não é mais o problema", para Bauman, "o verdadeiro problema e atualmente a
maior preocupação é a incerteza oposta: qual identidade escolher e [...] por quanto
tempo se apegar a ela”? (idem, p. 91).

O autor abandona o lugar-comum antropológico e vai ao cerne da questão: na


modernidade líquida a identidade não é uma mera "construção social"; ter uma ou muitas
identidades é uma tarefa, ou mais precisamente, uma tarefa política.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Z. 2001. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: J. Zahar.

_____. 2005a. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro : J. Zahar.

_____. 2005b. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: J. Zahar.

Braverman, H. 1977. Trabalho e capital monopolista. Rio de Janeiro : J. Zahar.

Elias, N. 2001. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: J. Zahar.

SCOTT, J. 2005. O enigma da igualdade. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 13, n.1, p. 11-
30, abr.

Sennett, R. 2002. Flexibilité sur la ville. Maniere de Voir, Paris, n. 66, p. 59-62, nov.-dec.

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