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Texto 3 - Medo Líquido: uma resenha

O medo nos estimula a assumir uma ação defensiva, e isso confere proximidade, tangibilidade
e credibilidade às ameaças, genuínas ou supostas, de que ele presumivelmente emana. É nossa
reação à ansiedade que reclassifica a premonição sombria como realidade cotidiana, dando ao
espectro um corpo de carne e osso. O medo se enraíza em nossos motivos e propósitos, se
estabelece em nossas ações e satura nossas rotinas diárias. (Paulo Incott)

A liquidez moderna resulta em uma infinidade de experiências secundárias da morte, de


exclusão e, portanto, na construção cotidiana e tijolo por tijolo de uma insegurança estrutural.
Medo Líquido é a tentativa de Zygmunt Bauman em descrever alguns aspectos do medo
na modernidade líquida. Além das análises do momento histórico atual, algumas categorias
muito importantes são explicadas.
O livro “Medo Líquido” é inquietante. Provavelmente esta seja a melhor palavra para
descrevê-lo. Seu conteúdo nos leva a avaliar uma séria de estruturas de nossa sociedade e
perceber que se desenvolveram de forma a criar, ampliar, fortalecer e diluir a sensação de
insegura e ansiedade em nosso aparelho psíquico.
Bauman trabalha nesta obra cinco grandes abordagens acerca do medo na
modernidade líquida.

A primeira destas diz respeito ao pavor da morte.

O autor constrói, a partir de uma interessante análise dos reality shows, em voga em sua
versão “contemporânea” nas duas últimas décadas, uma percepção da fragilidade humana
causada pelo “vício em civilização”. Este nos acostuma a um estilo de vida repleto de
facilidades e soluções imediatas, não criativas e não dependentes do desenvolvimento de
habilidades de resistência, que desembocada numa insegurança generalizada diante do
sentimento de incapacidade para lidar com problemas complexos ou incertezas.
Conforme o sociólogo elucida, o medo mais presente no cotidiano das pessoas hoje não
é do tipo causado por ameaças diretas, medo este compartilhado por todas as criaturas vivas. O
sentimento de insegurança que acompanha o ser humano rotineiramente na modernidade
líquida pode ser caracterizado como um “medo de segundo grau”, ou seja, “um rastro de uma
experiência passada de enfrentamento de ameaça direta – um resquício que sobrevive ao
encontro e se torna um fator importante da modelagem da conduta humana mesmo que não haja
mais uma ameaça direta à vida ou à integridade”.1
O elo criado entre os reality show e este tipo de medo é a constante preocupação com a
possibilidade de exclusão. Bauman revela o modo como as relações humanas em nossos dias,
marcadas pela fragilidade, deixaram de fornecer um “porto seguro” onde se pode encontrar
alívio perene para as ansiedades, convertendo-se em palco para a ampliação da insegurança,
pautada pelo receio de ser excluído, num prelúdio da “exclusão final”, ou seja, a morte. Da
mesma forma em que os competidores dos reality shows gastam boa parte de seu tempo e suas
energias tentando evitar serem excluídos do programa, elucubrando artimanhas e armadilhas
aptas a fazerem com que o outro sofra o temido desfecho, as pessoas em geral passam boa parte
de sua vida agindo para evitar as muitas formas de exclusão perpetradas pela modernidade
líquida: a exclusão social (advinda da condição financeira ou como “herança”); o rompimento
de relações de afeto ou profissionais; eliminação nos diversos testes de aptidão (vestibular,
entrevista de emprego, concursos e semelhantes); e, por fim, a doença e a morte.

1
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 09
Bauman revela também um aumento vertiginoso no consumo de “advertências globais”.
Constantemente são veiculados “os setes sintomas do câncer”, “os cinco sinais da obesidade
infantil”, “os dez alimentos que mais elevam o colesterol”, “os carros mais seguros do ano”, “os
bairros mais protegidos”, “os dez passos pata evitar o roubo de seus dados na internet” e uma
longa lista de alertas divulgados de forma constante e dramática através dos meios de
comunicação. Correspondente a isso, surge e se alastra em nossos tempos, um multifacetado
mercado do medo. Vendendo desde casas em condomínios com altos muros e cercados com
toda uma parafernália digna de campos de concentração; passando por serviços de vigilância
24h; carros blindados; alimentos sem gordura, sem sal, sem glúten, sem açúcar, sem
conservantes, sem sabor; aulas de artes marciais (despudoradamente chamadas de técnicas de
defesa pessoal); armamento de todas as formas, tamanhos e efeitos; apólices de seguro para
quase toda atividade humana e as mais criativas formas de se comercializar o que ficou
conhecido como “segurança financeira”, com especialistas prontos a lhe explicar com requintes
de detalhes onde, como, quanto e quando investir para obter o paraíso da tranquilidade no
futuro.
Voltando para o medo da morte, Bauman traz uma análise interessante sobre as formas
como a humanidade procurou, ao longo das eras, minimizar o “medo original”, o medo da
morte. O autor define: “Todas as culturas humanas podem ser decodificadas como mecanismos
engenhosos calculados para tornar suportável a vida com a consciência da morte”. 2
Dentro desta perspectiva, Bauman reduz os estratagemas perpetrados neste intuito a duas
categorias: a primeira se volta para tentativa de negar a finalidade, aparentemente incontestável,
da morte. Surge aqui uma subdivisão:
a) Há os que empreendem esta tentativa vislumbrando possibilidades de continuidade da vida,
nas mais diversas formas, após o evento da morte. Os exemplos mais comuns se fundam
nos ensinos religiosos voltados à reencarnação, aventuras de uma “alma” imortal e
semelhantes.
b) De um outro lado há a perspectivas dos que tentam negar a finitude através das
contribuições realizadas pela pessoa em prol da humanidade. Neste sentido, pessoas que
trabalhem arduamente em vida para o benefício das gerações futuras “nunca morrem”, dado
que seus atos, escritos, lições, descobertas, permanecem válidos e/ou benéficos para
posteridade. Ambas as soluções enfrentam obstáculos, retratados pelo autor.

A tentativa de afastar a preocupação com a eternidade

Um segundo estratagema para lidar com o medo da morte, que segundo o autor se tornam
a regra na modernidade líquida, se volta para a tentativa de afastar a preocupação com a
eternidade. Isso é feito com a desconstrução da morte ou com sua banalização. A desconstrução
se configura na tentativa, típica da promessa moderna de compreensão pela razão, de elucidar
as causas da morte e, assim, preveni-la ou adia-la. Não se pode negar a presença significativa
desta forma de pensamento em nossa rotina. Freud já havia demonstrado que “temos o hábito
de enfatizar a causalidade fortuita da morte, revelando nosso esforço de reduzir a morte de
necessidade à oportunidade”. Com isso, se enfatizam os motivos determinantes que levaram ao
evento morte. Significa dizer que quando a morte ocorre, não se pergunta sobre o que
aconteceu, mas porque aconteceu. Atestados de óbito precisam delimitar, categorizar, explicitar
a causa que levou à morte. Se afasta a condição de normalidade da morte, substituindo-a pela
noção de evitabilidade.

2
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 46
Já a banalização ocorre, em acompanhamento à tendência de desconstrução, através de
diversos mecanismos sutis. A uma, a morte possui hoje simulacros. O divórcio pode ser um
simulacro da viuvez. A fragilidade dos relacionamentos humanos, suas consequências, como já
explicitado, pode ser visualizada como uma experiência de morte ensaiada. A banalização
ocorre também no modo como a morte é retratada pela indústria do entretenimento e na forma
de divulgação midiática das mortes “rotineiras”.
Um segundo grande tópico abordado por Bauman nesta obra é o “mal”: a iniquidade e
perversidade humanas. Segundo o sociólogo “o medo e o mal são irmãos siameses”. Ele
demonstra como a noção de existência de um “mal”, desvinculada da noção metafísica e
desacoplada de sua relação umbilical com o “crime”, residem no pensamento dos homens como
uma fonte fantasmagórica, inexplicável, nebulosa, do medo. Não se consegue definir o que o
“mal” é, quando separados das categorias mencionadas, mas se consegue senti-lo, percebê-lo,
temê-lo. A imprevisibilidade do momento de manifestação do mal é uma das causas principais
de ansiedade na modernidade líquida.
Bauman cita o terremoto de Lisboa de 1755 como o marco temporal em que se deixou
de olhar as catástrofes como desastres “naturais” para serem encarados cada vez mais como
desastres “morais”, ou seja, de modo a colocarem sempre um ser humano, ou um grupo de seres
humanos, como responsáveis pelos ocorridos. Esta mudança de percepção causa um
desconforto e insegurança generalizados, já que revela uma capacidade para o “mal” ampla e
diversificada. Seja o mal causado pela negligência estatal em prover condições ou ajuda para
evitar desastres ou sanar seus resultados (p. ex. furação Katrina, nos EUA), sejam os horrores
perpetrados nos campos de concentração, nos Gulag, Guantánamo e semelhantes, o que se
observa é uma capacidade de iniquidade que nos coloca em posição ininterrupta de
desconfiança. Esta alimenta o medo numa roda viva sem saídas simples ou alívios promissores.
Bauman trabalha ainda o horror do inadministrável. Este se configura nas consequências
trazidas pelo pensamento moderno de progresso, pautado no avanço tecnológico sem uma
preocupação prática genuína com a questão social. As desigualdades econômicas intrínsecas ao
projeto da modernidade nos deixaram órfãos em matéria de habilidades para lidar com questões
morais. Citando Alfred Shcultz, Bauman conclui:

... desmascarar a autoilusão manifestada na fórmula “eu fiz porque”, empregada em


demasia, insistindo em que as ações das criaturas humanas, cronicamente buscando
objetivos, deveriam ser descritas mais em termos de “eu fiz afim de”.3

Os efeitos práticos desta “retirada de véu” são impactantes, uma vez que demonstram o
ser humano como movido por interesses que resultam em ações que tendem a ser justificadas,
com significados atribuídos a estas “ex post facto”. O autor cita uma série de exemplos
desconcertantes. Para ficarmos com um: a revelação de que um dos bombardeios finais dos
EUA sobre a Alemanha, mais especificamente sobre a modesta cidade de Wurzburg (na época
com cerca de 107 mil habitantes), não foi ordenado para “terminar a guerra e assim poupar
centenas de vidas de soldados que de outro modo seriam ceifadas”, mas simplesmente porque
um grande investimento havia sido feito nas pesquisas que tornaram os artefatos enviados (225
Lancasters e 11 Mosquitos – despejando um total de 289 toneladas de poderosos explosivos e
573 toneladas de bombas incendiárias) disponíveis e se desejava desesperadamente conhecer
seu potencial definitivo. A Alemanha em si estava prestes a se render de qualquer forma, mas
como Hermann Knell, que pesquisou extensamente os arquivos e dados relacionados ao
bombardeio (citado por Bauman) revela:

3
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 120
O bombardeio prosseguiu como planejado sem que considerasse a situação militar. A
destruição das cidades alemães continuou até o fim de abril. Aparentemente, uma vez
em curso a máquina militar não podia ser parada. Tinha vida própria. Havia agora todo
equipamento e todos os soldados à disposição. Deve ter sido esse aspecto que fez Harris
decidir que Wurzburg fosse atacada...4

Fatos como os narrados demonstram o quão “inadministrável” a sociedade se tornou.


Como comenta Bauman, “tememos o que não podemos controlar”. A sensação de que a
humanidade se encontra num patamar de loucura incontrolável é traduzida no medo
generalizado e constante, à espera do próximo ato insano a ser perpetrado (seja um ato terrorista
de um grupo de extremistas ou de um jovem armado que desfere disparos numa sala de cinema;
seja uma ação militar; seja a explosão de uma fábrica ou o vazamento de um oleoduto). A
sensação que temos é a de indefensabilidade diante do que pode, a todo momento, sobrevir.
Esse último aspecto é ainda tratado pelo autor no capítulo sobre o terror global. A fim de
não tornar esta resenha demasiadamente extensa não nos debruçaremos sobre este, para poder
tecer comentários finais sobre os dois últimos capítulos.
O penúltimo, tratando de trazer os medos à tona, revela o modo como os mecanismos
utilizados no combate aos medos acima descritos acabam por asseverar a sensação de
insegurança. Podemos resumi-lo na seguinte passagem:

O medo nos estimula a assumir uma ação defensiva, e isso confere proximidade,
tangibilidade e credibilidade às ameaças, genuínas ou supostas, de que ele
presumivelmente emana. É nossa reação à ansiedade que reclassifica a premonição
sombria como realidade cotidiana, dando ao espectro um corpo de carne e osso. O medo
se enraíza em nossos motivos e propósitos, se estabelece em nossas ações e satura
nossas rotinas diárias.5

Medo Líquido

Para Bauman, há três formas do medo afligir as pessoas em nossa sociedade líquida:
1) Pelo medo de não conseguir garantir o futuro, de não conseguir trabalhar ou ter qualquer
tipo de sustento,
2) Pelo medo de não conseguir se fixar na estrutura social, que significa, basicamente, o medo
de perder a posição que se ocupa, de cair para posições vulneráveis e
3) O medo em torno da integridade física.
Bauman também toma o conceito de “medo derivado”. Ao contrário do medo primário, o
medo derivado (que é secundário) é um medo inculcado socialmente. O medo primário se trata
do medo da morte na sua forma mais pura: é o medo de levar um tiro quando se está na guerra;
já o medo secundário é aquele que nos obriga a seguir pelo caminho mais longo para não
passarmos pelo meio da favela.
Este conceito, me parece, toma emprestado as características do conceito de habitus, de
Bourdieu, pois o medo secundário é uma propulsão, ele trabalha enquanto disposição
socialmente incorporada. Para este medo, há práticas socialmente aceitas e incorporadas que
representam sua fuga.
Para onde estas análises levam? Primeiramente para a constatação de que trocamos
segurança por proteção. Existe uma diferença (não muito tratada neste livro, mas bem explicada
em “Comunidade”). Basicamente, segurança é aquilo que nos constitui. Proteção são
equipamentos. Segurança - interior, proteção - exterior. Ser inseguro (como explicita a análise
4
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 122
5
BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. p. 173
de Bauman) é ser um sujeito constituído de tal forma que a incerteza, a liquidez das relações e o
medo de tudo, são características a priori. A priori histórico, claro.

Em entrevista publicada em janeiro de 2016 ao jornal espanhol ‘El País’, Zygmunt


Bauman afirmou, ao ser questionado sobre o antagonismo entre segurança e liberdade
que, “Esses são dois valores que são tremendamente difíceis de conciliar. Se você quer
mais segurança, terá que abrir mão de certa quantidade de liberdade; se você quer mais
liberdade, terá que abrir mão de segurança. (…) Há quarenta anos acreditamos que a
liberdade havia triunfado e começamos uma orgia de consumismo. Tudo parecia
possível via empréstimo de dinheiro: carros, casas… e você pagava depois. O chamado
à realidade de 2008 foi amargo, quando os empréstimos secaram”. Historicamente
percebemos que a chamada modernidade sólida fez uma opção pela segurança, ao criar
padrões, apostar na durabilidade e confiança em tudo aquilo que era culturalmente
construído.

Segurança essa que dependia, até certo ponto, da imposição dos valores, do apego às
tradições e do respeito às autoridades. Contudo, a segunda metade do século XX foi
marcada por movimentos em prol da liberdade, com protagonismo dos jovens inclusive.
Podemos citar como exemplos os hippies e os negros nos EUA, os movimentos de maio
de 68 na França, o tropicalismo e o movimento estudantil no Brasil, entre outros.
O que muitos teóricos sociais, como Jean-François Lyotard e Jean Baudrillard, chamam
de pós-modernidade, Zygmunt Bauman denomina modernidade líquida, para se referir
ao momento histórico em questão, profundamente marcado pela contestação e quebra
dos padrões até então vigentes. A “revolução” em curso atacava a segurança em nome
da liberdade que, segundo Bauman, trouxe consigo uma sensação de “vazio” que nos
fez recorrer ao consumismo como antídoto e meio para a conquista da felicidade.
Entretanto, como mencionado anteriormente, o preço a ser pago foi ainda maior na
medida em que desfrutar da liberdade tem como efeito colateral a perda da segurança.
Psicologicamente estamos cada vez mais tomados pela incerteza, insegurança,
instabilidade e medo.

A vida líquida flui ou se arrasta de um desafio para outro e de um episódio para outro, e
o hábito comum dos desafios e episódios é sua tendência a terem vida curta. Pode-se
presumir o mesmo em relação à expectativa de vida dos medos que atualmente afligem
as nossas esperanças. Além disso, muitos medos entram em nossa vida juntamente com
os remédios sobre os quais muitas vezes você ouviu falar antes de ser atemorizado pelos
males que esses prometem remediar. (BAUMAN, 2008, p. 14)

Se trata de dizer que o inseguro é aquele que fica olhando o celular do parceiro para saber
se ele ou ela está traindo. Já a proteção pode ser vista no número de câmeras instaladas em
estabelecimento/condomínios/instituições, coletes à prova de balas, armas que são compradas
para se usar “contra bandidos”, senhas para impedir que qualquer um veja a tela de seu celular e
etc.

A cidade

Este princípio da proteção como solução para a insegurança também é vista fora dos
equipamentos para a guarda da integridade física: ao citar a cidade como um local de encontro,
como um espaço mixofílico e mixofóbico, ele trata de estabelecer alguns paralelos entre a
arquitetura urbana e a insegurança pós-moderna.
A cidade é o lugar do encontro, da mistura, do novo, da efervescência, é o lugar onde
tudo e todos se encontram mesmo sem querer se encontrar, é o lugar onde estar com quem não
se conhece é um pressuposto, é um termo aceito tacitamente e, por isso, ela é um espaço
mixofílico (que promove a mistura, que faz da mistura um gosto aceitável e aprovável). No
entanto, a sujeira precisa ser limpa. É na cidade onde pode-se encontrar os resultados da
exclusão: os mendigos, as favelas e seus moradores, todos estes estranhos são seres que
provocam o desprezo e a repulsa dos cidadãos ditos normais. A mixofobia (a repulsa pelo
estranho) é vista materialmente de forma peculiar.
Ao invés de utilizar o exemplo de Bauman, prefiro me referir à Avenida Paulista. A
Paulista é a principal avenida paulista, é o centro financeiro da cidade e, como é de se esperar, é
um antro da exclusão, do comportamento blasé e da normatização hegemônica. Em frente aos
grandes prédios, além dos vários seguranças que efetivamente estão lá para espantar os
excluídos, há a presença de longas barras de ferro cheias de pontas que ficam acopladas em
frente as vitrines. Qual o motivo? Mendigo não dormir. Isto é uma expressão clara da
mixofobia.

A mídia

Segundo Bauman, a sociedade é um dispositivo que visa tornar tolerável a experiência da


vida tendo a certeza da morte. Para ele, há duas formas de se lidar com a morte:
1) A desconstruindo, ou seja, detalhando completamente suas causas de maneira que, no fim,
parece que ela poderia ser evitada e
2) A banalizando, que quer dizer, mostrá-la como algo do cotidiano.
O programa do Datena é o exemplo perfeito de ambos. Brasil Urgente tem a enorme
vantagem de falar, basicamente, só de desgraça. Os acidentes de carro são descritos
minunciosamente e a culpa é sempre de um motorista bêbado ou distraído. A morte não é um
fato, é um acidente, de acordo com o discurso do programa. Além disso, a quantidade de mortes
ali já deixa claro a banalização do acontecimento.
A morte não é só, digamos, morrer. Bauman coloca graus de morte, mas enquanto
relação para quem sente: a morte em primeiro grau é, de fato, a morte, é deixar de existir; já a
morte em segundo grau (que seria a experiência primária de um sujeito vivo com a morte) seria
a morte do outro, a morte de quem nos relacionávamos; enquanto a morte em terceiro grau é a
quebra do relacionamento, a exclusão (e é a experiência secundária que se pode ter da morte).
O ponto alto deste capítulo é a relação da experiência secundária da morte como uma
experiência banal e cotidiana (e que produz insegurança), já o exemplo (incrível) de Bauman
são os reality show, como o Big Brother, em que os participantes têm como pressuposto a
exclusão. Eles precisam quebrar os relacionamentos em algum momento, pois só um saíra
vencedor. O Big Brother, sendo um produto cultural, é também parte de nossa sociedade e nele
é possível enxergar um pouco de sua lógica.
A liquidez moderna resulta em uma infinidade de experiências secundárias da morte, de
exclusão e, portanto, na construção cotidiana e tijolo por tijolo de uma insegurança estrutural.
Insegurança essa, que promove a criação e a utilização de técnicas e tecnologias para a
proteção.
O papel da mídia também se mostra importantíssimo por ser aquilo que espalha o medo.
O medo não é mais o que se escuta nos contos, nos mitos, nas reuniões de família, nas
agremiações e etc e etc. Ela é vista cotidianamente pela televisão, pelos jornais, pela internet e
etc e etc.
Bauman cita a Al-Qaeda. Antes do 11 de setembro, eram alguma coisa? E depois?

A responsabilidade
Uma grande sacada está na análise da responsabilidade humana por seus problemas.
Bauman verifica que, a partir de Rousseau, a posição da humanidade em torno dos desastres
naturais se modificou. Os desastres naturais, únicos que poderiam escapar da responsabilidade
humana e serem imputados aos deuses, ao acaso e etc, acabam tendo o foco modificado.
Rousseau diz que o desastre natural ocorrido em Lisboa (e que vitimou milhares), não pode ser
tido como algo “que acontece”, mas sim como a falta de planejamento das pessoas que
moravam nos locais em perigo. O desastre acontece, mas as pessoas podem evitá-lo.
O que ele quer dizer com isso? Ao traçar essa divisão entre o momento em que a
responsabilidade não pode ser evitada, ele consegue argumentar que, em um sistema complexo
e global, em uma rede tão interligada, não há como não ter responsabilidade sobre seus próprios
atos e sobre os seus resultados macro. O micro é a engrenagem do macro. É impossível retirar o
corpo da jogada.

Referências

BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido. tradução, Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2008.

_________. Europa: uma aventura inacabada. Trad. de Carlos Alberto Medeiros. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

_________. Confiança e medo na cidade. Trad. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2009.

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